quinta-feira, 30 de abril de 2009

Vergonha e Moral

No post anterior, quando procurei apreender um traço dos indivíduos que são acusados publicamente de serem "corruptos" ou "abusadores" pelos meios de comunicação social, afirmei que "a mediocridade satisfeita perdeu a vergonha", para mostrar que eles agem, pelo menos, na aparência, como se não tivessem vergonha de ser alvo da crítica, da censura e do repúdio dos outros. A conduta de certas figuras públicas é censurada pelos outros e, no entanto, as pessoas visadas agem como se fossem imunes à censura e à indignação do público. Com esta reacção de indiferença moral, colocam-se à margem do cosmos moral, rejeitando a reciprocidade das exigências morais. E, como parecem não-querer assumir na sua identidade o ser-assim, como membro da sociedade ou parceiro cooperativo, não sentem vergonha quando ferem as normas da sociedade, embora se mostrem indignados quando os outros as quebram. Em termos de psicopatologia, o facto de não se envergonharem, mesmo quando são alvo de acusações injustas e invejosas, como sucede frequentemente em Portugal, revela uma "lack of moral sense" (D.W. Winnicott), isto é, um defeito da consciência moral. Nos tempos sombrios que correm, a saúde mental daqueles que assumem cargos de enorme responsabilidade política ou pública deve preocupar todos os membros da sociedade. A comunidade não pode nem deve ser condescendente com os indivíduos que não sejam aptos para assumir saudavelmente responsabilidade política: quem não quer entender-se como membro do cosmos moral carece de consciência moral e, por isso, não merece a confiança dos que querem participar, activa e responsavelmente, mediante exigências recíprocas em função do seu conceito de ser-bom, nesse mesmo cosmos.
Uma pessoa sente vergonha em determinadas circunstâncias, tais como a posse de qualidades estigmatizadas pelas quais sente vergonha, a má realização de capacidades e habilidades que são importantes para si e o sentir-se desprezível pelo facto de considerar o seu comportamento como moralmente mau ou então como meramente desprezível. O sentimento de culpa permite distinguir a vergonha moral da vergonha no seu sentido mais abrangente. A admiração como ser humano constitui o correlato positivo da vergonha, a qual só adquire o seu sentido moral quando se liga ao sentimento de culpa. A vergonha está relacionada com o "não-ser bom", enquanto o sentimento de culpa se relaciona com a violação do "tem de ser". A auto-estima de um indivíduo resulta da consciência que tem de ser bom nas capacidades e habilidades que considera serem de tal modo importantes para si que fazem parte da sua identidade: o seu sentimento de auto-estima depende do facto de "ser bom" nas suas capacidades e habilidades. Porém, quando sente que desempenhou mal tais capacidades e habilidades, reage com vergonha, quer esteja na presença efectiva de outros considerados competentes, quer esteja sozinho diante de um público possível. Mas, quando sente que agiu em conformidade com as exigências morais da sua comunidade, é alvo de admiração e de respeito daqueles que estão mais próximos de si. A sua auto-estima eleva-se e o sentimento de culpa não assombra a sua consciência moral.
Se definirmos, em termos muito sumários, a moral como um cosmos de exigências recíprocas em torno da noção de ser-bom, isto é, como um "sistema de normas que existe numa sociedade devido à pressão social" (E. Tugendhart), o indivíduo deve agir de modo a não ferir a noção de ser-bom partilhada pela comunidade a que quer pertencer: deve querer o que "tem de ser", porque só assim pode ser membro de um cosmos moral. Ao ser sensível à censura e à indignação dos outros, sente vergonha sempre que fere os padrões de valor da sua comunidade e a sua auto-estima é baixa. Ora, quando perde a vergonha, um indivíduo deixa de ser capaz de sentir culpa por ter agido de modo não-congruente com aquilo a que a sua comunidade espera dele, isto é, que seja um homem-bom. Ser desvergonhado significa, em última instância, ser imoral, no sentido de não ser sensível à indignação dos outros, de não sentir culpa por violar as normas morais e de ser destituído de consciência moral. De certo modo, o indivíduo sem vergonha aproxima-se muito do "homem amoral" de Bernard Williams: um parasita do sistema moral, cuja satisfação só pode existir porque as outras pessoas agem de modo diferente, dado estarem empenhadas e envolvidas no cosmos moral da sua comunidade.
Na Antiguidade Clássica, a ética que definia a conduta própria do homem enquanto cidadão era uma parte e um aspecto da filosofia política. A filosofia das coisas humanas foi abordada em dois tratados de Aristóteles: a "Ética a Nicómaco" que se ocupa dos cidadãos, e a "Política" que trata das instituições cívicas: a ética precede a política, porque a vida boa do cidadão é a razão de ser da polis. Aristóteles chamava bom (no sentido moral) àquele cidadão que, sendo membro da comunidade, se comporta como parceiro cooperativo: uma acção só é boa quando é a acção de um homem bom, o que significa que o bom está ligado fundamentalmente a pessoas e ao seu carácter. Aristóteles definiu a vergonha "como um certo desgosto ou perturbação de espírito relativamente a vícios, presentes, passados ou futuros, susceptíveis de comportar uma perda de reputação", e a desvergonha, como um "certo desprezo ou insensibilidade perante estes mesmos vícios". Os vícios de carácter visados são aqueles que "parecem desonrosos, quer para nós, quer para as pessoas por quem nos interessamos": os actos que nos envergonham, ou os seus sinais, afectam a perda de reputação, não por causa das suas consequências, mas por causa da perda em si mesma. Tememos perder a admiração das pessoas que nos admiram, das pessoas que admiramos e das pessoas por quem queremos ser admirados, e é diante delas que sentimos vergonha. G. Taylor definiu a vergonha como o sentimento de perda de auto-estima aos olhos dos outros e, como tal, refere-se à consciência que um indivíduo tem de "não-ser bom", não apenas nas capacidades e habilidades, mas também na capacidade de ser um bom agente cooperativo. A vergonha moral, a única que interessava Aristóteles, é precisamente a reacção emocional que toma conta do homem quando fracassa moralmente como agente cooperativo. O homem pertence a uma comunidade de pessoas que, mediante a sanção interna da indignação e da vergonha, exigem umas às outras que as normas constitutivas da sua identidade não sejam quebradas. Os membros de uma comunidade devem querer ser-assim e ser-bons. O ter-de-ser-assim é precedido por um eu-quero ser membro de um cosmos moral e agir de acordo com as suas exigências morais recíprocas. Porém, quando age contra essas exigências, é alvo de uma sanção que interiorizou na vergonha e da indignação dos outros. Deste modo, forma-se a consciência moral: a vergonha e a culpa resultam da interiorização de sanções externas. Quando um indivíduo viola normas morais, expõe-se ao desdém dos outros e, dado ter interiorizado a sanção, ao desdém de si mesmo. O princípio do respeito recíproco defendido por Tugendhart afirma que todos os indivíduos pertencentes a uma comunidade revelam interesse em ter respeito por si próprios e em serem respeitados pelos outros enquanto pessoas. Nesta perspectiva, as normas morais só são boas para mim se forem também boas para os outros: a comunidade a que pertencemos não é uma comunidade constituída por normas ao serviço da utilidade recíproca (Mackie), mas a comunidade constituída por normas, cujo sentido expressa o respeito recíproco. O auto-respeito exige o respeito recíproco: só nos podemos afirmar se formos estimados por outros que se comportam de modo a merecerem respeito e a poderem também ser estimados por nós. O indivíduo que se comporta de forma amoral é ameaçado no seu auto-respeito, isto é, na sua auto-estima. Tugendhart defende, portanto, uma moral do respeito recíproco que converge no princípio universalista do igual respeito por cada um.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 28 de abril de 2009

Prós e Contras: Pensar Portugal

Prós e Contras debateu hoje à noite (27 de Abril de 2009), na RTP1, o tema da revolução do 25 de Abril de 1974, embora tenha mudado o título e a própria linha de orientação, destacando especialmente a questão da justiça: "A Revolução Falhou?" cedeu o lugar a "Pensar Portugal", como se, num puro passo de magia, fosse possível desvincular o futuro de Portugal do seu passado marcante, atribuindo as nossas fragilidades presentes exclusivamente à crise financeira e económica. No entanto, os convidados permaneceram os mesmos: Mário Soares, Leonor Beleza, Anacoreta Correia e Sampaio da Nóvoa, no palco, e um grupo alargado de estudantes universitários, na plateia.
É provável que a presença de Mário Soares tenha contribuído para esta mudança de títulos e de orientações, porque, como sabemos, a sua visão da revolução dos cravos é muito "rosa". Mário Soares não aceita questionar os "3 D's da revolução de Abril" (Anacoreta Correia): democratização, descolonização e desenvolvimento. Ninguém duvida da reviravolta crucial e desejada operada pela revolução, a passagem de uma sociedade fechada e autoritária para uma sociedade aberta e democrática, a democracia pluralista, que possibilitou o fim das guerras coloniais e a entrada posterior de Portugal na União Europeia, incluindo a zona Euro, mas a "falha da justiça" e os "julgamentos na praça pública" constituem indicadores históricos de que a própria democratização não caminhou, nestes últimos 35 anos, na direcção certa de maior transparência e responsabilidade acrescida de "cumprir a Lei" (Leonor Beleza). Não adianta acentuar o carácter global e extranacional da actual crise económica e financeira, aliás inquestionável, para justificar as nossas fragilidades presentes, porque o facto da crise vir de fora não iliba os dirigentes nacionais da sua responsabilidade: quem governa (e não os que são governados) deve ser responsabilizado moral e politicamente pela sua acção. Esta distinção entre governantes e governados define o poder desde a filosofia política de Platão e de Aristóteles, e até mesmo Marx que culmina a tradição política do Ocidente herdou esta mesma noção de poder político. Desresponsabilizar os políticos é contribuir para o descrédito da política e a degradação das instituições: a política como "actividade nobre" (Mário Soares) foi reabilitada por Karl Marx, mas o triunfo do neoliberalismo corrompeu a sua dignidade, dado ter eliminado o conflito ideológico e o carácter teórico da política. O resultado desta perversão da política foi precisamente "a mistura promíscua entre a política e os negócios" (Mário Soares). Com base no seu exemplo, Soares afirmou que "a política não faz nem deve fazer negócios", devendo promover o interesse nacional e não os interesses privados, aliás uma perspectiva claramente hegeliana da função do Estado: o Estado como instância situada acima dos interesses privados que geram conflitos na sociedade civil. Ora, a actual crise mostra que houve promiscuidade entre a política e os negócios, o factor que mais contribuiu, em Portugal, para a degradação da política e para o descrédito das instituições: a corrupção está aí ou anda por aí. Leonor Beleza reconheceu, de modo mais claro, que "há um problema de credibilidade da política independentemente da crise", cuja duração é incerta, o que torna a "vida mais difícil", mas, quando condenou a "atitude dos treinadores de bancada", acabou por iludir esse problema: o "convite à participação" (Sampaio da Nóvoa) é uma proposta irrealista, porque, no decurso do processo revolucionário, os políticos ajudaram a criar nas pessoas a terrível ideia de que a vida é fácil, bastando reivindicar. Deste modo, e com base na destruição do rigor do ensino, levada a cabo depois do 25 de Abril, a cidadania passou a ser vista como dependência quase infantil dos cidadãos em relação ao Estado: o cidadão limita-se a pedir aos outros, neste caso, aos políticos, o que, ele próprio, não faz mas que devia fazer, participando, de algum modo, no processo de tomada de decisão.
A actual crise financeira e económica foi explicada, tanto por Mário Soares como por Leonor Beleza, com o recurso a uma grande narrativa, a teoria da queda dos dois muros ou da dupla-queda, construída a partir da convicção firme de que Portugal não pode superar esta "crise global sem o concurso da União Europeia" (Mário Soares): A queda do muro de Berlim pôs termo ao comunismo e à visão de um mundo bipolar, e a recente queda de Wall Street marca o fim da era neoliberal e, nas palavras de Obama, o início de uma Nova Era. Mário Soares acredita que o comunismo e o neoliberalismo foram afastados do horizonte da história futura, que começou com a presidência de Obama. Durante o período dos dois blocos, o chamado mundo livre, que aceitava a presença da ditadura salazarista na NATO, era contido, porque temia o bloco soviético, mas, depois da queda do muro de Berlim, isto é, do colapso inesperado do comunismo, os USA pensaram que eram os "donos do mundo": a globalização foi promovida pelo neoliberalismo, em nome do fim das ideologias e do advento próximo de uma sociedade capaz de eliminar a pobreza em todo o mundo. Segundo Mário Soares, "os jovens foram vigarizados" pelo discurso neoliberal, mas conseguiram acordar para a política nobre aquando da eleição de Obama. O neoliberalismo implodiu com a crise financeira e económica. Os USA preparam-se para entrar numa Nova Era, enquanto a Europa recusa aceitar a necessidade de mudar, pensando que "tudo voltará ao mesmo" com um mínimo de mudanças introduzidas, correndo o risco de perder o seu lugar cimeiro na arena global. A globalização é inexorável e não depende de uma decisão política (Leonor Beleza). Para Mário Soares, o que está em causa não é o capitalismo, mas o fim da especulação bolsista que conduziu à crise financeira: precisamos de um capitalismo com preocupação social, isto é, dotado de todos os valores que foram considerados superados pelo neoliberalismo, incluindo o regresso das ideologias. Leonor Beleza encara a crise global como "oportunidade para mudar": a Europa deve unir-se e aprovar o Tratado de Lisboa. O euro é o nosso escudo contra a crise, sem o qual estaríamos numa situação deveras periclitante. A queda dos dois muros coloca novos desafios (António Sampaio da Nóvoa), em especial a emergência de culturas globais, o multiculturalismo, a diversidade étnica emergente na Europa, a necessidade de reinventar ou criar novas formas de participação, a coexistência de diversos centros de decisão nacionais e mundiais, a credibilização e a recuperação do prestígio das instituições, tais como as universidades vistas como as "peças centrais" para superar a crise, e, no caso específico de Portugal, a necessidade de eleger governos de maioria absoluta (Leonor Beleza).
Quanto ao problema da justiça portuguesa, todos foram unânimes na sua denúncia e na sua crítica severa, embora a crítica de Leonor Beleza tenha sido a mais radical. Enquanto Mário Soares reconheceu que a justiça "vai mal" em Portugal, denunciando o "conluio entre a imprensa e a justiça" fomentado e protegido pelos grupos económicos que concentram nas suas mãos o controle da comunicação social, Leonor Beleza considera que "as coisas estão mal", porque a "relação entre agentes judiciais e jornalistas é podre", exemplificando-a com um episódio que testemunhou de uma interrupção de um acto judicial por causa do telefonema de um jornalista. Embora devam cumprir a lei, "os agentes judiciais não a cumprem": o segredo de justiça é sistematicamente violado (Leonor Beleza), as entrevistas dadas pelos magistrados desprestigia a justiça (Mário Soares), a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poderosos grupos económicos obriga os jornalistas a fazer aquilo que os directores lhes mandam, sob pena de serem despedidos (Mário Soares), todos os meios de comunicação, com excepção da televisão pública, repetem-se (Mário Soares), e os magistrados revelam um "excesso de protagonismo" e de abuso de poder, como sucedeu no caso Pedroso, em que o juiz entra no Parlamento para o deter, sem respeitar a autonomia do poder legislativo (Leonor Beleza). Ora, os agentes da justiça devem cumprir a sua missão, "sem pôr em causa o seu lugar e o lugar dos outros" (Leonor Beleza). Os seus "corpos" são dotados de poderes disciplinares: compete-lhes garantir "procedimentos de auto-disciplina" e assumir a "responsabilidade de cumprir a Lei", antes de a aplicarem aos outros. A sua autonomia "aumenta as suas responsabilidades" e compete aos seus membros iniciar a mudança e melhorar a qualidade da justiça, dado os seus "corpos serem auto-regulados". Mário Soares partilhou esta perspectiva: o Ministério Público, em vez de querer ser visto e escutado pelos meios de comunicação social, é "réu deste protagonismo mediático" e os seus melhores membros devem dar o exemplo para mudar a imagem da justiça, de modo a eliminar o descrédito dos magistrados mediáticos: "a sociedade precisa acreditar em si própria e nas suas instituições" (Leonor Beleza). Anacoreta Correira denunciou a morosidade da justiça portuguesa, destacando o desfasamento temporal entre o julgamento dos jornalistas e o julgamento dos juízes, e o facto dos corpos judiciários começarem a "comportar-se corporativamente", isto é, como corporações fechadas. Como estes corpos se fecharam e não se regulam, torna-se necessário "adoptar procedimentos que acelerem a justiça", tarefa que compete à política que deve fazer boas leis. Segundo Sampaio da Nóvoa, a justiça, tal como outras instituições, "lida mal com a comunicação social". Apesar da sociedade da comunicação não tolerar o sigilo, é preciso conservar algumas "fronteiras da lei e da ética". Actualmente, as instituições sentem a necessidade de comunicar com a sociedade, mas "fazem-no mal", conforme observou Umberto Eco: o excesso de informação que circula mata a própria comunicação.
Fátima Campos Ferreira tem procurado chamar a nossa atenção para a crise de valores. Porém, essa crise é tão velha quanto a sociedade moderna burguesa: o niilismo é algo já muito idoso, mais velho do que a figura que lhe deu rosto, Nietzsche. Numa sociedade como a nossa, em que o poder político, os meios de comunicação e as elites só difundem fatalismo, engano, mentira, meias-verdades e submissão, a moralização é feita para esconder a sua podridão: a sociedade portuguesa está a morrer, porque os seus lideres não permitem que os portugueses vivam como homens e como cidadãos responsáveis. Independentemente do lugar que ocupam no espectro político, os dirigentes nacionais abraçaram quase todos o espírito conservador, desvinculando-o do passado e do compromisso do futuro, e entregando-se exclusivamente à procura da sua própria segurança: garantir os seus direitos adquiridos no decorrer de um processo escuro de acumulação de capital e de privilégios. Açambarcaram a economia e os empregos bem remunerados e limpos e deixaram os outros entregues à luta pelo pão e ao desemprego. A crise especificamente antropológica é, em Portugal, a falta de vergonha na cara: a mediocridade satisfeita perdeu a vergonha. Os convidados reconheceram, de algum modo, a crise de valores, que entrou no debate a partir de uma questão colocada por um estudante universitário: Leonor Beleza associou-a engenhosamente ao discurso do fim das ideologias e, portanto, ao predomínio do pensamento unidimensional (Marcuse).
Termino este post retomando as questões que foram colocadas na apresentação inicial deste debate. "Para onde caminha o país?" Para a abismo, o sem-mundo e o sem-abrigo. A actual crise financeira e económica revela, agravando-as, as fragilidades estruturais da economia, da sociedade e da cultura portuguesas.
Competitividade. Em Portugal, não existe competitividade, porque o sistema nacional não se orienta pelo mérito, assegurando a igualdade de oportunidades e estimulando a livre iniciativa (onde está a democratização bem sucedida?), mas sim pelo cunhismo e pela hereditariedade familiar. A ausência de competitividade foi abordada por Sampaio da Nóvoa e por Leonor Beleza: "as universidades são centrais para ajudar a superar a crise" financeira e económica. Mas, para desempenhar essa missão, precisam de "ajuda do Estado", porque sozinhas não se "auto-reformam", e de "juntar as lideranças mais activas". As universidades devem ser dotadas de "lideranças fortes", "autonomia" e "responsabilização". Isto significa que, quando as universidades estiverem preparadas para responder à crise, a crise já pertence ao passado: as universidades portuguesas estão, elas próprias, em crise, e, se no passado recente, os "movimentos académicos foram decisivos para a formação de políticos", conforme lembrou Mário Soares, no momento presente, as universidades limitam-se a distribuir diplomas a indivíduos que dedicam mais tempo à diversão das praxes académicas do que a estudar o pouco que lhes é exigido pelos professores. O discurso de Sampaio da Nóvoa foi, a este propósito, muito engenhoso, quando expõe o dilema das universidades: a escolha entre um modelo democrático e participativo e um modelo empresarial e eficiente. É evidente que qualquer um dos modelos não é favorável ao bom funcionamento das universidades: os estudantes podem não estar preparados para participar responsavelmente na vida académica, e o discurso da eficiência e da eficácia pode pôr em causa a qualidade do ensino. O certo é que, tal como outras instituições, as universidade perderam "crédito e prestígio". A "democracia dá muito trabalho", porque foi banalizada e generalizada estupidamente a todas as instituições da sociedade: o discurso da concertação social e do consenso nivela tudo na mediocridade. A sociedade está cada vez mais intolerante: não tolera a diferença e a competência. Em vez de reclamar direitos e mais direitos, os estudantes deviam estudar e preparar-se para assumir responsabilidade no futuro do país e os professores deviam preparar melhor as matérias que leccionam. Mas, na realidade, nem os professores ensinam, nem os alunos aprendem: "as universidades precisam (efectivamente) juntar lideranças mais activas", isto é, renovar o seu corpo docente, usando critérios de real competência e não critérios burocráticos e/ou corruptos. Só quando isso acontecer é que podemos confiar no discurso da inovação, da investigação, das qualificações e das novas tecnologias.
Justiça. Não existe ou, se existe, funciona mal, porque o sistema vigente agravou as desigualdade sociais, produzindo um excesso de pobreza que deve envergonhar a democracia vigente e os seus responsáveis políticos. Todos os convidados reconheceram que, em Portugal, a justiça "está mal", mas, com excepção de Sampaio da Nóvoa, não focaram o problema das desigualdades sociais e das assimetrias de poder que limitam o exercício saudável da cidadania. A justiça não é somente uma questão dos tribunais, mas também e fundamentalmente uma questão política. A aposta no desenvolvimento e, através deste, no combate à pobreza, falhou redondamente: as desigualdades sociais estão a agravar-se e os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres. As desigualdades sociais traduzem-se em acessos desiguais à informação e ao conhecimento e as escolas não estão a cobrir esta lacuna sistémica. A redução da justiça a uma questão de tribunal ou de Ministério Público é democraticamente intolerável: só os instalados e satisfeitos com o sistema têm uma tal visão da justiça, porque precisam dos tribunais e dos corpos policiais para proteger as suas pessoas, os seus bens e os seus privilégios.
Democracia. Foi usada em benefício próprio pelas novas classes dirigentes. O rapto da democracia evidencia-se, nesta crise financeira e económica, como cleptocracia: os poderes nacionais foram capturados por homens que os usaram, não para perseguir e promover o interesse nacional, mas quase exclusivamente em proveito próprio. A captura de democracia é sinónimo de corrupção generalizada. Anacoreta Correia falou da crise da democracia representativa: o modelo vertical confronta-se com um modelo horizontal que ameaça a própria governação e a governabilidade do país. A democracia participativa parece estar na ordem do dia, apesar das pessoas não estarem preparadas para exercer saudavelmente a cidadania. De facto, como afirmou Sampaio da Nóvoa, "a cidadania não é um discurso, mas uma prática": o seu pleno exercício exige o combate das desigualdades sociais e das assimetrias de poder. A comunicação social controlada por grupos económicos não tem ajudado a aprofundar a democracia; pelo contrário, a sua "simbiose com a política" (Anacoreta Correia) degrada não só a política, reduzindo-a a "tricas", mas também a própria qualidade da democracia e da opinião pública: a proposta de Anacoreta Correia é a da "cooperação interpartidária", tal como se manifestou nos casos de Timor e da adesão à União europeia e à zona Euro. É certo que a democracia dificilmente é imaginável sem partidos políticos, mas o descrédito da política passa precisamente pela estrutura e pelo funcionamento dos próprios partidos políticos e pela qualidade das suas lideranças.
"Será que o 25 de Abril falhou? Os ideais da Revolução estão a ser cumpridos?" É evidente que o sistema democrático vigente, a versão triunfante do 25 de Abril, não produziu os resultados desejados e esperados: em vez de justiça, produziu injustiça e um excesso de pobreza ímpar na história de Portugal; em vez de liberdade e de responsabilidade, o regime político confiscou a palavra ao povo, sem assumir a sua própria responsabilidade pela miséria e pela mediocridade que produziu, produz e promete continuar a produzir; em vez de ensino de qualidade e de verdadeira educação, a democracia portuguesa destruiu a escola e a cultura, entregando o povo à ignorância activa revestida de pseudo-diplomas; em vez de uma economia forte e competitiva, o sistema criou uma economia dependente do Estado, estimulando uma interface favorável à corrupção nacional; enfim, em vez de um desenvolvimento global do país, o sistema concentrou-se em Lisboa, condenando o resto do país à miséria. Portugal herdou do passado fascista uma população pouco preparada para uma vida democrática e civilizada: o 25 de Abril não a educou, apenas a alimentou (e mal) sem cuidar da sua alma. Esta geração passada está irremediavelmente perdida: é um arcaísmo que arrastaremos até ao fim. Mas a geração que protagonizou o 25 de Abril, os grisalhos de hoje, não soube cuidar do futuro: as gerações futuras, já nascidas e ainda-não-nascidas, estão perdidas e, o que é mais preocupante, completamente hipotecadas. Esta é a verdade terrível de Portugal e, talvez, do Ocidente: em vez de humanos, o Ocidente confronta-se com a emergência de "gado humano", constituído por moléculas de mau colesterol. O Futuro escapa-nos das mãos, porque não podemos confiar na competência e na integridade dos que nos governaram (passado), governam (presente) e governarão (futuro). O reino da mediocridade satisfeita é o nosso inimigo mortal. A periferia de Portugal não é suficiente para justificar o seu atraso estrutural: a inércia portuguesa reside no seu elemento humano, uma população incapaz de assumir responsabilidade e de imprimir um novo rumo nacional, para além da mera subsistência animal.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 25 de abril de 2009

25 de Abril: A Revolução Traída?

«Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo». (Sophia de Mello Breyner Andresen)
Pensar o 25 de Abril de 1974 é, nesta situação presente de crise financeira e económica profunda, confrontar a revolução dos cravos vermelhos com aquilo que prometeu e que não cumpriu: o "descobrimento" de um "mundo recomeçado a partir da praia pura" (Sophia). António Costa, um homem que se diz socialista, insurgiu-se contra todos aqueles que falam de corrupção, contando um episódio que sucedeu com Jorge Sampaio. Num passeio de rua, uma figura popular gritou "Gatunos" à passagem de Sampaio e este, indignado, voltou atrás e, agarrando-o pelo braço, perguntou-lhe: "O que lhe roubei?". Este episódio insignificante revela claramente que a promessa do 25 de Abril foi traída pela classe de dirigentes políticos: a reacção de Jorge Sampaio foi precipitada e insensível ao sentir profundo dos portugueses, como se quisesse fazer da sua "meia verdade" toda a verdade, confiscando a palavra ao outro e negando-lhe o rosto. Portugal anseia pela verdade inteira e, nesta hora de ofuscamento e de corrupção do "tempo terrestre", "é preciso dizer a verdade toda, mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo" (Sophia), porque a meia verdade narrada pela classe política estabelecida "é como habitar meio quarto, ganhar meio salário, como só ter direito a metade da vida" (Sophia). "Com fúria e raiva", a figura popular, tão desprezada pela classe política estabelecida que governa Portugal como se governasse à sua própria conta bancária, acusa "o demagogo e o seu capitalismo das palavras" (Sophia), urdidas na teia do fatalismo economicista, o discurso oficial que nos condena eternamente à pobreza, à miséria e ao agravamento das assimetrias de poder e das desigualdades sociais. A invocação do povo nas comemorações oficiais do 25 de Abril é profundamente hipócrita: condenado à condição de sem-abrigo, o povo foi traído por todos aqueles que, sem o conhecer verdadeiramente, falam em seu nome e, nesse gesto arrogante, lhe confiscam a "palavra sagrada" na qual o homem "sabe de si" (Sophia).
Existem duas versões do 25 de Abril: a meia verdade comemorada pelas classes dirigentes sediadas em espaços da noite e do silêncio, envolvida em demagogia e falsidade, e a ânsia pela verdade inteira manifestada por Portugal, pela língua e pelo seu povo. Uma revolução é, poeticamente falando, "casa limpa", "chão varrido", "porta aberta", "puro início", "tempo novo sem mancha nem vício", "interior de um povo", "página em branco onde o poema emerge", enfim, arquitectura onde o homem ergue a "sua habitação" (Sophia). O 25 de Abril prometeu um tempo absolutamente novo para Portugal, um mundo melhor onde o homem pudesse habitar e morar "em memória e demora" o seu "breve encontro com a vida" (Sophia), mas, decorridos 35 anos, continuamos a habitar a noite e o silêncio, o sem-mundo, o abismo que ameaça mergulhar Portugal na noite mais terrível da sua história milenar. O devir não foi inocente nem justo; fluiu a favor dos interesses das classes dirigentes instaladas em todas as esferas de decisão nacional e do seu séquito de oportunistas, as chamadas elites nacionais que traíram a língua onde a alma do povo português está "confiada" (Sophia). No puro início da revolução, aquele momento maravilhoso e ímpar de todas as revoluções sociais que não são meros golpes de Estado, o povo português encarnou alegremente o papel de profeta armado, capaz de abrir todas as portas, desobstruir os caminhos e lavrar o terreno, para nele "construir a festa do terrestre na nudez de alegria que nos veste" (Sophia), dando início a um novo tempo imaculado e liberto do vício da corrupção, onde o interior do povo, a democracia da palavra feita acção, se expande à custa da oligarquia e da palavra confiscada; porém, com o decorrer do tempo, as classes dirigentes emergentes acabaram por desarmar e banir o povo, tal como Estaline fez em relação a Trótski, e, no momento presente, o poder do povo, a democracia, converteu-se em cleptocracia: as portas voltaram a fechar-se e a festa do terrestre foi eliminada a favor da orgia mediática das intrigas das figuras bombásticas e medíocres do regime político estabelecido e dos seus jogos escuros de poder. O povo foi exilado e continua exilado da sua "inteireza" (Sophia), como se tivesse perdido Abril, "o dia inicial inteiro e limpo, que habitou nosso tempo mais concreto", e a "sua luz de prumo e de projecto" (Sophia).
Esta é, infelizmente, a outra metade da verdade que o discurso oficial quer omitir e banir completamente, mesmo que tenha de recorrer aos tribunais ou à violência. Homens que se comportam deste modo são mais do que "gatunos", como diz a figura popular, no sentido de não governarem no interesse nacional; são fundamentalmente "sabujos" (Sartre), que, em vez de assumirem a sua liberdade e a sua responsabilidade pela catástrofe nacional iminente, se demitem perante o mundo e os acontecimentos que ajudaram a criar, entrincheirando-se por detrás de discursos fatalistas ou pseudo-optimistas. Para regressar do "longo exílio" a que o condenou o poder estabelecido, o povo precisa retomar a palavra e o seu poder, a democracia, exigindo "uma verdade inteira e não meia verdade". A proposta da verdade inteira implica a desmistificação da retórica política predominante: "o demagogo diz da verdade a metade e o resto joga com habilidade, porque pensa que o povo só pensa metade" e "não percebe nem sabe" (Sophia) que eles governam apenas em benefício próprio, manipulando a verdade como "uma especialidade" de "clérigos letrados" que podem impor a todos os que não se identificam com o regime político e partidário estabelecido. Nas comemorações do 25 de Abril, os dirigentes nacionais e os lideres políticos gritam povo, mas, na verdade, o que é preciso é "expor", isto é, entregar novamente a palavra ao povo e às suas forças criativas, para que este possa, a partir do "olhar da mão e da razão", da "terra onde os homens estão" e "do seu fundamento", a "casa térrea", "construir o canto terrestre", onde o demagogo não se promova "à sombra da palavra" feita poder e transformada em "moeda" (Sophia). Confiscar a palavra ao povo é roubar-lhe a pátria (Fernando Pessoa): a Casa dos Portugueses. A língua portuguesa fala-nos e fala neste poema de Sophia de Mello Breyner Andresen:
«Será possível que nada se cumprisse?
Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
- Que nada sejam senão seu rosto ido
Sem regresso nem resposta - só perdido?»
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Morte, Perda e Luto (2)

«A mãe normal pode confiar na força dos seus instintos, na certeza feliz de que a ternura que sente é aquilo que o seu bebé deseja». (John Bowlby)
Historicamente elaborada e desenvolvida como uma variante da teoria das relações objectuais, a teoria da vinculação conceptualiza a propensão dos seres humanos para estabelecer e manter fortes laços afectivos com indivíduos específicos, esclarecendo tanto o comportamento de apego, com os seus aparecimentos e desaparecimentos esporádicos, como as ligações duradouras que as crianças ou os adultos estabelecem com outros significativos e especiais. O seu objectivo primordial é explicar as diversas formas de aflição emocional e de perturbações da personalidade que resultam da separação e da perda da figura de ligação. Bolk elaborou uma teoria que concebe todos os traços constitutivos especificamente humanos a partir da perspectiva do primitivismo: determinadas peculiaridades orgânicas do homem devem ser compreendidas como estados fetais que se fixaram e que se tornaram permanentes. Este retardamento permite compreender outros traços humanos, tais como o prolongamento do período de desenvolvimento, a prolongada infância e a maturação sexual tardia. Isto significa que o homem é, à nascença, um ser imaturo e carente de especializações, um ser deficitário (A. Gehlen), e, como tal, muito diferente dos outros animais dotados de especializações prévias. Nascido de um parto prematuro (A. Portmann), o bebé é um organismo incapaz de vida independente e, devido à falta de especializações e ao "ano extra-uterino prematuro", precisa de instituições sociais especiais (A. Gehlen) que o possam auxiliar durante o longo período de imaturidade. A família é, de todas as instituições sociais, a mais apta para o ajudar a satisfazer as suas necessidades animais imediatas e para lhe proporcionar um ambiente artificial no qual possa desenvolver as suas capacidades físicas, mentais, cognitivas e sociais que o ajudarão, na vida adulta, a lidar com o meio físico e social. Para alcançar a sua independência, a criança precisa crescer e desenvolver-se numa atmosfera de afeição emocional e de segurança: os seus pais devem garantir-lhe uma base segura a partir da qual possa explorar o mundo exterior e retomar a ele com a certeza de que será bem-vinda, nutrida física e emocionalmente, confortada se tiver sido alvo de um sofrimento e encorajada se se sentir amedrontado. A base segura deve estar sempre pronta para ajudar e incentivar o processo de autonomização da criança. A qualidade dos cuidados parentais que a criança recebe nos seus primeiros anos de vida é fundamental para a sua saúde mental futura. Sem a vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe ou outro substituto maternal permanente, no decorrer do qual ambos encontram satisfação e prazer, a criança corre o risco de reagir mais tarde de forma anti-social diante das tensões da vida. A privação da mãe, quer seja total, quase-total ou parcial, acarreta efeitos negativos sobre o desenvolvimento da personalidade da criança e pode mutilar totalmente a sua capacidade de vir a estabelecer, já na idade adulta, relações de confiança com outras pessoas. A criança necessita de amor materno, o qual encontra no seio da família natural que tem por finalidade preservar a arte da parentalidade. As crianças privadas de um lar, crianças sem lar, ou criadas num lar desfavorável, tornam-se, na vida adulta, pais incapazes de cuidar dos seus filhos. E, como os pais incapazes são geralmente indivíduos que sofreram privação afectiva ou negligência paternal na sua infância, o círculo da psicopatologia da vinculação fecha-se, tornando-se um círculo vicioso.
Durante os primeiros meses de vida, o bebé aprende a discriminar uma figura de ligação, geralmente a mãe, manifestando grande prazer em estar na sua companhia e proximidade. Esta preferência vinculativa torna-se inconfundível depois dos seis meses de idade, e, durante a segunda metade do primeiro ano de vida e a totalidade do segundo e do terceiro anos de vida, a criança está intimamente ligada e vinculada à figura materna: fica contente e feliz na sua companhia e aflita quando se ausenta. As separações momentâneas geram protestos e as mais demoradas envolvem protestos vigorosos. A criança retirada dos cuidados da sua figura materna e de todas as figuras secundárias, com as quais estabeleceu vínculos depois do terceiro ano de idade, e do seu ambiente familiar, e cuidada num lugar estranho, como por exemplo a enfermaria de um hospital, por uma série de pessoas desconhecidas, exibe geralmente uma sequência previsível de comportamentos, composta pelas fases do protesto (1), do desespero (2) e do desligamento ou desapego (3). Com lágrimas e raiva, o bebé exige o regresso da sua mãe e parece ter esperança de conseguir reavê-la. Depois de vários dias, torna-se mais calmo, embora continue preocupado e anseie pelo regresso da mãe. Quando se dissipa, a esperança converte-se em desespero e o desespero, em esperança renovada, e isto de modo alternado. Por fim, o bebé parece esquecer a mãe e, quando esta regressa, permanece desinteressado, como se não a reconhecesse. Quando regressa a casa, a criança mostra-se inicialmente indiferente e não pede nada, até que, após algum tempo, a sua indiferença se desfaz, desencadeando uma tempestade de sentimentos, muitos dos quais ambivalentes, um intenso apego à mãe e, sempre que esta se afasta, uma intensa ansiedade e raiva. A ansiedade de separação é o medo de perder e de se tornar separado de alguém querido ou de ser abandonado por alguém amado. Tal como outros animais, o homem responde com medo a determinadas situações, não porque possuam um alto risco de dor ou de perigo, mas porque indicam um aumento de risco existencial. Uma dessas situações é precisamente a separação de uma figura de ligação: as ameaças de abandonar uma criança, usadas frequentemente pelos pais como meio de controle, são aterrorizantes, e, tal como a ameaça de suicídio de um dos pais, geram ansiedade de separação intensificada ou mesmo raiva intensa nas crianças mais velhas e nos adolescentes. A função desta raiva é dissuadir a figura de ligação de continuar a ameaçar e, se isso não resultar, pode tornar-se facilmente disfuncional, levando nalguns casos ao assassinato da figura de apego.
As crianças pequenas afligem-se não só com a separação temporária da figura de ligação, como também com a sua perda derradeira e definitiva, pela qual todos estamos condenados a ser mais tarde ou mais cedo órfãos: o seu pesar é muito mais demorado do que se pensa e, como vimos, as crianças de tenra idade mostram-se abertamente pesarosas quando a mãe se ausenta durante, pelo menos, algumas semanas, chorando copiosamente ou indicando que têm saudade da mãe e que aguardam o seu regresso. Compreender que alguém muito próximo está morto e que nunca mais voltará à vida e a comunicar connosco é uma tarefa extremamente difícil tanto para os adultos como para as crianças. Os seres humanos de todas as idades são mais felizes e mais capazes de desenvolver melhor os seus talentos quando se sentem seguros de que, atrás deles, existem uma ou mais pessoas próximas que os possam ajudar e apoiar caso surjam dificuldades na sua vida. A morte de alguém próximo e querido abala profundamente essa base de segurança: tomamos consciência da ansiedade e da consternação causadas pela perda de um ente querido e do profundo e prolongado pesar que se segue à sua morte. Perdemos o nosso envolvimento feliz com o mundo, a comunicação com os outros colapsa, o eu divide-se e a orfandade resultante da perda reconduz-nos à nossa própria mortalidade e solidão. Enquanto a ansiedade de separação é a resposta usual a uma ameaça ou a algum outro risco de perda, o luto é a resposta usual a uma perda definitiva, depois desta ter irremediavelmente ocorrido, e compreende quatro fases: a fase do torpor ou do aturdimento (1), a fase da saudade e da busca da figura perdida (2), a fase da desorganização e do desespero (3), e a fase de maior ou menor grau de reorganização (4).
1. Fase do torpor e do aturdimento. Esta fase dura algumas horas ou mesmo uma semana, após a notícia da morte de um ser amado: a maior parte das pessoas mostra-se aturdida e, em graus variáveis, incapaz de aceitar a notícia da morte. Este estado de calma aparente ou de vazio de sensações/reacções pode ser interrompido por acessos de consternação e de raiva muito intensos ou de choro copioso.
2. Fase de saudade e de busca da figura perdida. Esta fase dura alguns meses e, com frequência, vários anos. Depois do torpor inicial, a pessoa começa, esporadicamente, a perceber a realidade da perda que sofreu, o que provoca espasmos de intensa aflição e crises de choro. O desassossego apodera-se da pessoa: as preocupações com a pessoa perdida invadem o seu pensamento, sendo acompanhadas por uma sensação da sua presença real e por uma tendência acentuada a interpretar sinais ou sons como uma indicação de que a figura perdida está novamente de volta. Durante este longo período de luto, a pessoa é dominada por um impulso para buscar, reaver e recuperar a figura perdida. De modo consciente ou não, a pessoa deixa-se levar voluntariamente por este impulso e visita regularmente a sepultura e outros lugares associados intimamente à figura perdida, com o objectivo de procurar e de recuperar o ente querido. Este comportamento é muito mais saudável do que o esforço para sufocar este impulso por ser irracional e absurdo. O comportamento de busca da figura perdida compreende, pelo menos, cinco componentes: movimentar-se inquietamente e esquadrinhar o meio ambiente (1), pensar intensamente na pessoa perdida (2), desenvolver uma disposição para perceber e prestar atenção a todos os estímulos que sugiram a presença da pessoa perdida e ignorar os que não forem relevantes para este objectivo (3), dirigir a atenção para as partes do meio ambiente nas quais seria possível encontrar a pessoa (4), e chamar pelo nome a pessoa perdida (5). Este impulso de busca é acompanhado pelo choro e pela raiva. Conforme mostrou Darwin, chorar e gritar são meios usados pela criança para atrair e recuperar a sua mãe ausente ou outra pessoa que possa ajudá-la a encontrar a mãe. Ora, no luto, o choro e a raiva desempenham as mesmas funções. A raiva manifesta-se como parte integrante do luto, não só do luto patológico, mas também do luto saudável, e, geralmente, é dirigida a terceiros por serem responsáveis pela morte da figura perdida, à própria pessoa enlutada que se auto-acusa por tê-la negligenciado ou não agido de modo apropriado para a salvar, e, às vezes, à pessoa perdida por tê-la desertado e abandonado. Embora seja útil na separação temporária, ajudando a vencer obstáculos à reunião com a figura ausente e impedindo que a separação volte a acontecer, a raiva e as recriminações podem ser desproporcionadas quando a separação é definitiva. Mas, seja como for, estes traços da segunda fase do luto não devem ser qualificados de "regressivos" ou "pueris", porque a sua função é reforçar o ímpeto dos esforços vigorosos para reaver a figura perdida e para dissuadi-la de uma nova deserção. A sua manifestação pode ser inútil e irrealista, mas contribui positivamente para que o luto prossiga um curso saudável e favorável. Só depois de ter realizado todos estes esforços infrutíferos para recuperar a figura perdida é que a pessoa enlutada adquire um estado de ânimo capaz de levá-la a admitir a derrota e de reorientá-la para um mundo em que a figura amada é aceite como irremediavelmente ausente e definitivamente perdida. Estas respostas comportamentais não só estão presentes noutras espécies não-humanas, o que sugere o seu enraizamento biológico profundo, como também devem ter evoluído: a tentativa de recuperar a figura de ligação ausente manifesta-se também na tentativa de reaver a figura perdida e de recriminá-la pelo seu abandono.
3. Fase de desorganização e de desespero. A busca incessante, a esperança intermitente, o desapontamento repetido, o pranto, a raiva, a acusação e a ingratidão devem ser encaradas como expressões da forte necessidade de procurar, encontrar e recuperar a pessoa perdida que caracteriza a segunda fase do luto. Subjacente a estas emoções fortes e intensas, episódicas e desorientadoras, está uma tristeza profunda e generalizada: o reconhecimento de que a reunião com o morto é improvável. A busca infrutífera é sempre penosa e, nalgumas ocasiões, a pessoa enlutada tenta livrar-se de tudo aquilo que lembra o morto, oscilando entre atribuir grande valor a essas lembranças e desfazer-se delas, entre aceitar e recear que se fale do morto, entre procurar os lugares onde estiveram juntos e evitá-los. Descobrir uma maneira de reconciliar estes dois desejos incompatíveis constitui a tarefa central da terceira e da quarta fases do luto. Em todas as culturas, os costumes e os rituais de luto ajudam a pessoa enlutada a superá-lo, atenuando a separação derradeira e orientando as etapas da recuperação: a própria solidão da crise e o intenso conflito de sentimentos exigem uma estrutura de apoio social, capaz de ajudar a pessoa enlutada a suportar as oscilações emocionais e a reconstruir novamente a sua vida. Ajudar a pessoa a superar o seu pesar e o seu luto é ver as coisas do seu ponto de vista e respeitar os seus sentimentos e não colocar-se no papel de representante da realidade. A pessoa enlutada deve expressar os seus sentimentos secretos e não recalcá-los, sem evitar o luto: ânsia pelo impossível, raiva desmedida, choro impotente, horror perante a perspectiva da solidão, enfim, súplicas lastimosas por compaixão e apoio. Somente evitando usar certos termos, tais como "pensamento mágico", "fantasia" ou "negação da realidade", podemos colocar-nos numa posição empática, a partir da qual estaremos em condições de ajudar a pessoa enlutada a reorganizar a sua vida, a voltar a comunicar com os outros, a restabelecer o seu envolvimento com o mundo, a reconciliar-se com a realidade da perda sofrida, a reequilibrar o seu eu, e, talvez, a descobrir um substituto. Se conseguir restabelecer este contacto com o mundo, os outros e consigo mesma, através da expressão aberta dos seus impulsos para reaver e recriminar a figura perdida, com toda a saudade do desertor e toda a raiva contra ele por a ter abandonado, e com a ajuda de terceiros, o seu luto chegará a bom-porto; caso contrário, quando reprime ou recalca a expressão desses sentimentos e os outros, em especial a família, não a deixam expressá-los abertamente, o seu luto torna-se luto patológico.
4. Fase de maior ou menor grau de reorganização. Freud acreditava que o estado agudo de luto acabaria por dissipar-se, embora permanecêssemos inconsoláveis e nunca mais encontrássemos um substituto. A lacuna aberta pela morte de um ente querido não pode ser preenchida, mas procurar preenchê-la parece ser a única maneira de perpetuar aquele amor levado pela morte. Porém, Freud foi induzido em erro pela sua teoria do luto: a ferida rasgada pela morte sara, quando tudo corre bem, mas deixa cicatriz. As emoções mais intensas e perturbadoras provocadas pela perda são o medo de ser abandonado, a saudade da figura perdida e a raiva por não a encontrar. Estas emoções estão ligadas à ânsia de procurar a figura perdida e à tendência para recriminar e responsabilizar furiosamente outra pessoa pela perda ou por dificultar a recuperação da pessoa morta. A pessoa enlutada luta emocionalmente contra o destino, na tentativa desesperada de reverter a flecha do tempo e de reaver os tempos felizes que lhe foram subitamente roubados. Em vez de enfrentar a realidade terrível e essencial da mortalidade humana, a pessoa enlutada envolve-se numa luta contra o passado, aliás, uma luta condenada ao fracasso. Nada voltará a ser como era e, tomando consciência disso, a pessoa enlutada sente-se, em certos momentos, desesperada pelo facto de não poder salvar o passado, e torna-se deprimida e apática. Estes momentos podem começar a ser alternados com uma fase em que a pessoa enlutada começa a avaliar a nova situação e a ponderar novas possibilidades, donde resulta necessariamente a redefinição de si mesma e da situação presente. Esta redefinição não é somente perder a esperança de recuperar a pessoa perdida e restabelecer a situação anterior, mas, sobretudo, um acto cognitivo, ou melhor, um processo de realização (Parkes) e de remodelação dos modelos representacionais interiores, mediante os quais tenta adoptar papéis mais adequados à nova situação e adquirir novas habilidades adaptadas à sua nova situação. Apesar do surgimento da iniciativa e da independência, a nova situação continua a ser sentida como uma tensão constante e está sujeita a ser vivida numa profunda solidão emocional, mesmo que a vida social tenha sido retomada. O luto consuma-se num enclave de lembranças privadas e, nesse sentido, o luto saudável é perpétuo: sara, mas deixa cicatriz, imprimindo e impulsionando uma nova atitude diante da vida. (Fim da série de posts intitulada "Morte, Perda e Luto".)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 21 de abril de 2009

Prós e Contras: Eleições Europeias - Frente a Frente

O debate "Prós e Contras" (20 de Abril de 2009) foi um frente a frente que opôs os cabeça-de-lista dos partidos políticos portugueses: Vital Moreira (PS), Paulo Rangel (PSD), Ilda Figueiredo (PCP), Nuno Melo (CDS) e Miguel Portas (BE). As duas primeiras partes foram caracterizadas por muito ruído produzido pelos candidatos a deputados europeus: uma exibição televisiva da exaltação parlamentar e da falta de educação típica dos deputados portugueses, que, em vez de debaterem com competência e idoneidade os seus projectos políticos, preferem o golpe baixo e a "demagogia barata" (M. Portas). Eles próprios tentaram justificar este comportamento desordeiro e malcriado: Vital Moreira falou da coligação das duas direitas (PSD e CDS) e das duas esquerdas (PCP e BE) e da sua "convergência" na oposição ruidosa ao PS e ao seu governo socialista: Paulo Rangel foi acusado de "instrumentalizar as eleições europeias" a favor das duas eleições nacionais. Convicto do seu conhecimento da Europa (sic), depois de ter publicitado o seu livro "Nós os Europeus", V. Moreira tentou identificar o espectro político nacional com o espectro político do Parlamento Europeu, de modo a mostrar que o PSD e o CDS integram-se no grupo do Partido Popular Europeu (PPE) e o PCP e o BE incluem-se no Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde, enquanto o PS faz parte do Partido Socialista Europeu (PSE). As direitas são a mesma coisa e as esquerdas também são a mesma coisa: apenas o PS está como peixe na água na sua matriz política e ideológica. Nuno Melo ergueu a sua voz contra o "tabu dos temas nacionais" e passou a distribuir uma série ininterrupta de "cartões vermelhos" à acção governativa, aproveitado a colagem aos movimentos de contestação popular. Miguel Portas e, de certo modo, Ilda Figueiredo exigiram um "debate mais esclarecedor" sobre as questões verdadeiramente europeias e nacionais, sem estar demasiado centrado em torno de Vital Moreira, de resto uma figura pouco importante e absolutamente irrelevante quando "comparado a Manuel Alegre" (M. Portas).
As sondagens mostram que os portugueses não se interessam pelo destino da Europa e do Ocidente, talvez por desconhecimento total das suas raízes culturais e civilizacionais. A perda da experiência e o desenraizamento cultural manifestam-se num estilo de vida metabolicamente reduzido: os europeus estão mais interessados na satisfação desmesurada das suas necessidades metabólicas e na garantia da continuidade do seu labor intracorporal do que com o desenvolvimento das suas capacidades humanas e cognitivas. Eles dão por garantido aquilo que, por natureza, não está garantido: o consumismo egoísta e destrutivo e o metabolismo voraz. As eleições europeias deviam ser uma oportunidade para criar e desenvolver uma consciência ocidental e europeia: os povos europeus devem reatar, de um modo responsável e genuíno, os seus vínculos com a sua matriz civilizacional e assumir a responsabilidade pela sua continuidade. A instrumentalização das eleições europeias mostra até que ponto os partidos políticos portugueses carecem de projectos europeus e de uma visão da Europa e do seu papel no mundo: a própria composição das listas de candidatos revela esse desinteresse, dado serem formadas com o refugo nacional, isto é, encaradas como uma maneira de despachar pessoas que possam dificultar a vida interna dos partidos e/ou como um teste para as eleições nacionais. O suposto conhecimento profundo da Europa atribuído a Vital Moreira chumbou neste frente a frente, não só por ter mudado radicalmente de perspectiva em relação à Europa ao longo do seu atribulado percurso vital (Paulo Rangel acusou-o de ser novamente "estalinista"), mas fundamentalmente por ter sido incapaz de reconhecer que a crise económica torna visível a precariedade do projecto europeu: o rapto da Europa pelos governos das potências, a noção de "Europa dos governos" defendida por M. Portas, e, portanto, o seu distanciamento em relação aos povos (Ilda Figueiredo), impedidos de participar activamente na sua construção através de referendos. O rapto da Europa por uma classe política medíocre significa a morte do projecto europeu e a actual crise económica revela a sua fractura: a lógica do "cada um por si e Deus por todos" (M. Portas). A Europa raptada pelos colarinhos-brancos corruptos é responsável pela crise financeira e económica: o economicismo do Banco Europeu e as políticas hipercapitalistas implementadas pelo "Bloco-Central" europeu estão a destruir a Europa Cultural, o berço da Civilização Ocidental. A ideia do federalismo europeu converteu-se numa pequena federação de interesses capitalistas de grupos minoritários nacionais que buscam compulsivamente remunerações e reformas chorudas e a possibilidade de se tornarem proprietários de acções e de empresas. Em virtude do neoliberalismo, a corrupção invadiu a Europa. Mistificação não é a denúncia deste rapto, como disse V. Moreira, mas o seu ocultamento: a participação de Vital Moreira foi um absoluto fracasso. A ala esquerdista, fotogénica, idosa e hippie do PS rendeu-se ao domínio de José Sócrates em troca de cargos europeus (e nacionais) bem remunerados. Mas, afinal, são pessoas deste tipo que predominam nas pseudo-elites políticas nacionais e internacionais: buscadores compulsivos de benefícios pessoais, não servidores da causa pública! Na terceira parte do programa, mais disciplinada e educada, talvez depois de Fátima Campos Ferreira ter puxado as orelhas aos candidatos a deputados europeus, Miguel Portas, dirigindo-se a Vital Moreira numa relação Eu/Tu e dando eco aos ataques das oposições de Direita (P. Rangel, N. Melo), arrasou-o como projecto constitucionalista e político, reduzindo-o a um nada: "Tu, V. Moreira, não és ninguém" (a mensagem subliminar de M. Portas).
O fio condutor do debate era a ligação entre as eleições europeias e a crise financeira e económica, especialmente o papel desempenhado pela UE no debelar da crise. Segundo o candidato socialista, a Europa está a "dar uma saída à crise", com a implementação do seu "modelo de economia regulada": o "remédio da crise" não é o capitalismo anglo-saxónico e as suas políticas neoliberais que conduziram à crise, mas o retomar da "modelo europeu". A responsabilidade pela crise internacional foi atribuída, em termos ideológicos, aos partidos de Direita que protagonizaram essas políticas, reforçando o domínio do "modelo anglo-saxónico" do capitalismo selvagem. Um medida emblemática a tomar é abolir os paraísos fiscais. Embora tenha reconhecido que a UE possa ser uma oportunidade, dado ter sido o motor da reunião do G20, o candidato social-democrata mencionou os seus "riscos": acusou Vital Moreira de não compreender a natureza da UE, sobretudo na questão do apoio à recandidatura de Durão Barroso, porque a "comissão é uma coligação de forças políticas dispares e diversas". O governo socialista português atrasou-se em relação às medidas tomadas pela UE para combater a crise, e as que tomou, além de serem irrelevantes, chegaram demasiado tarde. Nuno Melo foi mais radical: o governo português não chegou tarde à crise; pelo contrário, "adormeceu na crise" e, no período anterior, negou a existência da crise e do seu impacto na economia nacional. Aproveitou o momento para ironizar a confusão que lhe foi atribuída por Vital Moreira, bem como aos outros candidatos, da "crise anterior" sanada e superada pela consolidação orçamental com a "nova crise": "a velha crise é a do Ministro da Economia e do Primeiro-Ministro". A candidata comunista responsabilizou os governos do PSD, do CDS e do PS pela crise: a "más políticas" neoliberais implementadas pelos governos nacionais e pela comissão da UE agravaram os efeitos da crise, de resto uma "crise do capitalismo" que cresceu lentamente ao longo do tempo, das quais resultaram a destruição de todos os tecidos produtivos nacionais, a acumulação desmesurada dos lucros das grandes empresas e a pobreza crescente de um vasto sector da população. A solução é a ruptura com as políticas neoliberais que conduziram, nos últimos 30 anos, à actual crise económica, com a anulação do Tratado de Lisboa, do Pacto de Estabilidade e da independência do Banco Europeu, e com maior vigilância e clarificação do QREN. O candidato do Bloco de Esquerda destacou duas ideias: sem a Europa e o guarda-chuva do Euro, a crise seria pior, mas a Europa chegou atrasada à crise, o que não sucedeu nos USA. Para M. Portas, a Europa foi "raptada pelos governos": é, pois, uma Europa dos governos e não dos povos, e estes governos foram responsáveis pelo deflagrar da crise, mais eles do que os "banqueiros com mais olhos do que barriga". A Europa é um "Bloco Central": todos ajoelham-se à "alta finança", como se do enriquecimento dos capitalistas e dos seus amiguinhos políticos caíssem umas migalhas para os pobres e os "novos pobres". Ajoelhar diante da alta finança significa desejar mamar e engordar o corpo e os seus depósitos: o sémen recebido e deglutido é capital depositado nos bolsos e nas contas bancárias! A resolução da crise exige a injecção de muito dinheiro, tal como foi defendido pelo Prémio Nobel da Economia de 2008, mas, na realidade, são sempre os mesmos a pagar. Porém, este discurso da velha e da nova pobreza revela a sua faceta hipócrita quando é condescendente em relação às duplas-candidaturas: o desemprego resultante desta crise económica, que ainda não revelou completamente a sua face escura, não é compatível com a acumulação de empregos e de cargos políticos. Os membros da classe política nacional tendem a acumular empregos e cargos, roubando a oportunidade de emprego aos outros e desempenhando mal os seus papéis. A prova da sua mediocridade e da sua gula reside no facto de Portugal estar a distanciar-se das médias europeias, a todos os níveis, bem como na ausência de um discurso responsável e competente sobre questões europeias e nacionais.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Morte, Perda e Luto (1)

«Não existe amor sem perda. E não existe a superação da perda sem alguma experiência de luto. Não ser capaz de a vivenciar é ser incapaz de entrar no grande ciclo da vida humana de morte e de renascimento, enfim, é ser incapaz de viver novamente». (Lifton)
Philippe Ariés analisou as imagens da morte no Ocidente em função de quatro parâmetros: a consciência de si (1), a defesa da sociedade contra a natureza selvagem (2), a crença na outra vida (3), e a crença na existência do mal (4). As variações destes parâmetros ao longo do tempo, desde a baixa Idade Média até aos nossos dias, possibilitaram-lhe captar e estabelecer uma sequência ou sucessão de cinco modelos: a morte domada (1), a minha morte (2), a morte distante e próxima (3), a morte do outro (4) e a morte invertida (5). A história da morte apresentada por Ariés fornece-nos muitos dados e perspectivas importantes, mas a sua metodologia é ingénua e frágil e os seus resultados são questionáveis. Alguns conceitos utilizados, tais como "todos morremos" (morte domada), a "minha morte" e a "morte do outro", são retomados de V. Jankélévitch, não como constantes antropológicas da morte, mas como designações gerais de imagens da morte: as constantes antropológicas são vistas por Ariés como variações históricas de modelos da morte. Esta fragilidade teórica revela-se no uso que Ariés faz da "morte do outro". O seu surgimento histórico é explicado pela mudança do parâmetro da individualidade: "Até agora variava entre dois limites: o sentido da espécie e de um destino comum (todos morremos) e o sentido da sua biografia pessoal e específica (a minha morte). No século XIX, enfraquecem-se um e outro em proveito de um terceiro sentido, antes confundido com os dois primeiros: o sentido do outro, e não de um outro qualquer. A afectividade, outrora difusa, concentrou-se a partir de então em alguns seres raros cuja separação já não é suportada e desencadeia uma crise dramática: a morte do outro" (Ariés). O século XIX trouxe-nos uma "revolução do sentimento": a sensibilidade dirigida para a vida privada (privacy), que "encontrou o seu lugar na família «nuclear», remodelada pela sua nova função de afectividade absoluta. A família substituiu-se ao mesmo tempo à comunidade tradicional e ao indivíduo do final da Idade Média e do início dos tempos modernos". A morte de si perdeu sentido e "o medo da morte, germinando nos fantasmas dos séculos XVII e XVIII, foi desviado de si para o outro, o ser amado". Ariés apresenta como novidade aquilo que é uma realidade desde que o homem é homem ou, pelo menos, desde que sepulta os seus mortos queridos (Florbela Espanca) há cerca de 50 000 anos: a morte na primeira pessoa (a minha morte ou morte própria), na segunda pessoa (a morte do outro) e na terceira pessoa (a morte anónima) sempre-já coexistem, tanto ao nível humano como ao nível animal.
A morte do outro significa uma perda para os que sobrevivem e esta perda de alguém próximo e querido constitui o maior golpe que o espírito humano pode (ou não) suportar: o homem pode ser esmagado pelo pesar e morrer por causa do sofrimento desencadeado pela perda do ser amado. O homem não sente amor e pesar por um outro ser humano qualquer, mas apenas por um ou alguns seres humanos particulares. Tudo isto se deve ao vínculo afectivo, isto é, à formação, manutenção, rompimento e renovação de vínculos emocionais: a atracção que um indivíduo sente por outro indivíduo. Diversas espécies animais revelam a existência de vínculos fortes e persistentes entre indivíduos e os tipos de vínculos diferem de uma espécie para outra, embora os mais comuns sejam as ligações entre pais e filhos e as ligações entre adultos do sexo oposto ou do mesmo sexo. O primeiro vínculo e o mais persistente é aquele que se forma entre a mãe e o seu filho. A vinculação afectiva resulta do comportamento social da espécie e implica uma aptidão para reconhecer indivíduos. Cada membro do par vinculado procura manter-se na proximidade do outro e suscita no outro o comportamento de manutenção da proximidade: os dois indivíduos vinculados tendem a manter-se próximos um do outro e, quando se separam, um deles procura, mais cedo ou mais tarde, o outro para restabelecer e reatar a proximidade. A presença de um intruso desencadeia resistência no par vinculado e, geralmente, o mais forte pode atacá-lo. O comportamento agressivo ajuda a manter e a conservar os vínculos, sendo utilizado quer para atacar e afugentar os intrusos, quer para punir o parceiro errante. Os vínculos afectivos e os estados emocionais subjectivos tendem a ocorrer juntos. Em termos de experiência subjectiva, a formação de um vínculo é descrita como apaixonar-se, a manutenção desse vínculo, como amar alguém, e a perda do parceiro vinculado, como sofrer por alguém. A ameaça de perda gera ansiedade, a perda produz tristeza, e, tanto uma como a outra, podem despertar raiva. A manutenção de um vínculo é experienciada como uma fonte de segurança, e a sua renovação, como uma fonte de alegria.
A alimentação e o sexo não explicam a existência de vínculos afectivos: o bebé não se vincula à mãe por causa desta o alimentar e os adultos não se vinculam uns aos outros por causa do sexo. Estas explicações foram desmentidas por estudos etológicos e experimentais. Entre as aves e os mamíferos, as crias ligam-se a objectos maternos, apesar de não serem alimentadas por eles, e os vínculos afectivos entre adultos não são necessariamente acompanhados por relações sexuais, as quais ocorrem frequentemente na ausência de vínculos afectivos persistentes. Do ponto de vista ontogenético, os vínculos afectivos desenvolvem-se, porque os seres vivos nascem dotados de uma inclinação para se aproximar de determinado tipo específico de estímulos, aqueles que lhes são familiares, e para evitar outros tipos de estímulos, aqueles que lhes são estranhos. O bebé humano desenvolve o comportamento de ligação com a mãe ou outro substituto maternal durante os primeiros nove meses de vida: a figura de ligação é, geralmente, a pessoa que lhe dispensa a maior parte dos cuidados maternos. O comportamento de ligação mantém-se activado até ao final do terceiro ano de vida e, depois desta idade, torna-se cada vez menos activado, embora persista, como parte do equipamento comportamental humano, durante grande parte do ciclo vital. A ligação desenvolve-se mesmo que o bebé seja repetidamente punido pela figura de ligação. Do ponto de vista evolutivo, a função biológica da vinculação entre indivíduos da mesma espécie é, provavelmente, a protecção contra predadores: o comportamento de apego contribui para a sobrevivência do indivíduo, mantendo-o em contacto com aqueles que cuidam dele e protegendo-o das ameaças ambientais. Os cuidados que lhe são prestados garantem a sua sobrevivência, protegendo-o das ameaças ambientais e reduzindo o risco de morte prematura. (CONTINUA com o título "Morte, Perda e Luto 2".)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Meditatio Mortis e Sentido da Vida (6)

«O facto fundamental da existência humana não é o indivíduo enquanto tal, nem a colectividade enquanto tal. Consideradas em si mesmas, ambas as coisas são abstracções formidáveis. O facto fundamental da existência humana é o homem com o homem. O encontro do homem consigo próprio só pode verificar-se e, ao mesmo tempo, realizar-se como encontro do indivíduo com os seus companheiros». (Martin Buber)
6. A pergunda sobre a morte é a pergunta sobre a pessoa humana. Martin Buber e Emmanuel Lévinas protagonizaram uma viragem na interpretação da existência humana, que, apesar de ser devedora da ontologia fundamental de Heidegger, rompe com a sua noção de "existência monológica": "o homem não pode fazer-se inteiramente homem mediante a sua relação consigo próprio, mas somente graças à sua relação com outro homem" (Buber). A existência monológica é substituída pela existência dialógica: o "estar-dois-em-recíproca-presença" realiza-se e reconhece-se unicamente no encontro do homem com o homem, do eu com outrem (tu) e o Outro (Deus). Inicialmente denominado personalismo (E. Mounier), o pensamento dialogal (M. Scheler, F. Ebner, M. Buber, A. Brunner) confere a primazia à relação com o outro e, no caso de Lévinas, confere superioridade ao tu em relação ao eu, revelada na epifania do rosto. Para Buber, o problema antropológico emerge nas épocas históricas de crise de confiança, quando o homem perde o seu clima familiar e a segurança que tinha desfrutado até esse momento de crise, e quando o mundo e a sua posição no mundo se tornam problemáticos. A crise de confiança leva-o, nesses momentos de perda e de insegurança, a colocar a pergunta sobre si mesmo, sobre o seu ser pessoal e sobre o sentido da vida. Buber destaca dois factores que contribuíram para a maturação do problema antropológico: a dissolução progressiva das velhas formas orgânicas da convivência humana directa (1) e a relação do homem com as novas coisas e circunstâncias que surgiram como resultado, directo ou indirecto, da sua própria acção (2). O primeiro factor contribuiu para o aumento da solidão humana: o homem perdeu o sentimento de estar hospedado no mundo e o sentimento da segurança cosmológica que lhe eram garantidos pelas anteriores formas orgânicas de sociabilidade. A perda de segurança sociológica, isto é, de um lar na vida e no mundo, desencadeou o sentimento de abandono total e de solidão. O segundo factor fez do homem um "resíduo" atrás das suas obras técnicas, económicas e políticas: o homem deixou de dominar o mundo que criou e, por isso, experiencia torpeza e fracasso de alma. Edmund Husserl enunciou três proposições que clarificam o problema antropológico, sem o ter tratado de modo directo e exaustivo: o maior fenómeno histórico é a humanidade que luta pela sua própria compreensão (1); o homem converte-se em problema filosófico quando se encontra em questão como ser racional (2); e o homem somente é homem nas entidades humanas vinculadas generativa e socialmente (3). Com excepção de Alfred Schutz, o trabalho antropológico da escola fenomenológica (Scheler, Heidegger) encarou estas conexões sociais como um obstáculo contra o qual as pessoas tropeçam para chegar ao seu próprio eu verdadeiro ou autêntico. Buber retoma a terceira proposição de Husserl para mostrar que a essência do homem não se encontra nos indivíduos isolados: a união da pessoa humana com a sua genealogia e com a sua sociedade é fundamental para compreender a essência do homem.
Martin Buber. A antropologia filosófica de M. Buber destaca fundamentalmente a estrutura dialogal ou interpessoal do homem e, contra a redução radical do homem a uma única dimensão, a relação com as coisas (Ich-Es), afirma a outra dimensão, a relação do homem com o outro homem (Ich-Du). Estas duas relações são caracterizadas, respectivamente, como experiência (Erfahrung) ou saber e encontro (Begegnung) ou diálogo. A relação do eu com o tu constitui a relação por excelência, o primum cognitum de toda a antropologia filosófica. A filosofia de Buber mais não faz do que clarificar estas duas dimensões relacionais do homem. A relação com o mundo material desenvolve-se como uma relação senhor/escravo e é dominada pela prática e pela vontade de dominar o mundo que a orienta. Dado ser passiva, a matéria não é conhecida em si mesma e, por isso, não entra directamente na experiência: a experiência não é a realidade que medeia entre o homem e a coisa, mas a realidade que se encontra no homem, do qual provém todo o sentido. O ser do mundo tem de se submeter aos significados que lhe são atribuídos pelo homem.
A relação com o tu é anterior à relação com o mundo e desenrola-se de modo completamente independente. Cada eu tem uma relação com o outro (o tu) e esta relação caracteriza-se pela imediatez: o outro está imediatamente presente, sem qualquer mediação conceptual ou outra. O tu é completamente diferente da coisa: está subtraído ao modelo senhor/escravo, ou seja, não está submetido ou dependente do eu. Buber exclui o domínio do eu sobre o tu e do tu sobre o eu: o encontro do eu e do tu não é, como sucede em Sartre, conflitual, na medida em que os dois pólos equivalentes da relação se constituem reciprocamente um ao outro. No encontro com o outro, o homem torna-se autenticamente eu e o outro, autenticamente tu. O espaço ou o horizonte da relação entre pessoas não é o mundo, mas o espaço interpessoal (o zwischen). Contra o idealismo, Buber elege, em vez da subjectividade, o encontro das pessoas, o intersubjectivo que se constitui na relação eu e tu, como o verdadeiro ser, e esta relação interpessoal está ligada a Deus criador que doa ao homem o ser. Isto significa que o encontro com o tu é também o caminho para Deus e que a relação interpessoal abre-se, integrando-a, a relação com o Tu absoluto. O tu é um mistério inefável que não pode ser submetido à experiência científica. Não sendo objecto, não está disponível e não pode ser conhecido plenamente: impõe-se como mistério inefável e reflecte no seu ser o parentesco com Deus. Na distinção entre os dois tipos de relação, Buber coloca o humano inteiramente na relação do eu com o tu, sendo impedido de ver que a relação com as coisas pertence à dimensão interpessoal.
Emmanuel Lévinas. A antropologia filosófica de Lévinas pode ser lida como uma crítica radical da egologia baseada no cogito de Descartes, contra a qual afirma a primazia do outro como verdade fundamental do homem e como o lugar das suas dimensões metafísicas e religiosas: "a metafísica é ética". A interpretação do homem fundada no cogito e na orientação para o mundo material está marcada pela "vontade de poder" e viciada pelo mito da totalidade. A antropologia egológica pode ser caracterizada a partir de quatro níveis. Ao nível do conhecimento, procura reduzir toda a realidade à razão explicativa: a realidade é constituída pela razão e conhecê-la significa reduzir todas as coisas à unidade do sistema racional pensado pelo ego, de modo a eliminar toda a alteridade e a expandir o domínio do eu sobre a totalidade da realidade. Ao nível ético, predomina a ideia de afirmação de si mesmo: o eu realiza-se a si mesmo, afirma-se à custa dos outros, utiliza os outros como meios e, deste modo, converte-se em legislador de si mesmo, submetendo tudo ao tribunal da sua razão soberana. Ao nível social e político, a ideia de soberania do ego e a sua orientação para o mundo implica a ideia de imperialismo: a razão soberana do ego engendra a guerra que visa alargar e globalizar o seu próprio poder económico, político e militar sobre os outros, eliminando-os e sujeitando-os aos seus próprios objectivos. Ao nível metafísico e religioso, ignora o verdadeiro encontro com o outro e fecha-se na história, não deixando espaço para a transcendência e atrofiando a dimensão metafísica: a concepção imanentista conduz ao ateísmo. Em todos estes níveis, a egologia coloca no centro a totalidade e, deste modo, sacrifica os indivíduos, submetendo-os ao sistema do ego auto-suficiente que privilegia a sua relação com o mundo na realização de si mesmo.
A antropologia interpessoal de Lévinas é uma antropologia da alteridade: a primazia que concede ao outro implica a certeza do outro como outro que se impõe com a sua própria força, introduzindo o homem numa experiência metafísica e religiosa (1), e o reconhecimento do outro, não somente ao nível da intimidade e da privacidade, mas fundamentalmente ao nível ético e objectivo (2): o outro deve ser reconhecido no mundo pelo facto de ser constitutivamente um ser indigente e necessitado. O outro revela-se na epifania do rosto e a sua presença é totalmente distinta da existência das coisas objectivas, no sentido de irromper por si mesmo na minha existência, sem que tenha sido constituído previamente pela minha razão e, portanto, inserido na totalidade racional. A epifania do rosto é a presença imediata do outro como absolutamente outro, que, impondo-se por si mesmo, rompe a tentativa de o reduzir a uma forma de totalidade. O reconhecimento do outro implica o reconhecimento concreto do outro no mundo, na medida em que a nudez do seu rosto é a presença do ser indigente e necessitado neste mundo. A nudez do rosto é toda a humanidade e simboliza a condição humana: todos os seres humanos desejam "ser alguém" frente aos outros e ser tratados como tais. A sua presença afecta a existência e eleva as relações interpessoais acima da esfera íntima e privada. O reconhecimento do outro no mundo é reconhecimento objectivo, não só no sentido da justiça, mas também no sentido do amor e da bondade. Porém, o outro é aquele que me olha de cima e que exige e tem direito a exigir. A relação do eu com o outro revela uma assimetria fundamental: a superioridade do tu em relação ao eu. Além disso, a relação interpessoal é o lugar onde se manifesta o absolutamente outro, ou seja, Deus, porque a exigência do outro, a sua presença soberana, é algo transcendente e absoluto, que supera a sua vontade arbitrária. Encontrar-se cara a cara com o próximo é encontrar-se perante Deus, que exige ser reconhecido na exigência de reconhecimento objectivo do outro: "A dimensão divina abre-se a partir do rosto do outro" (Lévinas).
O rosto na sua expressão convoca, rompendo-o, no ser-aí humano preocupado com o seu ser-no-mundo, o eu responsável pelo outro: "A morte do outro homem diz-me respeito e questiona-me como se eu me tornasse, pela minha eventual indiferença, o cúmplice desta morte invisível ao outro que aí se expõe; e como se, antes de ser eu mesmo votado a ele, tivesse de responder por esta morte do outro e não deixar outrem só, na sua solidão mortal. É precisamente neste chamamento da minha responsabilidade pelo outro que me convoca, me suplica e me reclama, é neste questionamento que outrem é próximo" (Lévinas). Lévinas procura entender o sentido da morte, não a partir da morte própria ou da angústia da morte própria, mas a partir do "inter-humano" ou da socialidade, isto é, na proximidade do outro homem, cujo rosto apela à "minha responsabilidade pela morte de outrem". "O eu é, como dizia Pascal, detestável", no sentido de ser "a própria crise do ser do ente no humano" (Lévinas). Quando o eu é ser na primeira pessoa, afirmando o seu ser e tendo de responder unicamente pelo seu direito de ser, o seu ser-no-mundo ou o seu "lugar ao sol" mais não são do que usurpações dos lugares que pertencem aos outros. Estas usurpações reduzem os outros à condição de oprimidos, repelidos, excluídos, exilados, despojados, mortos, ou de reduzidos à fome, e expulsam-os para um "terceiro mundo": o eu usurpa toda a Terra e realiza-se como violência ou assassinato, ocupando o lugar dos outros. A actual crise financeira e económica revela a natureza dessa usurpação da Terra, mediante a qual os eus corruptos de colarinho-branco condenam a maioria dos seres humanos à miséria e à pobreza. O poder começa onde o conhecimento apreende o indivíduo que existe sozinho, não na sua singularidade, mas na sua generalidade: a rendição das coisas exteriores à liberdade humana significa, além da sua compreensão, a sua apropriação, porque "só na posse o eu conclui a identificação do diverso. Possuir é manter a realidade desse outro que se possui, mas suspendendo precisamente a sua independência. Numa civilização reflectida pela filosofia do Mesmo, a liberdade cumpre-se como riqueza. A razão que reduz o outro é uma apropriação e um poder" (Lévinas). A concepção do "morrer por um outro" de Lévinas rompe com a ontologia heideggeriana do Dasein, na medida em que este ainda conserva a "estrutura do Eu". Para Heidegger, a morte é "poder ser o mais próprio", o "mais autêntico", e dissolução de todas as relações com outrem: "A possibilidade de se aniquilar é precisamente constitutiva do Dasein, e mantém assim a sua ipseidade. Esse nada é uma morte, isto é, a minha morte, a minha possibilidade (da impossibilidade), o meu poder. Ninguém me pode substituir para morrer. O instante supremo da resolução é solitário e pessoal" (Lévinas). Nesta perspectiva da autenticidade (Adorno), o morrer por um outro surge como um mero sacrifício. Ora, a relação com outrem, na qual a morte do outro preocupa o ser-aí humano, sem reconduzir à sua morte própria, indica "um além" (ou "um antes") da ontologia, e revela, ao mesmo tempo, "uma responsabilidade pelo outro": "A prioridade do outro sobre o eu, pela qual o ser-aí humano é eleito e único, é precisamente a sua resposta à nudez do rosto e à sua mortalidade" (Lévinas). A morte é, para cada um de nós, "o impossível abandono de outrem à sua solidão" e a "proibição desse abandono dirigido a mim". O temor pela morte do outro é o meu temor, mas um temor que não retorna à angústia pela minha morte: morrer por outrem e a morte do outro têm prioridade sobre a morte autêntica. (CONTINUA com o título "Meditatio Mortis e Sentido da Vida 7".)
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 11 de abril de 2009

Meditatio Mortis e Sentido da Vida (5)

«A imortalidade da alma é uma coisa de tal modo importante para nós, toca-nos tão profundamente, que é preciso ter perdido todo o sentimento para ficarmos na indiferença de saber o que ela é. Todas as nossas acções e todos os nossos pensamentos devem seguir rumos tão diferentes, consoante haja ou não a esperar bens eternos, que é impossível dar um passo com sentido e juízo a não ser regulando-nos e tendo os olhos neste ponto, que deve ser o nosso último objectivo. Assim, o nosso primeiro interesse e o nosso primeiro dever consistem em nos esclarecermos a respeito deste assunto, do qual depende toda a nossa conduta». (Blaise Pascal)
5. A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o sujeito da esperança. As pessoas deformadas pela visão anémica do mundo imposta pela ciência instrumental e pela tecnologia que servem os interesses da dominação, e pelo estilo de vida consumista que as reduz à sua mera condição de animal laboral, são actualmente pouco inclinadas a aceitar o pensamento da imortalidade da alma ou da ressurreição dos mortos. Para compreender o predomínio da ciência na mentalidade contemporânea, é necessário recuar até René Descartes e à ruptura radical que operou no pensamento. No início da era da técnica e da manufactura, Descartes separou e dividiu: de um lado, temos o pensamento, o que é próprio do homem, e, do outro lado, a realidade extensa, tudo aquilo que se manifesta no espaço. A suposição básica da ciência instrumental foi assente: a natureza existe por si e é o que pode ser medido e pesado, o jogo das forças, o acontecer material. O seu estudo exige método e não pode admitir que se projecte nela qualquer coisa que seja humana ou divina: a natureza está-aí para ser explorada, dominada, maltratada e devastada. Esta visão mecanicista alargou-se gradualmente a todas as regiões da natureza e do ser e conduziu ao triunfo do materialismo redutor e cadavérico: a ciência tenta explicar e dominar o mundo vivo através das leis da matéria morta e acaba por colonizar finalmente o espírito humano, entregando o ser humano ao jogo das forças cegas do acaso. O monismo vitalista foi substituído pelo monismo mecanicista e materialista: a vida não pode subtrair-se à lei básica e, por isso, é integrada com violência na lei geral do triste fisicalismo. Com a vitória da ontologia da morte universal, a explicação da vida significa negá-la, fazendo dela uma variante das possibilidades do sem-vida. A ciência foi sempre um projecto necrófilo: a redução da vida ao que não tem vida implica a dissolução do particular no geral, do composto no simples e da excepção aparente na regra confirmada. O pensamento científico e secularizado encontra-se, portanto, sob o predomínio ontológico da morte. Se no passado, a fronteira da compreensão era a morte, no nosso tempo, é a vida, porque só na morte deixa o corpo de ser um enigma: o organismo que vive, sente e procura é desmistificado como um ludibrium materiae. A suposta neutralidade da ciência e da técnica é pura ideologia: a razão política estabelecida e a razão técnica são uma só razão histórica que pode ser superada.
A morte coloca ao pensamento a pergunta sobre a possibilidade de realizar definitivamente o sentido da vida, a qual resulta do contraste existencial entre a grandeza e a santidade da vida e a ameaça da morte. A. Camus, para quem a vida era um absurdo, apercebeu-se deste dilema existencial quando se interrogou: Que liberdade pode haver no sentido pleno sem a garantia da eternidade? G. Marcel detectou a incompatibilidade entre a morte radical e o valor da vida pessoal: a morte radical anula o valor da vida e este escândalo faz com que a realidade humana se sinta ferida no seu próprio coração. A antropologia metafísica de J. Marías coloca duas questões radicais: Quem sou eu?, Que será de mim? Se respondermos à segunda questão com um rotundo "Nada", então anulamos a primeira questão: a morte total como aniquilação de mim e do meu mundo anula o sentido da vida e, nesse caso, não vale a pena viver. As antropologias materialistas encaram a morte como a última palavra da existência humana, alegando que a condição corpórea do homem conduz inevitavelmente ao aniquilamento da vida no momento da morte: a ruína do corpo fisiológico é o aniquilamento radical da vida pessoal. Esta negação da imortalidade da alma ou da pessoa humana é dogmática e o recurso à ciência não abona a seu favor, porque, como mostrou L. Tolstoi, "a ciência carece de sentido": a ciência instrumental "não tem resposta para as únicas questões que nos interessam, ou seja, o que devemos fazer e como devemos viver". A insuficiência do materialismo foi reconhecida pela própria filosofia marxista: "a imagem de felicidade é inseparável da de redenção" (Walter Benjamin). Isto significa que, à luz messiânica da redenção, a própria tarefa política da emancipação exige algum tipo de esperança numa vida eterna, isto é, numa vida não sujeita à caducidade do tempo. A fragilidade ontológica do ser finito que é o homem, o ser-para-a-morte (Heidegger), parece privá-lo da esperança, limitando-o à espera de um futuro melhor sobre a Terra. Condenado a ser esperança para os outros, o homem seria, ele próprio, nesta perspectiva, um ser sem esperança própria: as gerações passadas e intermediárias estariam irremediavelmente perdidas e sacrificadas no altar de um futuro que tarda a chegar. Objecto de esperança alheia, o homem singular não teria esperança própria. A perspectiva da redenção é mais exigente e, quando reclamada no seio de uma filosofia materialista, retoma a ideia cristã da ressurreição dos mortos (Adorno) e da natureza (Marx): o eu singular que conjuga o verbo esperar fá-lo, porque, apesar da sua mortalidade e da caducidade do mundo, espera o cumprimento da promessa veraz de vida eterna. Quando luta contra a dominação, a alienação, a reificação e as moradas da escravidão e do sofrimento gratuito, o materialismo consequente anula-se antes mesmo de se superar: a verdade do materialismo reside apenas na sua negação.
A imortalidade não é certamente um objecto de conhecimento, dado situar-se além de toda a refutação e de toda a prova, tal como a epistemologia do conhecimento científico as define, mas é seguramente uma ideia de conhecimento (Kant) tão antiga quanto a própria humanidade. Desde que o homem começou a sepultar os seus mortos, inicialmente numa posição fetal que nos reconduz à noção de sobrevivência e de um novo renascimento, a importância interior do sentido da imortalidade e a ressonância que provoca em nós constituem a única base que nos permite retomar a problema da imortalidade num tempo indigente como o nosso. As criaturas metabolicamente reduzidas procuram apenas uma das duas modalidades da imortalidade empírica: a imortalidade da fama, tal como foi clarificada por David Hume na filosofia moderna, em detrimento da imortalidade da acção. A noção de imortalidade da fama ou do nome é grega e foi muito admirada na Antiguidade Clássica ou mesmo na Idade Média. A imortalidade da fama era vista como uma justa recompensa pelos nobres feitos visíveis, isto é, públicos, realizados por homens corajosos, que, tal como Hume, eram motivados e movidos pela busca da fama. A visibilidade e a publicidade destes feitos imortais facilitavam a sua percepção e a sua lembrança por parte dos membros da comunidade. A sobrevivência na imortalidade da fama era alcançada unicamente na esfera da comunidade política: a fama imortal era a permanência das honras públicas. Como desejo de prolongamento na fama póstuma, o desejo de fama assenta na confiança depositada na opinião pública, nomeadamente na sua perspicácia no presente, na sua fidelidade no futuro e na sua própria continuidade e sobrevivência sem limites. Esta confiança grega na imortalidade da fama foi minada pela destruição benjaminiana da "história dos vencedores": a história narra os feitos dos vencedores, esquecendo e excluindo os feitos da maioria das pessoas, isto é, dos vencidos, cuja voz foi sempre-já silenciada. Não podemos acreditar na "selecção" realizada por uma tal historiografia das classes dominantes, sobretudo no contexto ofuscante da nossa própria sociedade, onde as reputações são fabricadas, a fama é inventada, a opinião pública é manipulada e a narração dos acontecimentos é falsificada sob pressão dos interesses instalados no poder. Nesta nossa era da corrupção universal da palavra, dominada pela disciplina partidária e pelas técnicas publicitárias, o discurso público é mais o discurso da mentira (a palavra aparente) do que da verdade, o que confirma a suspeita generalizada de que a fábula que relata à posteridade como as coisas aconteceram é uma mera invenção de um grupo minoritário corrupto constituído pelos grandes malfeitores da humanidade. A imortalidade da acção procura fazer justiça ao ser humano bom que, sem ansiar pela imortalidade do nome, própria do vaidoso, fica satisfeito com a continuação anónima da sua obra, traduzindo assim a esperança viva dos esforços sérios realizados ao serviço de um fim mais elevado.
Ora, estes dois conceitos de imortalidade empírica não resistem à extinção do tempo: o mortal não pode funcionar como meio de preservação da imortalidade. As sociedades e as culturas humanas são efémeras e passageiras e a própria sobrevivência da humanidade está em risco. A caducidade do mundo e das coisas humanas trabalham contra a imortalidade empírica e, quando a continuidade biológica da espécie humana está ameaçada de morte, torna-se problemático ligar o sentido da vida a um futuro que não é garantido: o êxito da aventura humana não está garantido e o fracasso é possível. Tanto o marxismo, pelo menos na sua versão mais ortodoxa e brutalmente materialista e economicista, como o existencialismo, lançaram-nos nas águas da mortalidade sem a segurança de um salva-vidas escondido, obrigando-nos a ocupar a nossa posição solitária no tempo entre dois nadas: o passado que já-não-é e o futuro que ainda-não-é. A questão da imortalidade foi varrida e banida do horizonte espiritual da nossa época: a descoberta da historicidade do homem (Hegel, Marx) e a elaboração ontológica da temporalidade do seu ser (Heidegger) levaram-nos a tomar consciência de que o tempo, longe de ser uma mera forma dos fenómenos, pertence à nossa essência mais íntima e que a nossa finitude é condição fundamental para que a nossa existência possa possuir autenticidade. O homem já não nega a sua mortalidade essencial; pelo contrário, parece reivindicar a sua condição efémera, breve e passageira, confrontando-se com o nada e convivendo com o nada.
O cepticismo moderno em relação à existência de Deus e à imortalidade da alma mina a própria realidade da superação pessoal da morte. A existência humana move-se unicamente na esfera histórica: nasce da história, desenvolve-se na história e descobre o seu sentido completo no âmbito da história. Para Hegel, a liberdade humana só se realiza como história: o homem é um ser livre na medida em que é um ser histórico e, como só há história onde há liberdade, a liberdade revolucionária negadora pressupõe a morte. Isto significa que somente um ser mortal pode ser verdadeiramente histórico. A morte constitui o fundamento último e o primeiro móbil da história: «A história é o movimento dialéctico da força que mantém no Ser o nada que é o homem. Esta força realiza-se e manifesta-se como acção negadora ou criadora: acção negadora do dado que é o próprio homem, ou acção da luta que cria o homem histórico; e acção negadora do dado que é o mundo natural onde vive o animal, ou acção do trabalho que cria o mundo cultural, fora do qual o homem é puro nada, e onde ele não difere do nada a não ser por certo tempo». Isto significa que o sentido da vida se encontra no futuro histórico, mesmo que esse futuro seja pensado como um fim da história. G. Mury defendeu, no seio do marxismo, esta tese de que o sentido da nossa existência se encontra no interior da história: "Posso dar um sentido à minha vida se a identifico com o projecto universal da espécie que, desde a sua origem, se empenhou em construir, graças ao trabalho social, um mundo fraternal em que o domínio do homem sobre o seu meio material possa ser radicalmente assegurado. Salvo-me ou condeno-me neste mundo, na medida em que cumpro ou deixo de cumprir a vocação da humanidade global encarnada nos combates presentes, levados a cabo pelo proletariado na sua luta pela libertação geral de todos os homens". A perspectiva de Mury assenta em três pressupostos questionáveis: a humanidade, como espécie biológica, continuará a existir indeterminadamente sobre a Terra (1); o advento de uma sociedade sem exploração do homem pelo homem e sem alienações parece estar assegurado (2); e esse advento constitui uma resposta total e exaustiva ao sentido da existência pessoal (3). Porém, nenhum destes pressupostos está garantido. A imortalidade da espécie não é certa, conforme o demonstra a problemática biológica da extinção das espécies. Por isso, torna-se problemático ligar o sentido da actividade presente a um futuro não garantido, e, mesmo que realizássemos esse sonho diurno de uma sociedade justa, a morte não deixaria de ser problemática, como mostrou Bloch ou mesmo Marcuse. A história como resposta à necessidade de sentido na vida humana pressupõe a mortalidade radical do homem, excluindo a priori a imortalidade da pessoa e negando a dimensão meta-histórica das aspirações humanas, como se o sentido imanente fosse suficiente para garantir a grandeza da aventura humana. Mury rejeita cabalmente a hipótese de que o desaparecimento do homem possa privar retrospectivamente a aventura humana de sentido, mas, como vimos, Benjamin, Adorno, Horkheimer e Bloch acabaram por abrir o marxismo à transcendência.
Com esta abertura à transcendência e ao inteiramente Outro, podemos dar expressão conceptual ao sentimento de que a temporalidade não pode ser a última palavra. No ser humano, manifesta-se a qualidade íntima de auto-superação, cujo sinal criptográfico reside na nossa ideia de eternidade. A prova tradicional da imortalidade afirma que a espiritualidade do homem não desaparece com a decomposição do organismo biológico, porque a alma espiritual do homem, não sendo composta como a matéria, não pode ser aniquilada por causa de um processo biológico. A morte separa o homem da comunicação sensível e tira-o do nosso mundo comum, mas esta invisibilidade da pessoa humana não implica, como mostrou Max Scheler, que o homem tenha deixado de existir pessoalmente: "O facto de não a vermos depois da morte significa muito pouco, dado que nunca a podemos ver de um ponto de vista sensível. O facto de não existirem fenómenos expressivos depois da morte é somente um motivo para aceitarmos que eu já não posso compreender a pessoa; mas não é motivo para aceitar a sua não existência. Por isso, a pessoa pode factualmente deixar de existir quando faltam elementos expressivos para a compreender. Não está escrito em parte alguma que as pessoas devam durar sempre; mas, na ausência destes fenómenos expressivos, não há nenhum motivo para afirmar que elas não sobrevivem" (Scheler). Retomando o argumento de Platão e de S. Tomás de Aquino, C. Tresmontant evita pensar a morte como aniquilação: a alma não é uma composição e, por isso, não pode decompor-se, tal como sucede com o corpo. O ónus da prova, o onus probandi, cabe àquele que nega a eternidade do espírito (Tresmontant) ou a sobrevivência da pessoa (Scheler). (CONTINUA com o título "Meditatio Mortis e Sentido da Vida 6".)
J Francisco Saraiva de Sousa