segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Porto Pintado

Lonely Planet: O Porto é o quarto destino favorito para 2012

Viela do Buraco
Centro Histórico da Cidade do Porto

Rua de Sant'Ana
Centro Histórico da Cidade do Porto
Senhor da Boa Fortuna
Centro Histórico da Cidade do Porto
Rua da Ancira 
& Largo de Miragaia
Centro Histórico da Cidade do Porto

Estou feliz por ter contribuído para a promoção turística, cultural e científica da Cidade do Porto. Hoje, a imagem do Porto passa pelo meu blogue CyberCultura e Democracia Online. Tornei-me o rosto visível do Porto.

domingo, 30 de outubro de 2011

Visconde de Vila-Moura e o Porto Escondido

Visconde de Vila-Moura (1877-1935)
Desenho de António Carneiro
«Paris!
«Uma grande Cidade é um atelier, onde o estranho vai tratar, esmaltar, seu ânimo.
«Para os apóstolos da Sensibilidade - um Museu de Imprevisto, onde estes vão, através de todos os perigos (nenhuma doença mais contagiosa do que a loucura do Civilizado) profundar, experimentar a subtil ciência da Alma.
«Onde mais delicada e espantosa Ciência?» (Visconde de Vila-Moura, Luz Fremente, Porto, 1924)


A investigação que estou a levar a cabo sobre os Quadros Portuenses conduziu-me até à obra do Visconde de Vila-Moura, que morreu no Porto sem ter deixado descendentes. Esperava encontrar na sua vasta obra uma imagem do Porto, uma imagem original capaz de conter, como que encerrada no seu âmago, a semente destinada a germinar posteriormente. Folheei a sua novela A Luz Fremente em busca dessa imagem-experiência originária. Sabia - como é evidente! - que encontraria aí a imagem de Paris, digna de ser confrontada com a experiência originária de Baudelaire, mas não encontrei uma imagem explícita do Porto, a não ser a da sua ausência. Afinal, quem são os apóstolos da sensibilidade? São os viajantes - ou, como diríamos hoje, os turistas - que se deslocam para lugares distantes em busca da sombra que trazem dentro de si, na tentativa desesperada de abrir novos mundos. Mas que mundos são esses que o Visconde de Vila-Moura desejava abrir? A imagem de Paris esboçada pelo Visconde de Vila-Moura é uma imagem nocturna, que toma a forma de apontamentos da noite parisiense.  A noite funciona na obra do Visconde de Vila-Moura como uma categoria estética demasiado subtil: a sombra que trazia consigo mandava-o viajar para terras descobertas - isto é, civilizadas -, onde pudesse abrir novos mundos. Os mundos a abrir tanto se encontravam fora como dentro do corpo animado pelo desejo secreto - "patologicamente sensual"! - do Visconde de Vila-Moura. O seu romance de patologia sensualNova Safo:  tragédia estranha (1912), menciona e nomeia explicitamente a sua sombra - ou o seu demónio? - pelo seu verdadeiro nome: a homossexualidade. É neste jogo subtil de sombras-desejos eróticos que se chocam na grande cidade à noite, em encontros imprevistos ou casuais, que aquilo que eu julgava estar ausente - a imagem do Porto - se torna subitamente presente. Meus amigos, se eu resolver incluir a obra do Visconde de Vila-Moura no meu projecto dos Quadros Portuenses, darei ao seu quadro portuense o título - Porto Gay, onde a imagem de Paris e a imagem do Porto se fundem numa cópula que abre ao mundo o mundo clandestino das homossexualidades femininas e masculinas.


Anexo. Duas longas citações extraídas da Nova Safo do Visconde de Vila-Moura (1912):


"Conheceis, de certo, até pelas nossas conversas, a poetisa Sapho. Muito se tem escripto sobre ella. Não ha noticias claras da sua vida e obras. Pertence, principalmente, á lenda. As suas Odes, como cerca de setenta fragmentos reunidos nas Lyrici graeci de Bergk—não são de molde a dar notas seguras acerca do que foi.
"Um facto é assente—o valor da sua extrema figura. Qual a reproducção mais legitima segundo a Arte? O Vaticano possue uma estatua de Sapho, sentada num rochedo, meditando; em Napoles ha uma pintura encontrada em Herculanum e um busto em bronze; modernamente occuparam-se della muitos auctores. Tenho reproducções dos trabalhos de Gros, Ramey, Duret, Diebolt, Clesinger, etc. Trataram em opera a tragedia de Sapho—Angier (musica de Gounod); e Salm (musica de Martini). A idéa dos seus presumidos defeitos deu ainda logar a um romance de Daudet—aliás inferior, pois que o artista trata incidentemente de Sapho em duas linhas, dando a Fanny Legrand, a heroina, aquelle nome, porque ella veste uma historia que tanto podia ser a de Sapho, como a de qualquer nevrotica, dada a volupias e violencias. O que é assente, emfim, é que a critica tem oscillado na sua maneira de entender a poetisa, sem ver nella o contraste do espirito grego num largo instincto de generalização e triumpho pelo amor exotico.
"Assim a considero e vou cantá-la.
"Para mim, Sapho foi a mulher de genio que acceitou como um facto a homosexualidade grega, o desprezo transitorio pela mulher, e tirou dahi estimulos para a sua campanha de amor, independentemente de preconceitos de sexo—fundando a sua escola para levar á civilização áttica a quota parte que lhe devia a adolescencia feminina, o mundo-feminino, em uma demonstração de vicio e genio que eram parallelos ao genio e vicio que contrastavam as maiores figuras do hellenismo.
"Ver do conflicto entre o seu valor e o desprezo pelo sexo, sentir o culto de si propria, historiar e reproduzir a hypercivilização grega e fazer dessa mulher sublime o ponto culminante, a expressão de synthese da sensualidade dum povo que aspirava ao contrôle da civilização do mundo—tal é, meus amigos, a razão do meu Poema, a concepção do livro que tenciono publicar com o titulo—Nova Sapho. Porque é uma nova Sapho, concluiu, a que espero desvendar."

‎"—Eu te digo, Edgar, ha duas maneiras de considerar a Vida:—vivê-la para o espirito, para a Arte—numa tensão firme de Belleza, e vivê-la como o commum da gente—almoçando, dormindo, trabalhando á hora, realizando num dia trabalho egual ao do dia seguinte, e talhando em vinte e quatro horas o programma, a obra de vinte e quatro ou quarenta e oito annos. Para estes não importa o amor exotico. E convenho que os prejudique se o tentarem... Mas para os outros, os da vida superior, muito longe de lhes prejudicar a obra e o destino, creio que lhes dá em Belleza o que perdem em felicidade. Não leste de certo, o que ha escripto ácerca da cultura dos homens na Grecia? Nietzche, por exemplo, affirma a supremacia do vicio; esclarece—«que as relações eroticas dos homens com os adolescentes foram, duma forma que nem nós chegamos a comprehender, a condição unica, necessaria de toda a educação viril; que todo o idealismo da força na natureza grega se baseou em taes relações; que o commercio sexual regular baixava ao passo que se ia elevando a concepção daquellas relações»."



Raul Leal escreveu Sodoma Divinizada: Leves reflexões teometafísicas sobre um artigo, reeditado em 2010, onde critica o artigo de Fernando Pessoa dedicado a António Botto. A obra do Visconde de Vila-Moura também pode ser incluída nessa literatura que "diviniza" o amor homossexual, como indicador de um elevado nível civilizacional e de uma vida superior dedicada à arte. Mas não pretendo condenar o carácter reaccionário da crítica de Raul Leal, o homófobo que fugia do seu próprio desejo de ser sodomizado por outro homem, como se esse desejo-coisa lhe fosse exterior: o que me fascinou na Nova Safo foi o facto do meu conceito de sexualidades exóticas ter sido antecipado pelo Visconde de Vila-Moura: o amor exótico enquanto amor entre pessoas do mesmo sexo. A minha inspiração foi americana, mas fico feliz por saber que um portuense já tinha utilizado a expressão amor exótico para designar as atracções eróticas entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, no universo sensual do Visconde de Vila-Moura, o exótico contrasta fortemente com o civilizado: o amor exótico emerge nos interstícios das grandes cidades civilizadas, quebrando as suas rotinas diurnas, não tendo nada a ver com atracções eróticas entre civilizados e primitivos, algures nalgum lugar dos trópicos. O Visconde de Vila-Moura rejeita normalizar a sexualidade: o Porto Boémio, o Porto sem preconceitos, tem um rosto ousado na obra do Visconde de Vila-Moura. Além do mundo normalizado, o mundo dos preconceitos, há outros mundos: o mundo feminino, o mundo masculino, ambos mundos exóticos que quebram artisticamente a rotina do mundo comum. O hetero-sexo como rotina reprodutiva que garante a reprodução social do sistema capitalista de trabalho? A expressão comércio sexual regular usada pelo Visconde de Vila-Moura para designar as relações sexuais burguesas denuncia desde logo o seu carácter mercantil. Ora, se olharmos para a definição de prostituição dada por Marx e Engels, podemos compreender o seu funcionamento nas obras do Visconde de Vila-Moura e de Baudelaire. Enfim, perante a ousadia deste projecto estético-erótico, sou obrigado a adoptar o Visconde de Vila-Moura para dar rosto ao quadro do Porto Gay.


A noção de Apóstolos da Sensibilidade do Visconde de Vila-Moura reconduz-nos à noção de Apóstolos da Arte em voga na Europa entre 1820 e 1840. Para os artistas europeus, sobretudo os românticos, a cisão que perpassava a sociedade não a dividia entre burgueses e proletários, como explica Engels no Manifesto do Partido Comunista, mas entre burgueses e artistas. O artista afirmava-se contra a burguesia através do culto ao belo: a arte pela arte foi o último gesto de defesa antiburguês dos românticos contra a irrupção da nova classe burguesa. O ódio mortal que os artistas nutriam pela burguesia não era apenas um traço de união que ligava entre si os românticos: a boémia também odiava a burguesia, facilitando - sem disso ter consciência - a estratégia da burguesia para se negar a si própria como classe social. Visconde de Vila-Moura escreveu os Boémios nesse espírito antiburguês, mas a sua boémia tem, como já vimos, uma tonalidade erótico-estética. Em Portugal, o culto do belo - inspirado no culto grego pelo corpo masculino juvenil - foi uma invenção tardia dos escritores homossexuais e de todos aqueles que os seguiam. O ódio mortal pela burguesia aproximou os românticos da aristocracia tradicional: o Visconde de Vila-Moura nada mais fez do que retomar a cisão entre burgueses e artistas, dando-lhe uma coloração erótico-estética. A Peregrina é a heroína anti-burguesa da Nova Safo: ela não procura a felicidade e a riqueza, mas sim a beleza. Walter Benjamin definiu Baudelaire como «um agente secreto - um agente da insatisfação secreta da sua classe com a sua própria dominação». O seu ódio quase sempre camuflado pelas relações capitalistas de produção levou-o - bem como a Heine - a ansiar pela revolução e pelo triunfo das classes oprimidas. O Visconde de Vila-Moura também era um agente secreto infiltrado na sociedade portuguesa, mas a revolução que tanto ansiava era a libertação dos emparedados. O que Marx e Engels disseram sobre a família burguesa no célebre Manifesto do Partido Comunista poderia ser assumido pelo Visconde de Vila-Moura, cujos mundos exóticos ansiavam pela sua libertação da prisão - a condição de emparedados - que lhes era imposta pela família burguesa e pelos seus preconceitos de sexo. Revolução sexual em vez de revolução social? Eis a novidade radical da obra do Visconde de Vila-Moura que lhe valeu o esquecimento, após ter sido acusado de divinizar a sodomia!


J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 29 de outubro de 2011

A Traição dos Intelectuais

Reitoria da Universidade do Porto
«A crítica da ideologia ou histórica liga-se à sociedade actual em nome da sociedade futura e atribui as injustiças ao princípio de que o capitalismo e a propriedade privada trazem consigo o fatalismo da exploração, do imperialismo e da guerra e traça o esboço de uma ordem totalmente nova em que o homem realizará a sua vocação». (Raymond Aron)

Em Portugal, todos temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça. Segundo Georges Lefebvre, a fome despertou os franceses para a Revolução de 1789: a fome é o mais universal de todos os instintos universais, porque é a fome que nos leva a conservar a nossa vida - o suum esse conservare de Espinosa! - e que põe os restantes instintos em movimento. Freud enganou-nos quando estabeleceu o instinto sexual como o mais primário e o mais forte de todos os instintos: nós podemos viver sem satisfazer o instinto sexual ou mesmo sem o sublimar, mas não podemos viver sem saciar a nossa fome. A fome que foi silenciada por Freud, a busca de alimentos é, conforme mostrou Ernst Bloch - o apetite comum a todas as criaturas vivas, do qual procedem os outros instintos imediatos e as tendências acompanhadas da percepção, isto é, os movimentos do sentimento e as emoções. Ora, ainda segundo Bloch, a esperança é o afecto mais importante, o modo humano do instinto de conservação. A esperança é, portanto, algo biologicamente constitutivo da existência humana e, quando é frustrada, tende a tornar-se activa como impulso de auto-expansão para diante. A fome renova-se constantemente e cresce de modo ininterrupto. Ora, quando não tem nenhuma perspectiva de pão seguro, como sucede hoje em Portugal, revolta-se e procura mudar a situação: emerge assim o interesse revolucionário que diz não ao mal-existente e que diz sim ao futuro antecipado. A privação de alimentos faz da fome uma docta fames, uma fome esclarecida e instruída que converte a auto-conservação em auto-expansão, estimulando os sonhos diurnos de uma vida melhor. A referência à teoria da docta spes de Bloch revela a actualidade da sua filosofia da esperança, ao mesmo tempo que trava o canto de triunfo neoliberal de Raymond Aron: o capitalismo não sacia a fome dos famintos. A Queda do Muro de Berlim teve diversas consequências desastrosas para o mundo e, em especial, para o Ocidente, uma das quais foi a alteração da geopolítica da fome, para usar a expressão de Josué de Castro: a fronteira da fome subiu para a Europa (Adriano Moreira) e, neste momento de crise, a fome está instalada na Europa mediterrânica. O colapso do comunismo permitiu ao capitalismo regressar triunfal e explicitamente àquilo que sempre foi: um sistema de exploração do homem pelo homem. Mas com uma agravante: a ascensão da classe dos gestores e dos economistas neoliberais fortaleceu de tal modo o capital financeiro que destruiu o tecido produtivo dos países, como se pudéssemos viver indefinidamente do cartão de crédito - da expansão do crédito - que alimentou a gula irracional dos banqueiros, dos especuladores e dos mercados financeiros. Com estas escassas indicações, subverto - invertendo-a - a tese elaborada por Aron: o ópio dos intelectuais - antes e, sobretudo, depois da Queda do Muro de Berlim - não é o marxismo mas o próprio neoliberalismo que os privou de uma perspectiva de futuro, como se acreditassem que o capitalismo fosse capaz de satisfazer uma agenda de meras reivindicações, incluindo a reivindicação dos direitos dos animais, no quadro da própria sociedade capitalista. Os intelectuais de esquerda viveram alienados até ao estalar da crise de 2008: eles limitaram-se a reivindicar direitos sem questionar o próprio capitalismo. A crise de 2008 apanhou-os completamente nus e desprevenidos: o capitalismo mundial ameaça privá-los de todos os direitos adquiridos e eles não têm alternativas, porque, abismados na sua alucinação mágica, deixaram de exercer a crítica da ideologia. Os intelectuais alucinados traíram a humanidade e o mundo: eles são co-responsáveis pela miséria presente. Entregue a si mesmo e à sua própria ideologia da auto-regulação do mercado, o capitalismo gera ininterruptamente pobreza e miséria. Não é possível pensar um mundo novo fora do marxismo adulto: estamos, portanto, condenados a ser de algum modo marxistas, no sentido de estarmos empenhados na tarefa de pensar alternativas ao capitalismo, o grande mal-existente que conduz a aventura humana à catástrofe. A Grande Esperança (Jean Fourastié) depositada na capacidade do capitalismo para abolir a pobreza, através do desenvolvimento tecnológico e do aumento da produtividade, converteu-se, no nosso tempo mental e cognitivamente indigente, em pesadelo: o capitalismo não pode abolir aquilo que ele próprio gera, a desigualdade social, a pobreza, a miséria e a guerra. As expressões capitalismo da esperança ou o seu equivalente mais recente - capitalismo da felicidade, este monstro ideológico pensado pela economia comportamental, são oxímoros: onde há capitalismo não há esperança ou felicidade possível; o capitalismo é o mal-existente, contra o qual devemos lutar incondicionalmente. A abundância dos economistas burgueses é hoje pobreza, não só material mas também espiritual, porque a condição operária - o trabalho - foi combatida em nome de uma falsa ociosidade que privou os homens do seu próprio espírito: a intervenção dos economistas na esfera política foi e é fatal para o espírito humano. Doravante, o poder político esclarecido deve livrar-nos das manipulações e das engenharias financeiras dos economistas e dos gestores: a grande política deve afastar a economia do poder, de modo a romper com a política-gestão


Temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça. O título deste texto introdutório a uma temática que me preocupa há muito tempo é tributário do título de uma obra de Julien Benda: La Trahison des Clercs. Mas o seu motivo foi-lhe dado pela obra de Raymond Aron, L'Opium des Intellectuels. Com efeito, estou mais preocupado com a traição dos intelectuais do que com a traição dos clérigos. Por vezes, tenho proposto esquecer activamente as obras produzidas pelos intelectuais nas últimas três ou quatro décadas, mas o esquecimento não nos livra da responsabilidade: o melhor método é confrontá-los com o mundo que ajudaram a construir com o seu silêncio em relação ao próprio capitalismo. Os intelectuais de esquerda destas últimas décadas escutaram mais a voz de Aron do que a voz de Marx: a reformulação da agenda política de esquerda que operaram capitula perante o capitalismo, legitimando a ambição global da agenda neoliberal que nos mergulhou nesta crise profunda. Sem disso terem consciência, os intelectuais funcionaram como lacaios ideológicos da ambição desmesurada dos economistas neoliberais e dos gestores. É possível atribuir esta relevância da economia na sociedade ao próprio Marx, mas o seu posicionamento político revolucionário afasta-o da responsabilidade de ter fornecido uma caução - antes do tempo - à intervenção desastrosa dos economistas na esfera da política. A agenda política reivindicativa desta esquerda decadente que rompeu com a sua tradição histórica e teórica é que lhes deu - aos economistas neoliberais - todos os motivos para gerir a economia, a sociedade, a cultura e o mundo da vida, de modo a satisfazer reivindicações que carecem de sentido: a esquerda reivindicativa afundou-se na sua própria masturbação mental, sendo tão culpada como a direita pela actual situação de miséria. A situação ideológica da esquerda decadente é hoje aporética: o capitalismo que ontem lhe satisfez grande parte das suas reivindicações é o mesmo capitalismo que hoje as quer abolir. Enfim, a esquerda está sem projecto político, incapaz de auxiliar os novos famintos nos seus movimentos de indignação. Henri Lefebvre já nos tinha alertado para esse perigo de andar nu nas praças das manifestações de protesto quando escreveu Contra os Tecnocratas: os economistas ameaçam o destino dos intelectuais. Não admira que tenham inventado Bolonha, o coveiro da universidade.


Temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça. O leitor que conhece a minha teoria apocalíptica da História pergunta-me como posso reconciliá-la com a filosofia da esperança de Ernst Bloch. Caro leitor, a fome não me afasta de Bloch, cuja fenomenologia da consciência antecipadora pode ser integrada no seio da minha antropologia fundamental do homem como ser-sem-abrigo. A única diferença que nos separa é que eu - sendo um filósofo nocturno - já não acredito na possibilidade de construir aqui na Terra uma sociedade comunista que fecharia as portas à história, sendo portanto a sua conclusão: estamos condenados a fazer história sem poder controlar os efeitos da nossa acção, na certeza de que o nosso destino derradeiro é a catástrofe. Um filósofo nocturno como eu nunca perde o bom-senso. Ao abdicar da utopia do non omnis confundar rendo-me inteiramente à Morte e à caducidade do mundo, dizendo aos meus companheiros de jornada que as mandíbulas da morte pulverizam tudo, incluindo o espírito humano. Um filósofo nocturno como eu sabe que não pode olhar para a Morte e a Caducidade a partir de um ponto extraterritorial do meu próprio núcleo existencial: a minha condição mortal não me permite exigir a ressurreição dos mortos e alimentar as almas mortais com imagens de esperança contra a morte. Somos - cada um de nós - morte adiada: a morte que cada um é não pode ser exterior a si própria; a extraterritorialidade frente à morte e à caducidade do mundo é uma perspectiva desesperada de um ser que não se suporta a si próprio e, portanto, de um ser incapaz de vencer o medo para se libertar - aqui e agora - da tirania do Outro, neste caso do Capital. A filosofia nocturna convida o homem a arriscar a sua vida, de modo a garantir alguma dignidade. Deste modo, privo a esperança da confiança: nada nos pode salvar da nossa própria morte e da catástrofe. O máximo que podemos tentar fazer é adiar tanto quanto possível o nosso final trágico: quer dizer que, antecipando a morte e a catástrofe, somos levados a agir de modo a adiá-las, recusando sacrificar a humanidade mortal para satisfazer o egoísmo de meia dúzia de carrascos mortais, os senhores das bolsas. Não havendo salvação possível, nada nos impede de matar os opressores ou, simplesmente, de nos matarmos. Há mundo e fomos lançados nele sem ter sido previamente consultados: o ser que é, deste modo violento, lançado num mundo que não escolheu pode, pelo menos, decidir a sua própria morte. O suicídio consciente é o único acto livre que nos liberta da farsa do mundo. Ou então pode decidir lutar pela construção de um mundo melhor para todos, mesmo sabendo que não há salvação para o homem e para o mundo. A solidariedade em torno da morte impede-nos de ser solidários com os exploradores e os opressores. Como dizia Marx, a violência é a parteira da História. No dia em que o homem perder o medo e aprender a viver sabendo que não tem salvação possível, nessa noite iluminada pela Lua o homem será livre para negar ser oprimido numa vida que não pertence a ninguém, nem a Deus.


Temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça, mas nem todos têm fome de conhecimento. Mas esta é já outra questão, cuja resposta exige uma clarificação da ontologia fundamental subjacente à Filosofia Nocturna. Como ainda não a quero partilhar convosco, reconduzo para o início do texto, propondo assim uma leitura em circuito fechado. Adeus companheiros de triste jornada: o anoitecer é o momento em que me fecho em mim mesmo. À meia-noite estou no máximo das minhas potências filosofantes nocturnas: Eu que sou o filósofo da funda meia-noite!


J Francisco Saraiva de Sousa  

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Uma questão do avaliador consigo mesmo ou...

Marginal do Porto
... Da actividade paranormal de mamãs-coruja

Na minha Escola, a Avaliação docente revelou a existência de uma comunidade científica, pedagógica e cultural que eu desconhecia totalmente, mas o problema será meu, que já faço parte da mobília, ficando muito feliz, pois (aqui integrado) posso aprender muito. Como disse um dia Agustina, «a cidade em que vivemos é a que pior conhecemos». As línguas da sogra (que más as há sempre) dizem que se distribuiu a excelência por todos, mas agora já sou eu a dizer: num concurso entre relatores mamãs-coruja a ver qual deles dizia melhor da sua «linda» cria. Outros colegas usaram (por outras palavras) metáforas de um banquete de leões famintos, outros (por outras) de um concurso de Cantares provincianos, em que ganham sempre os filhos da terra, outros (ainda por mais outras) de um torneio de chicos espertos, jogando ao burro.

Pesoalmente, gostaria mais de ver citado o poema de Mário Cesariny

"Pastelaria":


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.

Decerto haverá outras Escolas de excelência, como a minha, em que notas de 9,5 (num tecto de 10) fizeram cair em Bom o avaliando, o que nos deveria a todos entristecer, pois trata-se de um «professor de referência» (na minha escola, há cerca de 50 professores desta categoria ímpar, mais os outros que não tiveram aulas assistidas, entendida aquela restritivamente num jogo de pares, de mim para ti). Uma vez mais, admito que o problema seja meu, pois não acredito freudianamente na excelência da classe (como se sabe para Freud, havia três impossibilidades: a de Pai, e os outros iguais: professor e presidente, salvo erro). Acho que todos nós somos humanos e nos devemos sempre cultivar, estabelecendo obras novas e abertas com os alunos, que nos vão sendo diferentes. Embora cada vez mais o meu maior prazer vá de mim para com os livros que a mim tornam. Coisas da idade...

Esta avaliação, no terreno, revelou aquilo que há de mais profundamente nosso, nesta adaptação livre do grego, da fábula da águia e da coruja de Esopo. Dispensando a águia, esta avaliação relevar-se-ia uma questão do relator consigo mesmo, dependente do seu livre arbítrio de mamã-coruja, de uma cegueira da razão (total, nalguns casos de avaliação em 10 ou valor aproximado, assim se demitindo de avaliar). Uma demissão seguida de outra, já que a comissão de avaliação de desempenho também se demitira do seu papel, sem fazer o trabalho de casa: não regulamentou a montante, apenas podendo, a jusante, cumprir uma espécie de lava-mãos de Pilatos, no Evangelho de S. Mateus.

Justiça cega, sem orientação no meio do caos que permitiu instalado.

Vitorino Almeida Ventura (Professor e autor do texto que publico a seu pedido.)

O Fracasso da Intelligentsia Portuguesa

Palácio da Bolsa, Porto
«Finalmente, A Águia fugiu-me das mãos para voar mais alto. E faminta, pousou em Lisboa, na Seara Nova onde encheu o papo. Também o Código me fugiu das mãos indignado contra um poema em que eu trabalhava, nessa época. Refugiei-me na minha aldeia, onde encontrei a mais perfeita irmandade nas árvores e nos penedos. Senti que todos os corpos são irmãos, porque exalam a mesma sombra. E assim o reino das sombras é o reino da verdade». (Teixeira de Pascoaes)


O meu Projecto dos Quadros Portuenses começa a ganhar forma: o período histórico que me interessa corresponde ao período liberal de Portugal. O Porto Liberal será portanto o quadro fundamental desse projecto. Porém, ao meditar sobre o Porto Liberal, fui confrontado com a escassez de estudos históricos, literários e artísticos de qualidade, isto é, com a miséria da chamada inteligência portuguesa. Bem sei que, neste país tumular, houve grandes intelectuais que souberam resistir à mediocridade das elites intelectuais estabelecidas, aquelas que são responsáveis pela miséria de Portugal. De um modo geral, a universidade portuguesa foi e é sempre-já um fracasso total. A Universidade Portuguesa é o lugar da miséria nacional, na medida em que, em vez de promover o cultivo da mente brilhante, incentiva a caça aos poucos portugueses que se destacam da turba medíocre pelo seu mérito e pela sua inteligência. Capturada pela extensa rede da cunha, dos laços familiares e do suborno sexual, a universidade portuguesa é de tal modo paradoxal que nela só permanecem os mais estúpidos dos portugueses: os grandes sacanas de Portugal estão instalados e fixados nas suas universidades, onde zelam pela reprodução contínua da mediocridade nacional, perseguindo e afastando todos os portugueses dignos de mérito. Como é que uma tal universidade colocada ao serviço da reprodução alargada da malvadez pode contribuir para o desenvolvimento cultural de Portugal? Raros são os universitários que produzem obras de excelência: a maioria destes malvados académicos dedica-se de corpo e alma a sepultar as obras dos portugueses de mérito que ousaram pensar o Portugal Novo. Em Portugal, só podemos pensar fora e longe da universidade, esta enorme tumba fatal que gera continuamente o esquecimento público dos grandes portugueses. Resgatá-los é pensar contra a universidade portuguesa e a corrupção que a domina profundamente. A minha conjectura é de que a triste situação da universidade portuguesa se agravou de forma acelerada depois do 25 de Abril de 1974: os avultados investimentos na educação não se traduziram infelizmente na verdadeira qualificação dos portugueses. Os analfabetos diplomados negam o futuro e serão os derradeiros coveiros de Portugal. Já não vale a pena derramar lágrimas de culpa: Portugal está desde a sua origem condenado a desaparecer do mapa mundial. Nunca é demais repetir que o centralismo cavaquista matou Portugal.


O meu Projecto dos Quadros Portuenses é, fundamentalmente, um projecto estético. Mas, para o poder desenvolver, preciso não só de estudos históricos mas também de estudos de história da arte e da literatura. Ora, ao procurar esses estudos de qualidade, não os encontro, o que me faz pensar na fatalidade de ter nascido português. Em Portugal, está tudo por fazer: quero avançar, mas, quando olho para trás, constato que nada foi feito, como se estivéssemos sempre no grau zero da cultura. Sabemos que temos um passado, mas não há uma memória ousada desse passado: o resultado é o bloqueio mental e cognitivo que nos leva a desistir de pensar o Portugal Novo. Porém, desta vez, vou fazer um esforço para não desistir de pensar o futuro do Porto. Teixeira de Pascoaes tinha uma aldeia para se refugiar, mas eu que nasci na grande cidade, não tenho esse refúgio rural e ainda bem, porque, sem refúgio no campo, sou obrigado a construir na cidade o meu próprio lugar, a minha concha protectora. Pensar o Porto é, como já sabiam os ilustres portuenses (Sampaio Bruno), pensar contra Lisboa que sufoca a iniciativa da Cidade Invicta com a sua terrível inteligência saloia. Os portugueses do Norte, sobretudo do Porto, precisam aprender que a sua pátria não engloba Lisboa. O meu desejo seria escrever Os Quadros Portuenses sem recorrer aos estudos dos historiadores lisboetas. Mas, como o meu passado também se cruza com Lisboa, vou anular esse desejo, privilegiando a excelência de todos aqueles que ajudam a pensar o Porto. Um bom adversário é, por vezes, o nosso maior amigo: alguns dos melhores adversários lisboetas serão os meus maiores aliados neste empreendimento de resgate histórico do Porto. A investigação que já levei a cabo surpreendeu-me com uma descoberta fantástica: Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto de Agostinho Rebelo da Costa (1788). Há uma extensa bibliografia portuense sobre a Cidade Invicta, cujo acesso implica a frequência de certos lugares públicos, tais como arquivos e bibliotecas. Foi no decurso desse contacto com as fontes portuenses que redescobri os grandes jornais e revistas portuenses que já tinha consultado quando ainda era estudante universitário. O Porto Liberal não pode esquecer a sua magnífica imprensa. Mas eis que sou raptado pelo paradoxo: o Porto Liberal coincide no tempo com o Porto Socialista, num país sempre-já caracterizado por um atraso histórico-estrutural. Oliveira Martins sabia que não pode haver socialismo sem classe operária forte. Bem sei que o socialismo de Oliveira Martins era cativo da doutrina de Proudhon. Porém, nesse tempo, a doutrina de Marx já era conhecida em Portugal, sendo usada para criticar o sistema económico de Proudhon: a revista portuense A Península (1852-53) é o testemunho vivo desse conhecimento. À revista portuense, onde colaborou Amorim Viana, podemos juntar o jornal lisboeta Eco dos Operários (1850-51), onde se destacou a crítica de Lopes de Mendonça, e o jornal portuense A Esmeralda (1850-51), onde teve papel de relevo o pensamento de Marcelino de Matos. Victor de Sá, o historiador portuense tão maltratado pelos historiadores lisboetas, forjou o conceito de geração de 1852 para mostrar que «a adopção que a geração de 70 fez de Proudhon foi extemporânea e ela própria retrógrada, pois que dezoito anos antes os seus conceitos eram já conhecidos e criticados com uma profundidade de análise que, neste domínio, a geração de Antero não atingiu»: Victor de Sá destacou dois nomes dessa geração, Amorim Viana e Oliveira Pinto, que conheciam já a estrutura do sistema marxista. (Sampaio Bruno também conhecia a concepção materialista da História!) A obra da geração de 1852 merece ser pensada, na medida em que revela o retrocesso da geração de 70 em relação às novas problemáticas teóricas que tinha introduzido dezoito anos antes em Portugal. De certo modo, o quadro do Porto Liberal que se manifesta com toda a sua pujança na Revolução de 1820, será a história dos vencidos da vida, para usar a expressão divulgada pelos homens da geração de 70. Mas há uma lição que os vencidos da vida nos legaram, a nós que também estamos condenados a ser vencidos da vida: a urgência de desenvolver - económica e culturalmente - Portugal. Os meus quadros portuenses também serão quadros portugueses... Mais não posso dizer, a não ser que recordar que o pecado letal de Portugal mora em Lisboa.


J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Soares dos Reis: Quadro Escultural do Porto

Soares dos Reis: O Desterrado
Soares dos Reis (1847-1899) foi «um realista na veracidade severa dos seus retratos, do "Conde de Ferreira" (1876), da "Viscondessa de Moser" (1884) ou da "Inglesa" (1887). Um realista que entendera, porém, na sua estada em Roma, o apelo da saudade nacional e com isso esculpira "O Desterrado" (1872-74) que ficou como uma imagem emblemática dum certo sentimentalismo português próprio do fim do século em que o escultor se suicidou. /"O Desterrado" é uma obra notável da escultura do seu tempo, de grande sensibilidade formal, duma discreta e tensa dramaticidade. O vago anseio, o doce sentir, a nostalgia sem esperança, a amargura sem tempo lêem-se no corpo clássico da estátua, que teve directa inspiração antiga. A carga simbólica da obra é-lhe inerente, desenvolve-se na sua forma, não tem origem literária - embora literariamente sobre ela se bordassem mil considerações simbolistas e decadentistas. "Verdadeira arte lusitana" viu Teixeira de Pascoaes no "Desterrado", apontando-lhe assim um destino fora do tempo, e o próprio artista, tão exigente no seu realismo como no seu espiritualismo, terá sido vítima dessa contradição que, numa sociedade que, embora ele fosse professor da Academia portuense, só lhe dava mesquinhos trabalhos a fazer, também o levou a matar-se, último acto da coerência romântica que igualmente, e pela mesma altura, moveu Antero e Camilo». (José-Augusto França)

José-Augusto França foi até hoje o único grande historiador da Arte em Portugal, mas a sua obra precisa ser revista e reavaliada à luz da estética e das nossas preocupações presentes. O que foi dito sobre a obra escultural de António Soares dos Reis não é algo exterior à própria obra: o triângulo produtor/obra/receptor é fundamental para compreender a escultura de Soares dos Reis, porque é na sua recepção que se joga a sua historicidade. A história da recepção - nacional e internacional - da obra de escultura de Soares dos Reis está por fazer e, sem ela, torna-se muito difícil realizar a sua análise estética. Dissolver a escultura de Soares dos Reis no realismo do seu tempo não lhe traz nenhuma mais-valia cognitiva. Os rótulos vagos atribuídos pelos historiadores às obras de arte não permitem compreender o mundo que elas revelam. Classificar uma obra de arte não é suficiente para compreender o mundo próprio que ela revela. O escultor portuense situou-se à margem do movimento coimbrão e lisboeta, embora fosse respeitado e admirado por quase todos os membros da geração realista, incluindo o Ramalho Ortigão positivista de 1876 que viu nele o primeiro renovador da arte portuguesa. A Filosofia tem dificuldade em lidar com certas formas de arte e uma delas é precisamente a escultura que Hegel colocou num nível inferior à pintura e à poesia, embora lhe reconhecesse a capacidade de realizar o espiritual na sua totalidade espacial e corpórea. No entanto, quando escreveu que «os nossos escultores são incomparavelmente superiores aos nossos pintores porque resistem melhor ao meio», Ramalho Ortigão inverteu essa posição, destacando a superioridade da escultura em relação à pintura, pelo menos no contexto da arte portuguesa. Os escultores em questão eram Soares dos Reis e Miguel Ângelo Lupi, os quais assumiram posições opostas em relação à sociedade do fontismo, da qual o segundo foi o seu grande vencedor, e o primeiro, a sua grande vítima. Olhando para a obra revolucionária de Soares dos Reis, é fácil compreender a perspectiva de Ramalho Ortigão: O Desterrado «incarna em si a própria espiritualidade, a finalidade e independência em si e por si, numa forma corporal, conforme ao conceito do espírito e adequada à sua individualidade, e oferece à nossa contemplação o corpo e o espírito incorporados num todo indivisível» (Hegel). O Desterrado não é mais uma peça de escultura: ele é a própria escultura. Não admira que Teixeira de Pascoaes tenha visto nele a figura espiritual feita estátua da saudade. Para o poeta-filósofo portuense, O Desterrado deu ao mármore «aquele sentimento saudoso das coisas e da vida que mostra o íntimo perfil do nosso espírito (lusitano)». Joel Serrão captou a afinidade existente entre a escultura de Soares dos Reis e a filosofia de Sampaio Bruno: «"Nos fuimos simul in Garlandia. Nós pisamos juntos a terra da Desesperação; e juntos conhecemos o travo desse sentimento específico do exílio, que é complexo, aliás, pois resulta um misto de orgulho e humilhação, de rancor e de piedade". Assim se exprime Bruno. Do mesmo modo se nos exprime essa obra-prima da estatutária portuguesa que é o Desterrado de Soares dos Reis, esse outro portuense, como que exilado na terra portuguesa. Atentai: a cabeça pendida na meditação não se sabe de que longes; inactivos, os dedos cruzados no desalento da espera; os lábios no jeito da amargura mais atroz e imponderável; dentro dele "chovendo a inexorável ausência do país remoto" para empregarmos palavras de Bruno a respeito do seu próprio exílio. Tal o Desterrado. Tal o Bruno nas longes terras (holandesas)».


Em Portugal, a inveja mata-nos a todos, rouba-nos a vida individual e colectiva - passada, presente e futura -, nivela-nos a todos de modo a impor-nos a mediocridade como norma, e condena os nossos homens de mérito ao exílio interior. A escultura O Desterrado de Soares dos Reis foi alvo desta forma patológica de inveja. Tudo começou no seio da Academia Portuense de Belas-Artes. Soares dos Reis fez o curso da Academia Portuense, tendo sido aluno de um professor incompetente, Fonseca Pinto, que lhe fez a vida negra. Em 1867, partiu como bolseiro para Paris. Para isso, ganhou o concurso com um belo busto do seu colega Firmino (1867). Em Paris, foi aluno de Jouffroy, mas a guerra obrigou-o a regressar ao Porto em 1870. No entanto, em 1871, partiu de novo para o estrangeiro, desta vez para Roma, onde permaneceu ano e meio sem professor. Ora, foi de Roma que Soares dos Reis trouxe para o Porto a sua estátua inacabada O Desterrado: «Imaginada e quase terminada em Roma, sob inspiração de versos de Herculano, e por força duma sentimental nostalgia da Pátria distante e da própria solidão cismadora, a estátua reflecte formalmente a tradição clássica. É provável que o "Ares" dito Ludovisi, do Museu das Termas, lhe tenha fornecido o esquema da composição: um jovem nu, sentado num rochedo, uma perna estendida, as mãos apertadas em volta do joelho da outra, a expressão melancólica e o olhar distante... A comparação detém-se porém ao nível iconográfico, e a acusação de plagiário que por isso fizeram a Soares dos Reis seria mera estupidez se não tivesse sido produto de má fé, alimentada pela inveja do professor Fonseca Pinto e pelo espírito quezilento de outro professor da Academia, o pintor Resende» (José-Augusto França). Não satisfeitos com a acusação de plágio, os invejosos conspiraram outra maldade: a suspeita de Soares dos Reis não ter sido o verdadeiro autor da estátua. Estes ataques mesquinhos feriram profundamente a sensibilidade de Soares dos Reis, mas não conseguiram impedir que O Desterrado - concluído já no Porto em 1874 - fosse exposto publicamente na Academia Portuense de Belas-Artes em 1874, e que viesse a receber a medalha de ouro na Exposição Internacional de Madrid de 1881. A história moral do Desterrado de Soares dos Reis é, de certo modo, a história de todos os portugueses que se destacam da mediocridade nacional pelo seu mérito e pela sua inteligência.


José-Augusto França parece não concordar com a interpretação saudosista da escultura O Desterrado de Soares dos Reis, como se o saudosismo de Teixeira de Pascoaes fosse uma espécie de fuga ao futuro quando, na verdade, ele é uma abertura ao futuro. A saudade como ânsia de um futuro novo - a saudade do futuro - possibilita uma leitura inovadora da obra escultural de Soares dos Reis. No entanto, José-Augusto França não se afasta muito dessa interpretação quando a encara como uma «obra existencial»: «O olhar afogado no longe, a boca num começo de choro, o virar doloroso da cabeça, as mãos entrelaçadas à beira da crispação, e este corpo longo e liso, quase escorregando para o mar de Capri que se adivinha - o "Desterrado" é uma personagem de drama, que exige uma leitura dinâmica. O sentimento vago e ideal que exprime não se define em função dum "estar" que uma forma classicamente frontal nos daria, mas dum "viver" que devém, numa movimentação formal. A estrutura da figura explica-se por dois eixos oblíquos que se cruzam e marcam sentidos opostos, fazendo rodar contraditoriamente o corpo torturado, o tronco para um lado, com o movimento dos braços, a cabeça e as pernas para outro. Os dois extremos da figura, a cabeça tombada velada por uma sombra que é preciso ler, e o pé esquerdo pendente, em relaxe, definem-se em oposição a um nó denso de pequenos volumes articulados numa contracção de formas minuciosamente agenciadas. A grande bossa sensível do dorso arqueado é logo explicada na linha ondulada do perfil em que as sombras se graduam admiravelmente. Como para o "Penseur" de Rodin, um quarto de século mais tarde, a leitura do "Desterrado" obriga a perfazer um lento circuito em torno desta forma altamente dinâmica - que no próprio dinamismo tem a sua nobilíssima razão de existir e de significar» (José-Augusto França). Teixeira de Pascoaes não realizou uma interpretação sistemática do Desterrado de Soares dos Reis: a noção de desterro ocupa uma posição crucial na sua filosofia da saudade. Limito-me a citar uma das muitas frases de Teixeira de Pascoaes dedicadas ao Desterrado de Soares dos Reis: «Soares dos Reis, no Desterrado, foi muito além de Garrett. Aquela estátua é sagrada; vive já, de alguma forma, a Saudade religiosa e metafísica. Sente-se que diante dos seus olhos, perpassa o Vulto divino da nova Deusa. Soares dos Reis é o precursor dos actuais Poetas, o precursor da verdadeira arte lusitana. É uma figura suprema. /O Desterrado é a Esfinge da Raça no recanto esquecido dum esquecido museu municipal. E os Poetas a que me referi, são os seus intérpretes: a voz dos seus fechados lábios marmóreos». Além do poeta portuense António Nobre, que cantou a saudade-desejo, Teixeira de Pascoaes também nutria uma especial admiração pela pintura de António Carneiro (1872-1930), o pintor portuense que nos legou o tríptico A Vida, merecendo por isso o extenso ensaio que lhe dedicou (1950). Diz Teixeira de Pascoaes que «a nossa existência mundial, iniciada pelos Nautas, é continuada pelos Poetas». Sim, é verdade o que diz Teixeira de Pascoaes: o Porto deseja - a faceta do desejo na saudade - realizar o sonho dos poetas, de modo a dar continuidade à nossa existência mundial conquistada no passado pelos navegadores portugueses. Meus amigos: O Desterrado de Soares dos Reis esculpe e encarna no mármore a alma portuense que vira - num gesto de desprezo e de enjoo - a cabeça a Lisboa e a Portugal capturado pelo espírito babilónico da primeira. Se O Desterrado exprime algum tipo de sentimento de saudade, este sentimento só pode ser a saudade da futura independência do Porto. O Desterrado é a própria Cidade do Porto que, a partir da sua situação de exílio nas terras lusitanas, sonha com a sua autonomia e a sua independência. Esta interpretação pressupõe uma radicalização da filosofia de Sampaio Bruno, cujo pecado fundamental reside no facto de não ter libertado o Porto da sua prisão lusitana. Apesar de ansiarem pela sua autonomia, os ilustres portuenses na hora de elaborar os seus pensamentos traíram a alma portuense, dissolvendo-a na alma lusitana que a sufoca. Faltou-lhes a coragem de ser do Desterrado que recusa olhar de frente para o país que o enjoa. O Porto é banhado não só pelo Rio Douro mas também pelo oceano Atlântico, cujas ondas acariciam o rochedo - um rochedo do Castelo do Queijo? - onde está sentada a figura bela, serena e livre do Desterrado.


O Porto de Soares dos Reis é o Porto da Academia Portuense de Belas-Artes, que fez da História da Cidade uma História da Arte. A identidade que Giulio Carlo Argan (1984) estabeleceu entre arte e cidade já era uma prática arquitectónica no Porto setecentista e oitocentista: a cidade do Porto é uma obra de arte - construída ao longo de gerações pelos seus próprios artistas nativos sem menosprezar o contributo de grandes artistas estrangeiros. A Academia Portuense foi criada em 1836 por Passos Manuel, logo após a revolução de Setembro. A Academia de Lisboa foi criada a 25 de Outubro e, logo a seguir, a do Porto a 22 de Novembro de 1836. Ainda não estou preparado para esboçar uma história da Academia do Porto, fortemente incentivada por Almeida Garrett, nas suas relações orgânicas com a Cidade Invicta. Por isso, vou limitar-me a referir alguns momentos cruciais dessa ligação orgânica dos artistas portuenses com a sua cidade. Muitos anos antes da criação da Academia Portuense, a Companhia das Vinhas do Alto Douro já tinha fundado uma Aula de Desenho em 1779, que mais tarde seria incorporada na Academia da Marinha, tendo como professores Domingos António de Sequeira (1768-1837) e Francisco Vieira, mais conhecido como Vieira Portuense (1765-1805), dos quais se destaca o último pelo facto de ter pronunciado um discurso em 1802, onde critica a retórica académica a favor da liberdade de criação, o que constituía uma proposta de modernização no seio da arte portuguesa. Quando mais tarde se funda a Academia Portuense, a sua responsabilidade foi atribuída a João Baptista Ribeiro (1790-1868), que, apesar de ser um pintor medíocre, era um homem político e dinâmico. A morte de Teixeira Barreto (1763-1810) não permitiu continuar a assegurar um ensino de qualidade na pintura. Durante este período repleto de peripécias e de falta de financiamento regular, a secção de arquitectura avançou sob a direcção de Costa Lima Júnior. As Academias do Porto e de Lisboa começaram a realizar exposições trienais, as primeiras que publicamente se realizaram em Portugal, conforme a ideia já avançada por Sequeira no Porto em 1807. O papel da Academia de Belas-Artes foi reforçado pela criação de Museus e de Bibliotecas Públicas, no Porto logo em 1833, graças a J. B. Ribeiro (1790-1868), durante o cerco da cidade. O espaço da pintura portuguesa romântica foi atribuído no Porto a Francisco Resende (?-1893), o qual tinha recebido lições de Auguste Roquemont (1804-1852), o retratista da nobreza nortenha e o primeiro a pintar os costumes rústicos dos portugueses, abrindo assim as portas ao romantismo. Entretanto, em 1835, surgiu uma fugaz Associação dos Amigos das Artes fundada no Porto, a qual foi precursora da Sociedade Promotora de Belas-Artes criada em Lisboa no princípio dos anos 60. Sendo uma cidade mais progressista do que Lisboa, toda ela virada para o luxo fontista, o Porto - depois do surto setecentista da arquitectura do Port Wine - iniciou a arquitectura do ferro. Inspirado no seu famoso homónimo londrino, o Palácio de Cristal - projectado por Thomas Dillen Jones - inaugurou, em 1865, a primeira exposição internacional de indústria, o que marcou a entrada do Porto num novo período histórico, o período do progresso. Obra de Eiffel, a Ponte de D. Maria Pia foi inaugurada em 1876 para ligar por via ferroviária o Porto a Lisboa. Em meados do século, os brasileiros que regressavam ao Porto trouxeram consigo o azulejo, cujo uso tinha sido abandonado nos finais do século XVIII. A indústria do azulejo desenvolveu-se rapidamente no Porto, com a fábrica das Devezas a ocupar um lugar de destaque na industrialização das faianças. Os exteriores dos edifícios foram revestidos de belos azulejos, tendo Lisboa seguido o exemplo do Porto. As Conferências do Casino aceleraram o processo de degradação do romantismo: Eça de Queirós defendeu, na sua conferência, o realismo na arte, citando abundantemente Courbet, através das teses de Proudhon, de modo a atribuir à arte um destino social. Pouco mais tarde, Ramalho Ortigão realizou a defesa do naturalismo no seu ensaio O Culto da Arte em Portugal (1896). Estes manifestos estéticos marcaram profundamente a arte portuguesa deste período. Na escultura, destacou-se a obra revolucionária de Soares dos Reis, que entrou para a Academia em 1862, vindo a ser seu professor. Em 1865, começaram a ser concedidas pensões oficiais para frequência da École des Beaux-Arts: Paris substituiu assim Roma e o seu Colégio Português de Belas-Artes, reformado em 1791, embora Roma ainda continuasse a ser frequentada no fim da bolsa. Os pintores e os artistas - escultores, arquitectos - formados na Academia Portuense beneficiavam de uma nova visão artística que se reflectiu nas suas obras. Silva Porto (1850-1893) e Marques de Oliveira (1853-1927) foram os dois primeiros pintores portuenses a ser contemplados com essa bolsa por concurso. Quando regressaram a Portugal, Silva Porto foi nomeado para a Academia Lisboeta e Marques de Oliveira assumiu a docência da pintura da história na Academia Portuense. Em torno do portuense Silva Porto, formou-se o Grupo do Leão que fez com que o naturalismo penetrasse na pintura portuguesa. A Academia do Porto lançou quase todos os grandes pintores paisagistas deste período: Henrique Pousão (1859-1884), A. Loureiro, João Vaz (1859-1931), Alberto de Sousa Pinto, José de Brito (1855-1946) e, para não alongar mais a lista de nomes, Aurélia de Sousa (1865-1922). E, na escultura, merecem destaque Teixeira Lopes (1866-1942) e Alves de Sousa, o primeiro dos quais foi discípulo de Soares dos Reis. Para se compreender a obra da Academia Portuense, é preciso conhecer a fundo não só o que os críticos disseram e escreveram sobre as obras dos seus membros, mas também os próprios escritos dos artistas, para já não falar das próprias obras de arte. Infelizmente, os estudiosos portugueses nunca souberam zelar pelo passado: a escassez de edições críticas testemunha o desleixo português. A cidade do Porto foi sempre uma cidade de burgueses, de homens livres, pelo menos desde o século XII. É por isso que Jaime Cortesão viu nela a primeira grande escola política da cidadania: o cidadão é, por natureza, o burguês que habita a cidade e que se afirma pelo seu trabalho. A história do Porto não pode ser compreendida sem levar em conta a sua burguesia que lutou pela libertação. A força da Academia Portuense está enraizada neste traço estrutural da cidade do Porto, a cidade dos burgueses e dos trabalhadores. O Porto - tal como o conhecemos - é fruto do trabalho dos seus próprios cidadãos e da sua luta contra os privilégios de nascimento e o poder central: o consumo conspícuo lisboeta que lança constantemente Portugal na pobreza e na miséria é algo visceralmente estranho à alma portuense. Como vimos, a construção do Palácio de Cristal, onde hoje está o Pavilhão Rosa Mota, outra ilustre portuense, abriu a Cidade Invicta ao progresso. Ao ensino da Academia Portuense de Belas-Artes juntaram-se as bolsas em Paris e o Centro Artístico Portuense, animado por Soares dos Reis, Marques de Oliveira e J. Vasconcelos. A cidade do Porto conquistou o mundo, participando em certames internacionais, como a grande exposição parisiense de 1900 e o Salon, tendo Soares dos Reis recebido a medalha de ouro na Exposição Internacional de Madrid (1881). Por isso, sou levado a escolher a figura de Soares dos Reis como a figura promotora do Porto das Galerias, do Porto das Exposições e do Porto dos Boulevards: apesar do seu exílio nas terras portuguesas, a cidade do Porto está aberta ao mundo. É este Porto - edificado nos finais do século XIX e começos do século XX - que está próximo da poesia de Baudelaire e que alimenta o meu projecto dos quadros portuenses


Soares dos Reis: O Desterrado
O Desterrado (1872-74) de Soares dos Reis: Prova final de pensionista de escultura realizada em Roma em 1872, enviada à 14.ª exposição trienal da Academia Portuense de Belas-Artes (1874) e medalha de ouro na Exposição Internacional de Madrid de 1881.


J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Prós e Contras: Como chegámos aqui?

Pavilhão Rosa Mota, Porto
O debate Prós e Contras (24 de Outubro) reuniu um grupo de seis pessoas ao qual Fátima Campos Ferreira chamou a inteligência, entenda-se a inteligência lisboeta. A imagem de fundo que escolhi é, portanto, inadequada, mas carrega consigo alguma dose substancial de ironia: a provocação torna-se assim menos agressiva. Do painel de convidados o único que merece o meu respeito intelectual é Eduardo Paz Ferreira. Os restantes convidados - André Freire, Pedro Lomba, Luciano Amaral, Eduarda Gonçalves e Ferreira Machado - são figuras habituais das conversas televisivas: eles têm falado tanto ao longo destes últimos anos que já não são capazes de surpreender ninguém que ainda os ouça. Partilho, em termos gerais, a resposta dada por Eduardo Paz Ferreira à questão colocada por Fátima Campos Ferreira, aquela que dá o título ao próprio debate. O que achei deveras bizarro ou mesmo extravagante foram as respostas dadas por Luciano Amaral, Eduarda Gonçalves e Ferreira Machado. Assim, por exemplo, Luciano Amaral baralhou de tal modo o esquema em desenvolvimento que chegámos ao fim prestando vassalagem a Angela Merkel. Eduarda Gonçalves, depois de ter destacado as responsabilidades partilhadas, pintou um quadro de tal modo idílico que tornou ininteligível a actual situação de emergência nacional que vivemos com a corda ao pescoço. E Ferreira Machado justificou-a alegando a bondade da expansão do crédito, a qual permitiu aos portugueses melhorarem os seus rendimentos. O sistema financeiro é de tal modo complexo que não vale a pena tentar compreendê-lo: ninguém o compreende, excepto os seus próprios agentes, e, por isso, não vale a pena tentar regulá-lo. Ferreira Machado foi mais longe quando disse que não houve maldade no funcionamento do sistema financeiro ou mesmo na captura do Estado pelas corporações e pelo poder económico e financeiro: cada um procurou melhorar os seus rendimentos. Como surgiram a crise de 2008 e, mais recentemente, a crise das dívidas soberanas? Afinal, ninguém sabe responder: a bondade do sistema não pode ser responsabilizada por estas crises extraterrestres. Estaremos a ser colonizados por seres maldosos vindos de outras galáxias que controlam as bolsas do mundo? É provável que todos aqueles que formam as suas opiniões lendo jornais da praça lusa ou vendo filmes de ficção científica produzidos em Hollywood acreditem que estamos a ser invadidos por seres extraterrestres, os quais já agem sobre o destino da humanidade através da mediação de Angela Merkel. Um economista neoliberal como Ferreira Machado não deseja - como é evidente - assumir a responsabilidade pela crise financeira que está a mergulhar a humanidade na miséria e na pobreza, até porque a solução que propõe para superar a crise é a mesma receita neoliberal que a gerou. Apercebendo-se desta aporia do discurso neoliberal, Eduardo Paz Ferreira lamentou os anos de "economia dura" que deixaram o Direito de fora e, à responsabilidade penal proposta por Pedro Lomba, acrescentou a responsabilização dos economistas académicos: a sua noção dos gestores como uma classe com interesses próprios tornou-se em conceito crítico, que visa abolir o regime criado pelos economistas neoliberais em benefício próprio. A falência do modelo de regime que Pedro Lomba acusou de perpetuar as elites políticas, foi convertida em falência do neoliberalismo: o Estado de grupos em que o primeiro a chegar se serve (Pedro Lomba) tornou-se em Estado capturado pelos economistas neoliberais e pelo poder económico. Deste modo, Eduardo Paz Ferreira converteu os discursos de Pedro Lomba, Luciano Amaral e Ferreira Machado em alvo predilecto da sua crítica, proclamando o fim do mito da auto-regulação como caminho para a "felicidade". Ora, este tema da desregulação dos mercados financeiros foi objecto de uma troca de palavras agressivas entre Pedro Lomba e André Freire. Contra Pedro Lomba, que prefere responsabilizar criminalmente os políticos, em vez de constatar a responsabilidade das políticas neoliberais, André Freire definiu a desregulação como liberalização, de modo a condenar o capitalismo neocorporativista e a tal fluidez de crédito tão elogiada por Ferreira Machado. Porém, a ala esquerda deste debate não apresentou alternativas, embora Eduardo Paz Ferreira tenha constatado a falência da social-democracia. Aliás, o tema do fim da social-democracia - que, depois da Queda do Muro de Berlim, se rendeu ao capitalismo, deixando de pensar novas alternativas sociais - merecia um outro debate de maior qualidade, porque é muito difícil criticar o capitalismo sem ter uma alternativa social. A última vez que a social-democracia fracassou a Europa foi tomada pelo nazismo: as chamadas classes médias - o centrão de Paz Ferreira - são classes politicamente perigosas, sobretudo nesta conjuntura europeia em que a extrema-direita retoma os temas da pobreza abandonados pela social-democracia. A ala conservadora do debate demarcou-se da abolição dos dois subsídios - a medida radical do governo de Passos Coelho, o que só por si mostra como ela e o "centrão" que representa temem a perda de regalias sociais. As elites lisboetas não querem largar a sua imensa voracidade que mergulhou o país no endividamento fatal. Que mais posso acrescentar a este pobre debate que reflectiu o vazio de ideias e a ausência de orientação filosófica? Enfim, Portugal é um país de aldrabões! Ou, de uma forma mais engenhosa: Em Portugal, a ideologia é a aldrabice gerada ao calor da histeria! A aldrabice portuguesa gosta de refugiar-se na linguagem dos números, mesmo que não domine os temas básicos da filosofia da matemática e da crítica da racionalidade instrumental, de modo a apresentar o status quo que perpetua a situação escandalosa e pornográfica das elites lisboetas como uma fatalidade. Ora, esta inteligência saloia pode enganar os portugueses, mas não engana o mundo, e, por causa dela, todos estamos a expiar os seus pecados, o que quer dizer que neste país predominam a injustiça e a sua eterna aliada, a ignorância.

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cesário Verde e a Cidade de Lisboa

Baixa Pombalina de Lisboa
«Júlio César Machado, Eça, Cesário Verde (e lá fora, Baudelaire e outros), convergem na expressão de idênticas inquietações revelando certos aspectos da vivência citadina. Spleen, tédio, ganham terreno ao longo da segunda metade do século XIX, a par e passo que se efectiva a urbanização em larga escala. São sentimentos "civilizados", ou seja, característicos dos homens que tiveram de adaptar-se ao crescimento das cidades e que, em dado momento, se sentiram muralhados nelas, como que ludibriados pela aventura urbana. Falta-lhes ar. Os largos horizontes, a noite estrelada ou luarenta, o ritmo lento do desenrolar dos dias, tradições tornadas hábitos atávicos, e condicionadas por uma vida que, mesmo quando urbana, tinha o campo à mão de semear, ou dentro da própria cidade, em cujos quintais vicejavam as couves e as árvores, e estralejava o cantar do galo, - tudo isso vai ser substituído. /Em vez dos largos horizontes do campo, as ruas sujas, movimentadas e rumorosas; em lugar da noite natural, de Lua e estrelas, a noite artificial e enjoativa do gás; em vez do ritmo estacional e dos anos, o galopar dos dias e das horas, numa pressa, numa "febre" que contagiava tudo e todos. Desse choque entre hábitos ancestrais e necessidades novas, resultam a instabilidade, o desajustamento, acre percepção da solitude. Solitude essa que, umas vezes, se condensa afectivamente no spleen, no tédio próprio das cidades, outras, em sonhos de evasão, ou de uma nova comunhão humana a constituir peça a peça, desde o princípio.» (Joel Serrão)

Eu não nasci no Porto, o Porto não foi o meu primeiro mundo, o meu mundo de berço, e, por isso, não guardo memórias de infância da Cidade Invicta. Não posso escrever um ensaio sobre a minha infância portuense, como fez Walter Benjamin em relação à sua infância vivida em Berlim, porque o Porto não me viu nascer para o mundo. Cheguei demasiado tarde ao Porto e, quando cheguei ao Porto vindo de outro mundo, apaixonei-me pelos seus telhados, não pelos seus habitantes que me hostilizaram, como se fosse um intruso cosmopolita que ameaçava privar a cidade das suas tradições e dos seus atavismos. Confesso que o meu desejo, tanto ontem como hoje, foi sempre livrar a Cidade Invicta de vastos sectores da sua população nativa. Não gosto dos portugueses e, para mim, os portuenses de berço são demasiado portugueses para merecer a minha simpatia. Onde há portugueses não há cultura urbana, precisamente a cultura que me moldou desde o berço. Sou um ser medularmente urbano que não sabe viver longe das grandes cidades: a experiência oitocentista da vida urbana é-me completamente estranha. A oposição entre a cidade e o campo que Eça tematizou em A Cidade e as Serras não faz sentido para um homem que vive a cidade como o seu mundo próprio. O campo aborrece-me de tal modo que não consigo lá permanecer mais de 5 ou 6 dias. Sou demasiado desassossegado e livre para querer viver uma vida tranquila num mundo que rejeita a modernidade. A aventura urbana só tem um rival digno de ser explorado: a selva. Se tivesse de escrever um livro sobre os mundos que me atraem, escolheria como título A Cidade e a Selva, porque é nesta oposição dialéctica que reside o fio condutor que me permite compreender a história da humanidade ao longo dos tempos e a minha própria história de vida. Sou filho de uma cópula paradoxal entre a cidade e a selva, os dois grandes mundos que me viram nascer e crescer e que serviram de palco activo à aventura que sou. A literatura portuguesa, sobretudo a literatura dos tempos modernos, é, quase toda ela, dominada pela indecisão entre a cidade e o campo, oposição esta que Cesário Verde tende a definir como oposição entre a civilização burguesa (cidade) e a Idade Média (campo), cada uma delas com o seu próprio tempo e o seu próprio ritmo: o tema da selva raramente foi tratado pelos autores portugueses. O único que escreveu sobre A Selva foi Ferreira de Castro, mas a sua selva brasileira está muito distante do imaginário mítico das terras selvagens. A oposição entre mito e história é profundamente estranha à literatura portuguesa. Júlio Dinis que traçou a morfologia urbana da cidade do Porto, em função do perfil económico e cultural dos seus habitantes, sobretudo no seu romance Uma Família Inglesa, acabou por se render ao campo, tal como Cesário Verde quando escreveu Nós (1884). Júlio Dinis e Cesário Verde, dois escritores portugueses que cresceram e se fizeram homens nos dois grandes centros urbanos de Portugal: o poeta Cesário Verde em Lisboa e o romancista Júlio Dinis no Porto. O meu projecto dos quadros portuenses, tal como os desenho mentalmente depois de ter chegado vindo de longe à Cidade Invicta, tem pouco a aprender com a poesia de crise de Cesário Verde e com o romance demasiado apegado a paisagens rurais de Júlio Dinis. Confrontar o universo urbano de Cesário Verde com os quadros parisienses de Baudelaire produz - involuntária e inadvertidamente - uma degradação da própria literatura portuguesa: a Lisboa de Cesário Verde não tem nada a ver com a cidade de Paris de Baudelaire. A bohème, o flâneur, o spleen e a modernidade são experiências estranhas ao universo lisboeta de Cesário Verde e, mesmo quando nos deparamos com elas na sua forma rudimentar e elementar, falta-lhes autenticidade. Paris de Baudelaire é dotada de todas as fantasmagorias que povoam as terras selvagens e que animam os seus mitos. Lisboa de Cesário Verde, tal como o Porto de Júlio Dinis, carece de magia, sendo feita de um cinzento monótono que quebra a respiração do poeta:


«O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba:
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.


«Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-se, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.


«E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.


«E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!» (O Sentimento dum Ocidental, 1880)


Joel Serrão teve o mérito de ter esboçado o quadro de Lisboa oitocentista, sem ter esquecido o Porto, como sucede frequentemente neste ermo chamado Portugal e mergulhado no abismo das negras trevas do provincianismo saloio pelas tristes almas vestidas de cirurgia pardacenta: «Durante o século XIX a população portuguesa cresceu a um ritmo seguro que, aliás, se vai acelerar na segunda metade dessa centúria. De 1822 (à volta de 3 milhões) a 1900 (aproximadamente 5 milhões), a grei lusa aumentou cerca de 2 milhões de indivíduos, acréscimo esse bem maior que toda a população da época dos descobrimentos... /Embora "oficialmente" houvesse 31 cidades, como acontece que Braga, o terceiro centro urbano quanto ao povoamento, contava em 1890 apenas 23 000 habitantes, é evidente que na realidade, só Lisboa e Porto vão adquirindo características de cidades "civilizadas". /De facto, os nossos dois maiores centros urbanos evidenciam um dinamismo até então desconhecido entre nós; assim, de 1864 a 1890, a população lisboeta passou de 163 763 para 391 206 e a do Porto de 86 751 para 146 739 habitantes. Ou seja, verifica-se que em 26 anos o número dos seus habitantes duplica. E a par de tal aumento populacional, as duas cidades, e mormente a capital, lá iam apresentando algumas das características das grandes cidades europeias suas contemporâneas. Aí se processa um fenómeno complexo que não só é demográfico mas também, e essencialmente, económico, social, técnico, o que, por seu turno, implica transformações culturais e psicológicas da mais variada gama. No conjunto da vida nacional, os tentáculos das duas cidades, e essencialmente de Lisboa, estendem-se pela província fora, despertando aqui e acolá resistência e adesões: por um lado, movimentos de repulsão rotineira, e, por outro, aspirações inovadoras concretizadas quer no abandono da província quer até na insatisfação perante as tarefas habituais. Por essas duas cidades, introduzia-se no país a civilização europeia coeva e a mentalidade progressista que, através das linhas férreas, paulatinamente se impunha a um país que pulsava ainda, na sua maior parte, a um ritmo bem diverso do dessas capitais de "trabalho, de inteligência, de febre" (como dizia Cesário), - Paris, Londres». Joel Serrão funde de tal modo as duas grandes cidades portuguesas que, pelo menos numa primeira leitura, ofusca as diferenças entre elas, tal como foram vislumbradas por Sampaio Bruno, o rosto aglutinador do Porto da boémia filosofante e política. No entanto, mesmo que se levem em conta essas diferenças, não podemos rejeitar o quadro urbano oitocentista de Portugal esboçado por Joel Serrão. De certo modo, sem disso se aperceber, até porque a sua preocupação estava muito longe do espírito antiburguês da estética, Joel Serrão esboça alguns quadros oitocentistas de Lisboa: a Lisboa dos Cabrais, um quadro delineado a partir da visita do príncipe alemão Lichnowsky em 1842; a Lisboa de Júlio César Machado (cronista), cuja obra A Vida em Lisboa parece recusar os fenómenos que se processavam ao seu redor; a Lisboa de Eça de Queirós (romancista), brilhantemente retratada em A Capital; a Lisboa iluminada à noite pelos candeeiros eléctricos de Guilherme de Azevedo; a Lisboa das boémias literárias e artísticas, em especial a do Grupo do Leão; e a Lisboa de Cesário Verde (poeta). Joel Serrão encara estes quadros lisboetas como «aspectos da vivência citadina» dos referidos escritores, sendo levado a destacar o tédio como o aspecto fundamental dessa vivência citadina. As limitações deste projecto de Joel Serrão evidenciam-se no subtítulo do ensaio Da Lisboa dos Cabrais à Poesia de Cesário Verde: Pistas e Sondagens. Para o converter num verdadeiro projecto dos quadros de Lisboa, o que faria dele um projecto histórico-estético, Joel Serrão devia ter sondado a arquitectura e a pintura, talvez com a ajuda de José-Augusto França. O projecto dos quadros portuenses possibilita mais facilmente, pelo menos do ponto de vista estrutural, a articulação de todas as artes, desde a literatura até à pintura, passando pela arquitectura: Filosofia do Porto-Fantasia Arquitectónica tentou esboçar este projecto, mas a falta de estudos prévios de qualidade dificulta a sua realização plena, como se também eu estivesse obrigado às pistas e sondagens. Sou, portanto, forçado a articular os dois projectos - o dos quadros portuenses e o dos quadros lisboetas - num só projecto que visa, em última análise, clarificar as aventuras e desventuras da dialéctica da modernidade em Portugal.


Em relação à poesia de Cesário Verde, concordo com o quadro geral do seu campo de forças internas em luta permanente, como que suspensas numa indecisão fundamental, apresentado por Joel Serrão, mas vou mais longe quando descubro tensões internas e diversos quadros lisboetas n'O Livro de Cesário Verde. A tese defendida por Joel Serrão resume-se numa única frase: «poeta da cidade e poeta do campo - mas em épocas diversas da sua vida e da sua evolução poética». Esta tese leva o ilustre historiador a estabelecer uma cronologia: as composições poéticas de Cesário Verde anteriores a 1875 revelam uma indecisão fundamental entre o campo e a cidade, na medida em que o poeta, com um pé em Lisboa (cidade, civilização burguesa) e o outro em Linda-a-Pastora (campo, Idade Média), oscila pendularmente de um pólo para o outro. Só a partir da sua composição poética Na Cidade (1876) é que Cesário Verde tenta a aventura da integração urbana, cujos marcos principais são Num Bairro Moderno (1877) e Cristalizações (1879): «Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! - /Carros de mão, que chiam carregados, /Conduzem saibro, vagarosamente; /Vê-se a cidade, mercantil, contente: /Madeiras, águas, multidões, telhados!» (Cristalizações). Por volta de 1880, Cesário Verde é, plenamente, um habitante da cidade, isto é, um burguês, mas, quando escreve O Sentimento dum Ocidental (1880), o seu tédio pessoal se transmuta em dor anónima: à atracção urbana segue-se a repulsa urbana que apela ao regresso à vida tranquila do campo. Depois de ter vivido intensamente a vivência da cidade, Cesário Verde cansou-se dela, sendo levado a voltar-lhe as costas em consequência de uma experiência dolorosa - a doença - que deixou rastos e vestígios nos seus poemas. Cesário Verde regressou finalmente ao campo, onde encontrou a paz, a estabilidade e a harmonia das rotinas rurais. Os poemas Nós (1884) e Provincianas (1887) celebram as harmonias rotineiras da vida rural: «E o campo, desde então, segundo o que me lembro, /É todo o meu amor de todos os anos! /Nós vamos para lá; somos provincianos, /Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!» (Nós). Esta celebração da vida provinciana implica a condenação da vida urbana e da própria civilização burguesa: «Ó cidades fabris, industriais, /De nevoeiros, poeiradas de hulha, /Que pensais do país que vos atulha /Com a fruta que sai dos seus quintais?» (Nós). Na poesia de Cesário Verde descobrimos em acção a dialéctica do moderno e do anti-moderno, cujo desfecho fatal é a recusa da própria modernidade. Cesário Verde não ousou consumar a modernidade e, em vez de a completar com um projecto de emancipação geral da sociedade portuguesa, recuou e regressou ao campo, isto é, à sua Idade Média. Curiosamente, o poema O Sentimento dum Ocidental que marca o início da sua ruptura com a modernidade, é dedicado a Guerra Junqueiro, o poeta de Os Simples. Apesar do apelo à simplicidade da vida e das coisas partilhado pelos dois poetas portugueses, não há uma afinidade estrutural entre eles: Guerra Junqueiro não abdica da modernidade, em nome da qual critica severamente a pátria dos portugueses, modernidade esta que foi pensada filosoficamente por Sampaio Bruno, o cidadão portuense que abraçou a Cidade para sempre. A lição a reter é a de que os quadros lisboetas esboçados por Cesário Verde, durante o seu período citadino, não podem ser comparados com os quadros parisienses de Baudelaire: Cesário Verde não foi, cognitiva e afectivamente, um cidadão de Lisboa, como Baudelaire o foi de Paris do seu tempo, logo "o" Baudelaire que esboçou uma filosofia do moderno que cortaria a respiração da alma de Cesário Verde que ansiava pela tranquilidade do campo, onde não se passa nada de novo.


J Francisco Saraiva de Sousa