quinta-feira, 29 de abril de 2010

Tran Duc Thao: O Mistério da Transcendência

Tran Duc Thao (1917-1993) é um brilhante filósofo vietnamita que realizou o percurso interior da fenomenologia husserliana ao marxismo: a sua crítica da fenomenologia é muito diferente da crítica marxista de Lukács que a estuda de fora, em vez de retomar do interior o seu pensamento, como faz Thao ao prolongar - conservando-o e superando-o - o idealismo transcendental no materialismo dialéctico. Na sua obra Phénoménologie et Matérialisme Dialectique, Thao (1951) analisa magnificamente os três grandes H's da Filosofia Alemã - Hegel, Husserl e Heidegger, com a preciosa ajuda do grande M: Karl Marx. Thao reconhece à fenomenologia o mérito de ter liquidado o formalismo no próprio horizonte do idealismo e de ter colocado todos os problemas do valor no terreno do concreto: os caminhos percorridos por Husserl - da eternidade das essências à subjectividade vivida, do Ego singular à génese universal - testemunham a aspiração constante do idealismo pelo conteúdo real, cujo conceito autêntico só pode ser definido pela dialéctica marxista. A partir do momento em que Husserl descobre o mundo da vida (Lebenswelt) como a origem e o fundamento de todas as significações inteligíveis, o seu idealismo transcendental é superado pela prática da análise do vivido: o mundo da vida revela-se como o meio da história humana, onde o universal se constitui no movimento real do tempo. Assim, a filosofia burguesa encontra no marxismo a sua forma de superação: a dialéctica marxista realiza a filosofia burguesa suprimindo-a.
Convém estabelecer um paralelo entre o percurso de Thao e o de Marcuse. Antes de 1929, enquanto esteve em Friburg, o pensamento do jovem Marcuse estava imbuído de categorias fenomenológicas, apesar do seu compromisso firme com o marxismo. A sua tentativa de combinar o marxismo e a fenomenologia antecipou os empreendimentos levados a cabo por Merleau-Ponty e Sartre depois da guerra. No seu artigo «Beiträger zu einer Phänomenologie des Historischen Materialismus», Marcuse (1928) usa muitos termos do vocabulário do seu mestre Heidegger, tais como Sorge, Geschichtlichkeit, Entschlossenheit e Dasein. Para Marcuse, a filosofia burguesa dissolve-se desde o interior na obra de Heidegger - Sein und Zeit -, abrindo o caminho para uma «nova ciência do concreto». Marcuse justifica a sua tese alegando três razões fundamentais: Heidegger mostrou a importância ontológica da história e do mundo histórico como um Mitwelt - o mundo da interacção humana (1); demonstrou que o homem está preocupado com a sua verdadeira posição no mundo, colocando em termos correctos a questão do «ser autêntico» (2); e, por fim, ao defender que o homem pode alcançar o ser autêntico mediante a acção resoluta, conduziu a filosofia à necessidade de uma praxis (3). Ora, a fragilidade da filosofia de Heidegger reside basicamente no seu conceito abstracto e geral de historicidade, que não lhe permite explicar as condições históricas reais que constituem a acção humana libertadora: a possibilidade de ser autêntico aponta para a proeza radical que, no momento histórico presente, só é possível como proeza do proletariado, o único ser-no-mundo capaz de se comprometer numa acção radical e de se converter em sujeito histórico real. Marx reconheceu aquilo que Heidegger ignorou: a divisão da sociedade em classes sociais antagónicas. Os actuais capatazes da classe capitalista - os gestores e gerentes públicos e privados que auto-atribuem a si mesmos remunerações chorudas e prémios imorais - negam a existência das classes sociais e das suas lutas. Embora tenha sido abolida semanticamente, a realidade das classes sociais e das desigualdades sociais agravou-se efectivamente desde que o mundo começou a ser governado por esta nova classe dirigente. O actual mundo histórico só pode ser transformado por uma revolução social total, a Grande Ruptura: a nossa possibilidade de realizar o ser autêntico e de o universalizar exige a realização de actos radicais: o povo humilhado e ofendido, explorado e oprimido, deve revoltar-se contra o sistema social estabelecido e derrubá-lo com violência. Marcuse não só complementa Heidegger com Marx, como também complementa o marxismo com a fenomenologia: o seu marxismo fenomenológico - a fenomenologia dialéctica - rompe com a noção tradicional da superestrutura ideológica como reflexo da infra-estrutura económica. A fenomenologia dialéctica não pode resolver a questão da prioridade do ser sobre a consciência (materialismo) ou da consciência sobre o ser (idealismo): a própria questão carece de sentido a partir do momento em que é colocada. Além disso, a fenomenologia dialéctica não investiga a natureza: o ser natural é distinto do ser histórico. Embora possa ter uma história, a natureza não é história. Só o Dasein - a realidade humana - é história. A naturalização das ciências da cultura mais não é do que uma técnica ideológica de adaptação: a realidade histórica, que pode ser transformada e melhorada pela acção consciente radical, é apresentada como uma ordem natural imutável. Marcuse e Lukács distanciam-se claramente do marxismo científico de Engels e do marxismo ortodoxo da Segunda Internacional: o ser da natureza não é dialéctico e, como tal, deve ser estudado pela física matemática. Marcuse adere à fusão operada por Dilthey entre história e ontologia, elogiando-o por ter libertado as ciências do espírito (Geisteswissenschaften) da metodologia das ciências naturais (Naturwissenschaften) e por ter restaurado o seu fundamento filosófico: o seu conceito de vida (Leben) como suporte da realidade histórica acentua o significado, em vez da causalidade. O ser e o sentido estão intimamente ligados, tanto no pensamento do jovem Marcuse, como no pensamento de Tran Duc Thao: os homens reais fazem a história e, por isso, injectam-lhe os valores que a unificam. Como não pretendo discutir a notável obra de Thao, que tal como Marcuse parte da fenomenologia para o marxismo, limito-me a citar dois parágrafos fabulosos que guardam uma mensagem radical para o momento presente de crise financeira e económica:
«Le grand problème de notre temps, où s'exprime le sentiment devenu unanime que le sujet idéal de la pensée traditionnelle, religieuse ou philosophique, s'identifie rigoureusement avec l´homme réel en ce monde, a trouvé depuis longtemps sa vraie solution dans la dialectique marxiste qui définit le seul processus valable d'une constitution des significations vécues sur le fondement des réalités matérielles. La notion de production rend pleinement compte de l´énigme de la conscience, en tant que l´objet travaillé prend un sens pour l´homme, comme produit humain. La compréhension du sens n'est précisément que la transposition symbolique des opérations matérielles de production en un système d'opérations intentionnelles où le sujet s'approprie idéalement l'objet en le reproduisant dans sa conscience. Telle est la véritable raison pour laquelle moi que suis dans le monde, je «constitue» le monde dans l'intériorité de mes actes vécus. Et la vérité d'une telle constitution se mesure évidemment à la puissance effective du mode de production où elle prend son modèle. Mais le philosophe reste ignorant de ces origines. En tant que membre d'une classe exploiteuse, il n'a pas l'expérience du travail réel des classes exploitées, qui donne aux choses leur sens humain. Plus précisément, il ne perçoit ce travail que sous sa forme idéale, dans l'acte du commandement, et se demande avec étonnement comment ses «significations intentionnelles» ont pu s'imposer au monde réel. La réflexion dans la conscience de soi ne peut évidemment que confirmer ces intentions elles-mêmes dans leur pureté vécue, et les poser «hors du monde» comme pures synthèses constituantes dans la «liberté de l'esprit».
«Ainsi les rapports sociaux de production et la division de la société en classes empèche les classes dirigeantes de se rendre compte du fondement réel des valeurs idéales par lesquelles elles prétendent démontrer leur qualité humaine et justifier leur domination. Exploitant le travail des classes opprimées, elles perçoivent l'objet produit dans son sens humain, mais ce sens ne leur apparaît que dans sa pure idéalité négatrice de toute réalité matérielle, puisqu'elles entendent précisément ne prendre aucune part matérielle à sa production. Comme membre d'une classe dominante, je n'accède à la vérité de l'être qu'en niant l'être effectivement réel, à savoir le travail réel des classes opprimées, que je «dépasse» dans les intentions de ma conscience, du fait même que je m'en approprie le produit. La forme de l'oppression est la clé du mystère de la transcendance, et la haine du naturalisme ne fait que traduire la répugnance naturelle des classes dirigeantes à reconnaître dans le travail qu'elles exploitent, la source véritable des significations auxquelles elles prétendent» (Tran Duc Thao).
Tran Duc Thao apreende neste texto uma ideia profundamente marxista: as classes dirigentes odeiam o marxismo porque não querem reconhecer no trabalho explorado a fonte de todas as significações ideais que dizem abraçar. As classes dirigentes mistificam as categorias filosóficas, isto é, as significações ideais, de modo a dificultar a compreensão da sua génese real: o trabalho real das classes oprimidas que ultrapassam e superam mediante a apropriação dos seus produtos. Basta pensarmos nas remunerações e nos prémios imorais que os gestores públicos se auto-atribuem para dar a nossa adesão à ideia revelada por Thao: o povo português - e não só - anda a ser ludibriado e enganado pelas actuais classes dirigentes que se apropriam da riqueza nacional, condenando-o à pobreza mais abjecta. Os gestores e os dirigentes nacionais são bem pagos para gerir mal o destino nacional: recebem salários milionários e condenam o país à miséria, porque, se tivessem gerido com competência a coisa pública, não estaríamos neste momento de catástrofe nacional a falar das suas remunerações milionárias: o nosso país em risco é demasiado pobre para os ladrões que tem. Em Portugal - o oásis da corrupção, da mentira e do abuso de poder, a fenomenologia de Husserl foi estudada e divulgada por Júlio Fragata e, em menor grau, por Eduardo Abranches de Soveral. A obra "A Fenomenologia de Husserl como fundamento da Filosofia" de Júlio Fragata (1958) merece ser lida e estudada. Porém, a recepção portuguesa de Husserl peca pelo conservadorismo dos seus protagonistas: Fragata e Soveral não foram mais longe na sua compreensão do desenvolvimento da fenomenologia husserliana e do seu impacto sobre o pensamento contemporâneo por causa do seu conservadorismo doentio e reaccionário. O ensino universitário da Filosofia em Portugal ainda está sob o controle castrador da Igreja Católica e das suas seitas internas: Opus Dei, por exemplo, funciona como um circuito fechado de cunhismo fecal que bloqueia e entrava gravemente a qualidade do ensino universitário da Filosofia. Filosofia e conservadorismo são incompatíveis: onde um destes elementos predomina, o outro escasseia. Em Portugal, predomina o conservadorismo - a ideologia daqueles ladrões que se apropriam ilicitamente da riqueza nacional, dizendo que o país é escasso em recursos - que bloqueia a Filosofia na sua missão universal de orientar a modernização e a humanização do país.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 27 de abril de 2010

Prós e Contras: Para comer é preciso produzir

Prós e Contras de hoje (26 de Abril) debateu as agriculturas de Portugal, sobretudo as do centro-sul, desafiando o discurso presidencial que, reconhecendo talvez a sua própria culpa, defendeu - na comemoração do 25 de Abril - a necessidade de recriar a centralidade do Porto, mediante a aposta na economia criativa pensada e gerada por cérebros portuenses do Norte. O único agricultor criativo que participou neste desfile interminável e enfadonho de dezassete figuras das agriculturas nacionais é do Norte: chama-se Artur Varandas Sousa e cultiva cogumelos. Se não fosse o esclarecimento de Arlindo Cunha (ex-Ministro da Agricultura do PSD), teríamos ficado sem saber que o grande produto exportado por Portugal é, neste sector da economia, o Vinho do Porto. O que devemos lamentar é a criação da marca Vinhos de Portugal, porque integrar o Vinho do Porto neste conjunto de vinhos nacionais, muitos dos quais não têm qualidade, pode danificar o prestígio internacional e histórico deste excelente Vinho do Porto. O Porto é uma marca que se vende a si própria, sem precisar ser dissolvida nessa mistura pouco credível de vinhos portugueses, a menos que expliquem aos estrangeiros que o Porto deu o nome a Portugal. A criatividade exige exclusividade, feroz concorrência entre empresas e marcas, política de sigilo, antecipação, capacidade de inovar e de surpreender, conhecimento profundo do mercado, enganar os adversários, enfim não partilhar conhecimentos: estes são os segredos do sucesso do negócio que se aprendem em todas as universidades americanas, desde logo ao nível da investigação. A cidade do Porto deve olhar produtivamente para Barcelona como caso paradigmático e procurar incorporar e adaptar o seu espírito de autonomia, distanciando-se de Lisboa e do seu centralismo colonial. A promoção das indústrias criativas - um modelo retomado do Reino Unido - é uma boa aposta da Cidade Invicta: o sector da arquitectura pode e deve ser usado para modernizar a cidade, de modo a acentuar toda a sua riqueza arquitectónica, a melhorar a qualidade de vida dos portuenses e a atrair um número cada vez maior de turistas. As indústrias criativas portuenses devem incorporar e dar forma à cultura integral e articulá-la, pelo menos nas camadas e zonas históricas da cidade azul, com a cultura ideacional e a cultura sensata. A centralidade do Porto multiplica-se em diversas centralidades que coexistem num todo orgânico que recusa o seu fechamento. A Cidade Invicta é um Porto aberto ao Mundo. José Sócrates adora os Portos e eu também adoro três Portos: o Porto Cidade Invicta, o FCPorto e o Porto de Leixões.
Não é preciso conhecer a agricultura portuguesa e europeia para compreender o espírito mesquinho e egoísta que move certos agricultores e certas associações agrícolas. Neste debate, esse espírito evidenciou-se nas palavras proferidas por Fernando Mendonça: limitou-se a pedir os apoios a que os agricultores têm direito para poderem vender mais barato os seus produtos agrícolas nos mercados locais. A mentalidade dos subsídios que invadiu o mundo rural colide frontalmente com a criação de uma economia de mercado competitiva, onde os agentes económicos devem correr riscos. Uma agricultura subsidiada pelo Estado e pela PAC é uma mentira que, em vez de enriquecer, empobrece o país, embora possa enriquecer fraudulentamente alguns proprietários rurais, como todos sabemos. A clivagem entre o Norte e o Sul de Portugal revela-se no confronto entre duas visões da economia: o capitalismo de risco assumido por Firmino Cordeiro e Varandas Sousa e o capitalismo subsidiado pelo Estado representado por Fernando Mendonça. O representante do arroz deu voz a este pseudo-capitalismo centro-sulista, travando uma guerra desleal com os empresários do Norte do sector da distribuição: o homem do arroz - Carlos Laranjeira? - responsabilizou os hipermercados pela crise da agricultura portuguesa, esquecendo que os portugueses vivem melhor graças à existência destes hipermercados. Entre uma agricultura subsidiada e cara e um sector de distribuição que garante produtos a preços mais reduzidos, os portugueses optam claramente pela iniciativa empresarial do Norte. Os portugueses não querem subsidiar os luxos privados de agricultores que não sabem produzir produtos agrícolas a preços atractivos para o mercado, nacional ou estrangeiro. Arlindo Cunha encara a distribuição mais como uma questão de logística, isto é, de organização, do que como uma questão de preços ou de qualidade dos produtos agrícolas: as cooperativas agrícolas devem ser reestruturadas, profissionalizando a sua gestão e, nalguns casos, promovendo a sua fusão. As empresas agrícolas nacionais devem pensar no nosso mercado interno e não só na exportação, como ficou demonstrado pela iniciativa de alguns agricultores que estão a estimular os mercados de proximidade. Porém, a ideia básica é a de que a agricultura portuguesa precisa produzir e vender, servindo-se para esse efeito dos avanços tecnológicos.
A formatação prévia deste debate sobre as agriculturas portuguesas como um desfile de figuras agrícolas numa Adega próxima de Lisboa - a Adega Regional de Colares - tirou a palavra ao Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas - António Serrano, e ao ex-Ministro da Agricultura do PSD - Arlindo Cunha. António Serrano reconheceu que a crise da agricultura portuguesa foi produzida pelas anteriores políticas agrícolas que, no tempo do excesso de produção na Europa, se submeteram à Política Agrícola Comum que pagava aos agricultores para não produzirem: a PAC gerou uma falsa agricultura, subsidiando agricultores que não produzem e abatendo terra. Portugal alienou-se de si mesmo, da sua agricultura e da sua indústria e, o que é ainda pior, destruiu o seu tecido produtivo, acreditando que podia viver com os subsídios europeus. O resultado dessa política de auto-destruição é uma catástrofe social: os portugueses aprenderam rapidamente a viver na mentira de uma vida sem esforço. Criados na ilusão de vida fácil e corrupta, que explica em grande medida a desertificação do mundo rural (Firmino Cordeiro), os portugueses não estão preparados para enfrentar os desafios da actual crise financeira e económica e o futuro de Portugal. A formulação e a elaboração de uma nova política agrícola para Portugal deve contar com a resistência dos portugueses contra a mudança: economia produtiva e competitiva não faz parte do seu vocabulário metabolicamente reduzido, já que foram habituados a acreditar que podem comer o que não produzem. Além disso, a agricultura portuguesa enfrenta outro problema: a zona desfavorável é muito grande (86%), devido à extensão da rede natura. A questão da produção articula-se com a questão do ambiente e o resultado dessa articulação nem sempre é favorável à produção agrícola e ao sector agro-industrial ou da transformação dos produtos agrícolas. Aproveitando o espaço de manobra concedida pelo novo acordo da PAC, António Serrano procura construir uma nova política agrícola, adaptada aos nossos problemas, em parceria com os agricultores e as suas associações. Porém, a novidade do discurso ministerial reside, na minha perspectiva, na necessidade de autonomizar as regiões: a autonomia regional é o instrumento político que permite a cada região construir o seu próprio modelo de desenvolvimento. A chave do desenvolvimento de Portugal está na regionalização.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Marxismo e Fenomenologia

«A crise da existência da Europa só tem duas saídas: ou a Europa desaparece, ao tornar-se sempre mais estranha à sua própria significação racional, que é o seu sentido vital, e afundar-se-á no ódio ao espírito e na barbárie; ou, então, a Europa renascerá do espírito, graças a um heroísmo da razão que ultrapassará definitivamente o naturalismo. O maior perigo que ameaça a Europa é a lassidão. Combatamos este perigo dos perigos como «bons Europeus», animados por essa coragem que mesmo um combate infinito não assusta. Então, da chama destruidora da incredubilidade, do fogo onde se consome toda a esperança na missão humana do Ocidente, das cinzas da pesada lassidão, ressuscitará a Fénix de uma nova interioridade viva, de uma nova espiritualidade; será para os homens a secreta promessa de um futuro grande e duradoiro: pois só o espírito é imortal». (Edmund Husserl, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental.)
A Fenomenologia Transcendental de Edmund Husserl (1859-1938) chamou desde cedo a atenção de ilustres filósofos marxistas, que lhe negaram a significação histórica que ela atribuiu a si mesma no devir da cultura ocidental. Em termos simples, a tarefa filosófica de Husserl pode ser vista como uma tentativa de salvar o Cogito dos ataques que lhe dirigiam os cépticos. Embora tenha conservado a visão transcendental de Descartes, Husserl dispensa a sua noção de ego como substância: a suspensão - a colocação entre parêntesis - da nossa crença natural na existência do mundo inclui também a suspensão do ego psicológico: o que fica depois de operarmos essa redução é uma colecção de significados que devem ser investigados. O Ego transcendental não é uma substância: ele permanece, juntamente com o mundo, dentro da consciência, ao mesmo tempo que é intencional. Husserl não aboliu a diferença entre o acto de cognição e o seu objecto: ambos ocorrem na consciência e, sendo assim, o objecto pode tornar-se transparente. O ego não é uma coisa imóvel: ele é dirigido para algo que constitui uma propriedade da sua própria constituição. Para Husserl, o que é consciente na consciência transcendentalmente reduzida abrange os dois pólos intimamente ligados um ao outro: o sujeito do conhecimento purificado e o universo infinito de significados. Ao abolir a substancialidade do ego cartesiano, Husserl redu-lo a um recipiente vazio de fenómenos não perceptíveis ou de movimentos de intenção, onde pensa residir a fonte segura do conhecimento original. Husserl salva o nome, fazendo desaparecer o ego e reduzindo o mundo a uma colecção de significados que se originam nesse ego purificado: o ego transcendental e o mundo são duas não-coisas que se ajudam mutuamente para alcançar o absoluto cognitivo. Porém, este absoluto - a fonte de certeza sobre si próprio, do mundo ou de Deus - é alcançado mediante o esvaziamento da realidade. Heidegger foi um dos primeiros filósofos a recusar definir a existência humana em termos psicológicos ou cognitivos supostamente primitivos: o homem não pode fugir do mundo através de esforços mentais, porque está desde logo lançado numa situação contingente que deve ser descrita - em termos ontológicos - através das suas relações consigo mesmo, com os outros e com o mundo.
A crítica marxista da fenomenologia husserliana encontra-se elaborada nas obras referidas a seguir, mas o seu núcleo duro revela-se nestas frases de Lukács: «A fenomenologia, sobretudo na sua evolução após Husserl, acreditou descobrir na Wesensschau um instrumento de conhecimento capaz de apreender a essência da realidade objectiva, sem no entanto ultrapassar a consciência humana, digamos individual. A Wesensschau é uma espécie de introspecção intuitiva, que não tem por objecto o próprio processo de reflexão como processo psicológico, mas a estrutura dos objectos desse processo e a natureza do acto abstracto pelo qual a reflexão põe o seu objecto. É assim que se constitui a noção fenomenológica do objecto intencional. (...) (O método fenomenológico) conduz a opor a consciência do indivíduo isolado ao pretenso caos das coisas e dos homens, pois que, sem o confessar, faz abstracção de todo o elemento social. É, pois, apenas o sujeito pensante que é susceptível de criar uma ordem subjectiva neste caos. Em definitivo, a famosa "terceira via" que se diz ultrapassar o idealismo e o materialismo, assim como a não menos famosa objectividade da fenomenologia, conduzem-nos exactamente ao neokantismo. (...) Em Heidelberg, onde Scheler me veio ver durante a Primeira Guerra Mundial, tivemos uma conversa muito interessante sobre este assunto. Scheler dizia que, sendo um método universal, a fenomenologia pode tomar tudo por objecto intencional. "Assim, por exemplo - disse-me ele -, pode-se perfeitamente proceder ao exame fenomenológico do Diabo, pondo previamente entre parêntesis o problema da sua existência". - Claro - respondi-lhe. - E em seguida, quando a análise fenomenológica do Diabo estiver terminada, não resta mais do que suprimir o parêntesis e eis o Diabo que surge diante de nós... Scheler riu, encolheu os ombros e não respondeu» (Lukács). A demolição adorniana do sujeito transcendental reforça a crítica lukácsiana, de modo a acentuar a clivagem entre a historicidade marxista e a historicidade fenomenológica. No entanto, coube a Kolakowski captar outra limitação da fenomenologia que foi tematizada por Merleau-Ponty: «A linguagem divide o mundo de um certo modo, e, sem dúvida, a nossa percepção seria diferente sem ela, mas uma vez que decidimos começar a analisar "a essência" de algo, tratamos sempre com a sedimentação das experiências seculares da humanidade, que, embora sejam explicáveis historicamente, não implicam nenhuma necessidade lógica. Por conseguinte, alguns elementos do sentido comum estão inevitavelmente presentes nos actos que constituem o método fenomenológico; em cada experiência há resíduos irredutíveis do sentido comum, e, ainda que realizemos a redução fenomenológica, não podemos livrar-nos da linguagem, e isto significa: de toda a história cultural da humanidade. Parece dificilmente possível, tal como Husserl parece acreditar, que possamos regressar à inocência cultural de um recém-nascido e continuar a ser fenomenólogos. Dado que existem tais resíduos no nosso espírito, não temos nenhuma garantia contra as ilusões; por outras palavras, não temos nenhuma fonte de certeza. Não posso ter uma intuição fenomenológica sem ser capaz de dar um nome ao objecto da minha intuição» (Kolakowski). Eis as obras:
Herbert Marcuse (1928), Beiträger zu einer Phänomenologie des Historischen Materialismus.
Maurice Merleau-Ponty (1947), Humanisme et Terreur.
Georg Lukács (1948), Existencialismo ou Marxismo?.
Tran-Duc-Thao (1951), Phénoménologie et Matérialisme Dialectique.
Theodor W. Adorno (1956), Zur Metakritik der Erkenntnistheorie: Studien über Husserl und die Phänomenologischen Antinomien.
Ernst Bloch (1959), Das Prinzip Hoffnung (3 vols.).
Jean-Paul Sartre (1960), Critique de la Raison Dialectique.
Jürgen Habermas (1970), Zur Logik der Socialwissenschaften.
Leszek Kolakowski (1975), Husserl and the Search for Certitude.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 25 de abril de 2010

Portugal Morreu...


Quando me enviam emails do estrangeiro a pedir informação sobre as Universidades Portuguesas, fico muito embaraçado, porque não sei mentir: as universidades portuguesas são desertos/asilos mentais e cognitivos. A publicidade portuguesa difundida pelo mundo é realizada provavelmente por uma agência funerária: Portugal é um imenso cemitério de ambulantes destituídos de cérebros. Quem queira morrer de atrofia mental e cognitiva compra uma viagem até Portugal, onde pode viver a morte em vida entre zombies arrogantes, feios e invejosos. O ensino universitário português está completamente corrompido e morto há décadas: Portugal não deseja importar cérebros do estrangeiro e não pode exportar o que não tem - cérebros nacionais. Portugal é um lapso/colapso cerebral. O discurso da fuga de cérebros é, portanto, mentiroso. As universidades portuguesas não formam cérebros; matam cérebros e abusam dos corpos. Anunciar publicamente a morte de Portugal Mental é a resposta mais adequada e sincera que posso dar a todos esses emails: uma maneira elegante de aconselhar outra escolha, outro destino. Enterrar o morto: eis a derradeira missão dos seus assassinos - os zombies portugueses que deambulam pelos bares das praias, aterrorizando as estrelas e o mar. Em Portugal, as poucas pessoas que pensam são exiladas na sua própria pátria: Portugal odeia a inteligência, a beleza e o bom carácter. Portugal é medíocre e, claro, tem o que merece: o atraso estrutural objectivo que, só por si, confirma a tese que defendi. A própria História de Portugal é feita por «historiadores» que a encaram como uma acumulação inusitada de factos inertes (veja aqui): mineralização total dos feitos dos zombies.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Thomas Nagel e Josef Stalin

Com este post, dou início à destruição de um certo estilo anglo-saxónico de fazer filosofia. Começo pelo confronto entre Thomas Nagel e Josef Stalin, sabendo que o último é herdeiro de uma grande tradição filosófica, ao passo que o primeiro é um desenraizado - um Robinson Crusoé perdido num paraíso fiscal - que coloca questões filosóficas especulativas - isto é, bolsistas - desvinculadas das teorias filosóficas e da sua tradição. Thomas Nagel é herdeiro de si mesmo: a sua pretensa filosofia é uma robinsonada neoliberal, que muda de quadro de referência sempre que passa de uma temática filosófica para outra. Nagel sobrevoa um arquipélago de ilhas dispersas, sem ser capaz de as ligar entre si. A pseudo-filosofia de Nagel é masturbação linguística: o universo dos outros só existe na sua actividade vertiginosa como fantasia erótica, até porque Nagel não procura respostas, preferindo fazer ensaios argumentativos com a sua própria mão, que repete a um ritmo alucinado, frenético e compulsivo. Nagel é um viciado que, aprisionado no seu pequeno universo fetichista, qual ermita perdido no deserto, se alienou completamente do mundo e da cidade dos homens.
Nagel e Stalin partilham a opinião de que a grande questão de toda a filosofia, em especial da filosofia moderna, é «a da relação do pensamento com o ser» (Engels). Os filósofos dividem-se em dois grandes campos de batalha filosófica: uns afirmam o carácter primordial do espírito em relação à natureza, formando o campo do idealismo; outros consideram a natureza como o elemento primordial, pertencendo ao campo do materialismo ou daquilo a que Nagel chama realismo. Na questão fundamental da relação entre o pensamento e a realidade, Stalin e Nagel optam pelo partido do materialismo: «o mundo é independente das nossas mentes» (Nagel), ou, nas palavras de Lenine, «o ser real objectivo - a matéria - é independente da consciência das sensações, da experiência humana». É estranho o modo como Lenine - um leitor inteligente da Ciência da Lógica de Hegel e de O Capital de Karl Marx - anula e dissolve a pluralidade dos mundos num único mundo material: o homem não criou o cosmos, é certo, mas criou o seu próprio mundo social e cultural. A dialéctica não existe sem a subjectividade humana e a sua correspondente possibilidade de auto-alienação e reificação. A dialéctica marxista, que se inscreve no mundo criado pelos homens, «relativiza» o materialismo que Nagel e Stalin abraçam. Mas há uma diferença significativa entre eles: o materialismo de Stalin é racionalista, enquanto o realismo de Nagel é irracionalista - uma versão céptica do realismo - e inconsequente na articulação das diversas temáticas filosóficas: «a nossa compreensão do mundo é limitada não apenas quanto ao que podemos saber, mas também quanto ao que podemos conceber» (Nagel). Para Nagel, o mundo estende-se para além do alcance das nossas mentes: nenhum cientista duvida seriamente deste excesso de objecto que ainda escapa à compreensão do pensamento humano, mas toda a comunidade científica alimenta a esperança de que o mundo pode ser penetrado pelo conhecimento. Em oposição ao idealismo - a doutrina que «sustenta que o que existe é aquilo que podemos pensar ou conceber, ou aquilo que nós ou os nossos descendentes poderíamos chegar a pensar ou conceber» (mais uma generalização abusiva de Nagel), o realismo nageliano considera que o mundo é, em grande medida, inconcebível para as nossas mentes. Ora, esta é uma noção estranha de realismo - o realismo como forma de cepticismo, que não só defende um excesso de objecto que é independente da mente humana, como também limita a sua capacidade para o conhecer e para o conceber. Usando deste modo arbitrário os conceitos, Nagel pode ser realista no plano das relações entre pensamento e realidade, e, ao mesmo tempo, defender - contra o fisicalismo - alguma versão da teoria do aspecto dual quando procura explicar a relação entre cérebro e mente. Stalin é aristotélico, no sentido de reconhecer a existência de «diferentes formas e modalidades da matéria em movimento», sem por isso sentir a necessidade de mudar de quadro teórico de referência quando passa da análise de uma modalidade material para outra. Nagel muda constantemente de grelha teórica e combina arbitrariamente conceitos e problemáticas teóricas dispares, de modo a encobrir o seu idealismo e o seu dualismo envergonhados, sem se dar ao trabalho de confrontar de modo crítico as redes conceptuais que cria com a realidade exterior que é independente do seu mundo privado: o seu realismo concede uma tal independência à realidade - os mercados financeiros - que abdica da tentativa de a conhecer e de a conceber, fazendo do pensamento um prisioneiro cativo do seu próprio vazio interior. O uso e abuso da lógica formal por parte de Nagel revela o carácter formal e mágico do seu pensamento e o vazio cognitivo - destituído de conteúdos - que o habita: Nagel não tem nada a dizer sobre o mundo e sobre a sua transformação, preferindo codificar arbitrariamente um sistema filosófico para uso privado. Deixando o mundo entregue a si mesmo e à sua opacidade irracional, Nagel confia-o aos caprichos dos mercados financeiros. A lógica formal não substitui o conhecimento da realidade, nem sequer ajuda a revelar a realidade e a pensá-la. A lógica formal é pensamento identitário que se rende à imediaticidade do sistema social vigente: é, portanto, um fetiche linguístico, cuja lógica interna é presidida pela lógica social do sistema de dominação estabelecido. A superioridade intelectual de Leonardo Coimbra - o ilustre filósofo da Escola do Porto - em relação ao cousismo de Nagel reside precisamente na redescoberta do carácter social da razão: «Chegados à lógica formal quase podemos dizer que chegamos à técnica do acordo. Dois adversários aceitam premissas comuns e ei-los que, de silogismo em silogismo, vão fazer o acordo, onde primitivamente era a hostilidade surda ou a guerra latente». Lógica sem metafísica é o acordo pelo acordo - a escravidão voluntária - com o neoliberalismo e o capitalismo financeiro: os homens formalizados e funcionalizados na e pela técnica do acordo e do consenso alargado abdicam voluntariamente da luta pela construção de um mundo melhor.
Stalin é, pelo contrário, um homem que quer dominar o mundo natural, humano e social: o seu materialismo é tecnologicamente consequente. Opondo-se ao idealismo, em especial ao idealismo hegeliano, o materialismo filosófico do líder soviético não só afirma o mundo material como a única realidade existente, vendo o espírito como produto mais elaborado da matéria que pensa - o cérebro, como também considera que o mundo e as leis por que se rege são perfeitamente cognoscíveis. Stalin rejeita claramente o cepticismo de Kant. Como se sabe, para Kant, só podemos conhecer as coisas do modo como se apresentam a nós - o mundo dos fenómenos - e não do modo como são em-si: o mundo das coisas-em-si permanece, para sempre e totalmente, fora do alcance do nosso pensamento. Criticando esta perspectiva kantiana, segundo a qual não podemos conhecer o mundo das coisas-em-si, Stalin defende que no mundo «nada existe que seja incognoscível, mas apenas existem coisas que ainda não foram conhecidas mas que serão reveladas e dadas a conhecer pelos esforços da ciência e da experiência». A dialéctica da aparência e da realidade coloca-se de modo diferente na abordagem da natureza e na abordagem do mundo social humano, na medida em que este último é produzido pela acção dos homens. Stalin enquanto herdeiro da tradição dialéctica e de Vico está ciente desta discrepância, mas procura contorná-la recorrendo a Engels, para mostrar que a autenticidade - a verdade objectiva - dos nossos conhecimentos dos fenómenos naturais pode ser comprovada sempre que os produzimos com a ajuda das suas condições e os colocamos ao serviço dos nossos fins. Produzir experimentalmente os fenómenos naturais é acabar com o carácter inatingível da coisa-em-si de Kant: o pensamento de Stalin é já um pensamento cibernético. O materialismo filosófico de Stalin assusta-me pelo seu primitivismo pré-marxista, mas, quando comparado com o realismo irracionalista de Nagel, merece algum crédito pela sua coragem e pela credibilidade da fonte a que recorre: Engels. O que assusta no materialismo filosófico de Stalin é o primado que concede às teses materialistas sobre as teses dialécticas. Os princípios do marxismo que estabelece na sua obra Sobre o Materialismo Dialéctico e Histórico são paráfrases das proposições formuladas por Engels na Dialéctica da Natureza. Nesta obra, Engels alarga o âmbito da dialéctica a toda a natureza, definindo-a como «a ciência das leis gerais do movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento». A formulação do marxismo como uma concepção do mundo científica converte a dialéctica numa mera teoria do conhecimento de carácter abstracto e positivista: o logos da dialéctica deixa de ser a libertação no sentido histórico de Marx e passa a ser a apologia ideológica do sistema vigente - o socialismo de Estado - que, como segunda natureza, adquire a dignidade das leis naturais objectivas que o conduzem à vitória final sobre as forças adversárias. Stalin divide o marxismo em materialismo dialéctico e materialismo histórico, encarando o último como uma extensão e uma aplicação dos princípios do materialismo dialéctico ao «estudo da sociedade e da sua história». Com esta distinção, Stalin rompe claramente com Marx. Para Marx, a distinção entre materialismo dialéctico e materialismo histórico não faz sentido, porque o processo dialéctico é processo histórico: a separação artificial entre eles operada pelo marxismo soviético implica a reificação da história - a sua contenção e a sua conversão em segunda natureza.
O jogo das diferenças e das semelhanças entre Stalin e Nagel dissolve-se quando descobrimos que ambos naturalizam a realidade, o mundo, sem levar em conta a sua textura social e histórica: Stalin e Nagel são apologistas perigosos do status quo. Stalin reifica a história, Nagel ignora-a. A Queda do Muro de Berlim refutou a interpretação estalinista do marxismo, a actual crise financeira e económica desmente Nagel. A escolha de Josef Stalin para confrontar e denunciar a miséria da filosofia de Nagel não foi arbitrária: a redução do mundo ao mundo físico, tal como é estudado pelas ciências naturais, implica uma desvalorização da história, cuja intenção política é demasiado evidente. O marxismo soviético, neste caso particular o estalinismo, não submeteu os conceitos dialécticos a uma revisão, mas operou uma mudança importante na função da dialéctica: a dialéctica foi transformada de uma forma de pensamento crítico em uma concepção do mundo e em um método universal dotado de normas e de regulações rigidamente determinadas. Ora, esta transformação destruiu a própria dialéctica, ao mesmo tempo que transfigurou e desfigurou o marxismo, convertendo-o numa ideologia que passa a fazer parte da superestrutura de um sistema de dominação estabelecido. O marxismo soviético paralisou e imobilizou a dialéctica, adaptando-a em proveito da justificação ideológica de um sistema social e político que recusa a sua própria superação pela evolução histórica. A dialéctica transfigurada e bloqueada conduz à castração da transformação da quantidade em qualidade, à negação da possibilidade de mudanças explosivas mediante a elaboração da noção de contradições não-antagónicas, à reintrodução da lógica formal e à rejeição da negação da negação. Porém, a codificação oficial da dialéctica em sistema filosófico que tende a transformá-la em lógica formal esbarra com a própria essência da dialéctica: a dialéctica resiste à sua própria codificação. O carácter histórico da teoria marxista não permite generalizações a-históricas, opondo-lhes uma resistência feroz que ajuda a compreender as dificuldades do marxismo soviético para elaborar um manual adequado de dialéctica e de lógica. Os intelectuais mais ortodoxos do regime soviético, incluindo o próprio Stalin, não conseguiram contrariar a própria essência histórica da lógica dialéctica: os seus manuais de dialéctica e de lógica são, por isso, superiores aos manuais do neoliberalismo. A prova disso obtém-se pela comparação entre o manual de O. Yakhot - um ilustre desconhecido - sobre o materialismo histórico e o conhecido livro The View from Nowhere de Thomas Nagel. Em vez de elaborar um modelo crítico completo em torno destas duas obras, vou limitar-me - apenas isso - a chamar a atenção para a ética e a teoria da justiça desenvolvidas por estes dois pensadores. Yakhot revela o seu conhecimento profundo de Hegel quando afirma que a moral ou a teoria da justiça não podem ser formuladas fora das condições históricas, como faz Nagel mediante a elaboração de conceitos exteriores à sociedade - vista como «mundo estranho», não por ser o mundo do dinheiro que envenena a consciência do homem, avaliado pela soma de dinheiro que possui, mas por ser a incorporação da perspectiva objectiva que ameaça as perspectivas pessoais: a teoria marxista recusa uma tal moral abstracta, portanto exterior à sociedade, sem no entanto negar a moral humana universal. Albert Einstein sabia isso: «A concorrência ilimitada leva a um enorme desperdício de mão-de-obra e deforma monstruosamente a consciência social do indivíduo. Considero esta monstruosa deformação como o pior mal do capitalismo». O capitalismo deforma a consciência social do indivíduo, não lhe permitindo outro interesse fora do lucro: eis o que Nagel não sabe e, como não sabe que a sua consciência pessoal é mediada pela sociedade em que vive, pensa que pode - a partir da sua própria deformação privada não reconhecida como tal, impor à sociedade uma moral abstracta, cuja universalidade é a deformação universal da consciência social dos indivíduos. O pensamento deste Robinson Crusoé da filosofia anglo-saxónica é a regressão cognitiva total: Nagel, perdido na sua ilha deserta e assombrada pelo feio e ressequido espectro cavaquista, retoma ideias e teorias velhas - o individualismo exacerbado - que, tendo cumprido a sua missão num passado já distante, travam no presente o desenvolvimento e a modernização da sociedade. A dialéctica marxista acredita no poder organizativo, mobilizador e transformador das novas ideias que servem os interesses das forças de vanguarda da sociedade: a sua função é facilitar o desenvolvimento e a modernização da sociedade. Portugal - humilhado pelo Presidente checo - deve romper com o mencheviquismo cavaquista que procura bloquear as novas ideias e as novas instituições: a nosso futuro como nação independente e orgulhosa do seu passado depende da derrota eleitoral do cavaquismo e do conservadorismo moral que lhe é inerente.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 20 de abril de 2010

Prós e Contras: Cinzas na Economia

O debate Prós e Contras de hoje (19 de Abril) foi um caos não de cinzas ou plumas vulcânicas mas de moléculas humanas - cerca de quinze participantes, incluindo os quatro convidados especiais - que se dispersaram em discursos normalizantes redundantes e insensíveis ao sofrimento e às apreensões sombrias dos habitantes da Islândia. A erupção de um vulcão da Islândia obrigou as autoridades europeias a fechar o espaço aéreo europeu, o que gerou um caos ou uma crise nos aeroportos da Europa e na coordenação dos diversos sistemas de transportes. Os prejuízos sofridos pelas companhias aéreas levou-as a considerar o fechamento do espaço aéreo europeu como uma medida de excesso de zelo da União Europeia, mas António Mendonça (Ministro das Obras Públicas) vê nesse acto uma primeira reacção de prudência máxima face a uma situação desconhecida. Quando desconhecemos os efeitos imprevisíveis de uma situação anómala, como é o caso das erupções vulcânicas, a prudência - um conceito aristotélico usado pelo ministro - aconselha a garantir a segurança das pessoas. Fernando Pinto (Presidente da TAP) reforçou a prudência do ministro, frisando que a Europa enfrenta pela primeira vez um problema desta escala: o facto do sector dos transportes aéreos ser muito regulado levou os decisores europeus a tomar todas as precauções para garantir a segurança dos voos, até porque os motores dos aviões podem ser danificados irremediavelmente pelas cinzas vulcânicas que os ventos espalharam pelo espaço europeu (Adérito Serrão). No entanto, após um longo fim-de-semana de crise, os ministros europeus dos transportes reuniram-se finalmente em videoconferência (19 de Abril) e decidiram efectuar hoje (20 de Abril) uma abertura progressiva do espaço aéreo europeu, que foi dividido em três zonas sujeitas a monitorização de seis em seis horas.

Os participantes deste debate reconheceram que o homem controla muita coisa, incluindo a bolha financeira (sic), mas não controla a natureza. A Islândia é um paraíso para os vulcanólogos: os seus vulcões têm marcado a história social da Europa, como testemunha o célebre Inverno Europeu. Teresa Ferreira (Vulcanóloga dos Açores) inventariou todos os tipos de erupções vulcânicas, para mostrar que a ciência não consegue prever a sua evolução e os comportamentos dos vulcões. Os vulcões são máquinas naturais «projectadas» para matar os humanos e destruir as suas obras, e é nesta sua capacidade mortífera e destruidora que reside o seu fascínio: o que podemos lamentar é o facto deles não serem selectivos na «escolha» dos alvos humanos a abater, matando arbitrariamente todos os seres vivos que habitam os territórios vizinhos ou próximos. As catástrofes naturais ajudam a moldar a história das sociedades humanas e, por vezes, quando não dizimam culturas inteiras, como já sucedeu no passado, podem criar as condições subjectivas e objectivas necessárias para a inovação social, tecnológica e cultural. Mas é muito difícil convencer os burocratas kafkianos que zelam pelo funcionamento e pela manutenção do sistema estabelecido da necessidade urgente de mudança de paradigmas: o seu impulso natural enquanto homens de direito divino (Sartre) é, como disse Fátima Campos Ferreira, "apagar o vulcão". António Mendonça, Fernando Pinto, José Manuel Viegas e o séquito de técnicos convidados apagaram o vulcão da Islândia. Como? Bloqueando a reflexão, silenciando o pensamento que deseja libertar o futuro do colonialismo tecnocrático. José Manuel Viegas falou da necessidade de melhorar a articulação dos diversos sistemas de transportes e de aprender com esta crise. Fernando Pinto lamentou os prejuízos causados pelas erupções do vulcão da Islândia, afirmando que são maiores do que aqueles provocados pelo fatídico 11 de Setembro. E António Mendonça não resistiu à tentação de promover a grande obra pública do governo: a construção da linha de TGV que irá ligar Lisboa a Madrid. A posição periférica de Portugal na Europa protegeu-nos das cinzas vulcânicas, mas o ministro preferiu usá-la para justificar a necessidade de coordenar as nossas - entenda-se as de Lisboa - articulações internacionais: as cinzas vulcânicas revelaram as fragilidades e as vulnerabilidades das ligações entre Portugal - isto é, Lisboa, - e os outros países europeus, que o governo pretende solucionar com o seu novo - ou velho? - plano estratégico de transportes. A preocupação pela segurança demonstrada pelos zeladores do sistema burocrático estabelecido não é tanto a preocupação pela segurança das pessoas que, no fundo, não existem para eles, dado serem tratadas como cifras, mas sobretudo a preocupação exclusiva pelo funcionamento regular, monótono, cinzento e normalizado do mecanismo que montaram e que lhes garante a sua própria sobrevivência egoísta: o que eles deveras pretendem é mitigar os efeitos criativos das catástrofes naturais sobre a normalidade monótona do funcionamento do sistema. A redundância é a resposta adequada que o sistema dá a todas as situações críticas que desafiem a sua perpetuação: os burocratas kafkianos só sabem articular um único discurso que rejeita a mudança social qualitativa.

As erupções vulcânicas e os sismos confrontam-nos com a nossa própria condição mortal: os humanos são mortais. Nestes momentos sublimes, quando enfrentamos a nossa mortalidade essencial que faz de nós seres livres, individuais e históricos, precisamos de ironia e não de discursos pseudo-securizantes, como aqueles que foram apresentados neste triste e pardacento debate moderado por Fátima Campos Ferreira. Num mundo abandonado por Deus, como é o nosso, a ironia é, como escreveu Georg Lukács, «a mais alta liberdade possível». Um mundo abandonado por Deus é um mundo que perdeu a sua ancoragem no além: entregue à imanência de um mundo social carente de sentido, o homem torna-se solitário e procura desesperadamente na sua própria alma o sentido que perdeu quando ficou desamparado e sem-abrigo. A utopia compensa, de algum modo, esta perda irremediável de um mundo seguro e fechado: o homem pode imaginar ou sonhar mundos melhores e tentar realizá-los. Ora, a burocracia instalada em Lisboa odeia visceralmente a utopia: o sistema lisboeta faz tudo para castrar a imaginação produtiva e liquidar a ironia que identifica erradamente com o seu próprio sarcasmo. Lisboa é uma dupla-anormalidade defeituosa - isto se não levarmos em conta o Benfica, o aborto total -, porque foi abandonada por Deus, sem ter conquistado a ironia que se instalou no Porto. A ironia portuense escuta o horizonte, procura apreciar o presente e sonha o futuro: a ironia que protesta contra o status quo e provoca o seu domínio universal desencadeia o sorriso e, deste modo alegre e tranquilo, conduz à maiêutica social - o nascimento de uma nova sociedade. Portugal precisa da ironia dos portuenses, Prós e Contras precisa ser um dia - pelo menos uma vez - moderado pela ironia de Judite de Sousa: libertar o futuro de Portugal das nuvens cinzentas de Lisboa-Anaconda-Gigante - a inimiga invejosa da ironia - é tarefa para a liberdade criadora dos portuenses.

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 17 de abril de 2010

Jean-Paul Sartre: Situações

«Serão precisos dois séculos de crise - crise da Fé, crise da Ciência - para que o homem recupere a liberdade criadora que Descartes atribuiu a Deus e para que se conceba finalmente essa verdade, base essencial do humanismo: o homem é o ser cuja aparição faz com que um mundo exista. Mas não censuramos Descartes pelo facto de ter atribuído a Deus o que nos pertence por direito; admiramo-lo principalmente por ter, numa época autoritária, lançado as bases da democracia, por ter seguido até ao fim as exigências da ideia de autonomia e por ter compreendido, muito antes de Heidegger de Vom Wesen des Grundes, que o único fundamento do ser era a liberdade». (Jean-Paul Sartre, Situações I.)
A vida académica portuguesa é uma fuga organizada ao estudo: em vez de estudar e de preparar um futuro novo para Portugal, os estudantes universitários preferem beber até ficar bêbados e ir parar às urgências dos Hospitais, e urinar nas ruas. Publicações Europa-América publicaram em língua portuguesa, ainda no tempo do fascismo, uma obra de Sartre - em dez volumes -, cuja leitura recomendo aos estudantes universitários que se alienaram de si mesmos, da história e do mundo. Os estudantes universitários portugueses, bem como os seus professores, estão fora de situação. Situações é o título dessa obra capital de Jean-Paul Sartre (1905-1980), que recolhe diversos ensaios literários, filosóficos e políticos, escritos entre 1938 e 1965, muitos dos quais foram publicados pela primeira vez na revista Les Temps Modernes fundada em 1945 por Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty. Destaco apenas três ensaios: o famoso ensaio literário O que é a Literatura? (1947), o ensaio político Os Comunistas e a Paz (1952-54) e o sempre actual ensaio filosófico Materialismo e Revolução (1946).
A paixão de Sartre pela actualidade da sua época e o desejo de a inflectir levaram-no ao engajamento: a defesa dos oprimidos, sem complacência pelos opressores. Ora, o combate político contra a injustiça sob todas as suas formas colocou-o imediatamente nas proximidades do marxismo. Em 1934, Sartre escreve: «Sempre me pareceu que uma hipótese de trabalho tão fecunda como o materialismo histórico não exigia de modo nenhum como fundamento essa absurdidade que é o materialismo metafísico. Não é, com efeito, necessário que o objecto preceda o sujeito para que os pseudo-valores espirituais se dissipem e para que a moral reencontre as suas bases na realidade. Basta que o Eu seja contemporâneo do mundo e que a dualidade sujeito-objecto, que é puramente lógica, desapareça definitivamente das preocupações filosóficas. O Mundo não criou o Eu, o Eu não criou o Mundo, eles são dois objectos para a consciência absoluta, impessoal, e é por ela que eles estão ligados. Esta consciência absoluta, quando purificada do Eu, nada mais tem que seja característico de um sujeito, nem é também uma colecção de representações: ela é muito simplesmente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência. E a relação de interdependência que ela estabelece entre o Eu e o Mundo basta para que o Eu apareça como "em perigo" diante do Mundo, para que o Eu (indirectamente e por intermédio dos estados) retire do Mundo todo o seu conteúdo. Nada mais é preciso para fundamentar filosoficamente uma moral e uma política absolutamente positivas». A obra de Sartre, donde retirámos esta citação - A Transcendência do Ego, procura assimilar o projecto husserliano, ao mesmo tempo que o radicaliza: a análise crítica da noção de sujeito transcendental, desenvolvida por Husserl nas Meditações Cartesianas, leva Sartre a expulsar o Ego do campo transcendental, fazendo dele um ser do mundo, colocado no mesmo plano que o Ego do outro. Deste modo, Sartre funda objectivamente a autonomia da consciência irreflectida - do psíquico -, salvando a fenomenologia da armadilha do solipsismo ontológico. Contra a suspeita do seu amigo Nizan, Sartre pensa que a fenomenologia pode ser mais do que um «idealismo que ignora o sofrimento, a fome, a guerra», bastando-lhe fazer do Ego um ser existente contemporâneo do mundo: a partir deste Ego como ser do mundo, a fenomenologia pode criar uma moral e uma política positivas.
Em 1934, os ingredientes essenciais do pensamento de Sartre, tal como aparece resumido nesta pequena obra, já eram o compromisso político - a luta contra a opressão, o interesse pela teoria marxista da história e a recusa a sacrificar a liberdade humana a qualquer tipo de determinismo, local ou universal. Tal como o jovem Marcuse, fortemente marcado pelo pensamento de Heidegger, Sartre procura pensar uma fundamentação fenomenológica para o marxismo e, de certo modo, esse foi o grande projecto de toda a sua vida, que se materializou em duas grandes obras filosóficas: O Ser e o Nada (1943) e a Crítica da Razão Dialéctica (1960). Sartre leu Marx muito cedo na vida e nunca escondeu a sua admiração incondicional pelos seus escritos de juventude e pelo Livro I de O Capital: a dialéctica histórica era vista por Sartre como uma hipótese fecunda para interpretar a história; o que Sartre rejeitou desde sempre foi o «materialismo dialéctico» - essa metafísica dissimulada num positivismo, que, na sua perspectiva, exposta no ensaio Materialismo e Revolução (1946), mais não é do que uma ideologia congelada, absolutamente avessa ao autêntico movimento dialéctico do marxismo: Como é que a matéria poderia engendrar a ideia de matéria? O materialismo é, para Sartre, «a subjectividade dos que têm vergonha da sua subjectividade». Aprovo - em termos gerais - a crítica que Georg Lukács fez do existencialismo de Sartre, completamente distinto do de Jaspers e do de Heidegger, mas vejo a questão do "terceiro partido" e da "terceira via" numa outra perspectiva. Quando publicou o ensaio Os Comunistas e a Paz, Sartre tornou-se um «companheiro de viagem» do Partido Comunista Francês, rompendo com Merleau-Ponty e travando uma polémica com Claude Lefort. A aproximação ao PCF mostra que Sartre optou claramente pelo socialismo, vendo nele a verdadeira aspiração da humanidade, mas esta aproximação política - meramente conjuntural - não implica que ele tenha escolhido o materialismo metafísico. Sartre é um homem de Esquerda que lutou contra o fascismo e a opressão: o seu ódio pelo capitalismo é uma constante que anima todas as suas tomadas de posição. Embora reconheça a superioridade intelectual e política de Sartre, Lukács censura-lhe - com razão - a opção pelo existencialismo - reduzido na Crítica da Razão Dialéctica a uma mera ideologia destinada a inserir-se no quadro mais amplo do marxismo, a «insuperável filosofia do nosso tempo» - como a terceira via que supera o eterno conflito entre o idealismo e o materialismo: o existencialismo não é, de facto, a terceira via, até porque está organicamente ligado ao idealismo subjectivo. Porém, Sartre também tem razão quando procura separar a questão do terceiro partido da questão da terceira via, rejeitando as identificações que Lukács opera entre capitalismo e idealismo e entre socialismo e materialismo, mediante a alegação de que o socialismo é incompatível com uma filosofia materialista, na medida em que «o socialismo propõe como fim um humanismo que o materialismo torna inconcebível»: «Idealismo e materialismo fazem desvanecer igualmente o real, um porque suprime a coisa, o outro porque suprime a subjectividade. /Um ser contingente, injustificável, mas livre, inteiramente mergulhado numa sociedade que o oprime, mas capaz de ultrapassar essa sociedade pelos seus esforços para a modificar, eis o que reclama ser o homem revolucionário. O idealismo mistifica-o por o ligar a direitos e valores já dados; esconde-lhe o seu poder para inventar os seus próprios caminhos. Mas o materialismo mistifica-o também, ao roubar-lhe a sua liberdade. A filosofia revolucionária deve ser uma filosofia da transcendência» (Sartre). Paradoxalmente, se abstrairmos o contexto político da época, levando em conta que - mais tarde - o materialismo soviético acabou por abafar o projecto revolucionário, Lukács e Sartre estão muito próximos: a terceira via - além do idealismo e do materialismo - é a dialéctica, entendida como «o pensamento dos oprimidos enquanto se revoltam em conjunto contra a opressão» (Sartre) e os opressores - a classe dirigente - que reivindicam perversamente para toda a sua classe o direito divino, fazendo dos oprimidos - os homens de dever divino - a classe que nasceu para servir os supostos homens de direito divino.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Pensamento Conservador e Inquisição


O pensamento conservador de matriz cristã é terrorismo inquisitorial que, no caso de ter uma oportunidade, elimina fisicamente todos aqueles que amam a liberdade e o pensamento. A Inquisição Romana condenou à morte na fogueira Giordano Bruno (1548-1600), acusando-o de ser herético. Quando menciona Espinosa, Goethe está a fazer alusão a Giordano Bruno: a sua substância é vista com os olhos ébrios do mundo de Bruno, cujo fogo ilumina a interpretação que apresenta de Espinosa. O panteísmo bruniano - a sua heresia - é, como observou Schopenhauer, «a forma mais cordial de abdicar de Deus». Porém, antes de o ter queimado na fogueira, o Santo Ofício submeteu-o a terríveis torturas e maus tratos durante os seus últimos oito anos de vida. A peripécia da prisão de Bruno é verdadeiramente macabra: Com a desculpa de desejar aprender a arte da memória, Giovanni Mocenigo conseguiu atrair Giordano Bruno - que vivia em Frankfurt - até Veneza. Depois de o ter trancado num quarto, Mocenigo chamou os carrascos do Santo Ofício para o prenderem. Preso no San Castello no dia 23 de Maio de 1592, Bruno foi torturado durante oito anos consecutivos até ser finalmente queimado na fogueira no Campo de Fiori no dia 17 de Fevereiro de 1600. A morte bárbara e cruel de Giordano Bruno irá ajudar a Filosofia a reconquistar a sua independência em relação à religião em geral e ao cristianismo em particular. O Renascimento situa-se já no terreno dessa luta pela autonomia na passagem histórica do mundo fechado para o universo infinito, da ordem feudal para a sociedade capitalista, do mundo da intolerância para a democracia: a Filosofia recusa ser escrava de uma teologia obscurantista, intolerante e criminosa. O que caracteriza a Filosofia enquanto forma de consciência esclarecida é precisamente a sua luta contra as tradições dogmáticas das sociedades fechadas. Tendo nascido livre e crítica na cidade dos homens livres, a Filosofia quer continuar a ser livre e crítica, purificando-se do nefasto contágio cristão. O cristianismo é pensamento arcaico, bárbaro e primitivo que emergiu num outro território. O nascimento da Filosofia precede o cristianismo e não tem nada a ver com a ideologia das suas seitas primitivas. Filosofia e cristianismo são geneticamente fenómenos autónomos e, em termos cognitivos, divergentes e antagónicos: o universo de Platão e o universo de Jesus Cristo são completamente distintos e a distância que os separa é a clivagem qualitativa que existe entre o pensamento esclarecido e o pensamento primitivo. Werner Jaeger defende que o pensamento cosmológico dos gregos teve um efeito directo sobre a sua maneira de conceber o que chamaram - num sentido novo - "Deus" ou "o divino", mas esta "teologia natural" fundada na compreensão racional da própria natureza da realidade não tem nada a ver com a teologia cristã que foi posteriormente elaborada. Se a ideia de teologia é uma criação especificamente grega, como afirma Jaeger, então a cópula que ocorreu mais tarde entre o pensamento grego e o cristianismo deve ser vista como uma helenização do cristianismo: a teologia significa a aproximação a Deus ou aos deuses por meio do logos, a grande descoberta grega. O cristianismo apropria-se do logos grego para se tornar civilizado: o cristianismo civilizado é o cristianismo helenizado. Sem esta articulação teórica que o eleva ao domínio da teo-logia, o cristianismo seria mais uma religião ou uma dispersão de seitas fundamentalistas tão bárbaras como as suas congéneres islâmicas: a Inquisição e a homofobia mostram a todos o bárbaro que há em cada católico ou cristão. A Filosofia despreza o mundo mesquinho e sujo dos conservadores cristãos que assassinaram o divino e soube lutar contra eles, minando o seu «pensamento» e difundindo as suas próprias sementes: um filósofo iniciado não precisa do cristianismo para recolher as sementes, cuidar delas e deixá-las germinar. A autonomia absoluta da Filosofia sempre esteve garantida, mesmo nos tempos sombrios em que a Igreja Católica perseguia o pensamento superior e queimava os seus representantes. A flor da complexidade da civilização ocidental é a Filosofia e ela não tem adversários à sua altura. Só muito recentemente alguns teólogos - eles próprios agentes filosóficos infiltrados na organização feudal - descobriram a presença da filosofia grega no cristianismo, mas já era demasiado tarde para corrigir o destino: ou se convertem à Dialéctica da Libertação ou regressam às suas misérias bárbaras, num mundo que já não as tolera, porque o cristianismo foi completamente esvaziado pela filosofia moderna desde Descartes e Espinosa até Hegel e Marx, passando por Kant. Voegelin usa o termo gnosticismo para designar todo o caminho percorrido pacientemente pelo pensamento filosófico para matar a barbaridade cristã, mas, como é um mero conservador, isto é, um zombie que não pensa, não se apercebeu que, invocando o divino Platão, dava um tiro no seu próprio coração: a Filosofia não nega "o divino"; o que a Filosofia não suporta é o cristianismo bárbaro e a sua revelação dogmática, como o testemunha a própria gnose. Até mesmo Santo Agostinho, Scoto de Erígena, Anselmo, Abelardo, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Rogério Bacon, Duns Escoto, Guilherme Ockham e Nicolau de Cusa, ajudaram-nos a destruir o cristianismo bárbaro: o homem conservador - essa terrível criatura diabólica da Idade Média - é um louco que vagueia sozinho num mundo que não o suporta e não deseja a sua companhia. O conservadorismo cristão tornou-se desagradável - e anacrónico - por estar fora de prazo há muito tempo: cheira mal, cheira a putrefacção.
Em Portugal, a Inquisição foi introduzida em 1536 e extinta em 1821. António José Saraiva acompanha de perto a perspectiva de H.C. Lea e de J.C. Baroja quando destaca a Inquisição portuguesa e espanhola como um caso à parte dentro da história geral da Inquisição, definindo esta particularidade a partir da qualidade dos réus que perseguia: os chamados cristãos-novos ou marranos ou, simplesmente, os judeus. A relação estreita entre o poder estatal e o poder inquisitorial na Península Ibérica e a perseguição organizada e criminosa dos judeus permitem vislumbrar a afinidade estrutural entre a Inquisição e o Nazismo, que o silêncio e a cumplicidade da hierarquia eclesial católica perante o Holocausto testemunham e confirmam. O Nazismo é, no século XX, a versão tecnológica e burocrática da velha Inquisição Católica. Porém, António José Saraiva - pouco versado na teoria crítica - segue um outro caminho que deixa escapar a referida afinidade e, sobretudo, o papel reaccionário desempenhado pela Inquisição em Portugal: 285 anos de organização centralizada e estável do poder inquisitorial e político marcaram profundamente a História de Portugal, bloqueando e adiando indefinidamente o seu desenvolvimento económico, político, social e cultural. Antero de Quental identificou correctamente a causa estrutural do atraso dos povos ibéricos: o domínio da Igreja Católica. A aliança negra entre o poder inquisitorial e o poder político português expulsou os judeus, impediu a Reforma e bloqueou fatalmente o surgimento do capitalismo em Portugal. A tese que associa o desenvolvimento capitalista dos países do Norte da Europa e a conquista de vida independente como resultado da Reforma Protestante foi elaborada por Max Weber, Troeltsch e Sombart, em resposta ao debate iniciado na Alemanha por Marx, e retomada posteriormente por R.H. Tawney. Instalada no Sul da Europa, a Igreja Católica criou uma clivagem de desenvolvimento no mundo ocidental: os países do Norte que fizeram a Reforma desenvolveram-se, libertaram-se e democratizaram-se, enquanto os países do Sul ficaram privados do desenvolvimento, do progresso, da liberdade e da democracia, até serem eclipsados pelo fascismo mediterrânico, a variante do século XX da aliança negra entre poder político e o poder religioso de cariz católico. Ser católico significa literalmente ser atrasado, tradicionalista, feudal, anti-progressista, anti-revolucionário, antiliberal, reaccionário e homófobo: nos lugares do mundo onde a Igreja Católica predomina, como sucede na América Latina, não há desenvolvimento, progresso e liberdade, ou, nas palavras de Montesquieu, «piedade, comércio e liberdade». A Reforma influenciou a perspectiva dos homens face à sociedade, sendo por sua vez influenciada pelas mudanças económicas e sociais que se operaram nos séculos XVI e XVII: a economia deixa de ser um ramo da ética e a ética um ramo da teologia, passando a ser províncias paralelas e independentes, governadas por leis próprias, julgadas segundo diversos padrões e submetidas a diversas autoridades. A Reforma ajudou a quebrar a sua integração num único esquema maior orquestrado pela Igreja Católica. Na luta feroz contra a hegemonia da Igreja Católica encontrou o Ocidente a sua via do progresso material e espiritual: o actual conservadorismo é, por natureza, uma força regressiva e bárbara que anseia pelo regresso da unidade totalitária da velha Cristandade, aquela ordem feudal que amordaçou e oprimiu os nossos antepassados, dando-lhes na terra o sofrimento e prometendo-lhes no além a salvação da alma.
Anexo: Em Portugal, a cidade do Porto - a cidade de Almeida Garrett e de Júlio Dinis - enfrentou desde cedo todas as forças obscurantistas e tradicionalistas, lutando contra o poder dos Bispos e dando protecção aos judeus portugueses. Embora tenha nascido em Lisboa, Alexandre Herculano - deputado eleito pelo Porto em 1840 - captou a fibra única e matricial da cidade do Porto, chamando-lhe o berço da monarquia, «porque dela Portugal tirou o nome». A história do Porto relatada por Herculano na História de Portugal, na História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal e nos Opúsculos, não é uma história conservadora; pelo contrário, é uma história de luta contra o conservadorismo. O Porto já era, no período medieval, um burgo próspero e rico, vocacionado para o comércio, que soube acompanhar ao longo da sua história as grandes mudanças europeias: a industrialização, o liberalismo, o socialismo e a república. Convém lembrar o carácter revolucionário do Porto - a pátria dentro da pátria - para exorcizar o marasmo em que se encontra neste momento.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 13 de abril de 2010

Prós e Contras: O Resultado das Reformas da Saúde

O Debate Prós e Contras de hoje (12 de Abril) foi dedicado ao resultado das reformas da saúde implementadas pela governação socialista, tendo sido desencadeado pela manifestação das populações de Valença que usaram bandeiras espanholas para protestar contra o fechamento parcial do seu SAP: um médico 24 h/dia. Em Valença, este serviço de saúde funcionava 24 horas por dia e, com esta reforma que criou a rede de serviço de urgência, dotando-a dos meios tecnológicos adequados, como disse Manuel Pizarro (Secretário da Saúde), a consulta aberta passa a funcionar das 8 horas da manhã até às 24 horas da noite, fechando até reiniciar novamente às oito horas do dia seguinte. Aparentemente, o protesto da população foi dirigido contra o seu fechamento durante a madrugada, mas já quase no final do debate o seu autarca - Jorge Mendes - acabou por afirmar que o problema era outro: o serviço não funciona bem durante o período em que está aberto. Afinal, o problema de Valença poderia ter sido evitado se tivesse havido um diálogo franco e esclarecedor entre o Ministério da Saúde e a autarquia. O que a população de Valença quer é médico - a consulta aberta a funcionar bem durante o seu novo horário - e ambulâncias bem apetrechadas tecnologicamente que possam levar os casos mais preocupantes para os serviços de urgência de Monção e de Viana do Castelo, - e não médico sem ambulâncias, como disse o líder da manifestação popular (Carlos Natal), que, além de ter incentivado o uso das bandeiras espanholas, induziu os populares a usar os Cartões de Saúde Europa na cidade espanhola vizinha - Tui, cujas instalações de saúde não estão bem apetrechadas, provavelmente sem sala de Radiologia. Outros autarcas presentes da Maia (Porto), de Santa Maria da Feira (Aveiro) e de Anadia (Coimbra), o último dos quais se fartou de protestar contra o anterior Ministro da Saúde num outro programa de Fátima Campos Ferreira, chegaram a um acordo com o governo e estão satisfeitos com os resultados das reformas implementadas e com a melhoria dos serviços de cuidados primários de saúde.
A nossa história recente - a história de Portugal - foi marcada por um terrível e fatídico acontecimento, cujos efeitos nefastos estamos a sofrer na carne e no espírito: a década cavaquista que consolidou em Portugal uma ordem ultra-burocratizada e economicista, cujos gestores-executivos - os nossos colarinhos-brancos corruptos - comungam de uma fé tecnocrática na sua própria capacidade de fazer o sistema funcionar, desde que os cidadãos permaneçam quietos, ignorantes e resignados, sem interferir com o mecanismo e sem abandonar o domínio da esfera doméstica. A imaginação política foi sistematicamente liquidada e subordinada à economia, em nome do princípio neoliberal das privatizações: o sistema de ensino e o sistema de saúde começaram a ser cobiçados pelo sector privado - e pelos seus lacaios políticos - como eventuais fontes de lucro imediato e de enriquecimento privado. Em vez de melhorar e adaptar o sistema nacional de saúde e o sistema de ensino às novas necessidades sociais, optou-se pela sua destruição: privatizá-los e, deste modo, impedir que a maioria dos cidadãos portugueses tenha acesso aos cuidados de saúde e à educação. A fé tecnocrática dos cavaquistas dispensa cidadãos qualificados e bem informados: o que ela precisa para fazer o mecanismo funcionar é de uma massa resignada, que obedeça às ordens dos burocratas do sistema e se submeta aos seus caprichos privados e aos seus estudos administrativos. O universo cavaquista é um universo kafkiano, que procura legitimar a sua dominação total com estudos ditos científicos. Porém, os clones cavaquistas não sabem o que é a ciência: aquilo a que chamam estudos científicos - os célebres dossiers ou processos de mortificação - são manipulações que visam adaptar e moldar a realidade aos seus próprios interesses privados e à lógica de dominação do sistema de corrupção vigente que os protege da miséria a que condenam os portugueses. A preocupação fundamental desses estudos não é a qualidade da saúde ou da educação dos portugueses, mas sim a sua rentabilização. De certo modo, José Manuel Silva captou o espírito de manipulação dos estudos que justificam estas reformas da saúde quando denunciou a questão financeira que os orienta ou mesmo as suas falhas teóricas, mas não foi consequente: os estudos administrativos são estudos manipuladores que violam a realidade para a moldar em função de interesses privados. Em nome da verdadeira ciência, precisamos denunciar a credibilidade destes estudos que querem privar-nos da saúde e da educação: lucrar com o sofrimento e a ignorância dos portugueses é um crime. A privatização da saúde e do ensino é crime num país dominado pela miséria e pela pobreza. Quando votaram no PS nas duas últimas eleições legislativas, os portugueses fizeram-no na esperança de que o socratismo não fosse uma mera variante do cavaquismo.
Fátima Campos Ferreira disse ter escolhido a dedo os opositores, mas na verdade tanto os opositores - José Manuel Silva, António Rodrigues e Maria dos Prazeres - como os defensores - Manuel Pizarro, Luís Pisco e António Marques - das reformas da saúde são vítimas - não inocentes, é certo, - da pseudo-objectividade destes estudos: o facto de haver protestos de rua põe em causa essa objectividade, isto é, o carácter intersubjectivo desses estudos. A ciência que surgiu de uma luta contra a autoridade da Igreja Católica tornou-se, neste tempo indigente, ela própria, uma autoridade ideológica que rejeita e liquida a oposição. O debate terminou com a apologia da reforma dos cuidados primários de saúde: a fé tecnocrática une opositores e defensores em torno de um consenso científico - ou tecnocrático? - que mina a qualidade da democracia portuguesa. Porém, o maior pecado destes estudos administrativos não reside tanto no facto de entronizar a ciência como autoridade pardacenta, mas sobretudo na ausência de uma Filosofia da Saúde e dos cuidados de saúde. Infelizmente, não temos uma Filosofia Médica capaz de ajudar a elaborar um projecto de saúde (sobre iatrofilosofia veja aqui e aqui): os estudos de Antropologia Médica revelam que devemos levar em conta as perspectivas emic dos utentes dos serviços médicos, o que não ocorreu neste caso de Valença. (Maria dos Prazeres referiu a noção emic de urgência dos doentes, relatando o caso de um paciente que considerava a sua dor no pé urgente, porque o seu pai tinha sofrido uma amputação do membro inferior.) A burocracia pesada do Ministério da Saúde não soube dialogar com os utentes dos serviços médicos e justificar a racionalidade das reformas em curso: a filosofia que preside às reformas da saúde não foi apresentada, a menos que a identifiquem com estatísticas obtidas de modo parcial. Sem a elucidação dessa filosofia, não podemos avaliar os resultados das reformas da saúde. Aliás, a controvérsia em torno dos serviços de proximidade e dos serviços de urgência revela o carácter filosófico da noção de saúde. Entretanto, o povo tem todo o direito a protestar contra o fechamento de serviços de proximidade, usando bandeiras espanholas, cartões de saúde Europa ou - o que seria mais racional e mais produtivo - gritos de independência. O sistema imunológico das populações do Norte começa a combater o invasor cavaquista que fez do Norte de Portugal uma das regiões mais pobres da Europa: só os tolos votam no invasor alienígena que os oprime e os condena à pobreza e à doença sem assistência médica de proximidade.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Notícia: A Revista Desenredos e Mário de Sá-Carneiro

A Revista brasileira Desenredos - uma revista de cultura e de literatura -, dirigida por Wanderson Lima - autor deste blogue, publicou neste seu último número (Ano II, nº. 5, Abril/Maio/Junho 2010) o meu artigo sobre Mário de Sá-Carneiro. O ensaio intitula-se «Mário de Sá-Carneiro: Poesia e Jogo de Identidades». Na elaboração desse estudo, levei em conta fundamentalmente a poesia de Mário de Sá-Carneiro, embora tivesse em mente a sua Correspondência e, sobretudo, a sua narrativa A Confissão a Lúcio. Tudo mentalmente associado permitiu-me elucidar melhor o jogo de identidades que descubro na poesia de Mário de Sá-Carneiro: uma identidade falsa - a heterossexualidade, uma identidade subjectivamente real - a homossexualidade, e um desejo transexual - ser mulher, que ele partilhava com Fernando Pessoa. E, de modo mais mediatizado, a imagem que um homem insatisfeito consigo mesmo e com a sua condição masculina, socialmente atribuída, numa «época de total e perfeita iniquidade» (Fichte) - o tempo da homofobia militante, faz do sexo oposto, isto é, da mulher. Porém, o objectivo deste post não é justificar o meu estudo, mas sim elogiar a revista Desenredos, dirigida de modo superior pelo meu amigo Wanderson Lima, e aconselhar vivamente a sua leitura. A Notícia não é o meu estudo, a notícia é a própria revista Desenredos. E nessa notícia está inscrito o meu agradecimento. (Bibliografia: Sá-Carneiro, Mário de (2001). Poemas Completos. Lisboa: Assírio & Alvim. Além disso, usei as Obras Completas de Sá-Carneiro editadas pela Editorial Ática.)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A Redescoberta de Georg Lukács (2)

1949: O Realismo Russo na Literatura Mundial, 2 vols.. O primeiro volume analisa o realismo crítico, enquanto o segundo aborda o realismo socialista, expressão forjada por Gorki e oficializada por Estaline. Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse procuraram num momento de má-fé operar uma identificação entre a estética de Lukács e o realismo socialista, que esta obra desmente cabalmente: apesar de sofrer as pressões dos seus anfitriões russos, sobretudo durante o seu exílio em Moscovo, Lukács nunca prestou grande atenção às realizações literárias do chamado realismo soviético. A sua atenção deteve-se na grande linhagem dos séculos XVIII e XIX da poesia e da ficção europeias, sobretudo da Europa Central, em Goethe e Balzac, em Walter Scott e Flaubert, em Stendhal e Heine. Os seus heróis russos são Pushkin e Tolstoi e, no âmbito do realismo socialista, Máximo Gorki. O realismo é uma forma de arte crítica e progressista, na medida em que, enfrentando a realidade tal como é com as suas representações ideológicas e idealizadas, define a verdade contra a sua ocultação e a sua falsificação. Neste sentido, o realismo revela o ideal da liberdade humana na sua negação e traição efectivas, preservando a transcendência imanente sem a qual a arte é liquidada. Ora, o realismo soviético não se conforma a este padrão normativo, não porque tenta instrumentalizar as formas artísticas, mas porque aceita a realidade social estabelecida - o chamado socialismo soviético - como estrutura final do conteúdo artístico, sem procurar transcendê-la, ajustando-se ao modelo de um Estado repressivo e, o que é pior, abandonando o antagonismo entre a essência do homem e a sua existência, em torno do qual gravita a arte desde que se separou do sagrado. O realismo soviético é, pois, apologético e ideológico: apresenta a realidade estabelecida como se ela fosse já a realização plena da liberdade final. O realismo crítico preconizado por Lukács não é compatível com o realismo soviético.
1949: Thomas Mann. Entre Thomas Mann e Georg Lukács houve sempre uma admiração recíproca. Para Mann, Lukács era o mais importante crítico literário do seu tempo, e, para Lukács, Mann era, sem dúvida, um dos verdadeiros realistas dos tempos modernos, ao lado de Gorki, Gadsworthy, Roger Martin du Gard, Dickens, Tolstoi, Heinrich Mann e Romain Rolland. O idílio intelectual com Thomas Mann inicia-se quando Lukács ainda era aluno de Max Weber e de Georg Simmel: o que o conduziu a Mann foi a sua inclinação pelo anticapitalismo romântico e, portanto, a procura de um indício artístico de insatisfação com o estilo de vida burguês, como já vimos a propósito da Teoria do Romance. Os seus escritos de juventude tematizam o tema célebre da novela de Mann - a relação entre a arte e a vida. A relação estreita e solidária de Lukács com Mann só foi assombrada por pouco tempo pela atitude patriótica que o escritor alemão assumiu durante a guerra de 1914-18. No grande romance de Mann, A Montanha Mágica (1924), Lukács aparece vestindo a pele do jesuíta terrorista Naphta, personagem sinistra que combina a fé na Igreja Católica com a crença na revolução proletária. Esta referência a Lukács não é lisonjeira, mas revela a ironia romântica de Mann que não seduzia muito o seu crítico literário: Mann é, para o autor do ensaio «Em Busca do Burguês» (1945), o último grande representante da «classe média» - Bürgertum - e da cultura clássica alemãs.
1951: Realistas Alemães do Século XIX. Em vez de focar o conteúdo desta obra, prefiro chamar a atenção para "O Debate sobre o Expressionismo: Documentos para uma concepção marxista do realismo" (Schmitt, Hans-Jürgen, 1973). No Debate da revista Das Wort em 1937-1938, merecem ser destacadas as intervenções de três grandes figuras da filosofia marxista: Georg Lukács, Ernst Bloch e Bertolt Brecht. A controvérsia entre Lukács e Bloch ajuda a esclarecer o que estava em causa neste Debate que apaixonou os intelectuais durante as décadas de vinte e de trinta do século XX: «O que se encontra em discussão não é, pois, o clássico contra o moderno; o que se pretende saber é quais são os escritores, quais as correntes literárias, que representam o progresso na literatura actual. O que está em causa é o realismo» (Lukács). Lukács retoma de Hegel o confronto entre arte clássica e arte romântica, transformando-o no contraste entre arte realista - arte orgânica - e arte vanguardista, vendo o ponto máximo de desenvolvimento da arte no passado, não tanto na arte grega, mas sobretudo nas grandes novelas realistas de Goethe, Balzac e Stendhal, sem rejeitar a possibilidade dessa arte ser recuperada no presente. Com base na tradição iniciada por Walter Scott, que encontra em Thomas Mann o seu maior expoente no século XX, Lukács defende que a obra de arte surge numa determinada sociedade, sendo o seu espelho ou reflexo: o espelhamento da sociedade só ocorre quando a obra de arte realista apresenta no seu mundo próprio a totalidade dialéctica das mediações, contradições e conexões que definem essa sociedade. As obras dos grandes realistas procuram articular a totalidade mediada, compreendendo-a tal como é real e objectivamente constituída, sem ficar prisioneiras daquilo que aparece imediatamente. Deste modo, a partir da exposição do contexto social objectivo, estas obras conseguem rasgar os véus ideológicos, fazendo surgir a diferença entre o modo como a sociedade efectivamente funciona (essência) e o modo como ela aparece na sua imediatidade (aparência). Ora, o expressionismo deixa escapar a essência da totalidade que medeia os momentos de acção, limitando-se a apresentar fragmentos da experiência sem mediações. O que separa o realismo do expressionismo é a sua capacidade de compreender a sociedade como uma totalidade, explicitando a relação dialéctica entre o particular e a totalidade de que faz parte. Ao abdicar da elaboração de uma visão do mundo convincente e racional, o expressionismo não só rompe com a relação intrínseca entre a essência e a aparência que permite compreender o particular nas mediações que o constituem, como também desvincula a subjectividade do contexto social em que se constitui e se forma.
Embora pretenda ser livre de influências burguesas, o programa de regeneração do homem dos expressionistas é, segundo Lukács, uma forma puramente abstracta de humanismo pequeno-burguês: o seu grito "Der Mensch" torna evidente a debilidade da sua posição perante a realidade social estabelecida que procura expor e julgar. A desvinculação dos fragmentos da experiência da totalidade social converte a realidade num caos indecifrável: as artes de vanguarda abdicam da razão dialéctica e rompem com a herança progressista da burguesia, sendo seduzidas pelo espiritualismo - no caso de Barbach e Kandinsky - ou pela nova objectividade - no caso de George Grosz e John Heartfield. A realidade convertida em caos indecifrável alimenta as suas visões apocalípticas: após ter operado a abstração da sociedade capitalista, o expressionismo troca o projecto de mudança social qualitativa pela tentativa desesperada de superar o caos. Deste modo, a crítica de Esquerda da sociedade capitalista transforma-se no seu oposto: a crítica de Direita dos valores burgueses que ajudou o fascismo a conquistar a sua base de massas. Para Lukács, a vanguarda é mais um sintoma da crise que urge superar do que a sua cura: a abstração expressionista opõe-se ao uso realista da abstração das categorias, na medida em que afasta a sociedade e impede que a arte a espelhe. O realismo abstrai indivíduos da vida quotidiana para criar as suas personagens, mas a ênfase que lhes é dada converte-os em personagens atípicas. Lukács foi buscar a teoria dos tipos aos grandes românticos, em especial a Schelling no seu período de idealismo objectivo e a A.W. Schlegel: o universal concreto de Hegel permite-lhe ver o tipo como uma representação do geral no e através do individual e do histórico; as personagens representativas - os tipos - possuem significação universal, na medida em que realizam uma possibilidade histórica da natureza humana. Mas, quando são inseridas novamente no meio donde foram abstraídas, as personagens reconquistam o elemento de tipicidade sem deixar de ser atípicas: a abstração criativa inicial - a formação criativa das conexões da realidade - é suprimida pela abstração ideológica - o ocultamento artístico dessas conexões trabalhadas em termos abstractos. Ora, na perspectiva de Lukács, a contextualização do particular valida a abstração inicial e a utilização da ficção para expor a verdade: a abstração expressionista produz ilusão, porque, ao não distinguir a aparência da essência, reproduz a ideologia que diz criticar, enquanto a supressão realista da abstração inicial usa a ilusão para revelar a realidade objectiva velada pela ideologia. O realismo destrói as ilusões das suas personagens, colocando-as frente a frente com os processos sociais em que são constituídas e formadas: as tensões que surgem na totalidade fechada - o mundo orgânico do romance - permitem ao público contemplar objectivamente as acções que ocorrem. As obras realistas são acessíveis ao vasto público popular: elas explicam as condições objectivas das relações sociais capitalistas e tornam inteligível o modo como deformam a experiência individual. O carácter popular das obras realistas críticas afasta-as das obras expressionistas que, por causa do seu subjectivismo endémico, do seu formalismo e do seu obscurantismo, não são acessíveis ao público de massas. O elogio do primeiro Soljenitsin permite a Lukács criticar certas variações do realismo socialista: a crítica realista deve ser aplicada ao «socialismo realmente existente» e ao realismo soviético que faz a sua apologia, esquecendo que a função crítica e pedagógica da arte realista precisa situar-se na tradição histórica e artística de uma determinada sociedade: a possibilidade emancipatória do presente só pode ser realizada na sua relação dialéctica com as inovações progressistas do passado. "A finir avec les chefs-d'oeuvres!" (Antonin Artaud): eis a ruptura adialéctica que o modernismo opera com todas as tradições e que o converte em oposição anárquica ao reformismo evolucionário. Para Lukács, a história é a unidade dialéctica viva da continuidade e da descontinuidade, da evolução e da revolução: ao recusar esta unidade, em nome de rupturas, abismos e catástrofes, e ao quebrar toda a relação com o passado grande e glorioso, a vanguarda artística é forçada a mistificar a realidade e a distorcer a crise histórica da sociedade burguesa. A sua oposição anárquica opõe-se à verdadeira negação da realidade estabelecida: aquela oposição protagonizada pelo realismo crítico que prepara o seu público para a revolução. Com este ensaio - "Trata-se de Realismo" (1938) -, que acabo de comentar, Lukács deu início ao Debate sobre o Expressionismo: a defesa da vanguarda foi realizada por Ernst Bloch em nome da utopia concreta, e Brecht acabou por expor o seu materialismo.
1952: Balzac e o Realismo Francês. A exaltação de Balzac e a condenação de Flaubert chocam a sensibilidade de alguns críticos literários. O que sucedeu entre Balzac e Flaubert que justifique esta «avaliação»? A derrota da revolução de 1848 que, segundo Lukács, apagou as esperanças liberais, aproximando a França da tragédia da Comuna. Balzac contempla o mundo com o ardor primitivo da conquista, enquanto Flaubert o contempla através de uma lente, mediante a qual o verniz e o artifício das palavras se tornou um fim em si. O contraste entre estes dois tipos de arte do romance reflecte uma transformação interna da sociedade capitalista: na sociedade do tempo de Balzac, a relação do homem com os objectos materiais do seu mundo era uma relação imediata. Porém, a produção em massa destruiu a imediatidade dessa relação: os acessórios e os instrumentos da vida tornaram-se demasiado complexos e impessoais para poderem ser dominados pelo homem. O escritor é isolado da realidade sensorial e repelido pela desolação inumana do mundo fabril, sendo por isso levado a procurar refúgio na sátira ou em visões românticas do passado. Destes devaneios surge a ilusão do naturalismo que Lukács atribui a Zola: a convicção de que o artista pode recapturar o sentido da realidade pela acumulação e pelo inventário de detalhes circunstanciais. Em vez de seleccionar, como faz o realismo crítico, o naturalismo de Zola enumera: a teoria do romance de Zola, o precursor do realismo socialista, conduz à morte da imaginação e à reportagem.
1953: Die Zerstörung der Vernunft (A Destruição da Razão). Este é o livre maudit de Lukács, o livro que os filósofos do chamado mundo livre queimaram, porque viram nele um tratado desprezível contra a filosofia contemporânea, em especial a filosofia irracionalista de Nietzsche, precursora ideológica do nazismo. Nesta obra, Lukács procura resolver o mistério que Thomas Mann dramatizou no Doktor Faustus: Como se desencadeou a maré negra do nazismo na alma alemã? Lukács recua as origens do desastre do III Reich até ao irracionalismo de Schelling: a história da filosofia alemã, desde Schelling até Heidegger e Jaspers, passando por Schopenhauer e Nietzsche, pela sociologia alemã do período imperialista e pelo darwinismo social, constitui-se em objecto de uma crítica radical que a vincula ao advento do nazismo. A Destruição da Razão é uma defesa da racionalidade dialéctica contra o cepticismo irracionalista que estabelece uma separação radical entre o ser e o pensar, como se a verdade do ser fosse de todo impenetrável pela razão discursiva. Contra o irracionalismo, Lukács defende que a verdade sobre o mundo é acessível à razão, desde que se recorra ao domínio seguro da dialéctica hegeliana. A defesa da razão aproxima o empreendimento de Lukács da obra de Karl Popper - A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (1943), na medida em que ambos procuram compreender o totalitarismo, fazendo a defesa do realismo epistemológico, mas uma diferença crucial separa estas duas empresas filosóficas: Karl Popper limita-se a identificar perigosa e arbitrariamente o pensamento dialéctico e o totalitarismo, deixando de lado o nazismo e o fascismo, enquanto Lukács procura explicitar e elucidar as raízes intelectuais do nazismo e as suas loucuras assassinas na Alemanha de Dürer e de Thomas Münzer, de Goethe e de Karl Marx. Em termos kantianos, o empreendimento filosófico de Lukács procura dar resposta a esta questão: Como foi possível o Holocausto? A libertação desta vergonhosa herança do irracionalismo proposta por Lukács filia A Destruição da Razão (1954) à grande tradição filosófica, que engloba Herança desta Época de Ernst Bloch (1935), Razão e Revolução de Herbert Marcuse (1941), Behemoth: A Estrutura e a Prática do Nacional-Socialismo de Franz Neumann (1944), Origens do Totalitarismo de Hannah Arendt (1951), Dialéctica do Esclarecimento de Max Horkheimer & Theodor W. Adorno (1944), O Medo à Liberdade de Erich Fromm (1941) e Psicologia de Massas do Fascismo de Wilhelm Reich (1946), bem como, mais recentemente, Modernidade e Holocausto de Zygmunt Bauman (1989). A solução de Lukács é demasiado complexa e liga-se estruturalmente à questão nacional alemã, mas o que realmente interessa reter é o seu núcleo teórico: a luta contra o obscurantismo. A principal preocupação de Lukács é efectivamente a defesa da razão dialéctica contra os seus detractores irracionalistas: os herdeiros de Schelling. Usei intencionalmente o conceito de razão dialéctica, em vez de realismo epistemológico, para evidenciar que Lukács refere a teoria leninista do conhecimento lida à luz das anotações de Lenine sobre a dialéctica de Hegel, o que lhe permitiu demarcar-se da vulgata estalinista que elimina a dialéctica juntamente com o idealismo hegeliano, e desforrar-se assim dos seus críticos estalinistas: a compreensão plena d'O Capital de Karl Marx exige a compreensão plena da lógica hegeliana (Lenine). Mas o confronto estabelecido com a visão de Karl Popper do totalitarismo permite-nos redefinir a preocupação de Lukács usando os termos popperianos contra o próprio Popper: a defesa da razão dialéctica é a defesa da sociedade aberta contra a sociedade fechada. Com esta redefinição da preocupação de Lukács, a filosofia política de Popper é completamente desmisficada: a associação monstruosa entre dialéctica e totalitarismo torna-se ideologicamente insuportável e desmentível, na medida em que o advento do totalitarismo não foi promovido pelo pensamento dialéctico, mas sim pelos herdeiros de Schelling - em especial Kierkegaard, Dostoiévski e Nietzsche - que, negando a dialéctica como instrumento para a cognição da realidade, abraçaram o idealismo subjectivo ou mesmo o intuicionismo romântico, cujo correlato artístico é o modernismo subjectivista.
1954: «Zur philosophischen Entwicklung des jungen Marx» (Sobre o Desenvolvimento Filosófico do Jovem Marx). Este ensaio deve ser lido conjuntamente com O Jovem Hegel e, seguidamente, confrontado com o estudo de Marcuse (1932) sobre as «novas fontes para a fundamentação do materialismo histórico». Ao contrário de Horkheimer e de Adorno, Lukács, Bloch e Marcuse partilham o mesmo entusiasmo pelas obras de juventude de Marx. Fiel à sua tese da continuidade dialéctica, Lukács opõe-se àqueles que distinguem entre o jovem Marx - o verdadeiro filósofo, e o Marx da maturidade - o economista e o sociólogo, defendendo a conexão orgânica do desenvolvimento intelectual de Marx. Reduzir Marx ao seu desenvolvimento juvenil significa aproximá-lo de Kierkegaard, eliminando o autêntico marxismo da maturidade, enquanto reduzir Marx às suas obras de maturidade implica a desvalorização da problemática filosófica da alienação, afastando-o da sua inscrição hegeliana: em ambos os casos trabalha-se contra o efeito de futuro do marxismo enquanto consumação de um processo milenário e enquanto resolução da crise da conjuntura presente. É curioso observar que Lukács foi acusado injustamente de ter dado alguma legitimidade ao marxismo soviético - como lhe chamou Marcuse - quando, na verdade, procurou conservar a continuidade dialéctica entre Hegel e Marx rejeitada pelo marxismo oficial: a conexão orgânica do desenvolvimento de Marx permitiu-lhe - a partir de dentro e contra o regime vigente - combater em duas frentes, no Leste contra o dogmatismo estalinista, e no Oeste contra o neopositivismo restaurador. Os Manuscritos de 1844 de Marx e a sua problemática do trabalho alienado fornecem-lhe as pistas fundamentais para empreender mais tarde a elaboração da ontologia do ser social, cujo único pecado é ter desprezado Freud como um vanguardista.
1955: O Romance Histórico. O romance histórico tem uma tradição nobre que Lukács procura elucidar, mostrando como a ficção histórica surgiu de uma crise da sensibilidade europeia operada pela Revolução Francesa e pela época napoleónica. A Fenomenologia do Espírito de Hegel foi escrita em 1806 quando os exércitos de Napoleão se aproximavam de Jena e concluída em 1807 quando a batalha de Jena selava o destino da Prússia, entronizando o herdeiro da Revolução Francesa sobre as ruínas impotentes do velho Reich alemão: um novo período da história da humanidade tinha começado e a Fenomenologia do Espírito é o seu primeiro julgamento filosófico. Com a Revolução Francesa e as guerras napoleónicas emerge na Europa um sentido da história que penetra na consciência dos homens comuns: a história tornou-se a textura da vida quotidiana. Lukács mostra como os romances de Walter Scott reagiram a esta mudança de sensibilidade, explorando seguidamente o desenvolvimento da ficção histórica na arte de Manzoni, Pushkin, Victor Hugo e Thackeray: todos eles souberam trazer o passado para a proximidade da nossa imaginação, revelando na linguagem do seu tempo as afinidades entre a história passada e a sua própria época. Para Lukács, o romance histórico soçobra quando se quebra este sentido de continuidade viva entre o passado e o presente: o escritor que deixa de compreender racionalmente as forças da história volta-se para um passado cada vez mais remoto ou exótico, em protesto contra a alienação da vida contemporânea. O declínio da concepção realista do romance histórico coincide - segundo Lukács - com a passagem do realismo para o naturalismo, exemplificada através do contraste entre a arte de Scott e a arte de Flaubert.
1956: Beiträger zur Geschichte der Ästhetik (Contribuições para a História da Estética). A maior parte das obras de Lukács que estou a comentar são colecções de ensaios escritos em datas diferentes. Desta obra destaco apenas um ensaio dedicado a «Karl Marx e Friedrich Theodor Vischer» que revela a unidade dinâmica da empresa filosófica de Lukács: a defesa de Hegel contra a dissolução da sua dialéctica na Alemanha. Vischer merece um destaque especial porque, apesar de ter sido inicialmente um esteta hegeliano, acabou por contrapor mais tarde, sob a influência de Dilthey, à dialéctica de Hegel uma teoria irracionalista do mito. Este ensaio permite a Lukács ajustar contas com toda a tendência vitalista e irracionalista da filosofia alemã, que ele próprio tinha abraçado no seu período juvenil. Isto significa que o ajuste de contas com os outros - Haym, Meinecke, Windelband, Rickert, Dilthey, Kroner, Glockner e Haering, para já não falar de Hippolyte (francês) - é um ajuste de contas com a sua anterior consciência filosófica.
1957: Prolegómenos a uma Estética Marxista. (Há tradução portuguesa com o título Introdução a uma estética marxista.) Esta obra foi projectada como um prolegomenon à estética sistemática de Lukács, mas, por causa do tratamento histórico - tanto do ponto de vista lógico como do ponto de vista estético - da particularidade como problema central da estética, acabou por ser publicada em separado como uma monografia sobre esse mesmo problema estético: «A obra de arte é algo particular, mas de um duplo ponto de vista. Por um lado, ela cria um "mundo próprio", em si mesmo concluído. Por outro lado, naturalmente, ela age num sentido análogo: assim como o carácter particular da obra agia sobre o processo criador, sobre a personalidade do criador, transformando-a, assim também, quando da sua eficácia social, ela deve influenciar do mesmo modo aquele que a recebe. Dado que - objectivamente - as individualidades das obras em si concluídas, auto-suficientes, não são mundos entre si separados definitiva e solipsisticamente, mas que remetem, pelo contrário, precisamente por esta sua autonomia, à realidade que reflectem em comum, a mais intensa eficácia exercida por um destes "mundos próprios" e particulares deve - subjectivamente - não consolidar quem o recebe na sua mera particularidade, mas ampliar os seus horizontes, colocá-lo em relações mais estreitas e ricas com a realidade» (Lukács).
1958: O Significado Actual do Realismo Crítico. Lukács repudia o modernismo - a literatura modernista, onde coloca Proust, Kafka, Joyce, Moravia, Benn e Beckett, entre outros - e o realismo socialista a favor do que chama realismo crítico, ou seja, da tradição do romance do século XIX. Este repúdio da literatura modernista deve-se ao facto dela possuir um carácter alegórico: a conexão entre a alegoria e a recusa da consciência histórica permite a Lukács denunciar a ideologia do modernismo. A hostilidade de Lukács pelo modernismo justifica-se pelo facto dessa literatura de vanguarda ser subjectivista ou, nas suas palavras, «uma fuga para fora da realidade através da abstracção»: Lukács denuncia não só o carnaval do individualismo puro dos filósofos existencialistas, como também o subjectivismo da literatura vanguardista, que, na sua perspectiva, são a expressão historicamente necessária da alienação na sociedade capitalista avançada: «O expressionismo consequente nega qualquer relação com a realidade, declara a todos os conteúdos da realidade uma guerra subjectivista» (Lukács). Lukács - tal como Adorno - sabe que os intelectuais contemporâneos se confrontam com uma ordem burocratizada, cujos gestores-executivos - os nossos colarinhos-brancos corruptos - comungam de um fé tecnocrática na sua própria capacidade de fazer o sistema funcionar, desde que os cidadãos permaneçam quietos, sem interferir com o mecanismo e sem abandonar o domínio da satisfação privada e particular. No célebre ensaio "Franz Kafka ou Thomas Mann?", Lukács volta a optar por Mann - o realista burguês, apesar de reconhecer mais tarde o grande mérito de Kafka - o modernista burguês - de ter retratado «o carácter diabólico do mundo do capitalismo moderno». No entanto, Lukács não desiste da sua crítica da vanguarda: o modernismo, nomeadamente o expressionismo e o surrealismo, conduz à destruição das formas literárias clássicas e, a longo prazo, à morte da literatura como tal, pelo simples facto de quebrar a sua relação com a herança cultural e histórica. Na ausência de realidade e de conteúdo, a literatura vanguardista impõe aos seus leitores «uma concepção estreita e subjectivista da vida, enquanto o realismo, pela riqueza de aspectos a que dá forma, responde às perguntas que o próprio leitor põe - respostas da vida a perguntas que a própria vida fez!» (Lukács). O não-mundo (Benn) elaborado abstractamente pela literatura vanguardista é um caos, isto é, um mundo completamente alienado da história e da vida real do povo: a expressão da cegueira consumada dos intelectuais burgueses, incapazes de identificar as forças históricas reais que se opõem à alienação e lutam para conseguir a transformação qualitativa da sociedade. A possibilidade de uma arte realista no tempo presente depende precisamente desta perspectiva política: a grande mensagem social da literatura reside na sua relação viva com a vida do povo - a relação que os romances de Júlio Dinis souberam cultivar em terras portuguesas quando o Porto ainda era o motor do desenvolvimento nacional.
1963: Ästhetik: Die Eigenart des Ästhetischen (Estética: A Peculiaridade do Estético, 4 vols.). Decorreram cinquenta anos entre a Estética de Heidelberg e a publicação da primeira parte da Estética de Lukács, mas esta enorme distância que as afasta no tempo não eclipsa a proximidade na abordagem e no quadro conceptual que as une, apesar da primeira estar fortemente marcada pela filosofia kantiana e pelo vitalismo. As duas obras procuram apreender a peculiaridade do estético, delimitando a esfera estética em relação à vida quotidiana - a anterior realidade vivencial - e à esfera do conhecimento científico. Além disso, ambas as obras estão próximas nas soluções propostas quando destacam a unidade ou a identidade entre sujeito e objecto: Lukács defende que as categorias da filosofia idealista encontram na arte - e não na realidade objectiva - o seu objecto apropriado de aplicação e de validade. A distinção entre trabalho e produção artística ajuda Lukács a definir a peculiaridade do estético: enquanto no trabalho a unidade de sujeito e de objecto está presente unicamente como princípio unificador do próprio processo de trabalho, na produção artística ela adquire a sua própria objectividade, tanto no próprio acto como na necessidade social que o suscita. Por outras palavras, no trabalho não há verdadeiramente unidade entre sujeito e objecto: a unidade afecta apenas as obras de arte, vistas como produtos da actividade humana que a objectivam, a conservam, a fixam e a eternizam. A teoria estética de Lukács articula-se intimamente com a experiência moderna da alienação, sem a qual não pode ser compreendida: a divisão social do trabalho tornou de tal modo impossível a realização do homem no trabalho que surgiu a necessidade de experimentar a própria existência como algo dotado de sentido e capaz de assegurar a unidade ou a reconciliação do indivíduo e do mundo. Mas, para que a arte possa assumir a unidade representada do homem e do mundo, é necessário que a religião tenha perdido, em grande medida, a sua pretensão de validez. Lukács recusa a equivalência hegeliana entre arte autónoma e religião e, para reclamar a peculiaridade do estético, converte a questão da unidade da experiência humana - que animou o pensamento ocidental durante o período de transição da sociedade feudal à sociedade burguesa - numa necessidade intemporal do estético. O conceito de fetichismo da mercadoria, aplicado por Marx a uma determinada formação social e histórica, é ampliado de modo supra-histórico por Lukács: a arte assume assim uma missão desfetichizadora, isto é, um papel de regulador ou de médico de determinadas doenças do progresso e do processo de modernização. O poder cego do irracional é fomentado quando a racionalidade se fecha às experiências que dão acesso à vida reconciliada do homem: a função da arte é neutralizar os efeitos secundários e não desejados do processo de modernização que Lukács equipara ao progresso e à humanização. Os princípios da crítica dialéctica descobertos por Lukács não foram aplicados às categorias da estética idealista, talvez devido ao facto de ter recusado compreender as artes de vanguarda como movimentos históricos que modificaram o próprio conceito de arte.
1971: Ontologia do Ser Social, antecedida por Prolegómenos à Ontologia. Duas obras monumentais que foram sistematicamente ignoradas, bem como a sua Ética que não chegou a concluir. Em vez de tentar uma exposição sistemática da ontologia do ser social, vou apresentá-la à luz da reflexão antropológica de Lukács. Apesar de ser oriundo de uma família de banqueiros judeus agraciada com um título nobiliárquico, Lukács nutriu sempre, desde a juventude, um ódio romântico pelo capitalismo, que, no seu período marxista, assume a forma de uma luta contra a coisificação do homem e a desumanização produzidas pela sociedade capitalista. Para Lukács, o proletariado era a única classe revolucionária capaz de operar a passagem da humanidade da pré-história para a história, isto é, do reino da necessidade para o reino da liberdade (Marx): o postulado utópico da ética marxista só pode realiza-se quando os homens forem capazes de recusar a manipulação e de criar uma nova totalidade social que lhes permita a realização plena de todas as suas possibilidades humanas. Mas, para que isso aconteça, é necessário impulsionar deliberada e resolutamente o processo de humanização do homem através do trabalho, da crítica dialéctica e da luta política. Lukács sabia que o futuro não estava garantido: as condições objectivas podem conduzir tanto à realização plena da humanização da humanidade como à sua máxima desumanização. A construção socialista de um futuro novo, liberto da alienação e da opressão, depende dos seres humanos e da sua capacidade de escolher entre as diversas alternativas que a realidade objectiva lhes apresenta. O homem individual é também uma totalidade e, tal como a sociedade em que se insere, encontra-se reificado e fragmentado: a sua tarefa revolucionária será restaurar a existência humana, dar a si próprio a totalidade perdida e reconstruir o ideal da humanidade do mundo clássico, de modo a operar a última e definitiva epifania do homem e a realizar em plenitude todas as suas possibilidades humanas. Dado ser a expressão da totalidade imanente, a arte autêntica desempenha um papel fundamental na restauração da existência genérica do homem total que foi mutilada e fragmentada pela sociedade de classes e na criação de uma pátria para o homem. (Fim da série de dois posts dedicada à Redescoberta de Georg Lukács.)
J Francisco Saraiva de Sousa