quarta-feira, 29 de julho de 2009

Mente e Transplante do Cérebro

«O momento histórico que atravessamos recorda aquele em que se encontrava a biologia antes da Segunda Guerra Mundial. As doutrinas vitalistas tinham direito de cidadania, mesmo entre os cientistas. A biologia molecular anulou-as completamente. É de esperar que aconteça o mesmo às teses espiritualistas e aos seus diversos avatares emergentistas. As possibilidades combinatórias associadas ao número e à diversidade das conexões do cérebro do homem parecem efectivamente suficientes para justificar as capacidades humanas. A separação entre actividades mentais e neuronais não se justifica. A partir de agora, para quê falar de Espírito? Há apenas dois aspectos de uma mesma ocorrência que se podem descrever em termos emprestados, pelo vocabulário do psicólogo (ou da introspecção) ou pela do neurobiologista. A identidade entre estados mentais e estados fisiológicos ou físico-químicos do cérebro impõe-se com toda a legitimidade. O debate acerca do mind-body problem só existe na medida em que se afirma que a organização funcional do sistema nervoso não corresponde à sua organização neural. O homem não tem, portanto, nada mais a esperar do Espírito, basta-lhe ser um Homem Neuronal». (Jean-Pierre Changeux)
Fragmentos de Pensamento... sempre sujeitos a alterações.
A filosofia da mente tende a aceitar a visão científica do mundo, negando o mundo da mente consciente em nome do fisicalismo mais bastardo. As diversas versões do materialismo afirmam que o mundo físico é auto-contido ou fechado: os processos mentais podem ser explicados e compreendidos em termos de teorias físicas. Embora algumas versões materialistas admitam a existência de processos mentais e, especialmente, da consciência, o princípio da inviolabilidade do mundo físico (Popper) implica a redução dos processos mentais a processos físicos, donde resulta a negação da experiência subjectiva e de estados mentais subjectivos. Afirmar que nada existe a não ser o mundo físico é o mesmo que afirmar que a mente é o cérebro. A versão fisicalista do materialismo assume esta identificação dos estados mentais com os estados físico-químicos dos cérebros: a mente não é algo diferente do cérebro; é o próprio cérebro. Porém, as teorias neuroredutoras não explicam o funcionamento da mente consciente e a sua emergência biológica, porque não conseguem explicar como é que os padrões neurais se transformam em padrões mentais (Damásio): a consciência é um sistema neural de regulações em funcionamento (Changeux). Os neurónios são conscientes isoladamente e/ou nas suas conexões? Se isolarmos experimentalmente um grupo de neurónios, eles podem produzir sensações, percepções e consciência? Changeux considera que as operações mentais e os seus resultados são percebidos por um sistema de vigilância constituído por neurónios muito divergentes, como os do tronco cerebral, e pelas respectivas reentradas. Este sistema de regulações composto por teias de aranha neurais funciona como um todo, donde a consciência emerge, tal como um iceberg emerge da água. A teoria da consciência de Gerald M. Edelman redu-la a uma propriedade de processos neurais que não pode actuar causalmente no mundo, porque uma teoria científica tem de aceitar dogmaticamente o facto de o mundo físico ser causalmente fechado. A biologia da consciência não pode entrar em conflito com as leis da física e da química. Neste mundo da física e da química, somente as forças e as energias podem ser causalmente efectivas: a consciência está privada desse poder causal. Já é difícil aceitar este neuroreducionismo, mas mais difícil é atribuir consciência e inteligência aos computadores, como fazem os maluquinhos das ciências cognitivas e da mente computacional, os alvos da crítica pertinente de John Searle.
O objectivo derradeiro do programa da ciência física é elaborar uma teoria física unificada da mente e do corpo, isto é, uma teoria física unificada do universo. Dado ter conseguido progredir em termos de conhecimento do universo físico deixando a mente de fora do que tenta explicar, a ciência física nunca encarou o mundo como algo mais do que aquilo que pode ser compreendido por ela. Vamos supor que esta pretensão fisicalista seja plausível, imaginando que podemos realizar um transplante do cérebro com sucesso. Num laboratório de biologia avançada, existem duas peças anatómicas conservadas: o cérebro conservado de um indivíduo com um traço X que morreu num acidente de trabalho, e o corpo intacto de outro indivíduo, cujo cérebro com um traço Y foi esmagado pela queda de um tijolo. Os dois cadáveres foram artificialmente conservados: um cérebro sem corpo (X) e um corpo sem cérebro (Y). Uma equipa de neurocirurgiões desse laboratório resolve dotar o corpo sem cérebro com o cérebro sem corpo. A cirurgia foi realizada com enorme sucesso médico: o corpo sem cérebro com o traço Y recebeu o cérebro com o traço X sem corpo. A equipa que realizou a operação espera que o resultado confirme a hipótese de que os estados mentais são apenas estados cerebrais. Quando o cérebro com o traço X acordar no seu novo corpo hospedeiro, retomará - espera-se - a sua vida consciente, tal como a tinha vivido antes de ter morrido num acidente de trabalho.
Qual será realmente a sua "nova" identidade? O corpo recebe com o cérebro a identidade marcada pelo traço X, ou conserva os traços da sua identidade anterior? E, se o cérebro com o traço X conservar a sua identidade anterior e se se lembrar dela, não entrará em confronto com o novo corpo receptor? Um corpo desmemorizado recebe um cérebro estranho que se recorda das experiências subjectivas do seu outro corpo originário, sentindo-se alojado num corpo estranho, tal como um amputado masculino se sente quando recebe uma mão feminina. O novo ser resultante dessa cirurgia de transplante do cérebro será, neste caso de perturbação de identidade corporal, uma espécie de transsexual: uma mente/cérebro prisioneira num corpo estranho ou mesmo errado. A infância recordada não será a infância vivida por aquele corpo hospedeiro e o tal traço X pode ser o sexo, a orientação sexual, uma perturbação mental ou neurológica e outras características comportamentais e cognitivas. Um cérebro feminino colocado num corpo masculino produzirá um macho típico? Um cérebro masculino encarnado cirurgicamente num corpo feminino produzirá uma fêmea típica? Um cérebro gay colocado num corpo que funcionou de modo heterossexual mudará essa orientação corporal? Um cérebro heterossexual colocado num corpo que funcionou de modo homossexual mudará essa orientação corporal? Para as neurociências, o mundo da mente consciente continua a ser um milagre ou um enigma por explicar. Descartes defendeu o dualismo interaccionista entre mente e corpo, salvaguardando o espírito humano do peso das leis mecanicistas, mas o materialismo aboliu o cogito, reduzindo o ser humano a um mero autómato. O seu arqui-protagonista, La Mettrie, deu vida ao projecto Homem-Máquina: "O homem é um máquina e, em todo o universo, existe apenas uma única substância que se modifica diferentemente". Para não entrar em conflito com as leis físico-químicas, Gerald M. Edelman nega que a consciência possa actuar causalmente no mundo: o homem-máquina de La Mettrie converte-se assim em zombie consumado e submisso às leis darwinistas da economia de mercado capitalista, cuja filosofia foi elaborada por Daniel Dennett. Mas seremos nós - os humanos - meros zombies sujeitos servilmente aos caprichos dos invocadores-feiticeiros capitalistas ou seremos algo mais? A morte pode ser como um carro que desaparece numa curva: deixamos de o ver mas ele continua o seu percurso. A pessoa que morreu deixa de ser visível mas continua a ser, ou talvez não, porque não sei. O objectivo foi criar perplexidade e espevitar a mente crítica, nada mais.
A situação mais curiosa seria aquela em que o traço diz respeito à orientação sexual: Um cérebro gay é recebido por um corpo feminino que viveu experiências lésbicas. Se tivesse sido exclusivamente passivo e hiper-efeminado, o homem gay ficaria feliz por estar a viver num corpo de mulher. A vida clandestina faria parte do seu outro passado. Mas vamos supor que esse corpo tinha pertencido a uma lésbica butch hiper-masculina. Nesse caso, ele não seria completamente feliz, porque teria de tornar esse corpo mais feminino. Com o novo cérebro, o corpo passaria a ser passivo e receptivo, contrariando a orientação que lhe tinha sido dada pelo cérebro lésbico, mas, se guardasse memórias corporais da sua vida anterior, esse corpo sentir-se-ia revoltado com o uso que o cérebro gay faz dele: ser um corpo heterossexual atraído por homens. O cérebro que o comandou anteriormente e que foi esmagado era um cérebro lésbico e sentia atracção por mulheres; agora é um cérebro gay que, pelo facto de habitar um corpo feminino, se tornou heterossexual. Perplexidade total! Ora, nós estamos a supor que o cérebro transplantado guarda memórias, identidades, inscrições, marcas e outros traços comportamentais da sua encarnação corporal anterior, mas será que um cérebro transplantado se lembraria da sua outra identidade? Ou será que ele apenas moveria o corpo sem saber quem é, quem foi e quem será? Afinal, tanto o cérebro sem corpo como o corpo sem cérebro são meras peças anatómicas que fazem parte do mundo físico. A sua união operada por uma cirurgia de transplante do cérebro produzirá efectivamente vida mental dotada de consciência e de sentido? Ou apenas um mero zombie? A mente está ligada ao cérebro, mas pode não ser o cérebro, como defendem os fisicalistas que, por mais que se esforcem, ainda não conseguiram refutar a outra possibilidade: a mente pode ser algo diferente do cérebro e, enquanto mente encarnada num corpo em situação, ser dotada da capacidade para actuar causalmente no mundo.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 26 de julho de 2009

Arnold Gehlen Revisitado

«Visto como um animal nu, destituí-do de instintos, o homem é o mais miserável dos seres!» (Herder)
«Em todo o caso, podemos dizer que o homem, exposto como o animal à natureza agreste, com o seu físico e a sua deficiência instintiva congénitos, seria em todas as circunstâncias inapto para a vida. Mas estas deficiências estão compensadas pela sua capacidade de transformar a natureza inculta e qualquer ambiente natural, independentemente da sua constituição, de modo a que se torne útil para a sua vida. A sua postura erecta, a sua mão, a sua capacidade única de aprender, a flexibilidade dos seus movimentos, a sua inteligência, a sua objectividade, a abertura dos seus sentidos pouco potentes, mas não limitados somente ao importante para os instintos; tudo isso, que pode considerar-se um sistema, uma conexão, capacita o homem para elaborar racionalmente as condições naturais existentes em cada caso». (Arnold Gehlen)
A história dogmática da disciplina atribui de modo precipitado a fundação da antropologia filosófica a Max Scheler, desprezando os contributos determinantes de Kant, Hegel, Feuerbach e Marx, cujas filosofias elaboraram concepções abrangentes do homem. No entanto, a antropologia filosófica foi elaborada como disciplina filosófica autónoma pelos seguidores de Scheler, dos quais se destacam H. Plessner, A. Portmann. A. Gehlen, E. Rothacker e M. Landmann. Estas antropologias filosóficas de cunho fenomenológico esboçaram uma síntese filosófica coerente do homem a partir da biologia e, muito especialmente, da etologia objectiva fundada por K. Lorenz. Por isso, as três primeiras abordagens filosóficas do homem foram justamente designadas antropobiologia, ao lado da qual surgiram mais recentemente novas antropologias filosóficas distintas entre si pelas problemáticas teóricas adoptadas: E. Rothacker e, parcialmente, E. Cassirer adoptam uma abordagem culturalista, Ph. Lersch segue uma abordagem psicológica, H. Marcuse adopta uma abordagem sociológica marcadamente freudomarxista, Lévi-Strauss abraça a etnologia e o estruturalismo, e W. Pannenberg, J. Moltmann e Karl Rahner representam o repto teológico.
A antropologia filosófica de Arnold Gehlen (1904-1976) foi pensada e elaborada como uma antropologia filosófica empírica, com o objectivo de reunificar numa mesma ciência do homem os aspectos anatómico-biológico e etnológico-sociológico-cultural. A tarefa da filosofia empírica é processar e elaborar os resultados das diversas ciências particulares que estudam o homem e apresentar uma imagem alargada e sistemática do homem. Porém, a elaboração dos resultados das ciências naturais implica a sua avaliação crítica e a denúncia das insuficiências da sua compreensão zoológica do ser humano. O estabelecimento de uma equivalência homem/animal desacredita o próprio pensamento biológico, porque, ao nível biológico, o homem é um projecto ou um desenho absolutamente único da natureza. E, como projecto único da natureza, o homem exige uma abordagem teórica única e especial, que Gehlen denomina abordagem antropobiológica. A originalidade biológica do ser humano reside no facto de que o homem é um ser carencial e, enquanto tal, um ser em risco. Confrontado com os mamíferos superiores, em especial com os antropóides, o homem caracteriza-se morfológica, anatómica e funcionalmente por um conjunto de carências ou de deficiências que parecem fazer dele um ser biologicamente não viável. Apesar de ser morfológica e funcionalmente desesperadamente inadaptado, o homem conseguiu sobreviver, dominar todos os seres vivos e ocupar todos os lugares terrestres. Este sucesso biológico do homem indica que existe alguma coisa na sua própria estrutura biológica que compensa as suas carências morfológicas e instintivas e que lhe permite conquistar a biosfera e a ecosfera. Para Gehlen, a análise biológica do homem não consiste em comparar a sua physis com a do chimpanzé, mas sim dar uma resposta cabal a esta pergunta: "como pode viver este ser que por essência não é comparável a nenhum outro animal?" A pergunta colocada é biológica e a sua resposta deve ser biológica. Apelar ao factor alma ou espírito é o mesmo que introduzir, logo ao começo da pesquisa, algo estranho ao e no orgânico. Gehlen rejeita esta explicação de que o espírito faz do homem um ser humano, bem como a explicação do gradualismo biológico que reduz o homem a um animal gradualmente aperfeiçoado. A nova resposta dada por Gehlen apreende a peculiaridade orgânica do homem e compreende que o somático se realiza de modo diferente no animal e no homem.
Apesar de retomar a teoria da abertura do homem ao mundo de Max Scheler, Gehlen submete-a a uma reformulação, trazendo para o centro da reflexão antropológica o equipamento biológico deficiente do homem. (:::) integrando algumas concepções de Nietzsche e de Johann Gottfried Herder (1744-1803). Tanto Scheler quanto Gehlen aceitam a questão do homem tal como tinha sido formulada por Herder: «O que falta ao animal que se aproxima mais do homem (quer dizer, ao macaco) que explique a razão por que ele não se tornou homem?» Esta formulação da questão do homem implica necessariamente uma ruptura com todas as imagens filosóficas do homem ao longo da história da filosofia: a grega (Platão e Aristóteles), a cristã (Santo Agostinho e São Boaventura) e a moderna (Descartes), possibilitando o recurso aos dados recolhidos pelas ciências empíricas particulares. Como a resposta de Gehlen é muito semelhante à de Herder, vale a pena citar na integra um texto deste último:
«Visto como um animal nu, destituído de instintos, o homem é o mais miserável dos seres! Não há nele nenhum impulso obscuro e inato que o conduza no seu elemento e no seu círculo de acção à sobrevivência e às tarefas que lhe são próprias. Não tem faro, cheiro instintivo, que o arraste para as ervas capazes de lhe matar a fome! Não dispõe dum mestre mecânico, cego, que lhe venha construir um ninho! Ei-lo, abandonado e só! Fraco e ameaçado, sujeito à fúria dos elementos, à fome, a todos os perigos, à rapina dos animais mais fortes. a mil mortes possíveis! Sem o ensinamento imediato da natureza criadora, sem a condução segura dessa mão! Cercado e perdido!» Após ter apresentado o homem como um ser deficiente ou carencial, Herder destaca os seus aspectos vantajosos: «Mas, por mais viva que seja esta imagem, a verdade é que não é a imagem do homem... É apenas um aspecto superficial e, mesmo esse, colocado sob uma falsa luz. Se o entendimento e a reflexão são o dom natural da espécie humana, então esta tinha que se exprimir de imediato, ao mesmo tempo que se exprimiam a fraqueza da sua sensibilidade e a miséria das suas privações. A criatura miserável, sem instintos, vinda das mãos da natureza em estado de tal abandono, era também, desde o primeiro momento, a criatura livre e racional que havia de se socorrer a si própria porque, aliás, outra coisa não podia. As carências e necessidades enquanto animal, tornaram-se causas prementes para mostrar, com todas as suas forças, que era homem. (...) O centro de gravidade do homem, o direccionamento principal da sua actividade anímica, residia no entendimento, na reflexão humana, do mesmo modo que na abelha reside sem mediações na sucção e na construção dos favos».«(...) E, do mesmo modo (o amor maternal), também na totalidade do género humano a natureza sabe transformar a fraqueza em força. É por isso mesmo que o homem vem ao mundo tão fraco, tão necessitado, tão destituído de ensinamentos naturais, todo ele sem talentos, sem habilidade, como nenhum animal; para que possa, como nenhum animal, gozar duma educação e para que o género humano, como nenhuma espécie animal, possa tornar-se um todo intimamente ligado!»
A imagem do homem elaborada por Herder é bastante complexa e, neste último parágrafo citado, ele, partindo do modelo do amor maternal, procura mostrar que o ser prematuramente nascido (Bolk) precisa dos cuidados maternais e da comunidade onde nasceu, de modo a adquirir a linguagem e outros traços que farão dele um ser adulto capaz de construir o seu próprio mundo, de modo a proteger-se das adversidades e a colmatar as suas fraquezas biológicas: «Somos, pois, afirma Herder, criaturas da linguagem». Comparados com os outros animais, nascemos demasiado fracos, destituídos de instintos e, por isso, incapazes de fazer face às adversidades; se não fossem os cuidados maternais prestados durante esse período crítico das nossas vidas, estaríamos condenados ao abandono e à morte. Apesar disso, somos dotados de entendimento e de reflexão e possuímos o dom da linguagem, qualidades da nossa natureza que compensam as nossas deficiências naturais e que "fazem de nós homens" distintos dos restantes animais.
Na sua obra Der Mensch, seine Natur und Stellung in der Welt, Arnold Gehlen (1940) defende a tese de que o homem é um ser carencial por causa da sua falta de especialização, da sua imaturidade e da sua redução de instintos. Para poder sobreviver, o homem precisa compensar pela sua acção inteligente esta ausência de adaptação a um determinado meio-ambiente. O conceito de homem como ser carencial é a face negativa do conceito positivo de homem como ser de acção. Ao contrário do animal que está dotado de programas filogenéticos fixos que lhe garantem a sua existência, o homem é obrigado a doar a si mesmo esses recursos biológicos, fabricando as circunstâncias da sua sobrevivência. O homem é um ser não acabado e, como o não ser acabado faz parte da sua natureza, não lhe resta outra alternativa a não ser elaborar-se a si mesmo e encarar a sua existência como tarefa. A determinação da acção constitui a lei estrutural que preside a todas as funções e obras humanas.
Gehlen chama ao homem o ser incompleto ou "em busca permanente" e pensa que foi constrangido, por carência de adaptações morfológicas especiais, a fabricar o seu próprio mundo de cultura, através da sua acção: «Com efeito, morfologicamente, o homem, em contraposição aos mamíferos superiores, está determinado pela carência que é necessário explicar no seu sentido biológico exacto como não-adaptação, não-especialização, primitivismo, isto é: não-evoluído; de outra forma: essencialmente negativo» (Gehlen). (:::) Isto significa que a sua conduta universal se caracteriza pelo conceito de abertura ao mundo, em contraste com a «vinculação ao meio» que caracteriza a conduta dos animais: «O homem é um ser desesperadamente inadaptado. É de uma mediania biológica única no seu género (...) e só conseguiu sair desta carência mediante a sua capacidade de trabalho ou o dom da acção; isto é: com as suas mãos e a sua inteligência. Precisamente por isso está erecto, circum-spectans (olhando ao redor) e as suas mãos estão livres» (Gehlen).
O comportamento animal está «vinculado ao meio», enquanto a conduta humana está «livre do meio» e, por isso, é uma conduta aberta ao mundo. O animal tem um meio limitado; o homem, pelo contrário, vive num mundo aberto; é um ser aberto ao mundo. O meio ambiente (Umwelt) significa um espaço vital perfeitamente limitado sobre o qual se estabelece de forma específica um ser vivo. O mundo (welt) significa, pelo contrário, um horizonte vasto que rompe, por definição, qualquer limitação precisa e elimina toda a fixação, sendo por isso mais amplo que o espaço vital imediato. Daqui resulta que o animal é um ser ligado ao meio porque está ligado ao instinto, e que o homem está aberto ao mundo, precisamente porque carece da adaptação animal a um ambiente-fragmento: «A abertura ao mundo, vista (como uma incapacidade natural de viver num ambiente-fragmento), é fundamentalmente uma tarefa» (Gehlen). Isto significa que, face à carência de um meio ambiente (circum-mundo) com distribuição de significados realizada por via instintiva, o homem tem de realizar essa tarefa, mediante os seus próprios meios e por si mesmo, isto é, o homem precisa «transformar por si mesmo os condicionamentos carenciais da sua existência em oportunidades de prolongamento da sua vida» (Gehlen). O homem é «um ser práxico porque é não-especializado e carece, portanto, de um meio ambiente adaptado por natureza. A essência da natureza transformada por ele em algo útil para a vida chama-se cultura e o mundo cultural é o mundo humano» (Gehlen). A partir desta noção de homem como um ser carencial e, por isso, um ser em-risco, Gehlen elabora uma imponente teoria da cultura como conceito antropobiológico e do homem como «um ser de cultura por natureza». (:::)
K. Lorenz critica a noção do homem como ser não-completo, alegando que não se trata de um conceito biológico, porque «não há seres não adaptados, ou então são simplesmente seres isolados, condenados a desaparecer, feridos por factores mortíferos». De facto, como lembra Lorenz, o cérebro do homem, com as suas dimensões grandiosas, representa uma adaptação morfológica especial e absolutamente evidente. Apesar disso, Lorenz reconhece que a teoria de Gehlen encerra qualquer coisa de fundamentalmente verdadeiro: «Um ser que possuísse uma adaptação morfológica claramente especializada nunca poderia ter dado o homem». Adolf Portmann mostrou que as realizações culturais superiores não podem ser explicadas a partir deste elemento negativo de uma deficiência biológica, mas, como vimos, Lorenz que partilha esta crítica não descarta completamente a teoria do homem de Gehlen: um ser especializado não daria um homem, um ser que deve assumir a tarefa de criar o seu próprio mundo. O seu cérebro prepara-o biologicamente para levar a cabo essa tarefa, sem lhe garantir nada, até porque o cérebro é, ele próprio, um órgão aberto ao mundo (Charles Sherrington, Jean-Pierre Changeux) e, portanto, um órgão em risco permanente de fracassar e de enlouquecer. Contudo, quando elabora a sua teoria das instituições sociais, em diálogo permanente com a etologia, Gehlen reforça a sua teoria do homem como ser incompleto: a sua insuficiência orgânica obriga-o a transformar o mundo exterior e as instituições mais não são do que poderes estabilizadores e reguladores que canalizam as acções humanas quase da mesma forma como os instintos canalizam o comportamento animal. (:::)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Helmuth Plessner Revisitado

«Sem o sopro da vida o corpo humano é um cadáver; sem o pensar o espírito humano está morto.» (Hannah Arendt)
Conforme mostrou Martin Buber, o problema antropológico emerge nas épocas históricas de crise de confiança, quando o homem perde o seu clima familiar e a segurança que tinha desfrutado até esse momento de crise, e quando o mundo e a sua posição no mundo se tornam problemáticos. A crise de confiança leva-o, nesses momentos de perda e de insegurança, a colocar a pergunta sobre si mesmo, sobre o seu ser pessoal e sobre o sentido da vida. Buber destaca dois factores que contribuíram para a maturação do problema antropológico: a dissolução progressiva das velhas formas orgânicas da convivência humana directa (1) e a relação do homem com as novas coisas e circunstâncias que surgiram como resultado, directo ou indirecto, da sua própria acção (2). O primeiro factor contribuiu para o aumento da solidão humana: o homem perdeu o sentimento de estar hospedado no mundo e o sentimento da segurança cosmológica que lhe eram garantidos pelas anteriores formas orgânicas de sociabilidade. A perda de segurança sociológica, isto é, de um lar na vida e no mundo, desencadeou o sentimento de abandono total e de solidão. O segundo factor fez do homem um "resíduo" atrás das suas obras técnicas, económicas e políticas: o homem deixou de dominar o mundo que criou e, por isso, experiencia torpeza e fracasso de alma. Edmund Husserl enunciou três proposições que clarificam o problema antropológico, sem o ter tratado de modo directo e exaustivo: o maior fenómeno histórico é a humanidade que luta pela sua própria compreensão (1); o homem converte-se em problema filosófico quando se encontra em questão como ser racional (2); e o homem somente é homem nas entidades humanas vinculadas generativa e socialmente (3). Com excepção de Alfred Schutz, o trabalho antropológico da escola fenomenológica (Scheler, Heidegger) encarou estas conexões sociais como um obstáculo contra o qual as pessoas tropeçam para chegar ao seu próprio eu verdadeiro ou autêntico. Buber retoma a terceira proposição de Husserl para mostrar que a essência do homem não se encontra nos indivíduos isolados: a união da pessoa humana com a sua genealogia e com a sua sociedade é fundamental para compreender a essência do homem.
A obra de antropologia filosófica de Plessner (1892-1985) é talvez mais produtiva do que a analítica existencial de Heidegger. No entanto, e apesar de ter rejeitado uma abordagem antropológica da sua obra, Heidegger é muito mais conhecido do que Plessner. Em 1928, Plessner publicou a sua primeira grande obra de antropologia filosófica - Die Stufen des Organischen und der Mensch, e, mais tarde, em 1941, durante o seu exílio holandês, Lachen und Weinen, que pode ser lida como uma actualização mais empírica da sua obra anterior, onde Plessner procura mostrar a superioridade da sua reflexão antropológica sobre a filosofia existencial de Heidegger. Quando regressa à Alemanha após o seu exílio holandês, em 1945, Plessner confronta-se com duas obras, a de Heidegger que ilude a dimensão natural e social do ser humano, e a de Arnold Gehlen que destaca o seu aspecto biológico. Plessner não se inibe e procura retomar o seu caminho já iniciado na sua obra anterior Die Einheit der Sinne (1923). Para Plessner, o homem não é um animal dotado de um espírito que lhe foi insuflado de fora (concepção quase bíblica), mas sim um ser de uma-só-peça (aus-einem-Guss-Sein), composto pelo biológico-natural e pelo espiritual-cultural, pela physis e pela psyche. A condição humana consiste em ser um corpo animado e um espírito encarnado. Deste modo, Plessner afirma a unidade indissolúvel, sem fissuras, da interioridade (Innen) e da exterioridade (Aussen) do ser humano.
O dualismo cartesiano constitui o grande adversário metafísico da antropologia filosófica de Plessner. Max Scheler procurou superar o dualismo metafísico com a tese da abertura do homem ao mundo, mas a sua tentativa apenas opera um deslocamento do dualismo entre corpo e alma para o dualismo entre espírito e corpo animado. O princípio especificamente humano que diferencia o homem do animal define-se por oposição à vida: o espírito liberta o homem da dependência da vida e da pressão biológica, permitindo-lhe executar acções conscientes por meio das quais objectiva o mundo, o seu corpo e a sua alma. Ora, o centro a partir do qual o homem se objectiva a si mesmo e o mundo não faz parte do mundo: o espírito opõe-se não só à vida como também ao mundo e, enquanto algo distinto da vida e do mundo, relaciona-se com o corpo e a alma humanas num além sobre o qual Scheler não se pronunciou. Arnold Gehlen conserva as teses básicas de Scheler, em especial a teoria da abertura do homem ao mundo, mas elabora uma antropologia que exclui tanto o dualismo como as questões metafísicas. Sob a influência do pragmatismo, Gehlen desenvolve a concepção do homem como ser primordialmente activo. A acção é a actividade destinada a modificar a natureza com fins úteis ao homem: a natureza transformada pela acção humana constitui a esfera cultural que o homem constrói no mundo e que lhe garante estabilidade e segurança. Com o objectivo de derrubar o dualismo, Plessner elabora o conceito de posicionalidade (Positionalität) como categoria unitária dos seres vivos. A posicionalidade define os organismos vivos por oposição ao inorgânico: os organismos vivos estabelecem relações com o seu meio e afirmam-nas, enquanto o inorgânico se caracteriza pela sua a-relacionalidade com o mundo-ambiente. Assim definido, o conceito de posicionalidade permite a Plessner estudar as estruturas, não como essências ou princípios absolutos, mas na sua relação com as conjunturas ambientais, históricas e emocionais, sempre mutáveis e imprevisíveis. Alicerçada e fundada na relação entre o organismo e o meio, a antropologia de Plessner distancia-se da oposição entre espírito e vida conservada pela antropologia de Max Scheler. Com o homem, a esfera da vida dá um salto qualitativo radical e alcança um nível inteiramente distinto do devir normal do existente. A identidade humana reconhece-se no seu ser-corpo e também no seu ser-no-corpo: o eu reconhece-se plenamente tanto na esfera física como na esfera psíquica.
Por causa da sua posição excêntrica, o homem relaciona-se tanto com a dimensão corporal como com a dimensão espiritual, tanto com o mundo externo como com o mundo interno. Isto quer dizer que o homem se tem a si mesmo e é si mesmo, ou seja, pode compreender o seu corpo (Körper) como um objecto entre outros objectos, analisá-lo e compará-lo com outros corpos e objectos, mas também pode identificar-se com o seu corpo (Leib), encarado como o centro das suas sensações, acções e emoções. O corpo (Körper) é um objecto material submetido às leis da matéria, enquanto o corpo animado (Leib) designa o organismo vivo por oposição ao cadáver inanimado e ao objecto inorgânico. Ao contrário dos animais, o homem não é somente um corpo, mas tem também um corpo, o que permite a Plessner falar do duplo-aspecto (Doppelaspektivität) do ser humano. A posição excêntrica que caracteriza a condição do homem permite-lhe descentrar-se, renunciar à sua própria centralidade em relação às coisas e às pessoas do próprio meio, e, quando se distancia de si próprio, o homem pode ver-se a si mesmo e a sua situação no cosmos. Esta distância é precisamente a consciência, vista como sinónimo de laceração ou de fractura incurável que se manifesta em todos os momentos da existência humana. A necessidade de ser um corpo no sentido somático e psíquico e a necessidade de ter um corpo no sentido material conduzem a uma fractura irremediável no interior da existência humana. O homem é supostamente essa fractura, o centro da incessante mediação entre o exterior e o interior e, por isso, em todos os momentos da sua existência, deve procurar um equilíbrio, sempre provisório e precário, que seja a expressão da sua condição utópica, da sua inalcançável fixação de homo absconditus.
Plessner propõe uma teoria dos modelos orgânicos essenciais: a teoria apriorística dos caracteres orgânicos essenciais procede a uma dedução, no sentido kantiano do termo, das categorias e dos princípios a priori dos quais dependem as características da vida em geral e, em especial, do homem. O núcleo desta teoria reside no princípio de posicionalidade, que permite estabelecer, ao nível ontológico e cognitivo, a diferenciação entre realidade orgânica e realidade inorgânica e entre o mundo animal e o mundo humano. Esta diferenciação posicional entre os diferentes reinos da natureza - o vegetal, o animal e o humano - é entendida mais como um verdadeiro princípio constitutivo da natureza do que como uma mera classificação, da qual se originam os distintos níveis do orgânico, cujo carácter gradual se fundamenta na coesão interna do vivente, na sua capacidade de relação com o mundo externo e na autonomia interior do próprio eu. Nesta escala posicional das estruturas do orgânico, o homem ocupa o vértice, sendo cada uma das escalas autónoma em relação às outras.
1. O reino vegetal. Definido pela forma aberta, o organismo vegetal encontra-se englobado numa área concreta, sem poder distinguir-se dela e assim destacar a sua individualidade. Torna-se impossível distinguir, no mundo vegetal, entre um mundo interno e um mundo externo, porque não há um centro, um si mesmo, que confira consciência ao sujeito. Na ausência de um órgão central, a planta não é um individuum, mas um dividuum, incapaz de se mover voluntariamente e, por conseguinte, de alcançar a plenitude. A planta permanece para sempre incompleta: a planta caracteriza-se por um inacabamento intrínseco.
2. O reino animal. No reino animal, a forma aberta transforma-se em forma fechada, porque as interacções com o meio ocorrem através da mediação de uma estrutura central determinante, que activa a inserção do animal no seu habitat. O animal é um organismo autónomo que reage ao seu ambiente de acordo com os seus próprios impulsos, sensações e instintos. Além disso, o animal é dotado de consciência, porque é capaz de se distinguir do seu meio e de opor-se ao seu meio. Contudo, apesar de possuir um centro, o animal não possui capacidade reflexiva: «O animal vive no seu centro e retorna a ele, mas não vive como centro» (Plessner), porque, embora saiba conhecer e actuar, o animal não tem consciência dos seus conhecimentos e das suas acções. Isto significa que o animal não tem consciência do que faz, porque ainda não possui um eu.
3. O Homem. O homem encontra-se na posição mais elevada da escala do orgânico. Tal como o animal, o homem possui uma forma fechada, mas, ao contrário do animal, é capaz de distanciar-se de si próprio e alcançar a autoconsciência, que constitui o ponto culminante de todo o sistema dos seres vivos. Por causa desta sua capacidade reflexiva, o homem pode distanciar-se voluntariamente do seu centro, o que lhe permite superar a necessidade biológica à qual o animal permanece prisioneiro, dado ser incapaz de ter consciência daquilo que faz. A autoreflexão possibilita ao homem transcender o seu próprio centro biológico e, deste modo, conquistar uma posição excêntrica: «Esta posição de ser centro e, simultaneamente, estar na periferia, merece o nome de excentricidade» (Plessner). A posição excêntrica do homem manifesta-se através de uma pluralidade de formas e torna-o capaz de interpretar diversas personagens no cenário do grande teatro do mundo. Como vimos, com o animal passa-se do dividuum, que é típico do vegetal, para o individuum, que é a singularidade garantida pelo centro. Com a sua excentricidade, o homem passa do indivíduo para a pessoa, que é a perfeita realização da excentricidade como autoconsciência. Embora saiba distinguir entre ele mesmo e o seu meio, o animal é incapaz de distinguir entre ele e si próprio, isto é, não consegue estabelecer uma distância consigo próprio. Ora, o homem constitui-se como tal a partir da autoreflexão, a qual implica visão, ponderação e interpretação de si próprio a partir de um ponto exterior, descentrado e crítico, aquilo a que Plessner chama a sua posição excêntrica (exzentrische Positionalität).
Plessner formulou uma teoria das leis fundamentais ou categorias da vida, com o objectivo de estabelecer lógica e sistematicamente as etapas do desenvolvimento dos seres vivos, entre os quais o homem ocupa um lugar privilegiado. Estas leis antropológicas fundamentais são a artificialidade natural, a imediatez mediada e o lugar utópico, as quais explicam como o homem constrói a sua vida e o seu mundo a partir da separação e do distanciamento originários da imediatez mediada.
1. A primeira lei é a da artificialidade natural. O homem não vive em contacto imediato com o seu meio, porque é forçado a transformar o mundo natural em mundo artificial. Esta transformação implica a imersão do homem na instabilidade e na perplexidade que o confrontam constantemente com a atitude interrogativa e o desafiam a responder às questões: Que devo fazer?, Como devo viver? ou Como devo solucionar os meus problemas? O homem não pode ser exclusivamente um ser natural, mas é obrigado a produzir instrumentos que lhe permitam transformar o mundo natural e convertê-lo no seu próprio habitat: um mundo artificial, no qual encontra a sua terra natal, a sua segunda natureza. Dado ser um animal carente (Gehlen), o homem deve suprir de um modo artificial, com o seu engenho e a sua acção, as suas carências naturais: o homem é, por natureza, um ser artificial ou, como diz Arnold Gehlen, um ser de cultura, e tudo o que produz - moral, valores e vinculação às normas ideais - é resultado da artificialidade humana. Ao contrário do animal, que se mantém em equilíbrio consigo mesmo e com o meio, o homem é um coração inquieto, condenado a procurar o equilíbrio pelo facto de não possuir um meio natural próprio.
2. A segunda lei é a da imediatez mediada. O homem vive ao mesmo tempo como organismo animal na imediatez da natureza e como ser excêntrico através da mediação cultural. Na peugada de Hegel, Plessner destaca a importância das mediações na existência humana, as quais são reflexivas, devido à sua posição excêntrica. Ao contrário do animal, o homem é confrontado com uma imediatez mediada (Unmittelbarkeit) e uma fractura da imediatez que é própria do animal: o homem deve proceder a constantes transformações do natural, para dar vida ao inexistente - as múltiplas criações artificiais que alcança através das interrogações e dos reptos que lhe coloca a própria existência.
A imediatez mediada é um conceito derivado e retomado da dialéctica de Hegel. Plessner adopta-o sem no entanto aderir completamente à sua significação imanente e sistemática. A lei da imediatez mediada afirma que o homem é orientado para a imediatez do já-dado, através do seu conhecimento, actividade e manipulação e de novas descobertas cognitivas e técnicas que o mediatizam constantemente para construir o seu próprio mundo humano. A existência humana é mediada pelo mundo espacio-temporal, pessoal e social, histórico e linguístico, onde o homem se realiza como homem, mas o mundo humano é, ao mesmo tempo, um mundo mediado pelo homem e para o homem. A mediação é dupla-mediação: o homem mediatiza o seu mundo para se realizar como homem (distanciamento do imediato) e, nessa mediação, mediatiza-se a si mesmo para desenvolver as suas capacidades (mediação autorealizadora). A mediação implica a negação da imediatez: o homem distancia-se sempre-já originariamente da realidade dada e imediata para construir o seu mundo e a si mesmo. A negação da imediatez manifesta-se ao nível biológico, como elemento negativo, pela falta de especialização ou redução dos instintos que caracteriza o homem, e ao nível da sua conduta, como elemento positivo que Hegel define como o "poder imenso do negativo". Max Scheler preferiu defini-lo como o "poder dizer não", de modo a reforçar a diferença essencial entre o homem e o animal: o animal diz sim ao mundo imediato, enquanto o homem é o ser-que-pode-dizer-não. O homem é a bestia cupidissima rerum novarum: o ser que está sempre insatisfeito com a realidade que o rodeia e que deseja rasgar os limites da sua existência encerrada no aqui e no agora e os limites do seu meio. A imediatez mediada mais não é do que a liberdade radical que afecta originariamente a conduta total do homem, sem a qual não podemos compreender a liberdade volitiva ou a liberdade de escolha. A liberdade radical significa que o homem não está atado e ligado ao meio e ao mundo mediante a vinculação natural ao instinto: a negação da imediatez implica a ruptura de todos os limites ou fixações e a superação constante da realidade dada (aspecto negativo) e, no mesmo acto, a abertura de novos horizontes que possibilitem a realização da existência humana num mundo humano (aspecto positivo).
3. A terceira lei é a do lugar utópico. Plessner dedicou-lhe uma obra inteira. Como ser excêntrico, o homem encontra-se constantemente projectado para além de todo o além que possa imaginar. Isto significa que o homem nunca se sente em casa, nem nas suas objectivações culturais, nem nas suas ordenações sociais, simplesmente porque para o homem não há nenhum lugar fixo no universo. Para Plessner, a própria história do homem carece de sentido definitivo. Tal como a questão do homem, a questão da história é uma questão aberta. A excentricidade humana é incompatível com toda a posição definitivamente consolidada, o que possibilita a Plessner criticar os radicalismos sociais: o homem está condenado a procurar constantemente novas possibilidades, sempre abertas e incapazes de realizar a fixação definitiva da sua posição. Como escreve Plessner: O homem «está em posição excêntrica esteja onde estiver, e, ao mesmo tempo, não está onde está». A lei do lugar utópico afirma que o homem, através do distanciamento da imediatez, experiencia o mundo e a si mesmo na sua nulidade, donde espreita e vislumbra um terreno firme, um fundamento absoluto do mundo. A ideia de Deus como fundamento absoluto do mundo origina-se no núcleo apriorístico que é dado na forma da vida humana: «o núcleo de toda a religiosidade».
A antropologia filosófica de Plessner concede à excentricidade um papel fundamental na interpretação do homem. A concepção plessneriana do homem como ser simultaneamente corporal e espiritual procura juntar o que tinha sido separado pelo pensamento do século XIX: as ciências da natureza (Naturwissenschaften) e as ciências do espírito (Geistewissenschaften). A unidade psico-física do ser humano como pessoa revela-se claramente no comportamento do homem que Plessner interpreta como um espelho da essência do homem. Para Plessner, o comportamento constitui a dimensão privilegiada mediante a qual o homem se expressa a si mesmo. Definido como manifestação de um ser que está relacionado com o mundo, o comportamento permite estudar o trajecto humano desde a exterioridade até à mais profunda interioridade do ser humano. A capacidade expressiva do homem revela-se na linguagem e na gestualidade (teatralidade). A linguagem define a especificidade do ser humano por oposição ao animal que se esgota na recolha de informações sobre as suas necessidades imediatas. A linguagem permite não só tornar presente o que está ausente, como também realizar operações mentais com abstrações conceptuais e estabelecer diversas formas de comunicação articulada com os outros seres humanos. Pela mediação da linguagem, o homem cria um mundo de conceitos que lhe permite orientar-se na afluência excessiva e desconcertante de estímulos, filtrando-os em função da sua relevância. A gestualidade e a mímica possibilitam ao homem comunicar os seus sentimentos, estados de ânimo e emoções aos outros seres humanos. As expressões corporais humanas mostram que, no comportamento humano, o conteúdo psíquico e a forma corporal não podem ser dissociados: o aspecto psíquico e a forma corporal funcionam como pólos de uma unidade íntima que alcança a sua maior transparência no rosto humano, confirmando a tese aristotélica de que o rosto é o espelho da alma.
Na sua obra Lachen und Weinen, Plessner realiza uma aplicação prática da tese da posição excêntrica do homem, procurando mostrar que o riso e o choro constituem duas capacidades expressivas que revelam a incapacidade do homem para articular respostas adequadas aos desafios desmesurados da existência humana. Na Conditio Humana, Plessner afirma que o riso e o choro são reacções a determinadas situações-limite (Karl Jaspers) nas quais a conduta humana tropeça e encontra os seus limites. O riso e o choro são, portanto, sintomas de desorientação, de paralisação, de incapacidade de estabelecer relações significativas que permitam a continuação do trajecto vital. Para Plessner, o significado destas expressões emocionais só pode ser compreendido quando indagamos as relações que o homem mantém consigo mesmo e com o seu corpo. As gargalhadas e o choro copioso produzem uma verdadeira fractura no equilíbrio psico-físico do homem. Em determinadas situações-limite, o homem perde o controle sobre si mesmo, mostrando-se incapaz de se expressar da maneira habitual. A perda do auto-controle deve-se ao facto de ser forçado a fazer frente a situações e a emoções que o lançam para fora de si e que o obrigam a superar os limites da normalidade quotidiana. Como escreve Plessner: «O riso responde à paralisação do comportamento pela desequilibrada equivocidade dos pontos de contacto, e o choro, à paralisação do comportamento pela negação da relatividade da existência». Nas situações-limite, o homem ausenta-se, delegando ao corpo (Körper) a responsabilidade de lhes responder com expressões descontroladas. Embora não tenha analisado o sorriso, como desejava Hans Kunz, Plessner faz uma distinção entre o riso (Lachen) e o sorriso (Lächeln). No sorriso, «o homem mantém a distância em relação a si mesmo e ao mundo e faz questão de a mostrar jogando com ela. No riso e no choro, o homem é a vítima da sua altura excêntrica, no sorriso dá-lhe expressão». O riso e o choro são situações críticas que fracturam a unidade psico-física da pessoa, dando origem a comportamentos fragmentados e de ruptura. Nestas situações insólitas, o homem perde o controle sobre o seu corpo, donde resulta a emancipação dos processos corporais: as reacções imprevisíveis que produzem quebram e rompem a sua postura habitual. Da ruptura do equilíbrio entre o físico e o psíquico, entre o corpo e a mente, resulta necessariamente a perda do autocontrole. Na explosão súbita do riso, a relação entre o eu e o seu corpo é interrompida, ficando o corpo completamente livre do controle do eu. No abandono ao choro, é o próprio homem que renuncia à relação com o seu corpo que é passivamente arrastado pela emotividade. No riso e no choro, revela-se a natureza dual do ser humano que se manifesta no equilíbrio instável de ser um corpo e de ter um corpo. Nesta distinção subtil entre ser-corpo e ter-corpo que define a posição excêntrica do homem no reino orgânico, revela-se explicitamente o carácter anticartesiano da antropologia de Plessner.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Michel Foucault: Filosofia e Homossexualidade

«Cada um dos meus livros é uma parte da minha própria história. Por uma ou outra razão, tive ocasião de viver e sentir essas coisas». (Michel Foucault, 1982)
«Sempre quis que cada um dos meus livros fosse, em certo sentido, fragmentos de autobiografia. Os meus livros sempre foram os meus problemas pessoais com a loucura, a prisão, a sexualidade». (Michel Foucault, 1961)
«Não é absolutamente uma transposição para o saber de experiências pessoais. /A relação com a experiência deve, no livro, permitir uma transformação que não seja simplesmente a minha como sujeito que escreve, mas que possa efectivamente ter um certo valor para os outros». (Michel Foucault, 1972)
Didier Eribon (1989) chocou os meios académicos com a publicação da primeira biografia de Michel Foucault: "Michel Foucault (1926-1984)". A obra de Eribon é uma biografia que procura restituir uma história à obra de Foucault, situando e dando nessa história um lugar determinante à homossexualidade. O objectivo desta biografia não é explicar o próprio conteúdo da obra pela homossexualidade de Foucault, mas ajudar a esclarecer os seus empreendimentos teóricos e a escolha dos seus objectos de investigação histórica à luz da sua experiência pessoal e da dimensão histórica do que era a situação da homossexualidade em França no decorrer dos anos em que se formou o seu projecto intelectual e se forjaram os grandes temas da sua pesquisa histórica: a loucura, a prisão, a sexualidade. Para Eribon, as escolhas intelectuais e filosóficas de Foucault foram ditadas pela sua homossexualidade: a orientação sexual do filósofo é constitutiva da sua obra, no sentido de presidir à escolha dos objectos da sua pesquisa histórica. A experiência pessoal constitui o ponto de partida das pesquisas levadas a cabo por Foucault, mas não o seu ponto de chegada: a elaboração do trabalho teórico ultrapassa completamente este nível da experiência vivida para produzir uma análise objectiva na qual os outros podem reconhecer-se. A obra de Foucault não pode ser reduzida à sua homossexualidade, como fez James Miller, porque ela é o resultado de um trabalho teórico que se encontra inscrito num campo teórico donde derivam as suas referências, os seus métodos, os seus conceitos, as suas temáticas, as suas problemáticas.
O que nesta biografia escandalizou a maior parte dos membros dos meios universitários franceses? Simplesmente a revelação pública daquilo que todos sabiam e que discutiam em conversas privadas: a homossexualidade de Michel Foucault e a insinuação da sua vida sexual atribulada nos USA. As objecções formuladas podem ser reduzidas a duas principais: a primeira objecção alegava que não era legítimo fazer uma biografia de Foucault, porque ele tinha questionado a noção de autor; e a segunda objecção referia-se à homossexualidade e ao lugar que lhe deve ser atribuído na reconstrução do itinerário filosófico de Foucault e na génese do seu trabalho teórico. Nenhuma das objecções apresentadas tem credibilidade, na medida em que o que está dissimuladamente no centro de debate é a questão do direito de fazer uma biografia de um filósofo homossexual. A verdadeira razão desta objecção antibiográfica reside no escândalo que a homossexualidade ainda provoca nos meios académicos e culturais. A biografia de Michel Foucault é criticada pelo facto de revelar publicamente a sua homossexualidade. Pierre Macherey que condenou a biografia fez tudo para banir a experiência pessoal de Foucault da sua obra, de modo a devolver os seus textos purificados da experiência homossexual ao jogo do comentário escolar. Ora, a obra de Foucault protesta contra estes gestos ritualizados dos seus aduladores homofóbicos ou homossexualistas, como no caso de David Halperin ("Saint Foucault"): a normalização da sua obra pela filosofia académica colide frontalmente com o seu espírito de insurreição contra os poderes da normalização.
Os rituais académicos de purificação das obras de autores homossexuais indiciam não só hipocrisia, mas também a prevalência da homofobia nas instituições universitárias. A homofobia ou mesmo a mera hipocrisia são comportamentos que revelam a tolerância repressiva que prevalece nas actuais sociedades ocidentais: as pessoas dizem que respeitam os outros na sua diferença, mas de facto não respeitam ninguém, nem sequer a si próprias. Um exemplo famoso desse preconceito sexual é o trabalho antropológico de Evans-Pritchard. Embora tenha estudado os comportamentos homossexuais dos Nuer, Evans-Pritchard não os publicou, como se todos os Nuer fossem heterossexuais. Este comportamento de omissão e de ocultamento de dados recolhidos durante o trabalho de campo é indigno de um homem, sobretudo de um homem que diz procurar compreender o mundo dos outros em termos científicos: uma omissão deste calibre é uma violação do espírito científico. A imagem dos Nuer apresentada por Evans-Pritchard foi manipulada em função dos preconceitos sexuais do seu autor e dos seus leitores vitorianos: violou a verdade, amputou a realidade Nuer. Para compreender as raízes da homofobia, proponho duas teses teóricas com implicações práticas:
Tese 1: Os homens homossexuais são, num determinado sentido, mais inteligentes do que os homens heterossexuais. Quando falo de inteligência não me refiro apenas àquilo que os testes de inteligência padronizados podem medir, mas a uma experiência pessoal mais profunda e intensificada da vida. Viver na clandestinidade é como ser estrangeiro na sua própria terra natal. Embora seja um membro do próprio grupo, o homossexual sente-se próximo e distante desse grupo e esta condição de viajante clandestino confere-lhe objectividade. Para resistir às forças normalizadoras do grupo, aguça as suas capacidades intelectuais, examinando o mundo com menos preconceitos e aplicando-lhe critérios mais gerais e objectivos. O mal-estar provocado pela tradição incentiva o seu espírito crítico e faz dele um potencial revolucionário: o seu desejo é contribuir para a transformação das instituições que não lhe permitem viver em conformidade com a sua orientação sexual. A ausência de compromissos firmes com o mundo tal como é confere-lhe liberdade e leva-o a sentir afinidade pela causa de todos aqueles que são excluídos e marginalizados pela sociedade capitalista.
Há muitas maneiras de interpretar esta tese, das quais destacaremos a maneira científica e a maneira filosófica. No seu livro "O Rapto de Ganímedes", Dominique Fernandez descreveu a época - Paris em 1950 - em que os homossexuais tinham de viver na vergonha e na clandestinidade: "O retrato que podia traçar de mim - escreve Fernandez - era o de um ser destinado ao sofrimento". Os homossexuais, tais como Foucault e Fernandez, eram vítimas dessa violência repressiva e as suas perturbações psiquiátricas derivavam, em grande medida, das dificuldades para viver abertamente as suas homossexualidades. Os homossexuais eram forçados a realizar um trabalho sobre si para resistir à omnipresença da opressão quotidiana e à capilaridade das tecnologias do poder disciplinar. Michel Foucault realizou esta prática de si recorrendo à mediação do trabalho histórico: sondou o passado da civilização ocidental para questionar a evidência dos critérios mediante os quais o poder disciplinar produziu formas de exclusão sobre as quais repousa a nossa sociedade. A repressão da homossexualidade é interiorizada e aceite pela maior parte das suas vítimas: os homossexuais que interiorizam o opressor são impedidos de viver saudavelmente a sua homossexualidade. Porém, nem todos os homossexuais consentem ser colonizados pelo poder disciplinar e pelos seus critérios de normalidade: revoltam-se, lutam e operam um desvio que lhes permite escapar a essa repressão heterosexista. A ligação entre a experiência pessoal de Foucault e a sua experiência teórica inscreve-se nessa recusa dos poderes da normalização: Foucault superou a repressão que o impedia de viver a sua homossexualidade fazendo "o diagnóstico daquilo que nós somos hoje". O poder da normalização cria internamente o seu próprio contra-poder: as suas vítimas desenvolvem uma atitude crítica e rebelde diante das instituições estabelecidas que provocam mal-estar. A experiência de mal-estar leva as vítimas a estudar as instituições e o que as fundamenta. Ora, se têm uma história, as instituições são produtos da acção histórica que podem ser transformadas por meio de novas acções políticas. A acção política exige um trabalho teórico que pressupõe uma crítica radical das formas de pensamento que suportam subterraneamente as instituições. A exclusão social gera inteligência crítica: os homossexuais impedidos de viver as suas homossexualidades pelas instituições disciplinares anseiam pela sua transformação radical. Dotados de uma inteligência desenvolvida e fortalecida na resistência contra os opressores institucionais, os homossexuais sabem que para mover as coisas é preciso mover o pensamento, o seu próprio pensamento e o pensamento sedimentado nas instituições opressoras. A transformação de uma instituição requer a decifração do sistema de pensamento que presidiu ao seu nascimento. Foucault reservou a expressão análise arqueológica e genealógica para designar o trabalho teórico de decifrar os sistemas de pensamento que fundamentam as instituições.
A partir do momento em que inicia essa tarefa de decifração do saber investido nas instituições, Michel Foucault começa a produzir resultados teóricos nos quais todos os homens se podem reconhecer: o trabalho sobre si assume a forma de filosofia, cuja tarefa é "fazer o diagnóstico daquilo que nós somos hoje". Os seus livros são fragmentos de autobiografia no sentido de serem esforços para pensar a actualidade e a história presente. A filosofia de Foucault fornece o método de investigação que nos permite reconstruir o passado de cada uma das instituições em particular, mas não fornece padrões gerais que possam ser aplicados de modo universal. Definido como "ontologia histórica de nós mesmos", o trabalho crítico deve afastar-se de todos os projectos que pretendam ser globais e radicais: o "intelectual específico", tal como é encarnado por Foucault, opõe-se ao "intelectual universal" protagonizado por Sartre. Ao contrário de Sartre ou mesmo de Althusser, Foucault não propõe uma filosofia política, isto é, uma teoria do Estado. Em vez de pensar a política como um sistema geral e de elaborar o programa de uma outra sociedade, Foucault intervém teórica e politicamente em casos pontuais e particulares, fazendo primeiramente o seu estudo. O princípio gerador dos seus estudos não reside no próprio conteúdo dos trabalhos teóricos, mas sim na sua relação de mal-estar e de rebeldia diante das instituições. A atitude crítica resulta desse mal-estar: "a crítica é o movimento pelo qual o sujeito concede a si próprio o direito de interrogar a verdade sobre os seus efeitos de poder, e o poder sobre os seus discursos acerca da verdade". Se a governamentalização é o movimento pelo qual se procura, na própria realidade de uma prática social, submeter os indivíduos através de mecanismos de poder supostamente fundados na verdade, então a crítica é "a arte da não-servidão voluntária, da indocilidade reflectida". O enraizamento biográfico desta ideia de não-servidão voluntária deve-se ao facto de Foucault recusar submeter-se e sujeitar-se aos poderes da normalidade e da normalização sexual. O pensamento como actividade crítica resulta desta não-submissão ao mundo tal como é.
Tese 2: As exibições efeminadas dos homens homossexuais, aquilo que se denomina vulgarmente bichices, são comportamentos e posturas corporais induzidos, em grande medida, pela repressão a que esses indivíduos estão sujeitos por causa da sua orientação sexual.
A enunciação desta tese não desmente a diferenciação sexual que existe entre os homens homossexuais: as bichices não consistem em exibições de comportamentos femininos, mas sim no desencadear de comportamentos efeminados caricaturais, e, entendidas neste sentido, as bichices podem ser emitidas tanto por homossexuais efeminados como por homossexuais simplesmente masculinos ou mesmo hipermasculinos. Aliás, os homens homossexuais partilham o mesmo repertório de bichices com os homens heterossexuais, o que revela a sua natureza mimética: as bichices são realizações imitativas do repertório comportamental dos membros do sexo oposto exibidas por homens para outros homens. Qualquer homem heterossexual que tente imitar os comportamentos das mulheres transforma-se automaticamente: a imitação que realiza faz dele uma "bicha" ou mesmo um "traveca". A imitação é caricatural devido à força muscular imprimida aos movimentos. Em todos os homens heterossexuais habita clandestinamente um "paneleiro" que se revela de modo patente nos desfiles carnavalescos. Este habitante clandestino alimenta a maior fantasia erótica dos homens heterossexuais: beijar outro homem e fazer sexo com ele. Este desejo secreto que pode manifestar-se durante a infância tardia e a adolescência colide mais tarde com o princípio de conformidade, em especial a conformidade de género, colocando sob ameaça o sentimento de pertença, e, enquanto desejo reprimido, pode alimentar a homofobia. Porém, em meios reservados e livres de vigilância, o desejo de fazer sexo com outros homens realiza-se com relativa facilidade.
Com estas duas teses, tentei alinhavar de modo simplificado uma nova teoria das sexualidades. Em vez de continuar a problematizar a homossexualidade, como tem sido feito, proponho a problematização da heterossexualidade. Os homens homossexuais são sexualmente independentes: não precisam dos homens heterossexuais para satisfazer os seus desejos eróticos e sexuais e isto graças à diferenciação homossexual interna. No entanto, existem contactos hetero-homossexuais e eles são cada vez mais frequentes: a orientação homossexual masculina é mais rígida do que a orientação heterossexual masculina, até porque os indivíduos heterossexuais são mais propensos a mudar de orientação sexual em períodos tardios da sua vida, pelo menos até aos 45 anos de idade (limite da amostra). Este facto - bem como as bichices heterossexuais - pode indicar que o homem heterossexual é virtualmente um omnívoro sexual e este traço revela-se abertamente nos sites web-cam e nas instituições totais clássicas. Também indica que a sexualidade é um fenómeno predominantemente masculino. Neste quadro teórico, podemos reformular a questão de pesquisa: Porque razão os homens heterossexuais não optam pela homossexualidade? Penso que esta nova hipótese ajuda a esclarecer os dados adquiridos e a avançar com novas pistas capazes de ajudar a elaborar uma teoria biológica unificada das sexualidades humanas. Esta hipótese só pode ser desmentida por testes experimentais. O preconceito bloqueia a mente na busca da verdade!
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 18 de julho de 2009

Polémica sobre Nietzsche

Este post retoma alguns comentários que teci na caixa de comentários do post anterior, onde se travou uma polémica amigável sobre Nietzsche, cujos intervenientes foram, além de mim, dois entusiastas adeptos do filósofo: Sr e Papillon. Eis algumas das minhas intervenções: O valor filosófico de Nietzsche reside essencialmente na crítica radical da cultura moderna e o seu contributo foi integrado pelas mais diversas e dispares problemáticas filosóficas. A crítica do poder de Nietzsche deve ser lida com cautela, mas a sua pretensa crítica da economia política não existe em estado teórico elaborado, como defendeu a Papillon: Nietzsche não tem uma teoria económica, sem a qual não se pode elaborar a sua crítica. Politicamente, Nietzsche era conservador, no sentido de perfilhar uma noção aristocrática da cultura e da história, sendo assim levado a condenar tanto o socialismo como o liberalismo: ambos limitam-se a propor modelos de gestão económica da sociedade, desvalorizando a cultura e usando o utilitarismo para governar.
Vejamos: Benjamin fala da História dos Vencedores e sabemos o que ele quer dizer com tal expressão. O que Nietzsche diz sobre as classes trabalhadoras? Ele fala da vitória dos escravos e da sua manha: um conjunto de dispositivos usados para amolecer os homens superiores. Os vencidos benjaminianos aparecem aqui como vencedores, mas os escravos nunca foram vencedores, e até mesmo o cristianismo posicionou-se historicamente ao lado dos poderes estabelecidos. Podemos contornar este erro histórico e antecipar uma crítica da cultura de massas, mas o conceito de massas implica o de elites. Em Nietzsche, predomina a visão aristocrática da história e da cultura superior. Os intérpretes de esquerda de Nietzsche procuraram livrar a sua obra da interpretação nazi e fascista, sendo levados para o efeito a encarar o super-homem como hybris que se opõe, com desprezo e atitude de soberania, ao rebanho e à sua moral. O super-homem apresenta-se como um comediante e um livre criador de símbolos e, como tal, subtrai-se violentamente à disciplina do mundo da ratio e à moral cristã. Como libertador, o super-homem transforma o homem num ser activo - não reactivo - capaz de realizar a identidade da existência e do valor e de ser feliz. Na sua obra O Sujeito e a Máscara, Gianni Vattimo realizou essa leitura de Nietzsche, mas nas obras seguintes acaba por abandonar a noção do sobrehumano nietzschiano como um sujeito dialecticamente reconciliado. De facto, o sobrehumano nietzschiano não pode ser visto como um libertador dialéctico da humanidade: a substituição do proletariado revolucionário de Marx pelo super-homem de Nietzsche falhou e hoje debatemo-nos com a praga do homem metabolicamente reduzido que já não precisa da cultura e do pensamento livre para viver. A regressão cognitiva é total.
A leitura do pensamento de Nietzsche confronta-se com o problema da inteligibilidade: existem muitas inflexões teóricas, fases ou períodos de desenvolvimento e predomínio dos fragmentos/aforismos. Cada um pode escolher os seus aforismos preferidos, mas não pode facilmente a partir dessa escolha unilateral tentar coagir a entrada do todo nessa perspectiva unilateral. Porque há uma linha condutora geral e esta pode ser conservadora no sentido de não ser sensível aos interesses dos verdadeiramente vencidos na história. Um outro exemplo é a crítica do cristianismo, onde Nietzsche tem cartas fortes. Mas já repararam na recepção dessa crítica? Muito sectária: a morte de Deus já tinha sido anunciada por Hegel e Feuerbach reformula o tema numa perspectiva mais antropológica. A postura de Marx é diferente: a sua posição não é ateísta, porque não faz sentido criticar Deus, sobretudo quando se diz que ele é uma quimera. A crítica deve incidir nos efeitos exercidos pelas práticas religiosas sobre as outras esferas da sociedade, da cultura e do poder. É preciso fazer uma reavaliação destes temas para fazer face aos actuais problemas que nos afligem. Porém, Nietzsche também faz parte da minha constelação teórica. Não sou dogmático!
Estive a folhear o livro Aurora - referido pela Papillon a propósito da crítica do economicismo - e a minha vista cansada descobriu alguns aforismos giros mas contraditórios. Porém, estava a pensar na possibilidade de fazer uma leitura geológica de Nietzsche: já a iniciei mas depois abandonei-a, embora esteja convencido que ela poderia trazer uma nova luz ao seu pensamento. Não vi a crítica da economia, mas sei que algo é dito nesse sentido no Humano Demasiado Humano. A crítica que faz da comunicação social é aristocrática, embora forneça elementos pertinentes. A Papillon defendeu a tese de que Nietzsche não era um ateísta, estando próximo da posição de Marx. É por isso que critico os ateístas da praça global e local: perante a questão da afirmação ou negação de Deus o melhor é ficar calado! Aliás, esse debate é uma manobra ideológica que desvia a atenção dos problemas reais que nos afligem. É como atribuir a crise financeira aos reguladores! Manobras ideológicas!
Sr defendeu que "Nietzsche não ficou fixado na teoria do poder. Pelo contrario, (o que) ele salienta é a importância e a necessidade de emergência duma CULTURA forte como a força bloqueadora por excelência desse mesmo poder". Em resposta a esta perspectiva de Sr, procurei esquematizar o contributo de Nietzsche para a filosofia política nestes termos simples: Nietzsche elaborou duas políticas:
1. A política da sobrevivência que, sem legislar novos valores, ironiza os ideais da humanidade, incluindo as grandes ideologias modernas (democracia liberal e socialismo); e
2. A política da crueldade que, associada ao seu radicalismo aristocrático, visa controlar as forças da história e, produzir, através da grande política (filosofia + poder político), uma nova humanidade. Nietzsche legitima esse governo aristocrático com a tal noção de cultura superior: os novos artistas-tiranos encontram legitimidade não na moral, mas na übermoralisch. Moldar a humanidade! A vida como único princípio da crítica! As grandes guerras! Uma nova direcção para a história! A vontade de poder! E, neste momento, o círculo fecha-se: podemos regressar às obras de juventude que exaltam a tragédia! Educação filosófica! Legislação filosófica! O Passado nobre da humanidade! Eis as linhas da "filosofia política" de Nietzsche!
A leitura de Nietzsche feita por Sr destaca a luta do indivíduo e da cultura forte contra o Estado. Os aforismos que refere dão corpo a essa leitura. Porém, Nietzsche passou posteriormente a criticar a democracia liberal que via como uma secularização da moral cristã que nivela a sociedade. Ele termina com a Grande Política: legislação filosófica + poder político. Há, pois, um impulso irracional a mover o pensamento de Nietzsche: está bem explicito na sua obra!
Última observação: A leitura que Sr faz implica a rejeição desse elemento aristocrático e violento. Ora, na GM, encontra um fio condutor susceptível de ser salvo via Kant: o homem como ser que faz promessas e as cumpre! Aqui podemos salvaguardar a liberdade do indivíduo contra esses poderes fortes, mantendo a crítica do igualitarismo. Em muitos aspectos, Nietzsche fez observações profundas que só podem ser salvas fora da moldura teórica que traçou.
Este debate está a ser um desafio frutífero: começo a compreender o fascínio que Nietzsche exerce sobre a "malta", sobretudo sobre os jovens. O super-homem até pode ser identificado com a figura da banda-desenhada! É melhor chamar-lhe "sobre-humano": ele seria o resultado da Grande Política - a construção de uma nova humanidade. Eu faço uma leitura mais "cínica" de Nietzsche, de modo a evitar ser confrontado com a política da crueldade. Acrescento três observações adicionais:
1. O parágrafo 473 de HDH, onde critica o socialismo, ele opõe duas visões do Estado: o mais Estado possível (noção que atribui ao socialismo) e o menos Estado possível (noção que antecipa o neoliberalismo de hoje). Bem, os dois tipos de Estado são terroristas, para usar o termo que ele imputa ao socialismo. Nietzsche trata Platão como o primeiro socialista: o seu Estado Ideal é uma acumulação de poder estatal. De acordo, ninguém deseja um tal Estado Gordo, mas também não desejamos um Estado Exíguo. E por uma razão simples referida por Nietzsche noutra ocasião: ambos os tipos de Estado produzem corrupção. São versões de um mesmo Estado Burocrático que ameaça a liberdade, o indivíduo, a cultura e a democracia, tal como viram Weber e Marx com a sua noção original de modo de produção asiático.
2. Sem levar em conta a defesa que faz do "federalismo europeu", uma mesma cidadania europeia (até dá um lugar aos judeus no período intermédio!), que implica necessariamente um poder superior forte capaz de derrotar os nacionalismos, Nietzsche não se preocupa com o problema da legitimidade: o seu governo deve transformar a humanidade mediante a grande política - legislação filosófica + poder político. Ora, um tal poder precisa mesmo de muito poder e de muita força para levar a cabo essa tarefa de educar esteticamente a humanidade. Nietzsche critica Platão mas não abdica da sua "ditadura pedagógica". Em termos de filosofia política, Nietzsche não introduz nenhuma novidade radical capaz de superar o niilismo moderno: o poder implica uma assimetria entre governantes e governados. Paradoxalmente, uma tal unificação de nações foi tentada pelo "império soviético" e Mao introduziu a revolução cultural: nos dois casos a liberdade foi severamente restringida ou suspensa.
3. O parágrafo 474 de HDH fala do desencontro conflituoso entre cultura e Estado e noutro sítio Nietzsche diz mesmo que a cultura só floresce lá onde o poder estatal está enfraquecido. A observação é certeira e concordo substancialmente com ela, mas a cultura superior que defende visa moldar esteticamente a humanidade: o seu programa de educação filosófica ou de auto-superação da humanidade. Nietzsche raramente é consequente com as suas ideias brilhantes por causa da sua visão aristocrática da história que é "fisiológica". Ora, é neste fisiologismo que reside o momento irracional do pensamento de Nietzsche que fez dele o ideólogo do totalitarismo nazi e fascista, mesmo que a sua filosofia não seja gritantemente fascista. Lukács demonstrou-o e bem.
Anexo: Com a participação do Tiago, fiz este esclarecimento sobre a obra mais poética de Nietzsche. O Livro AFZ apresenta as duas ideias centrais: o Übermensch ou além-do-homem ou sobrehumano e o eterno retorno do mesmo. O objectivo imediato é criar uma política de redenção numa época de niilismo. O niilismo é uma crise de autoridade: Deus está morto e, por isso, nenhuma autoridade política pode reivindicar sanção divina ou sagrada para a sua dominação. A missão dos filósofos futuros é a grande política: governar o mundo como um todo. O super-homem supera a humanidade, isto é, auto-supera o homem fraco, e, como criador e destruidor de valores, ele é redentor ou libertador. A sua vontade de poder é vontade criadora e legisladora: a grande política.
Com a ideia de redenção surge a doutrina do eterno retorno que, num primeiro momento, visa libertar a vontade da sua fixação no passado, restituindo ao homem a inocência do devir. Porém, mais adiante, esta doutrina assume outra forma: como natureza do tempo e como experiência da unidade criadora de todas as coisas. O super-homem é a visão que surge do enigma do eterno retorno. Ora, as duas ideias parecem estar em conflito: a ideia de super-homem implica uma concepção linear do tempo, enquanto a ideia de eterno retorno supõe uma noção cíclica do tempo. A primeira noção de tempo está prisioneira do ideal ascético criticado por Nietzsche: o sacrifício do presente nos altares do futuro esperado e desejado. Se a história é o triunfo da moral dos escravos - a moral de rebanho, o pensamento do eterno retorno deve conduzir a uma nova moralidade superior da afirmação. A moral dos nobres deve afirmar-se por oposição à moral dos escravos. O homem enquanto ser moral é forçado a afirmar juízos morais, e, neste caso, ele não diz apenas "sim, sim"; também diz "não, não" - o pathos da distância. Nietzsche é assim obrigado a abandonar a noção inicial do super-homem como ideal de redenção histórico-universal e a adoptar a ideia de rebelião local contra o niilismo. Mas no livro PABM adopta claramente um novo maquiavelismo para responder à crise dos valores e da autoridade típica da modernidade: a grande política abandona os logros da moral platónico-cristã e coloca-se ao serviço da superação estética do homem e da criação do além-do-homem. Ora, foi sobre esta última perspectiva que alinhavei os comentários reeditados neste post.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 14 de julho de 2009

A Produção da Notícia

«A notícia é uma janela para o mundo. Através da sua moldura, os americanos aprendem sobre si mesmos e sobre os outros, sobre as suas instituições, lideres e estilos de vida, e sobre os das outras nações e das suas gentes. Substituta urbanizada e urbanizadora do pregoeiro do povo, a notícia tende a dizer-nos o que queremos saber, o que necessitamos saber e o que deveríamos saber.» (Gaye Tuchman)
Newsmaking: o termo foi usado nos anos 70 do século XX para designar uma nova abordagem teórica da comunicação social que deslocou a atenção dos investigadores dos mass media do estudo da mensagem e dos efeitos para o estudo dos comunicadores. O estudo dos emissores passou por duas fases de desenvolvimento teórico: a primeira fase dedicou-se ao estudo de certos factores exteriores - sociológicos e culturais - à organização do trabalho que influenciam os processos produtivos dos emissores, e, como estava ligada à sociologia das profissões, ficou conhecida como sociologia dos emissores, entre os quais se destaca a figura do gatekeeper (seleccionador) introduzida por Kurt Lewin (1947). (:::)
A segunda fase amadurece o estudo dos emissores, dando origem a uma multiplicidade de estudos empíricos que analisam a lógica dos processos pelos quais a comunicação social é produzida e o tipo de organização do trabalho dentro da qual se efectua a produção de notícias. A noção de notícia é ambígua. No seu sentido geral e ordinário, a notícia significa "nova informação" e, neste sentido, encontra-se presente nas conversações da vida quotidiana. Porém, a teoria da produção da notícia destaca uma segunda classe de significados ligada aos meios de comunicação e à comunicação de massas. O conceito de notícia tal como é usado nos meios de comunicação implica três ideias fundamentais: a nova informação sobre acontecimentos, objectos ou pessoas (1), um programa-tipo de televisão ou de rádio, no qual são apresentados itens jornalísticos (2), e um item ou informe jornalístico (3), no qual se fornece nova informação sobre acontecimentos recentes (van Dijk, 1980). A maior parte dos estudos utiliza a terceira acepção do conceito de notícia, sem no entanto evitar a sua ambiguidade. A ideia básica desta nova perspectiva teórica da comunicação reside no conceito de produção: o processo de trabalho é um processo de transformação de um determinado objecto num produto determinado, transformação realizada por uma actividade humana específica, utilizando instrumentos de trabalho adequados (Althusser). O acto de produzir a notícia é um acto de construir a própria realidade e não como se pensa habitualmente um acto de elaborar uma imagem da realidade. O processo de trabalho informativo transforma os acontecimentos ou determinados fragmentos da realidade em acontecimentos informativos: os agentes informativos narram relatos sobre aspectos seleccionados da vida quotidiana que nos apresentam a nós próprios, de modo a constituir a base da (nossa) acção social. Porém, o processo de produzir notícias não ocorre no vazio: o processo de trabalho informativo é um processo de produção que tem lugar sob determinadas relações sociais e técnicas de produção. O profissionalismo dos agentes informativos serve os interesses das organizações informativas e das redes de informação: o trabalho informativo insere-se no seio de processos institucionais complexos.
O elemento determinante do processo de produção da notícia reside na organização do trabalho informativo: as organizações informativas colocam os seus repórteres no terreno, dispersando-os no espaço e no tempo, com o objectivo de cobrir o maior território possível e de descobrir acontecimentos que possam ser transformados em relatos ou discursos informativos. A lógica da escolha de acontecimentos, da negociação das responsabilidades que se sobrepõem e da selecção negociada das notícias do dia obedece aos imperativos impostos pelas cadeias burocráticas de autoridade: as negociações colectivas atribuem o estatuto de noticiabilidade aos acontecimentos quotidianos. A dispersão dos repórteres e das fontes cria uma superabundância de informação que precisa ser peneirada, filtrada e escardeada. Para levar a cabo esta filtragem, as organizações informativas estabeleceram as classificações dos acontecimentos noticiáveis e criaram ritmos de trabalho: são estas classificações prévias que atribuem a qualidade de noticiabilidade aos acontecimentos, reduzindo a sua idiossincrasia como matéria-prima das notícias. No entanto, estas classificações não privam os repórteres de algum espaço de manobra. Embora os relatos informativos sejam editados e supervisionados (função editorial), os repórteres podem negociar com colegas nas suas próprias organizações informativas e com outros pares pertencentes a outras organizações sobre a cobertura de relatos específicos e as práticas informativas adequadas. As fontes de notícias e os factos constituem-se reciprocamente: a rede informativa identifica algumas fontes e instituições como a localização apropriada dos acontecimentos e, deste modo, descarta outras fontes e instituições. Além disso, as práticas informativas geram líderes quase-legitimados que funcionam como fontes quando os agentes não legitimados não estão disponíveis para criar acontecimentos: os métodos de reportagem e a prática do comentário nos canais de televisão exemplificam este dispositivo que gera uma trama de facticidade com a finalidade de conservar e manter a credibilidade das notícias e de legitimar o status quo.
A notícia legitima a ordem estabelecida e, neste sentido, a notícia como forma de conhecimento é ideologia. Historicamente, a emergência da notícia, das organizações informativas e do profissionalismo está ligada aos desafios colocados pelo capitalismo do século XIX ao mercantilismo colonial e, já no decurso do século XX, ao capitalismo das grandes empresas: a liberdade de imprensa mais não é do que a legitimação das exigências de liberdade de expressão feitas pelos proprietários e pelos profissionais da informação. Estas exigências e as práticas informativas de rotina constituem a notícia como ideologia, como um meio de não conhecer, um meio de ofuscar e, deste modo, legitimar o miolo da actividade política e empresarial. (:::)
A problemática teórica da produção da notícia oscila entre uma perspectiva microsociológica e uma perspectiva macrosociológica, as quais tendem na maioria dos estudos empíricos que recorrem à etnografia dos emissores e dos seus contextos de produção a combinar-se e a articular-se na clarificação dos processos de interpretação e de representação envolvidos na fabricação das notícias. Grosso modo, a pesquisa americana (Gans, 1979; Tuchman, 1978; Fishman, 1980) privilegia a perspectiva microsociológica, enquanto a pesquisa europeia, mais especificamente inglesa (Halloran, Elliott & Murdock, 1970; Cohen & Young, 1981; Chibnall, 1977; Hall et al., 1980; Downing, 1980; Hartmann & Husband, 1974), alemã (Strassner, 1975, 1982; Kniffka, 1980; Lüger, 1983) e holandesa (van Dijk, 1980), adopta uma perspectiva macrosociológica que lhe possibilita explicitar com maior detalhe e acuidade o papel das ideologias na produção das notícias. (:::)
Os estudos da produção da notícia têm o mérito de libertar o estudo dos emissores da abordagem anedótica dos jornalistas que, tratando geralmente de um caso ou de temas nacionais, descreve a vida quotidiana e as rotinas dos indivíduos que elaboram notícias e, nalguns casos pontuais, demonstra como se manipulam as notícias e como se deformam os factos. Estes relatos impressionistas e superficiais produzidos por jornalistas para jornalistas não constituem análises rigorosas do resultado jornalístico, deixando na penumbra ideológica os problemas de organização, as rotinas jornalísticas, os valores e o controle corporativo ou político: as histórias que relatam sem as analisar constituem dados de primeira ordem que podem ser utilizados para a elaboração teórica de uma sociologia quotidiana da produção jornalística.
(Em construção) J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Teorias Críticas da Comunicação Social

Este post pretende referir algumas teorias «críticas» da comunicação desenvolvidas por pensadores franceses: Guy Debord, Pierre Bourdieu, Jean Baudrillard, Henri Lefebvre e Michel Foucault. A filosofia de Marx pretende ser uma filosofia essencialmente nova e, portanto, substancialmente diferente da tradição central da filosofia ocidental: a sua missão prática é o cumprimento e a realização dessa tradição mediante a passagem da ideologia à realidade e da interpretação filosófica à acção política. Numa leitura historicista desta missão crítica, os fracassos da acção política revolucionária colocam na ordem do dia a própria filosofia: «A filosofia, que se julgava superada, continua viva porque se deixou passar o momento da sua realização» (Adorno). A integração social e cultural da classe operária na ordem capitalista, o sistema da indústria cultural e a neutralização da oposição de esquerda deixaram a teoria crítica e o seu projecto político sem agente da mudança social qualitativa, obrigando-a a criticar a filosofia sem abrir mão da filosofia: a teoria crítica tornou-se abstracta e concentrou-se na tarefa de tentar compreender as razões desse fracasso político. O marxismo dispersa-se e dissemina-se em diversas leituras de Marx, algumas das quais acabam por obscurecer a sua imensa revolução teórica e política. O contributo destes pensadores franceses confirma essa desorientação teórica e política que, no período áureo do estruturalismo de Claude Lévi-Strauss e da semiologia de Ferdinand de Saussure, acaba por reforçar o neoliberalismo emergente. O auge do marxismo é, ao mesmo tempo, o seu eclipse interno e o triunfo do pensamento único - o pensamento unidimensional esclarecido por Herbert Marcuse.
GUY DEBORD. Em Maio de 68, Guy Debord (1931-1994) foi uma das figuras do movimento contestatário. A «crítica pelo acto» da ordem mediática é não só a sua palavra de ordem, mas também o seu estilo de intervenção nos acontecimentos. A sua obra mais conhecida é, sem dúvida, A Sociedade do Espectáculo, publicada em 1967. Desta obra seleccionámos apenas quatro fragmentos que nos fornecem uma ideia clara do pensamento de Debord:
"O espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens" (nº.4). "O espectáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung tornada efectiva, materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objectivou" (nº.5). "Não é somente pela sua hegemonia económica que a sociedade portadora do espectáculo domina as regiões subdesenvolvidas. Domina-as enquanto sociedade do espectáculo. Lá onde a base material ainda está ausente, a sociedade moderna já invadiu espectacularmente a superfície social de cada continente. Ela define o programa de uma classe dirigente e preside à sua constituição. Do mesmo modo que apresenta os pseudobens a cobiçar, ela oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução. O próprio espectáculo do poder burocrático, que detêm alguns dos países industriais, faz precisamente parte do espectáculo total, como sua pseudonegação geral e seu suporte. Se o espectáculo, olhado nas suas diversas localizações, mostra à evidência especializações totalitárias da palavra e da administração sociais, estas acabam por fundir-se, ao nível do funcionamento global do sistema, numa divisão mundial das tarefas espectaculares" (nº.57). "O movimento de banalização que, sob as diversões cambiantes do espectáculo, domina mundialmente a sociedade moderna, domina-a também em cada um dos pontos onde o consumo desenvolvido de mercadorias multiplicou na aparência os papéis a desempenhar e os objectos a escolher. As sobrevivências da religião e da família — que permanece a forma principal da herança do poder de classe —, e, portanto, da repressão moral que elas asseguram, podem combinar-se como uma mesma coisa, com a afirmação redundante do gozo deste mundo, este mundo não sendo justamente produzido senão como pseudogozo que conserva em si a repressão. À aceitação beata daquilo que existe pode juntar-se como uma mesma coisa a revolta puramente espectacular: isto traduz o simples facto de que a própria insatisfação se tornou uma mercadoria desde que a abundância económica se achou capaz de alargar a sua produção ao tratamento de uma tal matéria-prima" (nº.59). A sociedade da abundância é uma sociedade do espectáculo e é, como tal, que ela é alvo da crítica radical de Debord.
PIERRE BOURDIEU. Bourdieu reflecte sobre a violência oculta, sem se cingir aos princípios do estruturalismo. As suas análises das atitudes e das práticas culturais baseiam-se na noção de habitus. Este termo designa um sistema estável de disposições para aprender e agir que contribui para reproduzir nas suas desigualdades uma ordem social estabelecida. A sociedade — ou a formação social — é definida como um sistema de relações de força e de sentidos entre grupos e classes sociais.
Na obra que escreve juntamente com Jean-Claude Passeron — A Reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino —, Bourdieu constrói uma teoria geral das acções de violência simbólica e das condições sociais da dissimulação desta violência. As relações sociais são puras relações simbólicas. Assim, a Escola produz ilusões, uma das quais — a ilusão da independência e da neutralidade escolares — está na base da contribuição mais específica que a Escola proporciona à reprodução da ordem estabelecida. A Escola reproduz a estrutura da distribuição do capital cultural, favorecendo sempre os indivíduos provenientes das classes mais poderosas economicamente ou mesmo politicamente. A Escola reproduz desigualdade e exclusão. Seria interessante comparar esta perspectiva de Bourdieu com a concepção althusseriana da Escola como Aparelho Ideológico de Estado ou com a proposta de uma sociedade sem escolas avançada por Ivan Illich.
JEAN BAUDRILLARD. Baudrillard publicou em 1972 uma obra intitulada Para uma Crítica da Economia Política do Signo, cujo capítulo dedicado aos mass media - «Requiem pelos media» - é uma crítica cerrada às teses socialistas defendidas por Hans Enzensberger, segundo as quais só uma prática revolucionária pode libertar a virtualidade de intercâmbio democrático inscrita nos media - entendidos como indústrias da consciência - e confiscada e pervertida hoje pela ordem dominante e as suas classes dirigentes. Contra estas teses optimistas quanto ao uso revolucionário dos media, Baudrillard nega a existência da teoria dos media, rejeitando o seu potencial subversivo, mais precisamente a restituição dos media à sua vocação social de comunicação aberta e de troca democrática ilimitada, ao seu verdadeiro destino socialista de tomada de consciência revolucionária das massas:
«Não é como veículo de um conteúdo, mas na sua forma e na sua própria operação, que os media induzem uma relação social, e tal relação não é de exploração, é de abstracção, de separação, de abolição da troca. Os media não são coeficientes, mas efectuadores de ideologia. Não só não são revolucionários por destino, mas nem sequer são, alhures ou virtualmente, neutros ou não ideológicos (o fantasma do seu estatuto «técnico» ou do seu «valor de uso» social). /O que caracteriza os media de massa é que eles são antimediadores, intransitivos, fabricam não-comunicação — se aceitarmos definir a comunicação como uma troca, como o espaço recíproco de uma palavra e de uma resposta, portanto de uma responsabilidade —, e não uma responsabilidade psicológica e moral, mas uma correlação pessoal de um com outro na troca. /Ora, toda a arquitectura actual dos media se funda nesta última definição: eles são o que proíbe para sempre a resposta, o que torna impossível qualquer processo de troca (a não ser sob formas de simulação de resposta, elas próprias integradas no processo de emissão, o que não altera em nada a unilateralidade da comunicação). Aí reside a sua verdadeira abstracção. E é nesta abstracção que se funda o sistema de controlo social e de poder».
HENRI LEFEBVRE. Contra os tecnocratas é a obra que Lefebvre publica em 1967 para criticar o estruturalismo e a sua enorme influência sobre as ciências sociais e humanas. Eliminando qualquer elemento da vida quotidiana, o estruturalismo — elevando-se à abstracção suprema — reforça a ideia da fatalidade da coerção e do controlo, preparando o advento dos cibernantropos e tecnocratas. Da coisificação da estrutura resulta a aniquilação da vontade humana para mudar as coisas para melhor. O estruturalismo eleático é, pois, a ideologia dos tecnocratas: a libertação social torna-se impossível quando se encara o homem como o suporte de um jogo de estruturas sociais e ideológicas.
O estruturalismo reflecte o cansaço da história que se apoderou dos pensadores ocidentais na segunda metade do século XX: a matematização das ciências sociais e as novas técnicas de investigação social deslocaram o pensamento histórico do lugar que ocupava no âmbito da Ilustração e do Idealismo Alemão. A orientação no sentido quantitativo reforçada pelo neoliberalismo conduziu à perda do sentido histórico e da consciência histórica: a sociedade e a cultura são concebidas como algo totalmente independente da consciência dos indivíduos. Adorno cunhou o termo atrofia da consciência histórica para designar a debilitação do eu e A. Schmidt criticou a interpretação estruturalista de Marx realizada por Althusser. Os marxismos de Lefebvre e de Schmidt procuram salvaguardar a dialéctica da libertação, em particular a dialéctica da vida quotidiana.
MICHEL FOUCAULT. O pensamento de Foucault (1926-1984) sofreu uma alteração significativa no seu percurso: a passagem de uma arqueologia do saber para uma genealogia do poder. Analisaremos uma das obras mais significativa de cada um desses períodos: As Palavras e as Coisas (1966) e Vigiar e Punir (1975).
A ARQUEOLOGIA DO SABER. Na primeira obra - As Palavras e as Coisas, Foucault propõe uma arqueologia das ciências humanas: uma história que não é a de uma perfeição crescente dos conhecimentos, do seu progresso em direcção da objectividade, mas antes a das suas condições de possibilidade, a das configurações que deram lugar ao seu aparecimento. Foucault explicita os sucessivos e vincados epistemes que definem os sistemas de pensamento na formação da cultura ocidental, desde o fim do século XVI até o início do século XIX, o mesmo período que já tinha estudado na História da Loucura na Idade Clássica (1961). O período estudado não ilustra um progresso contínuo da razão; pelo contrário, é marcado por duas rupturas subterrâneas que configuraram historicamente as nossas maneiras de pensar. A primeira ruptura ocorreu no fim do Renascimento e marca a emergência da Idade Clássica (século XVII): a actividade intelectual e artística é concebida no interior de uma problemática da representação, que Foucault ilustra com a linguística de Port-Royal e as Meninas de Velásquez. A segunda ruptura, localizada na articulação do século XVIII com o século XIX, rompe com problemática da representação, fazendo emergir um modo de pensamento centrado na noção de sujeito, aquilo a que chamamos a problemática da filosofia da consciência: a nova ideia que surge é a de que o homem é, ao mesmo tempo, o autor e o actor da sua própria história, o que implica a promoção da ciência histórica à posição de "mãe de todas as ciências humanas". Esta segunda ruptura inicia uma nova idade: a Idade da Modernidade que ainda é, de certo modo, a nossa.
Foucault destaca basicamente duas conclusões da sua pesquisa. A primeira conclusão é teórica: a evolução do pensamento efectua-se de modo descontínuo, como já sabiam Bachelard e Koyré. Cada época tem o seu próprio tipo de pensamento que está prisioneiro dos limites que lhe são atribuídos pela estrutura empiricamente determinada subjacente à cultura desse período: a episteme constitui essa estrutura, o alicerce discursivo comum a todas as formas do saber e dos seus discursos. A mudança de estruturas só pode ser operada por uma ruptura subterrânea, anónima e brutal na nossa maneira de pensar e de encarar o mundo: a ruptura transforma a episteme, deslocando os limites do pensável e abrindo o horizonte para uma outra forma de pensar. Na sua obra A Arqueologia do Saber (1969), Foucault demarca-se do estruturalismo, afirmando que o que lhe interessa não é o estudo das estruturas em si mesmas, mas sim a compreensão de como os nossos discursos são produzidos e limitados por um a priori histórico. Com este último conceito articulado com o de arquivo, Foucault rejeita completamente a noção romântica de autor. A segunda conclusão é prática e decorre dessa rejeição do humanismo teórico: «Uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tem posto ao saber humano. Escolhendo um cronologia relativamente curta e um espaço geográfico restrito - a cultura europeia desde o século XVI -, pode-se estar certo de que o homem é uma invenção recente. /O homem é um invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim». Foucault condena o humanismo teórico que surgiu no fim da Idade Clássica, bem como todas as filosofias dialécticas da história, incluíndo o marxismo que, nas versões de Lukács, Bloch ou Sartre, advogava a crença no progresso gerado pela negatividade da acção humana. Toda essa estrutura antropologizante está condenada a desabar, abrindo caminho a novas figuras do saber e a novas formas de intervenção política: «Hoje em dia já não se pode pensar senão no vazio do homem desaparecido. Porque esse vazio não institui uma carência, não prescreve uma lacuna a preencher. Ele é, nem mais nem menos, o desdobramento de um espaço onde, enfim, se torna possível pensar de novo. /A todos os que pretendem ainda falar do homem, do seu reino ou da sua libertação, a todos os que formulam ainda questões sobre o que é o homem na sua essência, a todos os que querem partir dele para ter acesso à verdade, a todos aqueles, em contrapartida, que reconduzem todo o conhecimento às verdades do próprio homem, a todos os que não se propõem formalizar sem antropologizar, que não pretendem mitologizar sem desmistificar, que não querem pensar sem pensar logo que é o homem que pensa, a todas essas formas de reflexão canhestras e torcidas, não se pode senão opor um riso filosófico - quer dizer, em certa medida, silencioso».
A GENEALOGIA DO PODER. Em Vigiar e Punir, Foucault renova radicalmente a análise dos modos de exercício do poder. Foucault opõe aí duas formas de controle social: (1) a disciplina-bloqueio, feita de interditos, proibições, barreiras, hierarquias e compartimentações, quebras de comunicação; e (2) a disciplina-mecanismo, feita de técnicas de vigilância múltiplas e entrecruzadas, processos de controle flexíveis e funcionais, de dispositivos que exercem a sua vigilância através da interiorização pelo indivíduo da sua constante exposição ao olhar do controlo. A noção de governamentalidade opõe-se a uma ideia do Estado, enquanto «universal político», e a uma teoria construída sobre a «essência estatal», referida como modelo de Estado gravado na pedra. Refutando esta concepção de um aparelho de unidade e funcionalidade rigorosas, que dominou durante muito tempo o pensamento político da esquerda, Foucault propõe a identificação rigorosa da ordinariedade do Estado, levando a pensar as suas práticas de adaptação, de ofensiva, de recuo, as suas irregularidades e improvisações, para descobrir outras coerências, outras regularidades, enfim, as tácticas gerais da governamentalidade.
A concepção do poder como feudo dos macro-sujeitos — o Estado, as classes sociais, os partidos políticos, a ideologia dominante — é deslocada em favor de uma concepção relacional do poder. O poder não se detém nem se transfere como uma coisa. Como escreve Foucault: «Ele não se aplica, pura e simplesmente, como uma obrigação ou uma proibição aos que “o não têm”; investe-os, passa por eles e através deles, neles se apoia, tal como eles próprios, na sua luta contra ele, se apoiam por sua vez no domínio que ele exerce sobre eles». Marcuse deu um destaque exagerado à noção de repressão, como se o poder só tivesse essa função de reprimir e de agir por meio da censura, da exclusão, do impedimento e do recalcamento. Foucault rejeita essa noção de um grande super-ego, ou seja, deixa de descrever os efeitos do poder em termos negativos — tais como excluir, censurar, reprimir, disfarçar, recalcar ou ocultar: «Na realidade, o poder — afirma Foucault — produz real; produz domínios de objectos e rituais de verdade». Um poder que agisse de um modo negativo seria muito frágil, mas o poder que conhecemos é forte, porque produz efeitos positivos ao nível do desejo e ao nível do saber: o poder produz o saber, como mostra a constituição do saber sobre o corpo que se organizou através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. O poder sobre o corpo fundou um saber fisiológico do corpo. Enquanto Althusser falava de aparelhos repressivos e ideológicos de Estado e de um Estado abstracto, Foucault refere-se ao dipositivo e à governamentalidade. O termo dispositivo que remete para as ideias de organização e de rede designa um conjunto heterogéneo que engloba discursos, instituições, arquitecturas, decisões regulamentares, leis e medidas administrativas.
A teoria da esfera pública de Habermas não levou em conta a especificidade das novas formas de publicidade criadas pelos mass media, encarando-as à luz do modelo tradicional da publicidade. Ora, nas sociedades modernas, a publicidade separou-se da ideia de conversação dialógica em espaços partilhados, tais como salões, clubes e cafés, ligando-se cada vez mais ao tipo de visibilidade produzido e alcançado pelos mass media, especialmente pela televisão e pela Internet. Embora não tenha analisado a natureza dos mass media e o seu impacto nas sociedades modernas, Foucault elaborou uma tese diferente da de Habermas sobre a organização do poder nessas sociedades e a mudança verificada nas relações entre o poder e a visibilidade. As sociedades do mundo antigo e do ancien régime eram, segundo Foucault, sociedades do espectáculo: o exercício do poder estava ligado à manifestação pública da força e da superioridade do soberano. Neste regime de poder, poucos eram os indivíduos que se tornavam visíveis a uma multidão de indivíduos. Esta visibilidade de poucos indivíduos era usada como meio de exercer o poder da minoria sobre muitos indivíduos. Assim, por exemplo, a execução pública numa praça de mercado era um espectáculo no qual o poder do corpo do soberano se vingava, reafirmando a glória do rei através da destruição de um súbdito rebelde. Contudo, a partir do século XVI, esta manifestação espectacular de poder foi substituída por novas formas de disciplina e de controle que se infiltraram nas diversas esferas da vida social. O exército, a escola, a prisão, o hospital e outras instituições começaram a usar mecanismos mais subtis de poder, baseados no treinamento, na disciplina, na observação e no registo. A difusão destes novos mecanismos de poder fez surgir gradualmente um novo tipo de sociedade disciplinar, na qual a visibilidade de poucos diante de muitos foi substituída pela visibilidade de muitos diante de poucos e a manifestação espectacular do poder soberano cedeu lugar ao poder do olhar.
Para caracterizar esta nova relação entre o poder e a visibilidade, Foucault utiliza a imagem do panóptico. Em 1791, Jeremy Bentham publicou um modelo de penitenciária ideal, ao qual deu o nome de Panopticon (Ver fotografia). Bentham concebeu uma construção circular com uma torre de observação situada no centro. As paredes do edifício eram alinhadas em celas, cada uma das quais separada das outras por meio de outras paredes. As celas deviam ter duas janelas: uma para dentro e de frente para a torre de controle, e a outra para fora, de modo a permitir a entrada de luz exterior. Com esta estrutura arquitectónica singular, um único supervisor situado na torre central pode controlar e vigiar uma multiplicidade de reclusos. Cada recluso, confinado na sua cela, está permanentemente visível e todos os seus movimentos podem ser observados e monitorizados pelo supervisor invisível. Além disso, como sabem que os seus movimentos são sempre visíveis, mesmo que não estejam a ser observados em todos os momentos, os reclusos comportam-se sempre como se estivessem a ser observados permanentemente. Deste modo, os reclusos são submetidos e sujeitados a um estado de visibilidade permanente que garante o funcionamento automático do poder. Para Foucault, o panóptico não é somente uma peça da arquitectura do século XVIII, mas fundamentalmente o modelo geral da organização das relações assimétricas de poder nas sociedades modernas. O panoptismo fornece uma alternativa efectiva às formas antigas de exercício de poder: os indivíduos foram gradualmente submetidos aos tipos de disciplina e de controle que eram utilizados nas prisões, ficando presos nos nós de um novo sistema e de uma nova tecnologia do poder, no qual a visibilidade constitui um meio de controle ou uma tecnologia disciplinar. Isto significa que os indivíduos já não são testemunhas oculares de um grandioso espectáculo que o poder exibe diante deles, mas são meros objectos de múltiplos e interligados olhares que, através do exercício diário de controle, dispensam a necessidade de espectáculo.
As teses de Foucault permitem identificar os dispositivos da comunicação-poder na sua própria forma organizacional. O modelo de organização em «panóptico», utopia de uma sociedade disciplinar, serve nesta perspectiva para caracterizar o modo de controlo exercido pelo dispositivo televisivo: uma maneira de organizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar em permanência o indivíduo e de assegurar a produção positiva de comportamentos. Figura arquitectónica de um tipo de poder que Foucault foi buscar ao filósofo utilitarista Jeremy Bentham (1748-1832), o panóptico é essa máquina de vigilância em que, com visibilidade plena, se pode controlar de uma torre central todo o círculo do edifício dividido em alvéolos e onde os vigiados, alojados em células individuais e separadas umas das outras, são vistos sem verem os vigilantes. Adaptado às características da televisão, que inverte o sentido da visão permitindo aos vigiados verem sem serem vistos, e que deixa de funcionar exclusivamente por controlo disciplinar, mas funciona também por fascínio e selecção, o panóptico torna-se, para explicar a televisão enquanto «máquina de organização», no «panóptico inverso», segundo a expressão de Étienne Allemand, utilizada na sua obra Poder e Televisão (1980). Allemand adaptou o panóptico às características da televisão, a qual inverte o sentido da visão, permitindo aos vigiados verem sem ser vistos. No entanto, a televisão deixa de funcionar exclusivamente por controle disciplinar, passando a funcionar também e sobretudo por fascínio e sedução. O panóptico inverso implica um novo tipo de organização social do poder: os mass media estabelecem uma relação entre o poder e a visibilidade diferente daquela que está implícita no panoptismo. Enquanto o modelo do panóptico possibilita que muitos indivíduos sejam observados por poucos, submetendo-os a um estado de visibilidade plena, o desenvolvimento da comunicação mediada fornece os meios pelos quais muitas pessoas podem recolher informações sobre os indivíduos que exercem o poder, submetendo-os a um certo tipo de visibilidade mediada. Esta nova forma de visibilidade mediada é muito diferente do espectáculo do ancien régime: a visibilidade de indivíduos e de acções está doravante separada da partilha de um lugar comum e, por conseguinte, dissociada das condições e das limitações da interacção face-a-face.
J Francisco Saraiva de Sousa