quinta-feira, 28 de maio de 2009

Fernando Pessoa e a Psiquiatria

«Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses,
Trincasse velas, remos, cordame e poleame
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes! (...)
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles
E sentir tudo isso - todas estas coisas duma só vez - pela espinha!
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!
Queria ser aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!»
(Álvaro de Campos, Ode Marítima)
«A mulher que sou quando me conheço». (Bernardo Soares, Livro do Desassossego)
É muito difícil encontrar actualmente uma definição consensual da psiquiatria, porque são diversas as áreas disciplinares que contribuem para a constituição da psiquiatria como ramo da medicina, fazendo com que se desdobre em diversas problemáticas, e para o diagnóstico e a terapêutica das perturbações mentais. Uma definição vulgar define a psiquiatria como um ramo da medicina que estuda a patologia da "vida de relação" ao nível da integração que assegura a autonomia e a adaptação do homem nas condições da sua existência, mas a tendência é cada vez mais a de a encarar como uma ciência do comportamento e das perturbações de comportamento. A imagem popular da psiquiatria ainda associa-a às "doenças mentais", de resto uma designação que caiu em desuso, e é essa noção que descobrimos em Fernando Pessoa. Num dos seus escritos de crítica literária, Fernando Pessoa afirmou que "o único crítico de arte ou de letras deve ser o psiquiatra". A noção do psiquiatra como o único crítico literário é deveras estranha. Como fingidor nato, Fernando Pessoa simula conhecer a obra de Freud e dos Freudianos e chega mesmo a dizer que não precisava ler Freud para "conhecer, pelo simples estilo literário, o pederasta e o onanista, e, adentro do onanismo, o onanista praticante e o onanista psíquico". E, mais adiante, procura explicar a introversão (autista) de Mário de Sá-Carneiro - a sua falta de calor humano e de ternura humana - pelo facto de ter perdido a mãe quando tinha dois anos. Como nunca conheceu o carinho materno, devido à morte prematura da mãe, Sá-Carneiro vira sobre si-mesmo a ternura própria e, como verificou Joel Serrão, torna-se um onanista compulsivo. Numa carta a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa utiliza a psiquiatria para explicar a génese dos heterónimos: "A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim". Porém, entre ser simplesmente histérico ou ser um histero-neurasténico, Pessoa opta pela segunda hipótese, "porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e para os outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher - na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas - cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico em mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia..."
Fernando Pessoa auto-rotula-se em termos médicos como um "histero-neurasténico" desde a infância, mas, nesta auto-interpretação, não é a sua personalidade, a sua sexualidade real ou a sua enfermidade de alma que interessam: o que deveras interessa é compreender a unidade da sua obra poética, onde o seu eu se despersonaliza. A noção de despersonalização de que fala Pessoa parece aproximá-lo da teoria impessoal da poesia de T.S. Eliot: a concepção de poesia como um "todo vivo de toda a poesia já escrita". Nesta perspectiva, o poeta procura conhecer o passado, a Tradição ou o Espírito Ocidental, do qual o presente é a compreensão, e aperfeiçoar constantemente esse conhecimento, rendendo-se e auto-sacrificando-se a si próprio, numa extinção contínua da sua personalidade. Porém, em Fernando Pessoa, a despersonalização não significa o sacrifício das personalidades e das opiniões dos poetas, dos homens e das mulheres a uma ordem impessoal, a Tradição, mas sim a fragmentação do próprio eu e a sua dispersão - orquestrada pelo "dramaturgo" - em múltiplas identidades poéticas, os seus heterónimos, fragmentação essa que Pessoa, na carta a Armando Cortes-Rodrigues, pensa, talvez de modo precipitado, em termos de "crise psíquica", portanto, em termos psiquiátricos, possibilitando uma leitura psicopatológica da sua obra e da sua "alma enferma" (William James). Mas, como onde há dramaturgo, há uma linha condutora consciente unificadora e controladora da dispersão interior, a despersonalização não significa, em Fernando Pessoa, dissociação e/ou desrealização: Fernando Pessoa não sente que perdeu o controle sobre os seus pensamentos, imaginação ou lembranças, como se o seu corpo - movimentos corporais e comportamentos - e a sua mente - pensamentos e identidades - lhe fossem completamente estranhos, observados por si à distância como algo morto (despersonalização), ou carentes de integração e, portanto, fora do controle consciente e selectivo (dissociação). A auto-interpretação de Pessoa em termos psiquiátricos mais não é do que um recurso retórico para dar conta da sua "tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram": Fernando Pessoa é desde a infância um "dramaturgo".
Usando a obra de Freud e de Nietzsche, Harold Bloom reescreveu a história literária em termos de complexo de Édipo: os poetas vivem angustiados à sombra de um "poeta forte" anterior que, como "pai primordial", o "Pai Poético", os oprime. Todos os poemas podem ser lidos como tentativas de escapar dessa "angústia de influência" mediante a remodelação e a revisão sistemáticas de um poema anterior: "A Influência Poética - quando diz respeito a dois poetas fortes, autênticos -, processa-se sempre através de uma leitura má do poeta anterior, um acto de correcção criativa que é realmente e necessariamente uma interpretação errónea. A história da influência poética frutífera, que o mesmo é dizer a tradição principal da poesia ocidental a partir do Renascimento, é uma história de angústia e de caricatura defensivas, de distorções, de revisionismos perversos e deliberados sem os quais a poesia moderna enquanto tal não poderia existir". Presos nas teias da rivalidade edipiana, filhos e pais travam constantemente batalhas entre si e, quando essas lutas são entre iguais fortes, o poeta forte procura a todo o custo desarmar a força castradora do seu "perseguidor" - o pai -, penetrando-o a partir de dentro e reescrevendo o poema precursor de modo a revê-lo, deslocá-lo, encobri-lo e modificá-lo. É por isso que todos os poemas podem ser lidos como uma reescritura de outros poemas, mais precisamente como a sua "interpretação errónea". Só assim - lendo-se mal uns aos outros - os poetas fortes conseguem abrir espaço à sua própria originalidade imaginativa, isto é, desobstruir um "espaço de imaginação para si próprios". O poeta forte mais não é do que um "atrasado" que, reconhecendo corajosamente esse "atraso", procura enfraquecer a força do precursor. O poema é essa tentativa de enfraquecimento e de encobrimento que visa, através de diversos recursos retóricos, tais como as seis proporções de revisão - clinamen, tessera, kenosis, demonização, askesis e apófrades -, desfazer e superar outro poema-pai, donde resulta que o significado de um poema é outro poema gerado intra- e inter-poeticamente: "O poeta forte não consegue gerar-se a si próprio - deve esperar pelo seu Filho, que o definirá como ele definiu o seu Pai Poético. Gerar quer aqui dizer usurpar, e esse é o trabalho dialéctico do Querubim", isto é, da "angústia criativa".
A utilização da psicanálise para elaborar uma teoria da poesia não é isenta de dificuldades ou mesmo de abusos hermenêuticos. Theodor W. Adorno denunciou todas as interpretações psicanalíticas da arte que erigem abusivamente em critério um psiquismo normal, mesmo quando a qualidade estética é, como nos casos de Baudelaire e de Fernando Pessoa, condicionada pela ausência da mens sana: "As obras de arte são, para a psicanálise, sonhos diurnos; ela confunde-os com documentos, transfere-os para os que sonham enquanto que, por outro lado, os reduz, em compensação da esfera extramental salvaguardada, a elementos materiais brutos, de um modo aliás curiosamente regressivo em relação à teoria freudiana do «trabalho do sonho». (...) As obras de arte são incomparavelmente muito menos reflexo e propriedade do artista do que pensa um médico, que apenas conhece o artista no seu divã. Só os diletantes referem tudo o que se encontra na arte ao inconsciente. A pureza da sua sensibilidade repete clichés decadentes. No processo de produção artístico, as moções inconscientes são impulso e material entre muitos outros. Inserem-se na obra de arte através da mediação da lei formal; o sujeito literal, que compõe a obra, não passaria de um cavalo pintado. As obras de arte não constituem thematic apperception tests do seu autor. Em tal amusia é responsável também o culto que a psicanálise rende ao princípio de realidade: o que não lhe obedece é sempre «fuga» apenas, a adaptação à realidade surge como o summum bonum". Na carta a João Gaspar Simões, Fernando Pessoa denuncia precisamente a "franca paranóia (freudiana) de tipo interpretativo", cujo "critério psicológico original e atraente" de avaliação das obras de arte assenta numa "interpretação sexual". O freudismo conduz à produção de livros de ciência "obscenos" que interpretam os "artistas e escritores passados e presentes num sentido degradante", "ministrando masturbações psíquicas à vasta rede de onanismos de que parece formar-se a mentalidade civilizada contemporânea". Ora, para Fernando Pessoa, "o Freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo". É imperfeito, porque nenhum sistema teórico nos pode dar a chave única da "complexidade indefinida da alma humana". É estreito, porque reduz tudo à sexualidade, esquecendo que "nada se reduz a uma coisa só, nem sequer na vida intra-atómica". E é utilíssimo, porque destacou três elementos importantes da vida da alma e fundamentais para a sua interpretação: o inconsciente e a qualidade irracional dos humanos (1), a importância da sexualidade como força motivacional (2) e aquilo a que Pessoa chama a "translação", isto é, "a conversão de certos elementos psíquicos (não só sexuais) em outros, por estorvo ou desvio dos originais, e a possibilidade de se determinar a existência de certas qualidades ou defeitos por meio de efeitos aparentemente interrelacionados com elas ou eles" (3). Fernando Pessoa não nega o uso dos conceitos psicanalíticos como "estímulo da argúcia crítica", desde que esta saiba "afiar a faca psicológica (imagem fálica) e limpar ou substituir as lentes do microscópio crítico (imagem iónica)". Contra os abusos interpretativos de alguns críticos, Pessoa esclarece que a função do crítico é estudar o artista exclusivamente como artista (1), clarificar a explicação central do artista (2), e cercar os seus estudos de uma "leve aura poética de desentendimento" (3). E apresenta o seu exemplo para clarificar o segundo ponto metodológico: "O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro - eis tudo. Do ponto de vista humano - em que ao crítico não compete tocar, pois de nada lhe serve que toque - sou um histero-neurasténico com a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra). Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qualquer pessoa que não seja um psiquiatra, que por hipótese, o crítico não tem que ser. Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir". A chave hermenêutica apresentada por Pessoa para abrir todas as fechaduras da sua expressão poética reconduz-nos ao célebre poema "Autopsicografia":
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
"E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
"E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração".
Teixeira de Pascoaes, o pai eterno visado no trabalho intra-poético de Fernando Pessoa, deixou-nos estas palavras de cautela hermenêutica: "Ser sincero é ser, é possuir uma presença integral, como as árvores e os penedos. A mentira representa pontos obscuros, falhas da nossa pessoa que pretendemos ocultar. Mas a sinceridade é a própria luz das almas. Por isso, ela seduz e deslumbra os olhos que amam a claridade". Quando analisa a poesia alheia, em especial a dos pais poéticos que urge assassinar, Fernando Pessoa recorre, dito em linguagem hegeliana, à mediação psicológica e à mediação sociológica para compreender as obras de arte e, no caso referido, para interpretar mal os poemas precursores. O recurso abundante à mediação psicológica visa denegrir os chamados "poetas místicos" - Teixeira de Pascoaes, Guerra Junqueiro e Jaime Cortesão, entre outros - e, como recurso extra-poético, viola o ponto dois da metodologia da crítica literária proposta pelo próprio Fernando Pessoa: explicitar a "explicação central do artista". Os heterónimos ou as máscaras de Pessoa - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, além do seu semi-heterónimo Bernardo Soares -, cada um dos quais apetrechado com um profundo conceito de vida e marcado pelas suas próprias influências e preferências poéticas, nacionais e estrangeiras, embora todos eles "discípulos de Caeiro", incluindo o próprio Fernando Pessoa, constituem personagens que Pessoa utiliza para interpretar mal esses poetas nacionais, de modo a desbravar um espaço onde pudesse afirmar sem mácula a sua originalidade imaginativa. A dramatização e a criação dessas máscaras acontecem dentro da própria poesia de Pessoa ou, como prefere dizer, dentro de si próprio, o que mostra a intensidade da angústia da influência sofrida continuamente por Pessoa, que precisa usurpar os outros e vivê-los como suas criações internas e privadas dentro de si próprio. A elaboração das biografias de cada um dos heterónimos mostra que, durante a sua viagem, Pessoa acaba por assassinar cada um deles, com o objectivo de descobrir a sua unidade original. Numa atitude de desprezo pelos seus contemporâneos e antecessores, Pessoa afirma que a sua crise psíquica é a crise "de se encontrar só" por se ter adiantado de mais dos "companheiros de viagem". Ora, afirmar que se encontra adiantado em relação aos poetas-pais equivale a reconhecer o sucesso da sua tarefa de os superar ou de os melhorar. Porém, essa superação bem-sucedida não é evidente, até porque Pessoa se limita a substituir o saudosismo de Pascoaes por um futurismo absolutamente místico: a mitologia do Quinto Império, fortemente devedora dos ensinamentos herméticos de Sampaio Bruno, mas privado da sua leitura antropológica do Encoberto. Bernardo Soares acaba por reconhecer esse fracasso poético: "A minha alma é fraca de mais para ter sequer a força do seu próprio entusiasmo. Sou feito de ruínas do inacabado e é uma paisagem de desistência a que definiria o meu ser. /Divago, se me concentro; tudo em mim é decorativo e incerto, como um espectáculo na bruma. /Escrevo com uma grande intensidade de expressão; o que sinto nem sei o que é. Sou metade sonâmbulo e a outra parte nada. /A mulher que sou quando me conheço". Conhecer a mulher que é ou, como diz Prado Coelho, a sua pederastia passiva, é reconhecer que a sua ambição, mesmo a de vir a ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, não foi suficiente para fazer dele um poeta forte, tal como Shakespeare, Goethe ou Whitman: o seu super-Camões que parodia o super-homem de Nietzsche foi apenas um sonho diurno que não conseguiu concretizar e completar.
Pela segunda vez, dedico mais este post ao Futebol Clube do Porto, o Tetra-Campeão, que conquistou ontem (31 de Maio de 2009) a Taça de Portugal. A Tribo do Dragão Azul e Branco seduz e conquista Portugal e o Mundo. Viva o FCPorto! Viva o Dragão Azul e Branco! Viva a Tribo do Dragão Azul e Branco!
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 26 de maio de 2009

Prós e Contras: O País em Debate

"Prós e Contras" (25 de Maio de 2009) voltou novamente ao debate Pensar Portugal, com novos convidados: João Lobo Antunes, Henrique Granadeiro, Laborinho Lúcio e Vítor Feytor Pinto. O impacto da crise financeira e económica sobre a fragilidade estrutural da economia nacional e a sociedade portuguesa é de tal modo preocupante que se justifica esta série de debates dedicados a "pensar Portugal". As crises decidem se uma coisa - indivíduo, vida ou forma de vida - perdura ou não, e, no momento presente de dupla-crise, os portugueses enfrentam a questão hamletiana: "ser ou não ser". O destino de Portugal como nação está em causa e, apesar da crise que vivemos ter causas objectivas, muitas das quais externas, as pessoas envolvidas devem vivenciá-las: a crise não é algo exterior às pessoas, à nossa forma de vida e ao nosso país, mas algo que nos afecta pessoal e colectivamente. Enquanto os portugueses continuarem a pensar que a crise não os afecta pessoal e colectivamente, não pode haver a "mobilização" defendida por Granadeiro. Os debates da RTP1 moderados por Fátima Campos Ferreira visam precisamente chamar a atenção dos cidadãos portugueses para a questão hamletiana: Portugal está em risco, enfrenta o dilema "ser ou não ser", e, se nada for feito, pode soçobrar na miséria do esquecimento, desaparecendo dos palcos mundiais.
Lobo Antunes deu o mote ao diálogo - "Sou optimista, porque amo Portugal" - e todos concordaram, pelo menos na aparência, porque as cisões depressa surgiram. Ao comparar a situação da justiça ("problema grave") e a situação da saúde ("dificuldades"), Lobo Antunes apontou a crise da justiça como o problema mais grave de Portugal, posição reforçada por Granadeiro. Mas Laborinho Lúcio preferiu localizar a arqui-crise na actividade política e no funcionamento dos partidos políticos, e Feytor Pinto defendeu que o problema mais grave do país é a "falta de educação". A palavra crise foi usada pelos participantes no seu sentido iluminista e marxista para compreender o momento presente como uma crise profunda e a crise como uma crítica ou causa suscitada pela necessidade de um novo paradigma contra o estado presente que "joga para fora da sociedade" (Feytor Pinto) os desempregados e os mais pobres. O fosso entre a teoria e a prática tematizado por Granadeiro como a separação entre problemáticas - as dos seus interlocutores - e "solucionária" - a sua perspectiva mais pragmática - é, porém, menos nítido na actividade política: a compreensão e a solução da actual crise nacional exigem um diagnóstico da crise: crise da justiça, para Lobo Antunes, crise do político, para Laborinho Lúcio, crise económica, para Granadeiro, e crise de valores e da educação, para Feytor Pinto. A crise como julgamento (sentido polémico e judicial), referindo-se a uma decisão judicial, e a crise como diagnóstico (sentido médico) sobrepõem-se na actual "situação crítica" nacional que fomenta o "ambiente de crispação e de violência verbal" (Granadeiro), patente nas campanhas partidárias para as eleições europeias e nos acontecimentos da última semana difundidos pelos mass media: Lobo Antunes referiu-se a essa combinação do julgamento e do diagnóstico quando definiu a política como "medicina a uma grande escala". A crise desencadeia críticas que visam tornar os cidadãos conscientes da sua gravidade e as posições explicativas ou os diagnósticos da crise interna apresentadas foram e são diferentes. A prioridade de uma das crises sobre as restantes implica soluções diferentes, além de diagnósticos distintos. Se a crise primordial for a crise da justiça (Lobo Antunes), a solução parece ser a exigência de uma "atitude moral" no exercício de certos cargos públicos que transcendem as pessoas que os ocupam: os magistrados e os agentes judiciais, bem como os políticos, devem servir o interesse nacional e não os seus próprios interesses privados. Se a crise económica for a crise primordial (Granadeiro), as medidas paliativas, em especial as assistenciais, não são suficientes para a resolver: a solução certa é recuperar os empregos perdidos e fomentar a criação de novas empresas e o crescimento económico, através do investimento de capitais de risco, como sucedeu aquando do regresso e da integração dos retornados do Ultramar, e conquistar maiorias absolutas, as únicas capazes de garantir a governabilidade num momento de crise profunda e de elevada crispação social. A crise da justiça portuguesa afasta os investimentos internacionais: o ritmo lento da justiça e os seus conflitos intestinos agravam a situação económica, afundando Portugal na miséria e na pobreza estrutural. Em vez de se darem às lamurias, os portugueses devem passar à acção, sem perderem tempo a problematizar a situação crítica. Laborinho Lúcio reconheceu que a crise da justiça é real, dado funcionar hoje num "paradoxo axiológico": ou acompanha o mercado e as suas exigências (eficácia, competitividade, produtividade, sucesso) ou garante o Estado de Direito. A sua solução passa por questionar hoje "o sentido" da divisão dos poderes e da independência dos tribunais: a autonomia judicial não é perdida se a gestão da justiça for confiada à esfera política. Os políticos contribuíram para a descredibilização da actividade política, porque foram acossados pelas pressões do público, dos mass media e da sociedade civil. Os cidadãos devem mobilizar-se, tal como o fizeram aquando da libertação de Timor do jugo sangrento indonésio: a crise da política resolve-se pelo "retorno do político". Portugal perdeu e deitou fora 3/4 do século passado (século XX) e, por isso, não pode dar-se ao luxo de desperdiçar mais uma vez esta oportunidade para mudar de rumo: o retorno do político é a única solução capaz de imprimir um novo rumo ao destino nacional. No entanto, o retorno do político não passa pela integração de independentes nas listas eleitorais, como se estes fossem mais "inocentes" e competentes do que os próprios políticos profissionais. A exibição de independentes atesta a descredibilização da própria política e dos seus agentes, funcionando como uma espécie de auto-atestado de incompetência. Feytor Pinto apontou a crise da educação e dos valores como a principal causa da actual situação crítica: a educação implica "a formação integral da pessoa humana" e não apenas da sua dimensão cognitiva, e, nesse sentido, passa pela formação moral dos jovens para o exercício pleno e responsável da cidadania. A crispação social revela "falta de educação": os políticos exercem a sua actividade em função do seu sucesso e não como "vocação de serviço", os magistrados violam o segredo de justiça, e os meios de comunicação social aproveitam essa violação para submeter as "vítimas" ao "tribunal popular". A solução da crise passa pela aprendizagem dos valores na escola e pela "construção da paz" assente em quatro pilares: a verdade, a justiça, a liberdade e o amor. No entanto, Feytor Pinto defendeu, com a aprovação de Lobo Antunes, a ideia de uma força supra-partidária, liderada pelo Presidente da República e por individualidades acima da suspeita mediática, como a "asa" capaz de fazer emergir a mudança de rumo e de superar a crise. Mas, como mostrou Granadeiro, esta última proposta é irrealista, porque esquece que o Presidente da República não tem poderes para assumir esse protagonismo político.
As crises têm causas objectivas, mas a sua superação deve ser assumida pelos indivíduos e pelas entidades sociais envolvidas. Os portugueses devem ser mobilizados, como defenderam Laborinho Lúcio e Granadeiro, mas as mobilizações referidas do passado recente foram inconsequentes, excepto as mobilizações corporativistas, tais como as dos professores, dos agentes judiciais, de certos profissionais da saúde e dos agentes policiais. Quando disse que Portugal deitou fora 3/4 do século XX, Laborinho Lúcio tentou proteger as últimas três décadas da democracia pós-25 de Abril, mas a restituição da liberdade e da democracia não foram suficientes para superar o atraso estrutural de Portugal. É certo que o 25 de Abril libertou os portugueses da pobreza, calçando-os, vestindo-os e dando-lhes alimento, mas não soube cuidar da sua alma e educá-los para a cidadania responsável: o 25 de Abril arruinou a educação e o ensino. A crise da educação constitui a arqui-crise nacional, como testemunham a violência nas escolas e o caso recente da "professora suspensa" por ter um "mestrado" e uma "profissionalização" no novo domínio disciplinar das "cuecas húmidas" e da "perda da virgindade": o Estado distribui diplomas, mesmo que os falsos-diplomados não exibam competências cognitivas e mentais, e subsídios, tornando a vida dos portugueses demasiado fácil, promovendo a sua ignorância activa e criando dependentes que apenas sabem protestar e reivindicar. Os portugueses não querem mudar nada e, nesta situação crítica, não podemos promover o optimismo tão defendido por Lobo Antunes: o elemento subjectivo, o suposto agente da mudança social, caminha na direcção contrária à dos elementos objectivos que exigem uma mudança de paradigmas. A crise da educação é, na sua essência, crise antropológica: a animalidade dos humanos foi promovida a todos os níveis à custa da sua humanidade. Habituados à vida fácil, sem esforço e sem punição, desde o berço até à morte adiada, os portugueses são patologicamente avessos à mudança qualitativa. Ora, esta alienação total dos portugueses, tanto dos governados como dos governantes, é resultado de más políticas levadas a cabo depois do 25 de Abril: todo o século XX foi desperdiçado e o começo do presente século está a seguir o mesmo caminho, porque a atrofia mental e a regressão cognitiva dos portugueses já são fenómenos transversais a todas as gerações que coexistem no momento presente. O dilema nacional afunda-se no abismo da deficiência antropológica: Como podemos alterar o rumo de Portugal com estes portugueses alienados? A falta de educação exige uma solução radical: a ditadura pedagógica, ou seja, a preparação e a educação das pessoas para a mudança qualitativa. Mas quem pode liderar esta ditadura pedagógica? As gerações mais velhas? Não, porque aquilo que fizeram é responsável pela actual crise! As gerações mais novas? Não, porque simplesmente perderam o contacto com a realidade! Portugal enfrenta eternamente a questão hamletiana: Ser ou não ser!
Portugal quer dizer crise. A palavra grega "krisis" não distingue entre crise e crítica e, como mostrou Koselleck, cobre "a diferença e o conflito", bem como a decisão no sentido de resultado definitivo, de decisão judicial ou de julgamento. Na Grécia Antiga, as actividades de julgar (krisis) e de governar (kratein) transformavam um indivíduo em cidadão. Segundo Aristóteles, a lei resulta da crise e da divisão da vida ética e, por isso, quando recebe expressão efectiva num julgamento público, promove o fim da divisão e do conflito. A ligação entre o julgamento legal e a crise resulta da diferenciação de duas esferas da vida: oikos e polis. O estatuto de cidadão conquista-se quando o indivíduo substitui a "justiça doméstica" - a actual justiça popular mediática - pela "justiça legal" (não a dos juízes corporativistas e seus sindicatos!) ou, numa linguagem rousseauniana, o interesse privado pelo interesse geral: o cidadão deve saber usar a palavra na esfera pública e assumir responsabilidade pelo destino comum do país, mas para que isso aconteça - a cidadania responsável - é necessário discutir o estado da educação na sua verdade nua e crua. Enquanto não se encarar de frente e com verdade a crise profunda da educação, Portugal quer dizer crise, conflito, divisão, predomínio da inveja e do egoísmo, enfim incapacidade de julgar e de governar.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 23 de maio de 2009

Teixeira de Pascoaes e o Sentido da Vida

«O sonho do homem actual é ser um esqueleto antecipado, com asas de alumínio, sobre um planeta roído até ao caroço. Ao homem mitológico, escravo dos deuses, sucedeu o (homem) metafísico, escravo dum Deus; e a este, o (homem) industrial, escravo duma deusa de metal, aquela mulher eléctrica, numa barraca de feira, estendendo a vara mágica aos labregos espantados». «O homem é mais moisaico que darwínico, mais antropos que antropóide, o que a ciência não admite». «O orango arrependido de ser homem, eis o drama psicológico moderno». «A finalidade da vida é a definição da existência. E digo finalidade, porque todo o esforço da Natureza se dirigiu e dirige num sentido humano ou consciente». «O destino do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus». «O homem é ele e o seu habitat. É céu e terra contidos numa definição espiritual ou consciente». «O homem, sonhando, transborda de si mesmo, amplia o mundo, porque ilumina as suas dimensões desconhecidas. O sonho é alta temperatura, um estado térmico da alma, a sua incandescência». «Que seria do mundo sem o homem? Permaneceria como abismado numa absoluta inexistência». «O absoluto é dos poetas e o relativo é da ciência. O sábio observa, analisa, decompõe; o filósofo generaliza, dá o conjunto; o poeta dá o significado anímico das coisas, a sua própria natureza». «O inimigo da poesia não é o sábio verdadeiro, mas o pseudo-cientista, muito pedante do que imagina saber oficialmente. (...) Ser homem é já ser poeta ou possesso duma grandeza misteriosa». «A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão». «Em todo o poeta verdadeiro existe um filósofo adormecido, como existe um poeta adormecido em todo o verdadeiro filósofo. O poeta filosofa depois de cantar e o filósofo canta depois de filosofar». (Teixeira de Pascoaes)
Se Heidegger conhecesse a poesia portuguesa dita na própria língua portuguesa, o poeta que escolheria para meditar a sua poesia seria Teixeira de Pascoaes, e não Fernando Pessoa, até porque o seu pensamento essencial está na proximidade íntima do pensamento da obra poética do poeta português, tal como este o elucidou, em voz alta, consigo mesmo: "Entre a Humanidade e a Divindade existe aquela região em que habitam os Poetas. São eles que forçam as portas do Cárcere onde o demónio aprisiona as almas divinas. Enquanto os homens admiram as paredes e as férreas grades reforçadas, o poeta entra lá dentro, num gesto libertador... É o Orfeu de todas as Eurídices, o redentor de todas as sombras, o viageiro de todos os desertos que se vestem de flores e searas... (...) O poeta é o enviado. Vem ao mundo afirmar as superiores Potestades que misteriosamente presidem ao drama da vida e lhe dão um sobrenatural sentido. Vem sublimar o vulgar, revelar o grande que as pequenas coisas escondem, converter o ruído em harmonia e a harmonia em melodia. Só ele deu uma alma divina ao corpo bruto da Natura, completando a obra de Jeová... Claro que me refiro aos poetas verdadeiros, integrados no seu primitivo significado. Poeta quer dizer profeta. Não devemos confundir os artistas do verso com os criadores de Poesia. Os primeiros interessam apenas à Literatura, ao passo que os segundos têm um interesse vital e universal, como flores e estrelas. (...) A poesia espontânea surge nos períodos genésicos da Alma. A poesia culta predomina nos seus momentos desfalecidos" (Teixeira de Pascoaes). O abismo do inferno separa Fernando Pessoa de Teixeira de Pascoaes: o primeiro conspira contra a Renascença Portuguesa, a tentativa portuense de "criar um novo Portugal", usando as mentiras de todos os seus heterónimos para fazer esquecer e silenciar a verdadeira mensagem dos "poetas místicos", como lhes chama, em especial Guerra Junqueiro, Jaime Cortesão e Teixeira de Pascoaes, invejados por terem descoberto o parentesco oculto que impera entre o poetar e o pensar: a poesia e o pensamento estão ao serviço da linguagem, pela qual intervêm e se sacrificam.
Em 1907, Teixeira de Pascoaes, o poeta de Portugal, que cantou a uma só voz, mas em correspondência com as falas dos grandes poetas nacionais, a alma lusitana, publicou no semanário "A Vida" um artigo dedicado ao sentido da vida. O objectivo de Pascoaes é responder à pergunta que todo o mortal faz a si próprio: "Para que existo?" No entanto, a resposta que encontramos neste texto de Pascoaes não é a resposta a esta pergunta "existencial", mas a resposta a outra pergunta: a do sentido da vida, não da vida individual de cada um dos mortais, mas da vida humana como manifestação biológica. O sentido da vida é interpretado como a finalidade da vida no âmbito da evolução cósmica. A ideia de finalidade foi varrida do domínio científico: a imagem científica do mundo rejeita a ideia de finalidade, como se o universo tivesse evoluído por acção do mero acaso, "a mais metafísica das entidades": "Atribuir ao acaso todos os fenómenos que se deram a favor do advento da Humanidade, é negar qualquer explicação desses fenómenos; é negar a nossa mais íntima tendência, o poder intelectual definidor. E é negar o próprio homem, não distinguir a ridícula macaca da bela circassiana, o guincho da palavra, a Caverna do Parténon". É certo que Pascoaes prefere "a concepção poética ao conceito científico", mas neste texto pretende reinserir uma noção científica de finalidade no seio da ciência, de modo a explicar o sentido ascendente da evolução sem negar a humanidade do homem e o seu poder intelectual definidor, isto é, a sua faculdade mitopoética.
Pascoaes defende a tese de que "o destino da vida humana resulta fatalmente duma outra vida espiritual superior, que aquela gerou, fazendo que o ser humano inferior, a partir desse momento genésico, tenha como fim aproximar-se dessa vida espiritual mais perfeita". Ao longo da evolução cósmica emergiram, numa ordem de sucessão dinâmica ascencional e, portanto, de complexidade e aperfeiçoamento constantes, quatro reinos ou formas cósmicas - o mineral, o vegetal, o animal e o espiritual, obedecendo a uma única lei, a lei de excedência. A natureza evoluiu no sentido de adquirir "o máximo poder de consciência". Graças ao seu princípio activo, o éter (Haeckel), a estrutura da matéria é intrinsecamente dinâmica: "O éter, princípo activo, nas suas condensações em massa ponderável, depositou nesta grandes reservas de energia latente que, em certos períodos de evolução cósmica, se expande, dando à matéria a faculdade de se exceder e traduzir em formas originais de vida, sempre superiores às antecedentes. Se a evolução universal se fizesse apenas à custa das energias ordinárias, aquelas que estão sempre despertas, (nos períodos intergenésicos) essa evolução não se faria sempre num sentido ascensional. Vê-se que o Universo tem grandes reservas de forças latentes que, de vez em quando (nos períodos genésicos correspondentes ao aparecimento das quatro grandes formas cósmicas) se expande e acorda, fazendo passar a matéria nebulosa a estrela, da estrela a planeta; de pedra e ferro e água, etc., a árvore e flor; de árvore a peixe, a réptil, a ave, a mamífero, a homem; e deste, enfim, ao ser espiritual que, em virtude da sua idêntica estrutura à do éter inicial, fecha o círculo das grandes metamorfoses do Universo". Ou, como sintetiza Pascoaes num outro artigo: "O éter condensou-se em massa ponderável, dando origem à matéria atómica; esta, excedendo-se em virtude da lei de excedência, gerou a fase vegetal, e esta, por sua vez, a fase animal; e esta ainda, graças à mesma lei, deu origem à fase psíquica, alcançando assim a matéria a estrutura e qualidades iniciais, e fechando-se o grande círculo evolutivo do Cosmos". Isto significa que "a matéria principia em dinamismo inconsciente e termina, após os seus aspectos transitórios e dolorosos, em dinamismo consciente ou espírito".
O aspecto mais interessante da teoria do sentido da vida de Pascoaes reside no facto de considerar que os "fenómenos espirituais" formam um mundo distinto e autónomo, - a noosfera na terminologia de Chardin ou de Monod ou o mundo 3 na linguagem de Popper -, do reino animal, isto é, "um novo Reino, o último em que se divide o Universo e para o qual os três Reinos anteriores caminham, realizando os seus respectivos fins". A lei de excedência mediante a qual cada ser ou coisa de um reino procura ir além de si mesmo, excedendo-se, é uma lei finalista ou teleonómica: "a vida mais perfeita atraí a menos perfeita", ou seja, "o fim dum ser resulta da sua tendência para outro ser que lhe é distinto e superior". Embora o denomine Reino Psíquico, identificando-o com o mundo 2 de Popper e atribuindo o seu estudo à Psicologia, Pascoaes acaba por corrigir esse erro quando afirma que o fim da vida humana é aproximar-se constantemente desse reino objectivo dos seres espirituais, que o próprio homem criou, "sobrenaturalizando" e "cultivando" a natureza, transformada e apropriada como a Grande Casa do Espírito, a Pátria, a Terra-Natal, resguardada na quadratura do mundo, graças à sua faculdade apurada de se exceder e de se transcender, aperfeiçoando-se moralmente e objectivando na história a sua liberdade e a sua aspiração divina. Se nesta última metamorfose da matéria que é o "reino do espírito" (Hegel) "Deus ocupa o lugar correspondente ao do homem na escala zoológica", então a divindade é a "medida do homem" (Hölderlin): o homem caminha na direcção de Deus e, nesse sentido, a antropologia liberta-se da zoologia e tende a ser atraída pela teologia no âmbito aberto de um antropoteísmo. A confusão psicologista só surge quando não se leva em conta o interaccionismo: apesar de serem autónomos, os reinos interagem entre si, o que inviabiliza uma análise estritamente reducionista da vida, da mente e dos seres espirituais que vivem no nosso cérebro, porque considerar os fenómenos espirituais como parte integrante do reino animal equivale a considerar os fenómenos orgânicos como parte integrante dos fenómenos inorgânicos: uma ideia não é uma mera função cerebral. O neuroreducionismo constitui um erro: as ideias e o cérebro formam dois reinos distintos, pertencentes a duas fases distintas da evolução cósmica, mas ligam-se de tal modo que o cérebro apenas constitui o meio onde as ideias habitam, e "o nosso eu não é mais do que a harmonia consciente que resulta do conjunto de todas as formas e seres espirituais que vivem no nosso cérebro". Pascoaes cunhou a expressão "Biologia Psíquica" para designar a disciplina que estuda as ligações entre o cérebro e as ideias, bem como a reprodução das ideias e a sua difusão através dos contactos com os cérebros e as suas redes neurais. Pascoaes previu assim o surgimento das neurociências, em especial da psicologia biológica (biopsicologia) e da biologia do espírito (neurociência espiritual). O mundo das sensações de Alberto Caeiro não resiste à solidez da explicação das sensações elaborada por Pascoaes, o que mostra a sua superioridade intelectual em relação a Fernando Pessoa: o homem como "argonauta das sensações" abdica do pensamento e, nesta abdicação, despede-se da sua humanidade, retraindo-se no "animal" desalmado incapaz de dar "um passo para alterar /Aquilo a que chamam a injustiça do mundo" (Alberto Caeiro).
A teoria do sentido da vida de Pascoaes suscita problemas filosóficos intrigantes que ainda não foram pensados. A resposta de Pascoaes à pergunta "Para que existo?" desvia-se da própria pergunta para a recolocar num novo horizonte, recuperando o sentido da existência: a era da técnica, ou melhor, da tecnociência, que construiu "o seu ponto de vista, entrincheirando-se nele, egoísta e intolerante, pretendendo, como os seus inimigos, governar o mundo" através do confinamento depressivo das criaturas dentro da sua existência animal, do materialismo grosseiro e do mercantilismo. Com o reino intolerante do "clericalismo científico" emergiu a "crise moral" que "queima as almas", tal como a Inquisição tinha "queimado os corpos". Este desvio justifica-se pelo facto do homem contemporâneo, o homem da técnica, o "homem industrial", comportar-se como um "antropóide" que se arrepende de ser homem. Não comportar-se como homem humano, isto é, como criador do reino dos seres espirituais, constitui o drama psicológico da humanidade na era da técnica, essa "deusa de metal" ou "mulher eléctrica". Pascoaes atribui a responsabilidade por este arrependimento de ser homem à própria ciência, neste caso particular ao darwinismo, que não admite que o homem seja mais antropos do que antropóide: a ciência teima em reduzir o homem à sua condição animal, negando-lhe a sua dimensão espiritual e a sua capacidade de se transcender e de se realizar como ser espiritual, isto é, como ser livre e criador de cultura. Isto não implica uma desvalorização dos animais ou mesmo da própria animalidade do homem, porque, como escreve Pascoaes, "os animais são pessoas, como nós somos animais". O destino do homem não é ser um mero antropóide, prisioneiro da "actividade vegetal" - "nascer para comer e comer para morrer" - num planeta convertido em "refeitório e cemitério", mas "ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus". A tarefa do homem é compreender a sua existência e superá-la mediante a transição do material para o imaterial: o homem é, para Pascoaes, "um valor absoluto na sua actividade espiritual" e esta actividade cultural é "síntese consciente do Universo", síntese simultaneamente consciente e emotiva, científica e poética. Como valor absoluto, o homem move-se no reino dos seres espirituais que giram na "órbita de Deus" (G. Junqueiro), sonhando a própria essência do mundo, de modo a libertar-se do nada que o aflige na sua condição mortal de suspenso do abismo e a ampliar o mundo através da sua actividade de transcendência, acrescentando-lhe o mundo da cultura. Esta "concepção existencial do homem", a do homem universal, simultaneamente físico e metafísico, sem o qual o mundo permaneceria como abismado numa absoluta inexistência, inconsciente de si mesmo, não se conforma com o "conceito puramente científico da Existência" produzido pela ciência na era da técnica: a noção da existência contida "numa balança ou entre os ponteiros dum compasso", como se pudesse ser objecto de cálculos matemáticos. Ao tratar o homem como um mero antropóide, o darwinismo aliena a existência humana da sua essência e da sua finalidade, impedindo-a de atingir o seu sentido pessoal e colectivo da vida. A concepção existencial do homem, exposta no "Regresso ao Paraíso" (1912), corresponde à verdadeira filosofia, isto é, à filosofia poética, que permite assimilar o mundo a nós, sem no entanto o desnaturar. A recepção portuense de Nietzsche não é alheia a Pascoaes: Zaratustra anunciou à multidão que "o homem é uma corda amarrada entre o animal e o super-homem - uma corda por cima de um abismo. Um perigoso passar para a outra banda, um perigoso estremecer e ficar parado". A grandeza do homem reside no facto de ser uma ponte e não um fim: "aquilo de que se pode gostar no homem é que ele é uma travessia e um afundamento". Pascoaes retém a noção de ponte ou de travessia: o homem é uma ponte entre o antropóide e o Sagrado, uma ponte que se ergue no "abismo sem fundo" e que o homem deve atravessar para encontrar o sentido da sua vida. Ou, nas palavras do poeta Pascoaes: "A alma, em virtude da sua força activa de esperança, visa o Futuro, - o Incriado; e em virtude da sua força passiva de lembrança, apenas encontra o Passado ou a Natureza criada, imenso espectro evidente nas suas formas endurecidas e mortas. O Universo é o cadáver de Deus, a estátua fria e inerte da Esperança. As estrelas gelaram-lhe na face, como antigas lágrimas que já não encerram dor alguma. O sol é um riso de metal caindo sobre um globo de ferro. A alma fulge na escuridão absoluta. Canta no silêncio absoluto. Por baixo dela jaz o fantasma do Passado; por cima a noite silenciosa do Futuro. E ela própria é passado e futuro, invocação e desejo. Ausente de si mesma no que há-de ser e no que foi, ou vê espectros da Morte materializados, ou sombras por encarnar da Vida. O Presente divino, a Realidade em si, a Esperança imaterializável, Deus, excepcionalmente vislumbrados, fogem à sua clara e constante percepção. No mundo sensível só há futuro e passado. O movimento abstracto da esperança (tempo futuro) mal se concretiza, é lembrança, movimento inerte, matéria (tempo passado). A cada acção criadora da esperança (espaço e tempo futuro) corresponde a sua paralisação para trás em formas criadas (tempo e espaço passado)".
Dedico este post ao Futebol Clube do Porto, o Tetra-Campeão, e à Tribo do Dragão Azul que seduz e conquista Portugal e o Mundo. Viva o FCPorto! Viva o Dragão Azul! Viva a Tribo do Dragão Azul!
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 19 de maio de 2009

Prós e Contras: Pensar Portugal (2)

"Prós e Contras" (18 de Maio de 2009) voltou a debater mais uma vez, em regime especial, o futuro de Portugal com novos convidados: Adriano Moreira (AM), Fátima Bonifácio (FB), Garcia Leandro (GL) e Viriato Soromanho Marques (VSM). O debate foi deveras interessante e rico em ideias orientadoras, muitas das quais expostas e defendidas por Adriano Moreira. No entanto, houve uma certa dispersão, talvez provocada pela própria complexidade do tema, mas, se pudesse escolher os meus próprios interlocutores, excluía desse diálogo Soromanho Marques, cujo optimismo exagerado não ajuda a iluminar a tarefa de pensar Portugal a longo prazo e de orientar uma praxis de mudança social qualitativa. A tripla-crise de que falou - crise ambiental, crise da arquitectura da globalização e crise da pobreza - e a sua solução não podem ser reduzidas a uma mera "questão de atitude e de método": a regularização dos fluxos financeiros e a adopção de políticas públicas são insuficientes para resolver a crise estrutural. Portugal não vive apenas uma crise externa, mas uma crise estrutural profunda que o "coloca à beira do abismo", como disse Garcia Leandro. Pensar Portugal não é pensar o seu futuro a curto prazo, puramente imediato, mas a sua sustentabilidade a longo prazo no quadro da Europa e da ligação atlântica da UE com os USA (AM). (E a Rússia não faz parte do Ocidente? Faz! E a UE deve estar preparada para a integrar no seu seio, de modo a alargar as suas fronteiras até o Pacífico, porque o nosso destino ocidental pode depender mais dessa integração do que da aliança com os USA ameaçados internamente por forças obscuras.) A perspectiva a longo prazo, historicamente fundada e protegida contra os optimismos precipitados dos satisfeitos com o sistema, foi exposta por Adriano Moreira, com a preciosa colaboração de Fátima Bonifácio e de Garcia Leandro. O pessimismo metódico é a única atitude teórica saudável que permite pensar o futuro sem perder a esperança, por uma razão muito simples: não esconde que atravessamos a longa noite de um tempo de declínio que pode amanhecer num mundo completamente diferente daquele que conhecemos, não num mundo melhor, mas num mundo de "sangue, suor e lágrimas" (Garcia Leandro). Ao não esconder essa possibilidade real, o lado mau da história que não exclui a guerra (GL), o pessimismo metódico convida todos a participar na construção do futuro que não está garantido, e muito menos nos moldes sociais, culturais e civilizacionais a que estamos habituados.
A nossa matriz civilizacional e identitária, o Ocidente, está a ser seriamente ameaçada, interna e externamente: o futuro é sombrio e só há uma maneira de combater, de modo vertical e mental e cognitivamente armado, essas sombras negras que ameaçam afundar-nos no caos total, aquilo a que Adriano Moreira chamou a mobilização do espírito ou da massa cinzenta. A mobilização do espírito não é a mobilização de qualquer espírito, nomeadamente do espírito do capitalismo que nos arrasta para o abismo ou do espírito da tecnologia que pode ser usada para nos destruir: é a mobilização do espírito azul que nos anima na tarefa de recriação, relançamento e afirmação do Ocidente no mundo globalizado, cujos centros de decisão fogem cada vez mais da Europa ou mesmo dos USA para o Oriente, em especial para as economias emergentes da China e da Índia. A perda da posição de dominação do Ocidente no teatro do mundo não é somente uma catástrofe para nós ocidentais e europeus, mas também a entrega da Terra e dos seus habitantes às forças naturais da sua destruição acelerada. As multidões de criaturas humanas que habitam a Terra inviabilizam o futuro da vida neste planeta azul, não só porque estão a devorá-lo, mas também porque a sua existência metabolicamente reduzida desperdiça inutilmente energias sem trazer uma mais-valia ontológica ao mundo. O Ocidente deve unir-se internamente e alargar as suas fronteiras, sob a liderança de grandes políticos, capazes de promover grandes políticas, de modo a mostrar aos outros povos que o modelo de crescimento económico que seguiu foi e é um suicídio. A sua suposta força de atracção que exerce sobre as periferias pobres é uma força destrutiva: a Terra não possui recursos e capacidades regenerativas capazes de manter a irracionalidade deste modelo devorador de sociedade e de economia, e muito menos a sua universalização a todos os cantos do mundo.
A actual crise financeira e económica revela a fragilidade estrutural de Portugal e atiça-nos a pensar, com um olhar muito crítico e desapaixonado, o que aconteceu depois do 25 de Abril: Adriano Moreira lançou o ideia de que o Estado entrou em "férias sabáticas" depois do 25 de Abril, donde resultou a actual crise de falta de confiança dos portugueses na justiça e nos políticos e o seu desconhecimento das questões europeias, da situação da verdadeira UE e da sua importância para o futuro de Portugal. A confiança entre governantes e governados foi quebrada devido às "incongruências do Estado" e à viciação do tecido político: o facto de um órgão de soberania - o Ministério Público - falar através da sua voz sindical revela o erro enorme que é o funcionamento do Estado, para o qual contribuíram o presidencialismo do Primeiro-Ministro subjacente às maiorias absolutas e o facto dos melhores não ocuparem os cargos públicos. (Os melhores são expulsos pelos instalados!) A crise do sistema judicial foi reforçada por Fátima Bonifácio que vê nele um poder do Estado organizado contra o Estado: um poder corporativo que fala pela voz sindical. Os magistrados portugueses querem gozar de benefícios e de estatutos especiais, mas na verdade comportam-se como funcionários públicos e, como tais, não deviam desfrutar desses benefícios. A autonomia do poder judicial não só dificulta toda a tentativa de reformar o sistema judicial, como também tende a converter-se em "autonomismo" (VSM), de resto um poder dividido pelas "guerras de clãs" que o habitam (GL). A quebra de confiança no funcionamento judicial é uma das forças responsáveis pelo alheamento dos portugueses, mais preocupados em assegurar o seu bem-estar e as suas regalias do que em participar na implementação de novas políticas públicas de interesse nacional. A revolução do 25 de Abril criou "expectativas tremendas" numa população demasiado pobre que, no momento presente, o que lhe interessa da UE é "sacar dinheiro" para satisfazer as suas necessidades e o seu bem-estar. Convertidos em meros consumidores, os portugueses não estão interessados em escutar "verdades", preferindo acreditar nos partidos e nos candidatos que lhes prometam maior bem-estar e outras "mentiras". Os consumidores não são bons cidadãos e a sua ligação com os partidos políticos é perversa, forçando os políticos a evitar "pregar no deserto", isto é, a fazer propostas realistas de futuro, se quiserem vencer as eleições europeias e nacionais. Para os consumidores vorazes, a Europa é um mana ou um Euro-Milhões: o povo quer consumir, fingir que comunica via telemóvel e exibir o seu esqueleto ao volante de um automóvel.
É certo que Portugal precisa da Europa, como frisou Adriano Moreira, mas os portugueses desconhecem e ignoram a Europa e a sua situação no mundo, não só por causa da política europeia ter sido furtiva, mas sobretudo porque a chamada teologia de mercado, expressão cunhada por Marx, promove a regressão mental e cognitiva das pessoas, reduzindo-as à sua condição de animais de consumo voraz. Ao contrário do que pensa Adriano Moreira, a ideologia fundamentalista de mercado destruiu completamente o sistema de ensino e de educação: a tarefa de mobilizar o espírito enfrenta a escassez de inteligência cultivada. O 25 de Abril destruiu as universidades portuguesas e a crise generalizada da educação, agora agravada pelo tratado de Bolonha, começou no ensino universitário, invadido e dominado por pessoas destituídas de conhecimentos que não deixam ninguém trabalhar: Universidades medíocres e viciadas na e pela cunha não requalificam as populações! A paz tão elogiada por Soromanho Marques é, pois, uma paz podre: a domesticação do gado humano através da elevação do nível de vida promovido pelo desenvolvimento tecnológico suavizou os efeitos da luta de classes, mas cria muita frustração que, em situação de desemprego e de pobreza extrema, pode emergir na forma de violência gratuita, já testemunhada em França, na Grécia e agora em Portugal. A regressão cognitiva estimula formas de agressão e de violência que minam o civismo: a cidadania evapora-se no horizonte da fantasia e os chamados "idiotas felizes" sacrificam o futuro no altar de uma vida imediata satisfeita consigo mesma e eternizada nessa forma de consciência endurecida. A crise antropológica é universal: reduzidos à condição de animais consumidores, os homens perderam a experiência e o contacto com a tradição, deixando de pensar. Esta crise do elemento humano revela a fragilidade da proposta de Adriano Moreira: "não mudar o todo, isto é, o povo, mas sim o governo". Estado e sociedade civil co-pertencem-se: o sono do consumismo é adversário da mudança social qualitativa. A humanização dos animais metabolicamente reduzidos é a nossa tarefa mais urgente e a sua realização exige um poder político forte e coeso, capaz de usar todos os seus aparelhos de Estado, ideológicos e repressivos, que, nesta hora sombria, falam a diversas vozes sindicalizadas. O Estado perdeu poder e, por isso, pode colapsar a qualquer momento.
Adriano Moreira desenvolveu a ideia de que depois da queda do Muro de Berlim o poder financeiro se autonomizou e adquiriu soberania durante estas últimas três décadas caracterizadas pelo fim das ideologias: a actual crise financeira e económica deriva basicamente dessa soberania do poder financeiro que corrompeu a política, subjugando-a aos interesses económicos privados, e os políticos ocidentais, ao mesmo tempo que constitui o fracasso total da ideologia do fundamentalismo de mercado. O mercado é incapaz de auto-regular-se e, por isso, estamos a assistir ao regresso do Estado. Mas está o Estado dilacerado e corrupto preparado para esta missão? Portugal precisa da Europa, mas a Europa não é um projecto garantido, até porque o G20 é fundamentalmente um "G2 (USA e China) + 18", onde a UE não está representada (AM). Além disso, como mostrou Fátima Bonifácio contra o optimismo doentio de Soromanho Marques, a Europa não é politicamente forte, porque não é militarmente forte, enfrentando o terrível dilema: ou o modelo social europeu ou o armamento. Portugal precisa de inteligência informada, preparada e cívica (AM), mas o que temos é uma multidão de consumidores irracionais que reivindica mais do mesmo. Portugal precisa do Estado, mas este está absolutamente corrompido e dilacerado. Portugal precisa de novas políticas públicas para garantir o seu futuro, mas o que predomina é o "parlamento dos murmúrios" (AM), isto é, a politiquice barata difundida e prostituída pelos meios de comunicação social. A questão é esta: Como restaurar a confiança e a esperança com estas pessoas - governantes e governados - adormecidas, anestesiadas e medíocres? O salto qualitativo exige uma ruptura radical com a ordem estabelecida e o futuro só pode ser garantido por aqueles que tiverem coragem para iniciar essa ruptura. A ruptura é sempre um acto de violência cometido contra aqueles que nos conduziram ao longo de anos à situação presente de desespero: a mudança de paradigmas exige mudança prévia de pessoas e reformulação das elites, porque as que estão instaladas lutam contra a mudança social qualitativa, comprometendo o futuro de Portugal. Nada está garantido e, nesta hora de crise de civilização, joga-se o futuro da aventura humana. O debate em torno do futuro de Portugal, da Europa e do Ocidente começa agora...
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Fernando Pessoa e a Metafísica

«Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim pensar é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
Que mistério das coisas? Sei lá o que é o mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das coisas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas destas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum». (Alberto Caeiro, V Poema de O Guardador de Rebanhos)
Alberto Caeiro é um dos três heterónimos de Fernando Pessoa; os outros são Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915 e, embora tenha nascido em Lisboa, "viveu quase toda a sua vida no campo", na casa dos pais que morreram cedo e na companhia da sua tia-avó. A sua educação reduz-se à instrução primária, mas, apesar disso, colocou a questão da metafísica de um modo que contrasta com as perspectivas de Fernando Pessoa e de Álvaro de Campos. A questão da metafísica é sempre uma questão actual e pertinente, não só porque abarca a totalidade da problemática metafísica, sendo ela própria a totalidade, mas sobretudo porque só pode ser formulada de modo a que aquele que interroga, o homem enquanto tal, esteja implicado na questão, isto é, seja problematizado: a questão da metafísica "desenvolve-se na totalidade e na situação fundamental da existência que interroga" (Heidegger). Caeiro está ciente de que a questão da metafísica implica a existência que interroga e, quando afirma que a melhor metafísica é a das coisas que não sabem para que vivem, nem sabem que o não sabem, reconhece que o homem é o único ente que existe: a árvore de que fala é, mas não existe. Caeiro pode não saber nada do mundo, não ter uma ideia das coisas e uma opinião sobre as causas e os efeitos, e não ter meditado sobre Deus, a alma e a criação do mundo, pode até mesmo fechar os olhos e não pensar, mas sempre que decide suspender o pensamento, não pensando em nada, abre as portas à questão do nada pela qual se põe a si mesmo, como sujeito que interroga, em questão, mesmo que não problematize a morte. Quando diz ser "um animal humano que a Natureza produziu", (:::)
Há muitas maneiras de colocar a questão da metafísica. Se Álvaro de Campos e o próprio Fernando Pessoa perguntaram "O que é a metafísica?", Alberto Caeiro preferiu o modo mais simples de interrogar a metafísica: "Metafísica?" Interrogar deste modo a metafísica não é o mesmo que perguntar "O que é a metafísica?" A última pergunta interroga para além da metafísica, enquanto a primeira anseia, pensando-o, o aquém da metafísica. No entando, os dois modos de colocar a questão da metafísica nascem de "um pensamento que já penetrou na superação da metafísica" (Heidegger), embora ainda continue a falar a sua linguagem. Fernando Pessoa e as suas máscaras identificam a metafísica com a Filosofia, à qual Caeiro acrescenta a Poesia: Filosofia e Metafísica são a mesma coisa, isto é, pensamento que pensa, segundo a definição aristotélica, "o ser enquanto ser e os acidentes próprios do ser". Fernando Pessoa conhecia esta definição de metafísica e sabia que a sua origem se devia a uma denominação especial na classificação das obras de Aristóteles feita no século I por Andrónio de Rodes: os livros do Estarigita que tratam da filosofia primeira foram colocados a seguir aos livros da Física e, por isso, foram chamados Metafísica, mas esta designação adquiriu posteriormente um novo sentido, passando a constituir um saber que penetra no que está situado para além ou detrás do ser físico enquanto tal, dedicado ao estudo das primeiras causas e dos princípios. (:::)
(Post em construção) J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Época de Indigência: Técnica e Ausência de Deus

«Mas nós, amigo, chegamos demasiado tarde. Certo é que os deuses vivem,
Mas acima de nós, lá em cima, noutro mundo.
Aí o seu domínio é infinito e parecem não se importar
Se estamos vivos, tanto nos querem poupar.
Pois nem sempre pode um frágil vaso contê-los,
O homem apenas algum tempo suporta a plenitude divina.
Depois toda a nossa vida é sonhar com eles. Mas os erros,
Tal como o sono, ajudam, e a necessidade e a noite fortalecem,
Até que haja suficientes heróis, criados em berço de bronze,
De coração corajoso, como dantes, semelhantes aos Celestiais,
Depois eles chegam, trovejantes. Entretanto penso por vezes
Que é melhor dormir do que estar assim sem companheiros,
Nem sei perseverar assim, nem que fazer entretanto,
Nem que dizer, pois para que servem poetas em tempo de indigência?
Mas eles são, dizes, como sacerdotes santos do deus do vinho,
Que em noite santa vagueiam de terra em terra». (Friedrich Hölderlin)
O tempo de indigência foi tematizado por Hölderlin na sua elegia Pão e Vinho, retomada por Rilke e pensada por Heidegger. É o tempo de idolatrias, em especial da idolatria do dinheiro e do poder que corrompem o homem, afastando-o da sua essência, como viu Marx, onde as mediações elevam-se a finalidades e o desejo atomiza-se em necessidades, e onde tudo começa e acaba no princípio da acção, do qual não escapa a dor que atravessa a Terra. Em vez de despertar uma mudança, uma viragem, a dor do mundo é experimentada como um objecto que se oferece à acção que a socorre, à acção humanitária ou à assistência que pensa a penúria como defeito do seu próprio sistema assistencial, esquecendo e ocultando a dimensão ontológica da indigência: a indigência como ausência de Deus, tal como a tematizou Hölderlin. Para Heidegger, a técnica como organização da indigência oculta e encobre a ausência de Deus, cuja falta aconteceu desde que Herácles, Dionísio e Jesus abandonaram o nosso mundo, cavando um abismo sobre a Terra, cuja devastação é poetizada por T.S. Eliot: o a-bismo da ausência de sentido e de carência. Com a partida de Cristo, acontece o crepúsculo do Ocidente e inicia-se uma outra cronologia no decurso da qual não surgiu até hoje um único Deus novo, com excepção do deus-milhão poetizado por Guerra Junqueiro, o poeta português que cantou melhor do que qualquer outro a conexão essencial entre o céu e a terra, entre o divino e os mortais. O desaparecimento dos celestiais, o a-Deus de Lévinas, implica o desaparecimento da mediação e da ponte estendida entre o Céu e a Terra, entre a verticalidade e a horizontalidade: a conexão crucial entre o divino e o mortal.
O deserto das zonas industriais e comerciais avança a um passo de tal modo acelerado e devastador que faz dos homens seres apátridas ou seres estrangeiros e estranhos à sua terra de origem, a terra natal. O interregno entre o já-não dos deuses foragidos e o ainda-não dos deuses vindouros é o tempo da "morte de Deus", vislumbrada por Rilke e anunciada por Hölderlin, Hegel e Nietzsche: "O tempo da noite do mundo é o tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente. Ele tornou-se tão indigente que já nem é capaz de notar que a falta de Deus é uma falta" (Heidegger). Carente de fundamento e de fundo, a partir do qual possa enraizar-se e erguer-se, a noite do mundo encontra-se suspensa no abismo e, sem experimentar e suportar o abismo do mundo, entregue ao tempo do declínio, os mortais não estão preparados para operar a viragem e banhar-se no fulgor da divindade regressada: a viragem só pode ocorrer "quando os mortais encontrarem a sua própria essência", isto é, chegarem primeiro ao abismo. A poesia autêntica de Rilke, as Elegias de Duíno e os Sonetos a Orfeu, experiencia claramente a indigência do tempo: "O tempo permanece indigente, não apenas porque Deus está morto, mas também porque os mortais já não conhecem nem dominam a sua própria mortalidade. Os mortais ainda não estão em posse da sua essência. A morte retira-se para o enigmático. O segredo da dor permanece velado. O amor não se aprendeu. Mas há mortais. Há-os na medida em que há linguagem. Demora-se ainda o canto sobre a sua terra indigente. A palavra do cantor retém ainda o vestígio do sagrado" (Heidegger).
O "louco" de Nietzsche anuncia à multidão que "Deus está morto", mas a morte de Deus já tinha sido anunciada por Hegel. A consciência infeliz é "a dor que se expressa nas duras palavras: Deus morreu": "A morte é o sentimento dolorido da consciência infeliz de que Deus mesmo morreu". O homem deve afirmar a morte de Deus, protegendo-se de um niilismo estéril que alarga as sombras da meia-noite a todos os cantos do mundo. Os valores que guiaram a história do Ocidente radiavam do valor supremo de Deus. Com a morte do divino, toda a axiologia que se fundava nesse valor supremo é derrubada, ameaçando precipitar o próprio homem na voragem da a-narquia, do sem princípio, sem origem. Para Nietzsche, a afirmação da morte de Deus deve ser acompanhada pela tentativa de "transmutação de todos os valores": os valores já não descem do Céu, mas são instaurados pela "vontade de poder". Heidegger viu nesta instauração dos valores pela vontade de poder o culminar da metafísica, um novo gesto do subjectivismo ocidental, a terrível noção de que o sujeito "cria" valores. A morte de Deus é, para Heidegger, a morte do Deus da tradição judaico-crista ou do Deus pensado como valor supremo: o Deus como fundamento e causa de todos os entes, o Deus como ente supremo que, situado no mais-além, despotencia e fagocita a vida neste mundo terreno e temporal, o Deus moral da ascética que se alimenta do desprezo pelo mundo sensível e pela carne do mundo. Sim, este Deus morreu e, tanto Hegel, Feuerbach, Marx e Bloch, como Nietzsche e Heidegger, cantam o seu requiem. E, no seu lugar, emergiu o capital e a sua nova ordem económica, o capitalismo, que, a partir da expropriação generalizada, o seu pecado teológico original (Marx), se apropria desumanamente da natureza, devastando-a. A transformação do homem em sujeito e do mundo em objecto, já operada por Descartes, é, segundo Heidegger, consequência do estabelecimento da técnica: o querer instaurou o mundo como totalidade dos objectos elaborados e, como tal, define a essência do homem moderno que encara a terra e a atmosfera como matéria-prima, entregando a essência da vida à elaboração técnica e colocando o próprio homem, enquanto funcionário da técnica, ao serviço dos objectivos propostos, de modo a vedar-lhe o caminho para o aberto (Rilke). O domínio técnico da natureza não só coloca todos os entes como algo elaborável no processo de produção, como também distribui os produtos através do mercado. Porém, nesta noite de declínio, Heidegger considera que, na fossa do Deus sepultado, se abre novamente, quando cavada até ao fundo, como exige a poesia hermética de Paul Celan, espaço para o divino. Na morte de Deus manifestam-se, na sua ausência, os vestígios da divindade. Para pensar essa divindade, é necessário um outro tipo de pensamento, completamente distinto do pensamento instrumental e calculista. Em vez de abrigar-se no Deus conhecido, representável e representado, o pensamento essencial abisma-se no divino de Deus desconhecido e, como poesia, procura realizar o itinerário traçado por Mestre Eckhart: o caminho que nos (re)conduz a Deus é o caminho que, com a sua ajuda, nos "livra de Deus", portanto, o caminho que nos despoja de nós mesmos e nos desnuda da vontade, do querer ter e do querer fazer, renunciando-a, aniquilando-a e conformando-a à vontade divina que nos permite tudo, de modo a fruirmos das coisas apenas como emprestadas, deixando-as ser, e não como dadas, como propriedade ou como posse. Nessa entrega completa a Deus, "eu e Deus somos uno".
Mas o homem sem-Deus, prisioneiro da sua vontade de poder, ainda não é capaz de experimentar a ausência de Deus como uma ausência e, por isso, não reconhece nas dores do mundo os vestígios do divino, o inteiramente-outro de Horkheimer. Somente alguns poetas possuem agudeza de ouvido para escutar o chamamento do divino, isto é, para prestar atenção aos vestígios dos deuses foragidos: "Os poetas são os mortais que, cantando com seriedade o Deus do Vinho, sentem os vestígios dos deuses foragidos, permanecendo sobre estes vestígios e assim apontando aos seus irmãos mortais o caminho da viragem" (Heidegger). Entre os poetas, Heidegger destaca Hölderlin: o testemunho da ausência de Deus e da indigência do mundo. Ao retomar e transformar a experiência pré-metafísica do Deus da tragédia grega, Hölderlin garante a possibilidade de uma teologia que, no tempo da retirada de Deus, se abriga sob a invocação e a convocação do divino: "O éter, no entanto, onde somente os deuses são deuses, é a sua divindade. O elemento deste éter, no qual a própria divindade ainda se essencia, é o sagrado. O elemento do éter para a chegada dos deuses foragidos, o sagrado, é o vestígio dos deuses foragidos. Quem será, porém, capaz de sentir tal vestígio? Os vestígios são geralmente pouco visíveis, sendo sempre o legado de um aviso mal pressentido. Ser poeta em tempo indigente significa: cantar, tendo em atenção o vestígio dos deuses foragidos. É por isso que, no tempo da noite do mundo, o poeta diz o sagrado. É por isso que a noite do mundo é, no idioma de Hölderlin, a noite divina" (Heidegger). Para Hölderlin, Deus é o desconhecido e, como tal, constitui a medida para o poeta. O seu aparecer mediante o céu consiste num desvelar que deixa ver aquilo que oculta. Este manifestar-se velado é a medida na qual se mede o homem: "Enquanto a amabilidade pura habitar no seu coração não será uma atitude infeliz o homem medir-se pela divindade. Será Deus desconhecido? Será manifesto como o Céu? Antes isso creio. É a medida do homem. Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra" ("No Ameno Azul"). O poeta que recebe a medida mede a sua palavra poética ou a palavra que escuta. Elevando o olhar e permanecendo na ausência de Deus, o poeta, neste caso Rilke, descobre na ausência o vestígio que o notifica sobre o divino e sobre o homem. O ser do homem constitui o tema da poesia de Rilke, pelo menos do seu poema "Versos Improvisados", e trata da sua mortalidade como sendo a sua essência, embora o homem tenha desejado esquecer a própria morte que constitui a sua essência, talvez porque a imposição da objectivação técnica nega a morte, tornando-a algo negativo: o morto, o cadáver, já não passeia o esqueleto e não se abastece nas grandes áreas comerciais, enfim, já não consome mas é consumido pela terra e pelos vermes que reiniciam novos ciclos vitais. Quando se interroga "O que é o homem?", Hipérion é assaltado pela ideia do nada. O homem não pode falar da determinação humana, porque sente-se atingido pelo nada que sobre ele reina: "nascemos para nada", "amamos um nada", "acreditamos em nada", cansamo-nos para nada e, gradualmente, "desaparecemos no nada". Estes pensamentos afundam quem neles pensa. O homem que habita o abismo da noite do mundo não consegue dominar esta verdade gritante: "Quando olho para a vida, qual é a última realidade? Nada. Quando me elevo em espírito, qual é a realidade mais alta? Nada." O homem é simplesmente mortal, o ser efémero, que, quando deixa de sentir a ausência de Deus como falta, festeja na companhia da morte aniquiladora: sobre ele e diante dele vigora o vazio e o deserto, porque nele "há vazio e deserto". Sem a medida da divindade, o homem é nada: a morte de Deus e a morte do homem correspondem-se. O homem vazio e deserto, indigente e atrofiado mental e cognitivamente, entregue aos cuidados da sua mera animalidade desalmada e desumanizada, é o nosso contemporâneo que se abastece nas praças da alimentação, sem medida e sem saber donde vem, onde está e para onde vai.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 10 de maio de 2009

Mário de Sá-Carneiro ou a Poesia do Jogo das Identidades

«Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.
«Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer "potins" - muito entretida.
«Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
«Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto.
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
«Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...» (Mário de Sá-Carneiro)
A Filosofia que habita a linguagem, juntamente com a poesia, tem sido avessa à meditação da chamada "poesia confessional", talvez por temer dispersar-se nas linguagens plurais dos mais diversos eus singulares e dos seus mundos próprios. No entanto, este receio e pudor filosóficos não se justificam, primeiro, porque, como mostrou Hegel, o indivíduo é mediado pelo universal e vice-versa, e, segundo, porque a lingua(gem) usada pelo poeta é uma objectividade que, a-propriada pelo poeta e pelos seus leitores, serve de mediador entre o indivíduo e a sociedade, configurando as emoções subjectivas e, como meio de expressão dos conceitos, produzindo "a relação indispensável com o colectivo e a realidade social" (Adorno). A essência da poesia não se esgota na mera expressão da subjectividade ou na mera expressão da sociedade: a poesia é a "experiência" do processo dialéctico através do qual o indivíduo e a sociedade se constituem um ao outro e se determinam reciprocamente. Nessa experiência, a lingua(gem) a-propriada cria mundos que falam uma voz própria, a voz do poeta, cujo eu se esquece de si no interior da língua, tornando-se plenamente presente. Toda a poesia abre e instaura uma expansão de sentido no mundo já significado e, como epifania de mundo, consagra um mundo que nos arranca do nosso próprio mundo, oferecendo-nos um novo espaço, bem como a oportunidade de habitar o mundo que fundou. O pensamento filosófico procura elucidar os mundos poéticos, deixando-os falar no seu dizer originário. Mário de Sá-Carneiro quis ser escutado e compreendido: "Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda" ("Caranguejola"). Ou, nas palavras de Paul Celan: "O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção - decerto nem sempre muito esperançada - de um dia dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho - têm um rumo".
O poema de Mário de Sá-Carneiro, citado em epigrafe, intitula-se "Feminina" e, nele, o poeta "confessa" um desejo secreto: Mário de Sá-Carneiro "queria ser uma mulher", não uma mulher qualquer, mas um determinado tipo de mulher, a mulher fatal que excitasse todos os homens que a olhassem e que tivesse muitos amantes, enganando-os a todos, até mesmo o amante predilecto. Porém, o poeta, sendo homem e vivendo numa determinada sociedade, sabe bem que estes seus "enleios" e "fantasmas" não podem ser desculpados num homem: as noções sociais de homem e de masculinidade incorporadas pelo poeta vedam-lhe o acesso público e real a esse desejo secreto, do qual toda a sua poesia é uma bela poetização. Embora não seja nomeada, a sociedade está presente nessa "dispersão" interior do eu poético que revela o conflito interior, o antagonismo entre o desejo de ser mulher e a sociedade incorporada e interiorizada que proíbe a sua manifestação e a sua realização: a grande ausente, a sociedade amputadora, fala do interior do eu, como a sua consciência moral, segredando-lhe: "O teu desejo não pode ser desculpado no homem que és". O conflito do eu consigo mesmo reflecte, no labirinto interior, azul anímico, o antagonismo do indivíduo e da sociedade, em cuja dialéctica se joga a identidade. Se a socialização fosse completamente triunfante e bem sucedida, o problema da identidade, o surgimento na consciência da pergunta "Quem sou eu?", não existiria: a identidade seria dissolvida na simetria completa entre a realidade objectiva e a realidade subjectiva, o eu seria a sociedade e a sociedade, o eu, o que constitui uma impossibilidade antropológica. A socialização nunca é totalmente bem sucedida e, em todas as sociedades, emergem assimetrias e rupturas entre a realidade objectiva e a realidade subjectiva, que permitem às pessoas conceberem-se a si mesmas em termos de "profundidades ocultas" ou de um jogo de identidades, sem o qual o individualismo e a inovação não seriam possíveis. Qualquer humano é potencialmente um traídor de si mesmo, no sentido de poder trair, num determinado momento da vida, um dos seus múltiplos eus, públicos ou privados. Sá-Carneiro pensou esta traição de si mesmo como crime: o crime não é somente o acto de trair o "eu" que lhe é socialmente atribuído pela socialização primária - "Tu és um homem e deves comportar-te como homem em todas as circunstâncias da tua vida" - e confirmado pelos outros significativos e generalizados (G.H. Mead) no decorrer da conversação quotidiana, mas também e fundamentalmente trair o seu "eu mais íntimo", aquele que não se deixa colonizar pelo mundo estabelecido, com o qual discorda. Aceitar o eu socialmente atribuído e agir em conformidade com os papéis adequados é trair o eu secreto, e escutar este último e abrir-lhe as portas da vida é trair o "eu público": em qualquer uma destas circunstâncias e opções de escolha, o homem é sempre um traidor de si mesmo, e, por isso, Mário de Sá-Carneiro é levado, desde os poemas de juventude, a definir o homem como um "criminoso": "Eu quero ser um criminoso, /Se ter amor é um crime". Aos olhos da sociedade heterosexista, ter amor não é um crime, desde que o indivíduo se conforme aos papéis sexuais e de género que lhe são atribuídos, identificando-se com eles, mas, quando não há essa identificação, devido a um acidente biográfico, social ou biológico, o amor que deseja e procura desvia-o da "tirania da normalidade" (Espinosa), tornando-se um crime numa dupla-circunstância: por um lado, no caso desse amor revelar-se, um crime contra os padrões sociais que regularizam as relações sexuais, e, por outro lado, no caso de não se revelar, um crime que o indivíduo comete contra "um Outro que eu não posso acorrentar" ("Ângulo"), a sua identidade subjectivamente real. Os crimes diferenciam-se pela "distância" ("Distante Melodia") em relação a esse "Outro", o mais próximo de si mesmo e o mais escondido dos outros, que, no poema "Abrigo", deseja ser mulher de Paris: "Paris - meu lobo e amigo... /- Quisera dormir contigo, /Ser todo a tua mulher".
Como homem, com uma identidade socialmente atribuída, logo à nascença, e marcada por um acidente anatómico, a visibilidade do falo, que colide com a sua mais secreta identidade subjectivamente real, Mário de Sá-Carneiro é um "fantasma", isto é, um "emigrado" de si mesmo, mais precisamente desse "Outro que não posso acorrentar" por ser demasiado íntimo, próximo e real: a identidade subjectivamente real torna-se uma identidade de fantasia, objectivada não só dentro da sua consciência, mas também, numa forma transfigurada, como desejo de ser mulher, na sua poesia. O poema "Como Eu Não Possuo" revela o confronto interior desses dois mundos discordantes:
«Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.
«Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!
«Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu.
Falta-me unção pra me afundar no lodo.
«Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem me estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...
«Castrado d'alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
- Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...
«Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua.
Bebê-la em espasmos d'harmonia e cor!...
«Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria...
«Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo d'êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...
«De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo».
Todos os humanos que o rodeiam possuem alguma coisa, mas ele, Mário de Sá-Carneiro, parece ser o único que nada possui, até "mesmo quando enlaço". "Castrado de alma" e sem saber fixar-se e vincular-se a outro humano, homem ou mulher, afunda-se na sua dor: não é como os outros e, no mundo destes outros que possuem, ele é um emigrado, um estranho ou um clandestino num mundo heterosexista, no seio do qual não pode esperar por alguém por causa da sua "delicadeza" ("Caranguejola"). O desejo da mulher que vai na rua é "desejo errado", porque o que o poeta deseja possuir não é a mulher como ser-outro, complemento de si mesmo, mas a sua "carne estilizada" no seu próprio corpo: Mário de Sá-Carneiro só vibraria "se fosse aqueles seios transtornados" e "se fosse aquele sexo aglutinante". Na posse imaginária da mulher, o poeta quer ser e sentir "aquilo que estrebucho e não possuo", isto é, "quer (simplesmente) ser mulher": possuir seios transbordantes e aguçados e possuir, em vez do pénis, uma vagina. A dor em que se afunda, sem conseguir ascender ao céu - ser mulher - ou descer ao lodo - ser homossexual -, é o rasgo da dilaceração ou, como diz o poeta, castração de alma, a alma amputada, no sentido que é dito neste poema: «Eu não sou eu nem sou o outro, /Sou qualquer coisa de intermédio: /Pilar da ponte de tédio /Que vai de mim para o Outro». A dor dilacera e dispersa a alma, diferenciando-a e cortando-a em pedaços, as diversas identidades de Mário de Sá-Carneiro. Mas, ao rasgar a sua unidade anímica e ao diferenciá-la, a dor reúne e articula o que foi separado pelo rasgo e pelo corte. A alma do poeta habita a dor, onde encontra o seu suporte - o "pilar" - no "intermédio": a "ponte", o "labirinto" ou a "escada" entre duas identidades, uma socialmente atribuída, o "desejo errado" - ser homem heterossexual -, e outra - ser mulher heterossexual - poetizada para enfrentar a identidade não-assumida aberta e publicamente: a homossexualidade passiva. Mário de Sá-Carneiro poetiza o entre, o intermédio: o desejo de ser mulher, a identidade transexual como recurso poético e ficcional para resolver a sua dispersão interior. Porém, a identidade ficcionada elaborada para reunir a dispersão interior produz um outro corte mais profundo que não cicatriza: rasga a sua unidade com o corpo que, ao "espelho", a nega como "fantasiada guerra" ou "fantasia alada". Alguns versos de dois poemas revelam o desconforto com o próprio corpo. Nos poemas "Crise Lamentável" e "O Fantasma", o poeta, além de revelar desconforto de género, confessa um desejo de mudança corporal: "Gostava tanto de mexer na vida, /De ser quem sou - mas de poder tocar-lhe... /E não há forma: cada vez perdida /Mais a destreza de saber pegar-lhe. /(...) /"Que tudo em mim é fantasia alada, /Um crime ou bem que nunca se comete: /E sempre o Oiro em chumbo se derrete /Por meu Azar ou minha Zoina suada..." (Crise Lamentável). "O que farei na vida - o Emigrado /Astral após que fantasiada guerra -/Quando este Oiro por fim cair por Terra, /Que ainda é oiro, embora esverdinhado?" (O Fantasma).
O verdadeiro eu do poeta está fechado hermeticamente no armário e, como não conseguiu "estender pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés", entregou-se desesperadamente a uma "fantasiada guerra" que é "resgatada" na poesia: Mário de Sá-Carneiro procurou habitar poeticamente a sua verdadeira identidade, embora numa forma transfigurada, mas não encontrou quietude e serenidade e a sua alma peregrina e "vagabunda", mergulhada e atormentada no "cismar" ("Escala") consigo mesma e na "divagação" ("Manucure"), não se transfigurou em alma azul, capaz de operar a transformação desejada: "E eu que sou o rei de toda esta incoerência, /Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la /E giro até partir... /Mas tudo me resvala /Em bruma e sonolência" ("A Queda"). No poema "Dispersão", fala da perda: "Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, /E hoje, quando me sinto, /É com saudade de mim. /Passei pela minha vida /Um astro doido a sonhar. /Na ânsia de ultrapassar, /Nem dei pela minha vida... /Para mim é sempre ontem, /Não tenho amanhã nem hoje: /O tempo que aos outros foge /Cai sobre mim feito ontem". As "catedrais de Ser-Eu" ruíram todas, quais ilusões lunares e copulares do Mário, e, como nenhuma das suas vidas, a real e a idealizada numa figura de papel, lhe agradavam, Mário de Sá-Carneiro entrou numa profunda crise de angústia, uma "crise lamentável", que o conduziu ao suicídio prematuro, perpetrado no Hotel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, com o recurso a cinco frascos de arseniato de estricnina. Este acto de antecipação voluntária da morte certa, no qual Mário de Sá-Carneiro afirma plenamente a sua liberdade poética, constitui a acusação derradeira da sociedade heterosexista e fechada que nega aos seus membros a possibilidade de viverem de acordo com o seu mais íntimo eu e as suas aspirações a ser mundo na abertura do mundo comum. A ânsia do poeta é a ânsia por uma sociedade (eroticamente) plural, onde cada um possa habitar sem angústia o seu verdadeiro mundo subjectivo e nele encontrar a serenidade e a quietude da alma azul: o início originário de um novo mundo.
J Francisco Saraiva de Sousa