quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Anúncio: Porto Gay, Lisboa Gay

Eu sou um cientista-filósofo que realizei uma pesquisa intensiva dos comportamentos sexuais em Portugal. No entanto, os dados recolhidos só foram processados em termos exclusivamente biológicos. Tenho recebido muitos e-mails a pedir que divulgue esses dados, de modo a contribuir para a história das homossexualidades em Portugal. A minha investigação cobriu todo o território nacional e, a título particular, resolvi recolher informação adicional que não tinha relevância para o meu trabalho. Infelizmente, depois de concluída a investigação e a tese, nunca mais voltei a dar atenção aos dados e ao material recolhido durante a pesquisa de campo. Seria mais fácil partilhar esse material adicional a título de uma etnografia portuguesa dos comportamentos homossexuais. Mas o blogue não se presta à divulgação de milhares de páginas. Por isso, procurarei satisfazer o vosso pedido, tentando esboçar a história das homossexualidades em Portugal em duas secções dedicadas aos dois centros metropolitanos nacionais: Porto e Lisboa. Proponho de momento dois títulos, podendo os períodos de tempo ser alargados até ao presente e recuar mais no passado mediado pela memória dos homens homossexuais mais velhos:

1. Porto Gay (1989-1993).
2. Lisboa Gay (1989-1993).


Bem, devo justificar o facto de ser receptivo a partilhar publicamente esse material: a parte mais significativa da minha investigação foi realizada através da comunicação mediada por computador e da Internet. Sobre esta ciberpesquisa, já partilhei aqui alguns resultados. No entanto, como uma tal pesquisa deixa vestígios digitais, tenho realizado visitas rápidas para confirmar a autenticidade desses vestígios. No decorrer dessas visitas, tenho recolhido informação suficiente para reforçar uma hipótese apresentada como promessa de pesquisa futura: a da relação entre homossexualidade e patologia. O que tenho observado ultimamente são cloacas comportamentais, e alguns elementos da minha amostra participam activamente nelas, o que me leva a ter em conta o factor do envelhecimento. Se reescrevesse hoje o meu texto originário, não hesitava em classificá-los no grupo disfuncional. O conceito de homossexualidade disfuncional deve ser recuperado e, em 2012, é isso que vou fazer retomando a minha investigação em novos moldes. De momento, seguindo um velho princípio genético, o que posso afirmar é o seguinte: o grau de disfuncionalidade homossexual tende a agravar-se à medida que o seu portador envelhece. O facto de ser jovem levou-me a negligenciar o factor envelhecimento: tinha consciência dos grupos etários e das relações que estabeleciam entre si, mas a tentação foi pensar em tudo isso em termos de sincronia. É caso para dizer que só o tempo permite corrigir esses erros naturais que cometemos no decorrer de uma pesquisa que tem os seus próprios prazos a cumprir. Lá onde ontem via algum "valor" hoje vejo "lixo". Portugal é lixo, como dizem as agências de rating.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Prós e Contras: Revolução nos Transportes

Via de cintura interna, Porto
Ontem estive mais interessado em acompanhar as notícias sobre os últimos acontecimentos incendiários do futebol do que em escutar o debate Prós e Contras (28 de Novembro), cujo título não faz sentido. Chamar revolução ao plano estratégico do governo que visa racionalizar o sector público dos transportes, suprimindo algumas linhas e carreiras, é esvaziar o conceito de revolução do seu sentido teórico. O governo utiliza o termo racionalização para justificar o sentido retrógrado das medidas que toma: racionalização como sinónimo de cortes precipitados nas despesas públicas e, portanto, de empobrecimento planeado, é uma noção absolutamente estranha ao próprio conceito. Na história da Filosofia, a racionalização nunca foi usada para designar empobrecimento planeado. Quando começa a filosofar, o governo improvisa uma "filosofia" que não encontra precedente na Filosofia Ocidental: o que quer dizer que este governo se situa fora dos horizontes ocidentais. Mas nós que somos ocidentais sabemos que o governo de Passos Coelho utiliza a racionalidade instrumental que lhe foi imposta do exterior para implementar políticas recessivas, cujo efeito final será a liquidação da economia portuguesa, um processo que já tinha sido iniciado por anteriores governos quando adoptaram o programa de desindustrialização. O governo só tem um objectivo: cumprir o memorando da troika. As políticas que adopta visam - todas elas - garantir esse cumprimento: o fim aceite sem discussão justifica os meios, o fim tornado fetiche implica o suicídio nacional. A "filosofia" do governo é mais oriental do que ocidental, o que quer dizer que este governo, vindo não se sabe de onde, não tem filosofia, isto é, não tem uma perspectiva de crescimento económico e cultural. É certo que Portugal precisa de pagar as dívidas que contraiu ao longo destas duas décadas de deslumbramento, mas o cumprimento do memorando da troika não liberta o seu futuro. Se tivesse uma concepção mais enfática da racionalização, o governo já teria compreendido que as políticas sectoriais só fazem sentido quando inseridas nos quadros de um plano de desenvolvimento estratégico, na ausência do qual são políticas irracionais no sentido de deixarem o país pior do que já está. Um governo que assume o empobrecimento como fim último das suas políticas não é - verdadeiramente - um governo: é um anti-governo que encarna a figura do anti-humano.


Sérgio Monteiro (Secretário de Estado das Obras Públicas) disse que Portugal não tem dinheiro para alimentar as "gorduras" das empresas de transportes públicos. Mas, depois de ter escutado as linhas gerais do seu plano estratégico para os transportes públicos, fiquei sem saber o que são as "gorduras". Paulo Campos (ex-Secretário de Estado) que, pelo que escutei, não merece grande credibilidade, pregou-lhe no final uma finta quando o confrontou com as incongruências do PSD, que antes de ser governo prometia uma coisa, e agora que é governo executa o contrário daquilo que tinha prometido para ganhar as eleições: o novo aeroporto e o TGV não foram abandonados pelo governo. Paradoxalmente, o governo de Passos Coelho comporta-se como o governo de José Sócrates, ou melhor, parece ser a sua versão em miniatura. A ambiguidade de Sérgio Monteiro em relação à construção da linha de Metro do Mondego deixou-me desconcertado. Em momentos cruciais, o governo esquece a austeridade vestida com as roupas da racionalização da pobreza e segue o interesse eleitoral, lembrando a sua filiação social-democrata. Mas a minha perplexidade não foi gerada apenas pelo diálogo entre Sérgio Monteiro e Paulo Campos: os convidados da plateia, entre os quais muitos autarcas, usaram arbitrariamente noções gerais - tais como coesão territorial, coesão social e mobilidade - para garantir a continuidade da própria irracionalidade que nos conduziu à bancarrota. Sérgio Monteiro perdeu a oportunidade para denunciar a irracionalidade vigente: cada "autarca" quer um aeroporto, uma linha de comboio, uma auto-estrada, enfim qualquer coisa móvel, na sua cidade ou vila. A mentalidade do investimento improdutivo - o investimento que endivida sem criar riqueza - continua a estar presente no imaginário político nacional. Muitos dos "exemplos" apresentados pelos autarcas são "gorduras" que devem ser liquidadas de raiz, mas Sérgio Monteiro silenciou a sua voz, deixando Paulo Campos sorrir de satisfação deslumbrada. Ora, este silêncio de Sérgio Monteiro é sintomático: o governo não tem uma visão de conjunto de Portugal e, na ausência dessa visão tão necessária para elaborar um plano de desenvolvimento estratégico, é incapaz de justificar as suas políticas sectoriais. Desgraçadamente, o governo está a perder a oportunidade de operar o salto qualitativo de Portugal, fintando o memorando da troika ao inserir as medidas de racionalização num projecto de crescimento económico e cultural. A execução do memorando da troika sem um projecto de desenvolvimento económico e cultural é um suicídio colectivo. O governo alega que não tem espaço de manobra e tempo para elaborar esse projecto, mas nenhum destes argumentos me convence. Eu penso que é possível cumprir inteligente e criticamente o memorando da troika sem sacrificar a economia e a cultura: o sector dos transportes públicos abre outras vias para além da execução cega, desde que o governo saiba dissolver o abuso ideológico das noções de coesão territorial e social e de mobilidade, eliminando o que não é rentável, rentabilizando aquilo que já é ou pode ser rentável e deixando as regiões desenvolvidas seguir os seus rumos sem as sacrificar nos altares lunáticos das regiões pobres. Se o governo tiver uma filosofia, o futuro não será necessariamente recessivo: os cortes podem ser realizados de modo a promover o desenvolvimento diferenciado do país. Portugal não precisa de mais áreas metropolitanas: as duas - Lisboa e Porto - que tem são suficientes para garantir o desenvolvimento nacional, desde que não sejam sacrificadas para alimentar os sonhos igualitários de regiões que precisam de implementar outros modelos diferenciais de desenvolvimento. A regionalização é necessária para barrar o lunatismo dos autarcas. Mais não digo para não gerar mais "inimigos", embora saiba o que é necessário fazer para arrancar Portugal desta situação de apuro: há, efectivamente, uma concepção de racionalidade amiga do crescimento económico e do desenvolvimento cultural. 


J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A Tragédia da República de Weimar

Franz Marc: Blue Horse, 1911
«A exibição brilhante desses exilados - Albert Einstein, Thomas Mann, Erwin Panofsky, Bertold Brecht, Walter Gropius, George Grosz, Wassily Kandinsky, Maz Reihardt, Bruno Walter, Max Beckmann, Werner Jaeger, Wolfgang Köhler, Paul Tillich, Ernst Cassirer - persuade a idealizar Weimar como única, uma cultura sem pressões e sem débitos, uma verdadeira idade do ouro. A lenda de Weimar começa com a lenda dos "anos dourados", a década de "vinte" (do século XX). Mas edificar esse ideal sem defeitos é trivializar as realizações da Renascença de Weimar e menosprezar o preço que ela teve de pagar por elas. A grandeza característica da cultura de Weimar desenvolveu-se, até certo ponto, a partir das suas criatividade e experimentação exuberantes; mas muito dela era ansiedade, medo e uma crescente sensação de condenação. Com alguma justiça, Karl Mannheim, um dos sobreviventes, gabava-se, pouco antes da sua renúncia, de que os anos futuros olhariam para trás para Weimar como uma nova era de Péricles. Mas foi uma glória precária, uma dança à beira do abismo. A cultura de Weimar foi criação de forasteiros, impelidos pela história para o seu interior, por um momento curto, vertiginoso e frágil.» (Peter Gay)

Tudo o que amo nesta vida é uma criação da Cultura de Weimar: as diversas tendências da filosofia contemporânea, com especial destaque da teoria crítica da Escola de Frankfurt, o expressionismo na pintura e na poesia, a grande literatura realista alemã, a teoria da relatividade de Einstein, a mecânica quântica, a psicanálise de Freud, o teatro de Weimar, a social-democracia, a Nova Objectividade, o cinema, a grande música, enfim a escola moderna de arquitectura e design, a Bauhaus. A República de Weimar (1919-1933) durou apenas quatorze anos e, nesse curto espaço de tempo, produziu uma cultura impressionante que marcou, para o bem e para o mal, o destino do Ocidente. A 24 de Março de 1933, a República de Weimar - a primeira democracia parlamentar da história da Alemanha - sofreu o seu golpe de misericórdia: a Câmara de Deputados (não-representativa) conferiu a Hitler plenos poderes. No dia seguinte, o diário nazi Völkischer Beobachter escreveu que «O sistema parlamentar capitula diante da nova Alemanha! Um grande empreendimento começa! Chegou o dia do Terceiro Reich!» No mesmo ano, a 27 de Maio, logo após os nazis terem tomado o poder, Heidegger fez um discurso inaugural como reitor da Universidade de Freiburg: «A Universidade alemã mantendo-se frente a tudo e contra tudo, não é outra coisa do que a vontade que quer em comum a sua essência em conformidade com a origem. A Universidade alemã é para nós a Escola Superior que, a partir da ciência e graças à ciência, pretende educar e disciplinar os dirigentes que velam pelo destino do povo alemão. O querer que quer a essência da Universidade alemã quer ao mesmo tempo a ciência, na medida em que quer a missão historicamente espiritual do povo alemão como povo que se reconhece no seu Estado. É preciso que ciência e destino alemão acedam juntos - na vontade de essência - ao poder. E consegui-lo-ão, e só o conseguirão, se nós - corpo de mestres e corpo de alunos - em primeiro lugar fizermos face ao destino alemão na sua extrema urgência». Se a hermenêutica subtil do discurso do reitorado pode encobrir o envolvimento nazi de Heidegger, as outras alocuções proferidas não deixam dúvidas quanto ao seu envolvimento. Com efeito, uma alocução proferida a 17 de Maio de 1933 revela a falsidade dessa hermenêutica: «O chanceler do Reich, nosso grande dirigente, acaba de falar. Às outras nações e povos cabe agora decidir. /Nós decidimo-nos. Resolvemos tomar o caminho difícil da nossa história, aquele que é exigido pela honra da nação e pela grandeza do povo. /Decidimo-nos, e sabemos o que essa resolução supõe. Implica duas coisas: a disponibilidade para ir até aos limites do possível e a camaradagem até ao último extremo. É numa tal resolução que vamos agora voltar ao trabalho. Ainda mais uma vez: que todo o trabalho deste semestre - grande ou pequeno - se faça sob este signo: disponibilidade e camaradagem. /Ao nosso grande dirigente Adolf Hitler um Sieg Heil alemão». Não vale a pena tentar colocar Lenine e Hitler no mesmo plano para branquear o nazismo e o envolvimento nazi de Heidegger. Lenine faz parte de outra tradição que não tem nada a ver com o totalitarismo. Na sua obra A Crise da Social-Democracia, Rosa Luxemburgo falou da sociedade burguesa nestes termos enfáticos: «Porca, desonrada, patinhando no sangue, coberta de lama - é assim que se apresenta a sociedade burguesa; é assim que ela é. Não quando, impecável e virtuosa, mima a Cultura, a Filosofia e a Ética, a Ordem, a Paz e o Estado de direito - mas sim enquanto monstro feroz, enquanto bacanal de anarquia, enquanto miasma mortal para a cultura e a humanidade: é assim que ela põe a nu a sua verdadeira face». E, a propósito de Luís-Napoleão Bonaparte, Engels já tinha mostrado que, em condições favoráveis, «o sufrágio universal pode ser transformado em instrumento de repressão das massas». A tomada do poder por Hitler numa república sem republicanos veio confirmar a tese sábia de Engels.


O objectivo deste texto não é fornecer uma interpretação da República de Weimar, mostrando como as suas contradições internas ditaram a sua própria derrota, tarefa que já levei a cabo em escritos de juventude quando alguns dos meus colegas nazis me acusavam de ser "judeu" (sic). Mas antes de passar às referências bibliográficas, o objecto deste texto, vou apresentar algumas teses "dogmáticas" sem as demonstrar. Reparem nesta sequência de acontecimentos: Alemanha Imperial > Primeira Guerra Mundial > Derrota Humilhante da Alemanha > República de Weimar > Ascensão do Nazismo > Segunda Guerra Mundial. Agora confrontem-na com esta sequência de acontecimentos portugueses: Monarquia > Revolução Republicana > Primeira República > Ditadura (Segunda República) > 25 de Abril > Terceira República. O confronto permite definir o atraso estrutural e histórico de Portugal. A Primeira República Portuguesa não teve o brilho da República de Weimar, mas ambas foram derrotadas por movimentos totalitários: o nazismo na Alemanha que mergulhou a Europa na Guerra, e o salazarismo em Portugal. E hoje, à medida que a Europa se desagrega, caminhamos na direcção de um novo totalitarismo: os alemães recuperam os seus sonhos imperiais e os portugueses, burros como são, anseiam pela chegada de um novo ditador. Detecta-se facilmente a existência de um ciclo entre democracia e ditadura. Na Europa, este ciclo assume a forma de um ciclo entre social-democracia e totalitarismo, sendo o totalitarismo uma experiência de Direita. Até aqui nada mais fiz do que explicitar uma ideia avançada pela Escola de Frankfurt, mas, na peugada de Walter Benjamin, quero ir mais longe, responsabilizando a própria social-democracia pelas suas derrotas periódicas. A derrota da República de Weimar e a actual desagregação da Europa obrigam-nos a criticar severamente a social-democracia. Face a estes acontecimentos, não podemos continuar a defender a social-democracia: a Esquerda deve regressar aos seus textos originais e pensar um novo projecto político que anule de vez os erros da social-democracia como projecto político. A social-democracia não tem, objectivamente, futuro: ela nada mais é do que a outra face de um mesmo mito - a ideia de progresso - que alimenta a gula do capitalismo. De certo modo, os grandes triunfos do capitalismo foram alimentados e promovidos pela social-democracia. Enterrar a social-democracia, a grande aliada do capitalismo, deve ser a primeira tarefa a ser realizada pela nova Esquerda revolucionária que não pode confiar nas massas. O Ocidente já não está sozinho no mundo e a nova Esquerda deve saber usar a ansiedade e o medo que isso gera nas massas para revitalizar o Ocidente, preparando-o para uma nova fase heróica: a reconquista do mundo. Ao recuperar a sua própria tradição teórica e histórica, a nova Esquerda está a recuperar e a resgatar toda a tradição ocidental. Este duplo-resgate, sendo um único e mesmo resgate, priva o totalitarismo da sua base de apoio de massas. A reunificação da Esquerda é fundamental para levar a cabo esta tarefa de tentar evitar o advento do novo totalitarismo. Meus amigos de Esquerda: palavras de ordem, como, por exemplo, liberdade, justiça, igualdade, solidariedade, não movem as massas em períodos de insegurança extrema. Aliás, elas nem sequer deviam constar na agenda política de Esquerda, cuja experiência social-democrata mostra o seu fracasso total. Enquanto não mudar radicalmente o seu vocabulário filosófico e político, a Esquerda está condenada a produzir periodicamente a sua própria derrota. Esta crise profunda que ameaça o destino do Ocidente deve constituir uma nova oportunidade para a Esquerda corajosa que ainda ousa sonhar com o resgate de toda a história do mundo. O que está em jogo neste mundo global não é o modelo social europeu, mas sim o próprio destino do Ocidente. Não há escolha entre o modelo social europeu e o futuro do Ocidente: a prioridade é garantir o domínio ocidental, o resto pode ser sacrificado. Grande Política é aquela que tudo faz para garantir o domínio ocidental, sem temer o recurso à guerra para o conseguir. Mas há outra via a seguir: operar de modo inteligente recuos sociais, económicos, políticos e culturais. Muitas vezes as pessoas pensam que os recuos sociais implicam retrocesso civilizacional, mas este pensamento está errado: a ideia de progresso é que conduz não só ao retrocesso civilizacional, mas sobretudo à catástrofe. Abandonar a ideia de progresso implica deixar de colonizar o futuro com projectos de paraísos terrestres. Um ser mortal não pode sonhar com nenhum tipo de imortalidade: a aventura humana está condenada à destruição. Nada, absolutamente nada, neste mundo caduco, está a salvo da destruição e da morte.


Referências bibliográficas:


1. Peter Gray, A Cultura de Weimar.
2. Lionel Richard, A República de Weimar.
3. Ludwig Dehio, A Alemanha e a Política Mundial no Século XX.
4. Erich Fromm, Fuga da Liberdade.
5. Hajo Holborn, O Colapso Político da Europa.
6. Max Horkheimer, ed., Estudos sobre Autoridade e Família.
7. Herbert Marcuse, Razão e Revolução.
8. Franz L. Neumann, Behemoth: A Estrutura e a Prática do Nacional-Socialismo.
9. Arthur Rosenberg, O Nascimento da República Alemã, 1871-1918.
10. Carl E. Schorske, A Social-Democracia Alemã, 1905-1917.
11. Gustav Stolper, A Economia Alemã, 1870-1940.
12. Georg Lukács, A Destruição da Razão.
13. Wilhelm Reich, A Psicologia de Massas do Fascismo.
14. Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo.
15. Kurt Sontheimer, Pensamento Anti-Democrático na República de Weimar: As ideias políticas dos nacionalismos alemães entre 1918 e 1933. Excelente.
16. Ralf Dahrendorf, Sociedade e Democracia na Alemanha.
17. Robert Michels, Partidos Políticos: Um estudo sociológico das tendências oligárquicas da moderna democracia.
18. Armin Mohler, A Revolução Conservadora na Alemanha 1918-1932.
19. Leonard Shapiro, As Origens do Absolutismo Comunista.
20. Georges Goriély, Hitler Toma o Poder.
21. Allan Bullock, Hitler ou os Mecanismos da Tirania.
22. Ernst Nolte, O Fascismo na sua Época.  


J Francisco Saraiva de Sousa 

domingo, 27 de novembro de 2011

Porto: Casa do Infante, Museu Arqueológico





A Casa onde nasceu o Infante D. Henrique, é hoje Museu Arqueológico: a presença romana na cidade do Porto é evidenciada na segunda fotografia. A História do Porto Romano ainda está por fazer. Não concordo com as leituras oficiais do Porto Romano, nomeadamente com aquela que foi apresentada por Jorge Alarcão. As escavações realizadas na Casa do Infante desmentem a leitura pouco séria de Jorge Alarcão: os solos profundos do Porto guardam tesouros arqueológicos e históricos. A minha conjectura é a de que podemos reconstituir e reconstruir a História do Porto desde a Idade do Bronze até ao presente.


J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 26 de novembro de 2011

Antropologia Filosófica no Scribd

Ponte da Arrábida ao anoitecer, Porto


Leia aqui uma recolha de alguns textos de antropologia filosófica da minha autoria: Scribd. (É só clicar em Scribd para ler!)

J Francisco Saraiva de Sousa

A Grandeza da Historiografia Soviética

Igreja de São Francisco, Porto
«Os primeiros que ousaram empreender viagens longínquas pelos mares foram os portugueses. O valente navegador Bartolomeu Dias, viajando para o Sul, ao longo das costas da África, chegou a um cabo, na África meridional, a que chamou Cabo da Boa Esperança (1486). /Outro navegador, Vasco da Gama, contornando a África, atravessou o oceano Índico e chegou às costas da Índia (1498). A partir de então, os portugueses começaram o saque da Índia, trazendo dali as apreciadas mercadorias orientais: pepitas de ouro, marfim, pedras preciosas e tecidos de seda. Os portugueses desalojaram os mercadores árabes da Índia e fundaram as suas colónias.» (E. A. Kosminsky)


Hoje sabemos que o chamado Mundo Livre é uma tremenda mentira forjada pelos ideólogos do capitalismo para levar a cabo a sua globalização. A crítica do marxismo soviético realizada por Herbert Marcuse deve ser alargada à crítica imanente do chamado mundo livre, o qual foi sempre uma ficção que, com a Queda do Muro de Berlim, se converteu num pesadelo. Ao criticar a ideologia neoliberal, somos forçados a reavaliar a crítica que Marcuse fez do marxismo soviético. Nas suas tendências fundamentais, a crítica de Marcuse é justa: a conversão da dialéctica numa concepção do mundo é um empreendimento que deve ser condenado. Porém, não podemos inviabilizar todo o pensamento soviético, como se ele fosse uma ideologia promulgada pelo Kremlin para racionalizar e justificar a sua política. A URSS não foi aquilo que a propaganda "ocidental" diz ter sido, e, para dizer a verdade em poucas palavras, os políticos "ocidentais" - tanto os de ontem como os de hoje - não merecem a credibilidade que atribuímos a Lenine. Até mesmo Estaline está situado num plano mental e cognitivo superior ao dos actuais políticos europeus, como demonstrou Wrigth Mills. Apesar dos seus excessos e erros, o marxismo soviético nunca promoveu uma política anti-cultural. Marcuse reconheceu-o claramente e, por isso, a sua crítica imanente do marxismo soviético não assumiu a forma de uma condenação. Há duas áreas do pensamento soviético que Marcuse menosprezou: um vasto sector do pensamento jurídico, recuperado por Umberto Cerroni,  e a historiografia. O pensamento de Lenine já foi analisado em diversas vertentes, mas ainda não se descobriu o Lenine Historiador, cuja obra aponta para além da "ciência da História", propondo a figura do marxismo como análise teórica e política da situação presente. Tanto quanto sei, nem sequer os historiadores soviéticos pensaram Lenine como historiador: a sua referência básica foi sempre Karl Marx, cuja "autoridade matricial" nunca foi questionada pelo Kremlin. A historiografia soviética produziu uma História Mundial da Civilização que merece ser lida e usada como manual universitário. Os cinco volumes que a compõem são os seguintes, podendo ser lidos em tradução portuguesa:


1. História da Antiguidade de A. V. Michulin. Depois de recapitular a vida dos homens primitivos, Michulin mostra-nos como surgiram os Estados Esclavagistas, relatando a história do Oriente antigo, da Grécia e de Roma.
2. História da Idade Média de E. A. Kosminsky. Analisa o período histórico que começa com a queda do Império Romano do Ocidente, em fins do século V, e termina com os primórdios dos tempos modernos, iniciados com a Revolução Industrial em Inglaterra.
3. História Moderna de N. Efimov. Começa com a análise do período que antecede a Revolução Francesa (1789) e termina nos dias que precedem a Comuna de Paris (1871).
4. História Contemporânea de V. Jvostov & L. I. Zubok. Começa com o episódio revolucionário da Comuna de Paris e termina com a Revolução de 1917.
5. História dos Tempos Actuais de V. G. Revunenkov. Analisa a evolução dos acontecimentos ocorridos na primeira metade do século XX. Convém lembrar que a historiografia soviética considerava apenas, no âmbito da História Contemporânea, o período posterior à Revolução de Outubro de 1917 ou quanto muito à Comuna de Paris (1871): contemporâneo era o sistema socialista, para o qual o sistema capitalista passou a ser uma época remota. Há aqui um critério ideológico que não deve eclipsar as contribuições do marxismo aos estudos históricos, de resto destacadas por Jean Bruhat no ensaio anexado a este último volume da História Mundial da Civilização. 


Além desta obra colectiva, destaco mais três grandes obras, duas das quais da autoria de M. Rostovtzeff que emigrou para os Estados Unidos após a Revolução de 1917, sem no entanto ter abandonado os ensinamentos de Marx:


6. E. A. Kosminsky (1956), Studies in the Agrarian History of England in the Thirteenth Century. Obra fundamental para compreender a concepção marxista do feudalismo e, em especial, a noção de renda feudal.
7. M. Rostovtzeff (1973), História da Grécia. Rostovtzeff dispensa apresentações: foi o primeiro historiador a analisar as economias antigas em termos de capitalismo e de revoluções. As suas duas grandes obras - Social and Economic History of the Roman Empire (2 vols., 1926) e Social and Economic History of the Hellenistic World (3 vols., 1941) - dirigem a atenção dos historiadores dos acontecimentos políticos ou militares para os grandes problemas económicos e sociais do mundo antigo.
8. M. Rostovtzeff (1973), História de Roma. Os historiadores franceses gostam de monopolizar a História, como se esta fosse uma invenção exclusivamente francesa. A esta ideologia historiográfica francesa devemos opor o papel pioneiro da historiografia alemã e russa. Quem queira conhecer o mundo antigo deve começar por ler as obras pioneiras de M. I. Rostovtzeff, E. Meyer e T. Mommsen.


J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Armando Castro e Renovação da Economia Marxista

Armando Castro
(Porto, 1918-99)
«Ao cabo de vários meses de um lento apagamento irreversível, Armando Castro, quase imobilizado, morreu no dia 18 (16) de Junho, a poucos dias de completar os 79 anos de idade.
«Formado em Direito com excelentes classificações, teve de acumular o seu trabalho de investigação com o exercício de uma profissão de advogado, e ainda em 1973 denunciava a proibição de um seu curso particular superior, de teorização da história económica; mas basta prestar atenção ao seu largo currículo de estudos publicados, para se descobrir a sua estreita dependência dos seminários e encontros, a que se ficou devendo os meios e os arquivos ingleses, franceses, hispânicos, e até colecções regionais de documentos que lhe permitiram completar, continuar ou corrigir as obras clássicas, e que em particular desmentem a sua directa e incrítica sequência directa de sínteses, que tanto seriam (pretensamente, segundo ouvi) os textos de Herculano, Gama Barros, Oliveira Martins, Lúcio de Azevedo ou Jaime Cortesão, etc, que ele aproveita e critica de modo tão livre e independente. O leitor facilmente encontra referências à Torre do Tombo, a arquivos estrangeiros ou regionais, que a incapacidade de alguns críticos dificilmente sentiam ao alcance de um advogado sem privilégios académicos – é que, a cada passo, tinha de adiar o trabalho profissional de advogado e preparar seminários ou conferências, tinha que escrever artigos de pretexto comemorativo, para se manter em dia e poder e travar conhecimento com especialistas, e de utilizar um bom ensejo local de investigação por sua conta. Foram pelo menos dois decénios de um esforço de que é natural poucos se sentirem capazes e que só uma disciplina férrea lhe permitiu manter, dos anos trinta aos anos setenta, quando o 25 de Abril lhe bateu à porta na figura já gasta mas intrépida do Professor Ruy Luís Gomes, que lhe abriu as portas de uma Faculdade.
«Dispôs só de 13 anos para, num ambiente novo e incerto, patentear aos alunos a sua reflexão, os seus dossiers e as suas fichas – que lá ficaram, na Faculdade, como trabalho para continuar e ultrapassar: a vida renova-se cada dia, e a ciência, quando represa, renova-se mais ainda.
«Apenas uma indicação bibliográfica sumária, que aponta no sentido do avanço patente das suas próprias reacções: Revolução Industrial em Portugal no Século XIX, 3.ª edição, 1976 (1.ª, 1945); A Evolução Económica em Portugal nos Séculos XII a XV, 1964-1970, nove volumes, seguido do 10.º Limiar, 1965, e do 11.º, Caminho, 1980, obra várias vezes reeditada com variantes e lançada e mantida por teimosia quase heróica de Augusto Costa Dias; História Económica de Portugal, I e II, Caminho, 1978-1981; Estudos de História Sócio-Económica Portuguesa, 1972 (constituída em grande parte de fichas extratadas do Dicionário da História de Portugal). A partir de 1975 publica uma série sobre a Teoria do Conhecimento Científico. A revista Vértice, entre outras, contém artigos comemorativos sobre Gil Vicente, Camões, Fernão Mendes Pinto, etc, e devem-se-lhe dois estudos que focam as condições ideológicas da História da Literatura Portuguesa, entre 1890-1910 e 1925-1985, numa história então publicada em fascículos. E publicou três breves e luminosos ensaios sobre a génese de Portugal e sobre a Revolução de 1385, baseados num curso que organizou para a Universidade Popular do Porto. Além destes dados, que fazem sentir a necessidade de uma Bibliografia que dê conta das numerosas reedições refundidas, ou simplesmente revistas e actualizadas da sua obra, e de artigos dispersos em numerosas revistas, o que tudo caberia bem num In Memoriam, ou acto público de homenagem – Armando Castro deixa, na lembrança de quantos o conheceram, a imagem de um incomparável amigo, sempre atento, sempre disponível, e tão incapaz da mera verrina de endereço pessoalista, como discretamente irónico, e desprendido do valor das suas próprias intervenções.» (Óscar Lopes, In Memoriam, 1999)


Carlos Bastien dedicou um artigo ao estudo da Obra Económica de Armando Castro, que, apesar do seu carácter lacunar e escolar, tem o mérito de chamar a atenção para a crítica da economia neoclássica levada a cabo por este economista marxista português, em nome da renovação da teoria do valor-trabalho. A crítica da economia neoclássica elaborada por Armando Castro não é original: encontramo-la - plenamente realizada - na obra de Maurice Dobb e Leo Huberman, para só referir estes dois economistas marxistas. Sendo marxista, Armando Castro não concebe a Economia separada da História ou mesmo da Filosofia: «O método de Marx, diz Lukács, "é, na sua essência mais íntima, histórico". Isto é, sem dúvida, certo, e qualquer exame do problema (económico) que deixe de acentuar tal aspecto (histórico) não pode ser considerado satisfatório» (Paul Sweezy). A originalidade de Armando Castro reside no facto de ter lido a história económica de Portugal à luz do marxismo: toda a sua obra gira em torno da construção marxista da história económica de Portugal. Armando Castro permanece fiel ao pensamento ortodoxo quando distingue entre a "ciência da História" fundada por Marx (materialismo histórico) e a Filosofia que dela deriva (materialismo dialéctico), de resto definida como teoria científica do conhecimento: as preocupações epistemológicas de Armando Castro derivam da necessidade de construir um novo objecto - a história económica de Portugal, clarificando, ao mesmo tempo, os princípios epistemológicos subjacentes a tal construção teórica. A teoria do conhecimento de Armando Castro não é algo exterior à sua própria actividade científica: Armando Castro faz a filosofia da sua própria obra científica, não uma filosofia espontânea de cientista económico-social, mas uma filosofia elaborada na sua série Teoria do Conhecimento Científico. Esta articulação entre história e teoria económicas e epistemologia encontra-se desde logo na sua grande obra que é A Evolução Económica em Portugal nos Séculos XII a XV (1964-80), cujo "módulo conceitual, historicizante e teórico", clarifica o sistema sócio-económico medieval português, ao mesmo tempo que contribui para a elaboração de uma teoria geral do feudalismo, em articulação com a teoria do conhecimento que, nesta obra, reveste a forma da Economia Política da Sociedade Medieval Portuguesa. Infelizmente, o contributo de Armando Castro para a teoria geral do modo de produção feudal foi "ignorado" pelo pensamento marxista europeu, mas este facto não lhe pode ser atribuído: o seu contributo é digno de mérito e cabe aos estudiosos portugueses - Será que existe esta espécie de mamíferos pensantes em Portugal? - da sua obra divulgá-lo e torná-lo mundialmente conhecido, de modo a dar-lhe a prioridade que merece nas descobertas realizadas neste campo da pesquisa sócio-económica dos modos de produção pré-capitalistas (Barry Hindess & Paul Q. Hirst, 1975). Como é evidente, não concordo com muitos aspectos da teoria do conhecimento de Armando Castro - ou mesmo da sua teoria da transição do feudalismo para o capitalismo -, onde vejo em acção um desvio positivista, mas ela tem ainda uma palavra a dizer neste contexto de crise financeira, económica, social e política da Europa. (Quem não tenha coragem para ler os onze volumes que constituem A Evolução Económica, pode ler Portugal na Europa do seu Tempo: História sócio-económica medieval comparada.)


Anexo. Além da obra de Armando Castro, sobretudo d'A Evolução Económica em Portugal nos Séculos XII a XV, recomendo as seguintes obras sobre a Idade Média Portuguesa:


1. A. de S. Silva Costa Lobo (1904), História da Sociedade Portuguesa no Século XV.
2. Henrique da Gama Barros (1835-1922), História da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV, 4 tomos. (Há reedição em 11 vols., 1948-54.)
3. A. H. Oliveira Marques (1987), Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV.
4. José Mattoso (1981, 1997), A Nobreza Medieval Portuguesa: a família e o poder.
5. José Mattoso (1982, 1997), Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa.
6. José Mattoso (1985, 1992), Portugal Medieval: novas interpretações.
7. Álvaro Cunhal (1975), As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média.
8. António José Saraiva (1990), O Crepúsculo da Idade Média em Portugal.
9. António Borges Coelho (1977), A Revolução de 1383.
10. Joel Serrão (1946), O Carácter Social da Revolução de 1383.


J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

História Económica de Portugal?

«Nos últimos dois séculos, a economia portuguesa registou importantes transformações estruturais que se traduziram no crescimento da produtividade da mão-de-obra e, consequentemente, no crescimento do rendimento nacional por habitante. Contudo, os progressos registados na economia portuguesa não foram suficientes para que o país vencesse o fosso que o tem separado dos níveis médios de produtividade e de rendimento dos países mais desenvolvidos da Europa. Crescimento e atraso têm convivido de forma persistente na história económica de Portugal.
«Os dois lados do desenvolvimento económico português não mereceram até tempos mais recentes, por parte dos historiadores, o mesmo grau de atenção. De facto, a maioria dos estudos sobre a economia portuguesa é ainda centrada em tentativas de explicação do atraso económico do país, sendo claramente relegada para um plano secundário a preocupação em explicar a profunda alteração que a economia sofreu. A desigualdade de tratamento do progresso e do atraso é mais evidente nos estudos sobre o século xix, mas está também presente nos trabalhos sobre o período entre as duas guerras mundiais ou, o que é mais surpreendente, nos estudos sobre o período de rápido crescimento entre sensivelmente 1945 e 1973.» (Pedro Lains, 2008)


Chamaram a minha atenção para a publicação da História Económica de Portugal de Leonor Freire Costa, Pedro Lains e Susana Munch Miranda (A Esfera dos Livros, 2011), como se esta obra cobrisse de algum modo aquilo a que chamei O Fracasso da Historiografia Portuguesa. Confesso que ainda não li a obra que trata da "evolução económica" de Portugal de 1143, data da fundação do reino, até 2010. Mas li um artigo de Pedro Lains, donde saquei a citação em epígrafe, e não me identifico - teoricamente falando - com a abordagem teórica que preside à elaboração da História Económica de Portugal: o paradigma económico usado viola o espírito das épocas passadas, supondo uma continuidade lá onde ela não existe de todo, e as conclusões são decepcionantes. Pedro Lains dá por adquirido aquilo que é questionável: a sua visão teórica da economia, o que o leva a menosprezar o debate teórico em torno da economia e a extrapolar para o passado aquilo que pertence ao nosso tempo indigente. Em face destas lacunas cruciais, duvido que a sua obra tenha sido capaz de periodizar correctamente a História de Portugal: a ideologia do crescimento da produtividade e do rendimento apaga todas as diferenças históricas, sendo incapaz de explicar o próprio atraso da economia portuguesa quando comparada com as economias desenvolvidas. Não sei quando terei oportunidade de ler o livro, porque, depois de ter escutado a entrevista de Pedro Lains na SicNotícias (23 de Novembro), não fiquei entusiasmado para ir comprá-lo. Do artigo de Pedro Lains partilho aqui as Referências bibliográficas, onde predominam as referências neoliberais:

ALDCROFT, Derek, Europe’s Third World. The European Periphery in the Interwar Years, Aldershot, Ashgate, 2006. 
AMARAL, Luciano, How a Country Catches Up. Explaining Economic Growth in Portugal in the Post War Period, 1950 to 1973, dissertação de doutoramento, Instituto Universitário Europeu, Florença, 2002. 
BATISTA, D., MARTINS, C., PINHEIRO, M., e REIS, J., «New estimates for Portugal’s GDP, 1910-1958», in História Económica, n.º 7, 1997, pp. 1-128.  
CABRAL, M. Villaverde, O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX, Lisboa, A Regra do Jogo, 1981 (1.ª ed., 1976). 
CASTRO, Armando,  A Revolução Industrial em Portugal, Porto, Limiar, 1978 (1.ª ed., 1947). 
COSTA, B. C. Cincinnato da, e CASTRO, Luís de (orgs.), Le Portugal ou Point de vue agricole, Lisboa, Imprensa Nacional, 1900. 
CRAFTS, Nicholas e TONIOLO, Gianni (orgs.),  Economic Growth in Europe since 1945. Cambridge, Cambridge University Press, 1996. 
GODINHO, V. Magalhães, Estrutura da Antiga Sociedade PortuguesaLisboa, Arcádia, 1980 (1.ª ed., 1975).  
GOMES, M. de Azevedo, A Situação Económica da Agricultura Portuguesa, Lisboa, Museu Comercial, 1920. 
GOMES, M. Azevedo, BARROS, H. de, e CASTRO CALDAS, E. de, «Traços principais da evolução da agricultura portuguesa entre as duas guerras mundiais», in Revista do Centro de Estudos Económicos, n.º 1, 1944, pp. 21-203. 
LAINS, Pedro, Os Progressos do Atraso. Uma Nova História Económica de Portugal, 1842-1992,  Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2003. 
LAINS, Pedro, «The power of peripheral governments. Coping with the 1891 financial crisis in Portugal», Historical Research (no prelo). 
LAINS, Pedro e SILVA, A. Ferreira da (orgs.),  História Económica de Portugal, 1700-2000, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2005, 3 vols. 
LAINS, Pedro, e SOUSA, P. Silveira e, «Estatística e produção agrícola em Portugal», in Análise Social, vol. 33, 1998, pp. 935-968. 14
LANDES, David S., The Wealth and Poverty of Nations. Why Are Some So Rich and Others so Poor?¸ New York, W.W. Norton, 1998. 
LEITÃO, Nicolau Andresen, «A flight of fantasy? Portugal and the first attempt to enlarge the European Community, 1961-1963», Contemporary European History, vol. 16 (1), 2007, pp. 71-87. 
LOPES, J. da Silva, A Economia Portuguesa desde 1960, Lisboa, Gradiva, 1996. 
MARTINS, J. P. de Oliveira, Portugal Contemporâneo, Lisboa, Guimarães Editores, 1979 (1.ª ed., 1881). 
MATEUS, Abel, A Economia Portuguesa desde 1910. Crescimento no Contexto Internacional, 1910-1998,  Lisboa, Editorial Verbo, 2001 (1.ª ed. 1998). 
Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1789 -1815 (ed. de J. L. Cardoso), Lisboa, Banco de Portugal, 1991, 5 vols. 
MOURA, F. Pereira de,  Por Onde Vai a Economia Portuguesa?, Lisboa, Seara Nova, 1973 (1.ª ed., 1969). 
MOURA, F. Pereira de, PINTO, L. M. Teixeira, e NUNES, M. Jacinto, «Estrutura da economia portuguesa», in Revista do Centro de Estudos Económicos, n.° 14, 1954, pp. 9-219. 
NEVES, J. César das, The Portuguese Economy. A Picture in FiguresLisboa, Universidade Católica Portuguesa, 1994. 
NEVES, J. César das, «Portuguese post-war growth. A global approach»,  in N. Crafts e G. Toniolo (orgs.),  Economic Growth in Europe since 1945, Cambridge, Cambridge University Press, 1996. 
PEREIRA, J. de Campos, Economia e Finanças. A Propriedade Rústica em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1915. 
PEREIRA, M. Halpern,  Livre-Câmbio e Desenvolvimento EconómicoLisboa, Sá da Costa Editora, 1983 (1.ª ed., 1971).  
PEREIRA, M. Halpern, Diversidade e Assimetrias. Portugal nos Séculos XIX e XX, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2001. 
PERY, Gerardo, Geografia e Estatística Geral de Portugal e ColóniasLisboa, Imprensa Nacional, 1875.  
PINHEIRO, Maximiano (org.),  Séries Longas para a Economia Portuguesa, Lisboa, Banco de Portugal, 1997, 2 vols.  
PINTADO, Xavier,  Structure and Growth of the Portuguese EconomyLisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002 (1.ª ed., 1964).  
PINTO, A. Costa e REZOLA, M. Inácia, «Political catholicism, crisis of democracy and Salazar’s New State in Portugal»,  Totalitarian Movements and Political Religions, Vol. 8 (2), 2007, pp. 353–368. 15
POLLARD, Sidney, Peaceful Conquest. The Industrialization of Europe, 1760-1970, Oxford, Oxford University Press, 1994 (1ª ed. 1981).  
QUENTAL, Antero de, «Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos», in Joel Serrão (org.), Antero de Quental. Prosas Sócio-Políticas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1982. 
REIS, Jaime, O Atraso Económico Português em Perspectiva Histórica, 1850-1930, Lisboa, Imprensa Nacional, 1993.  
ROSAS, Fernando,  Salazarismo e Fomento Económico, 1928-1948. Primado do Político na História Económica do Estado Novo, Lisboa, Editorial Notícias, 2000. 
SÉRGIO, António (org.), Antologia dos Economistas Portugueses. Século XVII. Obras em Português, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1924. 
SERRÃO, Joel, «Prefácio», in J. Serrão e G. Martins (orgs.), Da Indústria Portuguesa. Do Antigo Regime ao Capitalismo, Lisboa, Livros Horizonte, 1978. 
SILVA, L. A. Rebelo da, Compêndio de Economia Rural para Uso das Escolas Populares, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 
SOARES, R. Morais,  Relatório da Direcção-Geral do Comércio e Indústria, Lisboa, 1873. 
VALÉRIO, Nuno, (org.),  Estatísticas Históricas Portuguesas, Lisboa, Instituto Nacional de Estatística, 2001, 2 vols.

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Greve Geral



Amigos e Amigas: Amanhã (24 de Novembro) é dia de Greve Geral. Façam o favor de aderir à Greve e de protestar nas ruas e praças de Portugal!


Recordo o primeiro parágrafo do meu texto sobre Traição dos Intelectuais

Em Portugal, todos temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça. Segundo Georges Lefebvre, a fome despertou os franceses para a Revolução de 1789: a fome é o mais universal de todos os instintos universais, porque é a fome que nos leva a conservar a nossa vida - o suum esse conservare de Espinosa! - e que põe os restantes instintos em movimento. Freud enganou-nos quando estabeleceu o instinto sexual como o mais primário e o mais forte de todos os instintos: nós podemos viver sem satisfazer o instinto sexual ou mesmo sem o sublimar, mas não podemos viver sem saciar a nossa fome. A fome que foi silenciada por Freud, a busca de alimentos é, conforme mostrou Ernst Bloch - o apetite comum a todas as criaturas vivas, do qual procedem os outros instintos imediatos e as tendências acompanhadas da percepção, isto é, os movimentos do sentimento e as emoções. Ora, ainda segundo Bloch, a esperança é o afecto mais importante, o modo humano do instinto de conservação. A esperança é, portanto, algo biologicamente constitutivo da existência humana e, quando é frustrada, tende a tornar-se activa como impulso de auto-expansão para diante. A fome renova-se constantemente e cresce de modo ininterrupto. Ora, quando não tem nenhuma perspectiva de pão seguro, como sucede hoje em Portugal, revolta-se e procura mudar a situação: emerge assim o interesse revolucionário que diz não ao mal-existente e que diz sim ao futuro antecipado. A privação de alimentos faz da fome uma docta fames, uma fome esclarecida e instruída que converte a auto-conservação em auto-expansão, estimulando os sonhos diurnos de uma vida melhor. A referência à teoria da docta spes de Bloch revela a actualidade da sua filosofia da esperança, ao mesmo tempo que trava o canto de triunfo neoliberal de Raymond Aron: o capitalismo não sacia a fome dos famintos. A Queda do Muro de Berlim teve diversas consequências desastrosas para o mundo e, em especial, para o Ocidente, uma das quais foi a alteração da geopolítica da fome, para usar a expressão de Josué de Castro: a fronteira da fome subiu para a Europa (Adriano Moreira) e, neste momento de crise, a fome está instalada na Europa mediterrânica. O colapso do comunismo permitiu ao capitalismo regressar triunfal e explicitamente àquilo que sempre foi: um sistema de exploração do homem pelo homem. Mas com uma agravante: a ascensão da classe dos gestores e dos economistas neoliberais fortaleceu de tal modo o capital financeiro que destruiu o tecido produtivo dos países, como se pudéssemos viver indefinidamente do cartão de crédito - da expansão do crédito - que alimentou a gula irracional dos banqueiros, dos especuladores e dos mercados financeiros. Com estas escassas indicações, subverto - invertendo-a - a tese elaborada por Aron: o ópio dos intelectuais - antes e, sobretudo, depois da Queda do Muro de Berlim - não é o marxismo mas o próprio neoliberalismo que os privou de uma perspectiva de futuro, como se acreditassem que o capitalismo fosse capaz de satisfazer uma agenda de meras reivindicações, incluindo a reivindicação dos direitos dos animais, no quadro da própria sociedade capitalista. Os intelectuais de esquerda viveram alienados até ao estalar da crise de 2008: eles limitaram-se a reivindicar direitos sem questionar o próprio capitalismo. A crise de 2008 apanhou-os completamente nus e desprevenidos: o capitalismo mundial ameaça privá-los de todos os direitos adquiridos e eles não têm alternativas, porque, abismados na sua alucinação mágica, deixaram de exercer a crítica da ideologia. Os intelectuais alucinados traíram a humanidade e o mundo: eles são co-responsáveis pela miséria presente. Entregue a si mesmo e à sua própria ideologia da auto-regulação do mercado, o capitalismo gera ininterruptamente pobreza e miséria. Não é possível pensar um mundo novo fora do marxismo adulto: estamos, portanto, condenados a ser de algum modo marxistas, no sentido de estarmos empenhados na tarefa de pensar alternativas ao capitalismo, o grande mal-existente que conduz a aventura humana à catástrofe. A Grande Esperança (Jean Fourastié) depositada na capacidade do capitalismo para abolir a pobreza, através do desenvolvimento tecnológico e do aumento da produtividade, converteu-se, no nosso tempo mental e cognitivamente indigente, em pesadelo: o capitalismo não pode abolir aquilo que ele próprio gera, a desigualdade social, a pobreza, a miséria e a guerra. As expressões capitalismo da esperança ou o seu equivalente mais recente - capitalismo da felicidade, este monstro ideológico pensado pela economia comportamental, são oxímoros: onde há capitalismo não há esperança ou felicidade possível; o capitalismo é o mal-existente, contra o qual devemos lutar incondicionalmente. A abundância dos economistas burgueses é hoje pobreza, não só material mas também espiritual, porque a condição operária - o trabalho - foi combatida em nome de uma falsa ociosidade que privou os homens do seu próprio espírito: a intervenção dos economistas na esfera política foi e é fatal para o espírito humano. Doravante, o poder político esclarecido deve livrar-nos das manipulações e das engenharias financeiras dos economistas e dos gestores: a grande política deve afastar a economia do poder, de modo a romper com a política-gestão.


J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Prós e Contras: Cortes e Greve Geral

O Primeiro-Ministro de Portugal, Pedro Passos Coelho, foi recentemente peremptório quando afirmou que toda a sua política geral consiste em empobrecer Portugal para consolidar o orçamento do Estado. Manuel Carvalho da Silva (CGTP) sacou desta afirmação o elogio dos cortes, do desemprego galopante e das políticas recessivas. O debate Prós e Contras (22 de Novembro) debruçou-se basicamente sobre o mercado do trabalho, tendo como pano de fundo a greve geral que vai realizar-se no próximo dia 24 de Novembro. As associações sindicais - Carvalho da Silva (CGTP) e João Proença (UGT) - e patronais - António Saraiva (CIP) e Pedro Ferraz da Costa (Fórum para a Competitividade) - reconheceram a falência da concertação social, pela qual responsabilizaram o actual governo de Direita, e, sobretudo através da voz de Ferraz da Costa, acusaram o governo de não ter uma linha política de rumo definido, ideia que foi reforçada por António Saraiva para mostrar que, sem uma perspectiva de futuro, os portugueses não compreendem a gravidade dos sacrifícios que lhes são exigidos pelo plano acordado entre o Primeiro-Ministro e o Ministro das Finanças, sem a participação dos restantes membros do governo. Ninguém está satisfeito com as políticas de empobrecimento do governo chefiado por Passos Coelho e quase todos pensam que elas vão mergulhar rapidamente o país na recessão e no caos. Além disso, foram unânimes a condenar a troika: João Proença lembrou que a troika falhou redondamente na Grécia, o que demonstra que as políticas de consolidação orçamental - políticas de cortes - não conduzem a nada. Para Carvalho da Silva, a troika é o governo dos agiotas e dos credores de Portugal, e, para António Saraiva, a fórmula macro-económica da troika não se adapta à realidade micro-económica das empresas portuguesas. Todos os convidados de Fátima Campos Ferreira condenaram a ideia proposta pela troika de cortar os salários no sector privado. Com as políticas recessivas que o governo está a implementar, indo para além da troika, Portugal não vai crescer nos próximos anos. Jorge Bacelar Gouveia que não é um homem de esquerda, vai fazer greve no dia 24 de Novembro, colocando-se ao lado das duas confederações sindicais portuguesas. De resto, o debate foi monótono e repetitivo, sem acrescentar nada de novo ao que já todos sabemos. Ferraz da Costa propôs um outro debate para discutir a tal "linha de fundo para a competitividade", mas esqueceu que a sociedade portuguesa não está estruturalmente organizada para promover o mérito e a competitividade. O mal português é radical e, sem a ajuda inteligente de uma série de catástrofes naturais selectivas, não vejo futuro para Portugal. Os portugueses têm o que merecem: a inutilidade humana dos portugueses evidencia-se na sua incapacidade de resolver os problemas, virando a página. Discutir os mesmos problemas, ano após ano, não abona a favor da inteligência dos portugueses. Comentar a eterna repetição dos mesmos problemas empobrece a mente de um ser inteligente. Portugal não tem futuro e suspeito que a situação portuguesa seja equivalente à situação grega. Um povo que nunca produziu uma Filosofia não pode ter futuro: o Portugal Real é-nos mostrado diariamente na Secret Story 2 ou Casa dos Segredos (TVI). O resto é um bando horrível de Duarte's Lima's!


J Francisco Saraiva de Sousa 

sábado, 19 de novembro de 2011

O Outono da Idade Média no Porto

Torre Medieval, Cidade do Porto
«O povoamento dos burgos é devido às mesmas causas que o das cidades, mas operou-se em condições bastante diferentes. Aqui, com efeito, o espaço disponível faltava aos que chegavam. Os burgos eram só fortalezas, cujas muralhas encerravam um perímetro estreitamente limitado. Daqui resulta que, desde o princípio, os mercadores foram obrigados a instalar-se, por falta de lugar, no exterior deste perímetro. Construíram, ao lado do burgo, um burgo exterior, ou seja, um subúrbio (forisburgus, suburbium). Este subúrbio é ainda chamado pelos textos novo burgo (novus burgus), por oposição ao burgo feudal, ou velho burgo (vestus burgus), ao qual está ligado. Encontramos para o designar, especialmente nos Países Baixos e em Inglaterra, uma palavra que responde admiravelmente à natureza: portus». (Henri Pirenne)

A Idade Média encanta-me de tal modo que resolvi sondar o Porto Medieval, mas, ao consultar a bibliografia disponível, fiquei desiludido com as obras portuguesas sobre a Idade Média. A historiografia portuguesa é decepcionante: a História da Cidade do Porto pouco mais diz do aquilo que pode ser lido nesta entrada da Wikipédia. A História da Cidade do Porto remonta até à Pré-História, podendo ser datada desde a Idade do Bronze. O Porto Medieval percorre toda a Idade Média, desde o século V - desintegração do Império Romano do Ocidente em 476 - até ao século XV - fim do Império Romano do Oriente, com a Queda de Constantinopla em 1453. A Cidade Episcopal não esgota, portanto, o Porto Medieval. O crescimento do Porto Medieval confirma, de certo modo, a teoria do renascimento urbano de Henri Pirenne, pelo menos seria esta a minha hipótese de trabalho se tivesse de escrever um tratado histórico sobre a Cidade do Porto na Idade Média. A Cidade dos Bispos tem eclipsado a Cidade Burguesa que o Porto já era no século XII. O Porto - PortusCale - deu o nome a Portugal e a sua história ficou desde então subjugada pela História de Portugal. Ora, para apreender a peculiaridade da Cidade do Porto, torna-se necessário desvincular tanto quanto possível a sua história da História de Portugal. O seu nome originário - PortusCale - refere a sua peculiaridade: «Chama-se portus, na linguagem administrativa do Império Romano, não a um porto do mar, mas a um local fechado que serve de entreposto ou de escala para as mercadorias. A expressão passou, transformando-se, não sem custo, nas épocas merovíngia e carolíngia. É fácil verificar que todos os locais a que se aplica estão situados junto de cursos de água e que um imposto foi estabelecido. /Eram então desembarcadouros, onde se acumulavam, em virtude do jogo da circulação, mercadorias destinadas a serem transportadas para mais longe. Entre um portus e um mercado ou uma feira, a oposição é muito nítida. Ao passo que estes consistem em encontros periódicos de compradores e vendedores, aquele é o lugar permanente de comércio, um centro de contínuo trânsito» (Pirenne). Dos historiadores portugueses Jaime Cortesão foi o único que retomou a tese de Pirenne para reformular a formação de Portugal, dando especial destaque à Cidade do Porto: «Os progressos sociais correm parelhas com os da actividade económica. Onde o comércio e a indústria houveram atingido maior desenvolvimento, aí, em princípio, devemos procurar as classes urbanas, mais diferenciadas. O Porto é, durante a Idade Média, o símbolo perfeito da concordância desses dois fenómenos, em Portugal. Ali, pelas vantagens do porto, juntamente fluvial e marítimo, pela posição geográfica que tornara o burgo o entreposto da região mais populosa e rica do País, o comércio marítimo tomou tão rápido incremento, que em 1361 os representantes do concelho se ufanavam de haver ali mais navios que em todo o restante Reino. E dali, em 1415, saía ainda uma armada que os homens bons da cidade mais tarde proclamavam que doutro qualquer lugar da Espanha não poderia sair tão forte e numerosa. Já então, entre os produtos exportados pela barra do rio e difundidos pelos portos do Norte da Europa e do Levante, sobrelevavam os vinhos de Riba-Douro. Na rude labuta da pesca, da construção naval, do tráfico a distância por mar e terra, se formaram e enriqueceram os burgueses e os mesteirais do Porto, cujo passado constitui a mais bela página de toda a história social e urbana, em Portugal. Burgo episcopal, os seus habitantes, quase todos adventícios, acorridos do interior às novas fainas do mar, desde o meado do século XII, houveram que travar batalha, que durou séculos, para arrancar as suas liberdades e franquias à prepotência senhorial dos bispos. À violência dos senhores mitrados, que os oprimiam sem piedade, e a cada passo do alto do sólio episcopal jogavam os raios da excomunhão sobre os vassalos rebelados, os homens do burgo responderam com violência igual» (Jaime Cortesão).


A burguesia portuense conservará este espírito de iniciativa ao longo dos séculos. Como exemplo daremos o Porto de 1788, tal como foi descrito por Rebelo da Costa e retomado por Piteira Santos para explicar a economia da Revolução de 1820, ou melhor, o descontentamento da burguesia portuense com a fuga da Corte para o Brasil e com a Regência: a concentração do comércio marítimo do Norte de Portugal no Porto foi acompanhada pelo seu desenvolvimento demográfico que fixou na cidade muitas famílias domiciliadas em Lisboa. Segundo Rebelo da Costa, este acréscimo populacional deve-se ao «importante comércio auxiliado com as multiplicadas e grossas embarcações, que da foz do rio Douro envia às quatro partes do mundo com tanta frequência, como nunca viram os passados Portugueses; pois este aumento cresceu desde que se transportou para esta cidade todo o comércio das vilas de Viana, situada na foz do Lima, Vila do Conde, Aveiro e outros portos». Ao comércio com o Brasil e as outras colónias portuguesas dedicavam-se «mais de oitenta navios de muito maior porte que o dos navios mercantis das outras nações comerciantes». Todos estes navios eram construídos nos estaleiros da Cidade do Porto, ou nos estaleiros dos portos vizinhos, ocupando-se na sua construção e reparos um grande número de artífices. Para o Brasil, o Porto exportava pano de linho, estopa, chapéus, tecidos de lá das fábricas da Covilhã, chita, louça, botões, linhas, pregos, ferragens e obras torneadas, e, para o Norte da Europa e, sobretudo, para Inglaterra, exportava vinho, sarro de vinho, folha de loureiro, baga de loureiro, cortiça, laranjas, limões, sal, castanha seca, açúcar e algodão, os dois últimos produtos importados da América do Sul. Os produtos exportados para o Brasil indiciavam uma produção manufactureira ou fabril dispersa: «Aumenta-se notavelmente a riqueza desta província com a multidão das suas fábricas. Não só ela abunda das que acima disse, falando das produções de cânhamo e linho, mas também ocupa milhares de homens e mulheres na construção das melhores sedas, fitas e ligas, das quais se contam multiplicados teares». Além da produção nacional, o linho e o cânhamo também eram importados do mar Báltico dos portos de Riga, Memel e Pernau: «Em nenhuma província do Reino, ou ainda em todas juntas, se fabricam tantas e tão preciosas teias de pano e mais fino e durável que excede na qualidade as finas Holandas; chega a 2 milhões de cruzados o lucro que se extrai anualmente desta louvável fábrica». No entanto, o Porto estava à frente da província de Entre Douro e Minho, no que se refere à produção artesanal e fabril: «As outras fazendas que se exportam são trabalhadas nas fábricas desta cidade, e tais são as seguintes: seda em largo, dita em estreito, meias de linho, lã, algodão e seda; galões de ouro, prata, linho, seda e lã; fio de ouro e prata; botões de casquinha; ditos de fio de ouro, prata, seda e lã; panos de lã fina como os de Inglaterra; baetões e baetinhas de pintas; chitas de muitos feitios; gangas pintadas; atados e sola; toalhas de mesa; fustões; talagages de linho; cola ou grude; breu; chapéus finos e grossos; pipas grandes e pequenas; caldeiras, tachos e bacias de latão e cobre; selas e todos os arreios necessários para cavalgaduras; todo o género de ferragens e cutelarias; louça grossa e fina; desta última há quatro grandes fábricas, bastantes a proverem uma grande parte do Reino e das suas conquistas. Nas vizinhanças da cidade há outras de papel, vidro, grude, baetões, etc». Das fábricas do Porto a maior era a das Cardagens, que tinha 800 operários, entre oficiais, aprendizes, mulheres e raparigas. A Fábrica do Tabaco tinha mais de 100 trabalhadores e abastecia o consumo de 24 comarcas. Havia mais de 184 profissões, incluindo as liberais. E o Porto de 1830? A industrialização portuguesa oitocentista iniciou-se de 1813 a 1814, e, segundo Joel Serrão, o Porto encontrava-se à frente desse movimento de industrialização. 


Como estamos distantes das falsificações historiográficas operadas recentemente por António Borges Coelho! A cidade episcopal - aquela que foi retratada por Miguel Torga - e a cidade dos burgueses são praticamente criações simultâneas, podendo a história do Porto Medieval ser vista como uma luta entre ambas. Em 1114, D. Hugo tomou posse da diocese do Porto e, em 1120, D. Teresa doou-lhe o Couto de Portucale. Em 1123, D. Hugo concedeu a carta de foral aos habitantes do burgo. Formou-se assim no decorrer do século XII o burgo episcopal que, organizado em redor da Sé-Catedral, ocupava a plataforma superior da Pena Ventosa, sendo rodeado pela Muralha Sueva - Cerca Velha ou Cerca Românica (século III) - entretanto reconstruída. (No século V, o Porto sofreu a invasão dos suevos, e, durante o reino visigótico, foram emitidas moedas dos reis visigodos, cunhadas com a legenda toponímica de Portucale ou Portocale. Depois, no trânsito do Ano Mil, o Porto - entretanto renascido - sofreu novamente incursões dos normandos e dos sarracenos: o último assalto dos nórdicos - Vikings - ocorreu em 1014, nos arredores do Porto, em Vermoim. Houve, portanto, um Porto Suevo, sediado no Morro da Pena Ventosa e, a seguir, um Porto Visigótico. Porém, a Muralha Sueva foi construída pelos Romanos. O Porto Romano é outra das minhas paixões, cujo conceito já pode ser elaborado, tomando como ponto de partida os belos pavimentos romanos descobertos na Alfândega Velha ou Casa do Infante D. Henrique.) No século XIII, o Porto, sob pressão demográfica, cresceu para fora da Cerca Românica, surgindo assim dois pólos urbanos: o Morro da Pena Ventosa em redor da Sé e a zona da Ribeira na margem do Rio Douro. A instalação dos mosteiros das ordens mendicantes - o de São Francisco em 1233 e o de São Domingos em 1238 - ajudou a urbanizar a Morro do Olival. No século XIV, o Porto, sob pressão da expansão das actividades comerciais e marítimas, cresceu de tal modo que foi necessário construir uma nova cintura de muralhas: a Muralha Fernandina - Cerca Nova ou Muralha Gótica - começou a ser construída no reinado de D. Afonso IV e ficou concluída em 1370 já no reinado de D. Fernando. Em 1386, D. João I criou uma nova Judiaria, transferindo os judeus portuenses para o topo aplanado do Morro do Olival. Logo após a revolução de 1383, em 1387, D. João I casou-se com D. Filipa de Lencastre na Sé-Catedral do Porto, selando a aliança luso-britânica: o Infante D. Henrique nasceu no Porto em 1394. O acordo entre D. João I e o bispo do Porto D. Gil Alma foi ratificado em 1406 pelo papa Inocêncio VII: o senhorio da cidade do Porto passou definitivamente do bispo para a coroa portuguesa e a cidade conquistou assim a sua autonomia administrativa. Em 1496, o decreto de D. Manuel I ordenou a conversão de todos os judeus, sob pena de expulsão: alguns converteram-se ao cristianismo (cristãos-novos), mas outros abandonaram o Porto e o Reino, ditando o fim da Judiaria Nova do Morro do Olival. Em 1509, o Porto abriu-se aos nobres que, até aí, não podiam ter casa na cidade ou residir nela por mais de três dias. Em 1517, o Foral Novo de D. Manuel I concedeu novos privilégios à cidade do Porto, dando início a um período de crescente desenvolvimento económico e urbano. O estudo da história do Porto pode ajudar a esclarecer o velho problema da existência ou não de feudalismo em Portugal, possibilitando a elaboração de uma teoria geral das feudalidades. De certo modo, a luta entre o burgo episcopal e o burgo burguês revela desde logo que, no Porto dos séculos XII, XIII e XIV, se jogou a luta entre o poder senhorial dos bispos e o poder das novas classes urbanas, o que fez do Porto a «metrópole social» de Portugal: «Durante os três últimos quartéis do século XIV pode dizer-se que o Porto, sempre sob o peso das excomunhões, prosperou em grande parte, graças à acérrima firmeza com que soube defender-se da parasitagem das duas classes oligárquicas: o alto clero e a nobreza militar» (Jaime Cortesão). O desenvolvimento social e económico do Porto - que já tinha sido o maior centro urbano do Condado Portucalense, mesmo quando a sede se deslocou para o interior - revela-se desde logo na criação da Bolsa do Porto em 1293, que fez dele das primeiras cidades da Europa dotadas dessa instituição financeira: «Dissemos que o Porto se elevara durante a Idade Média, como outros grandes burgos comerciais da Europa, à categoria duma democracia urbana, dum pequeno Estado dentro do Estado. A cidade mostrou com efeito, através de todo esse período da nossa história, uma forte independência, não só em relação às outras classes, mas ao próprio Estado (Português), sem que aliás tivesse constituído um elemento dissolvente em relação à unidade nacional. Durante as lutas com os seus prelados, e mau grado o apoio real que desde D. Dinis os monarcas lhe prestavam, por mais de uma vez delega os seus embaixadores junto do Papa em Roma ou em Avinhão, a pleitear a sua causa. E mais tarde, quando da revolução que elevou ao trono o Mestre de Avis, manda a Inglaterra contratar à sua própria custa um corpo de archeiros, que mantém largo tempo, em defesa da cidade e da causa que abraçara» (Jaime Cortesão). Ao analisar a Revolução de 1383, António Borges Coelho classificou o Porto como uma Cidade-Estado, que, tal como Génova, Veneza ou Florença, já tinha realizado a sua própria revolução burguesa. Jaime Cortesão dedica mais algumas páginas a descrever os factos sociais que deram ao Porto «o primeiro lugar entre os núcleos urbanos de Portugal», destacando o tratado de comércio (1353) com a Inglaterra celebrado, negociado e firmado por um burguês do Porto, Afonso Martins Alho: O Porto, «pequeno Estado precursor dentro do Estado», levou «às últimas consequências, graças à violenta exclusão das classes parasitárias, a evolução política que o Reino só mais tarde havia de realizar», quando Lisboa assumiu no século XIV os destinos da Nação, cuja «escola política» tinha sido - e será mais tarde noutras conjunturas políticas cruciais - o Porto. Tanto Jaime Cortesão como António Borges Coelho dão muita importância à revolução de 1383: «A revolução (burguesa) de 1383 cortou o cordão umbilical de uma criança que começou a dar os primeiros passos impulsionando vertiginosamente toda a expansão colonial portuguesa» (Borges Coelho). Há a tentação de escolher o acontecimento revolucionário de 1383 como o fim da Idade Média em Portugal, mas o que dizer do crepúsculo da Idade Média na Cidade do Porto? O Porto foi desde o século XII uma Cidade-Estado que realizou a sua própria revolução burguesa num processo de luta permanente entre o poder episcopal e o poder das novas classes urbanas. Para analisar o crepúsculo da Idade Média no Porto, torna-se necessário reescrever a sua história enquanto Cidade-Estado, tendo em conta que a revolução de 1383 foi um fracasso. As Histórias da Cidade do Porto existentes - penso sobretudo na monumental História da Cidade do Porto (3 vols.) dirigida por Damião Peres (1962-65) - são basicamente histórias políticas, isto é, histórias factuais, que quase nada dizem sobre o Porto Social e o Porto Mental. Ora, se conhecemos alguma coisa do Porto Mental Oitocentista, desconhecemos praticamente o Porto Mental da Idade Média, embora alguns dos documentos que permitem a sua elaboração teórica sejam conhecidos. O Crepúsculo da Idade Média no Porto é uma tarefa teórica que ainda não foi realizada: a ideia de cavalaria não deve ter ocupado um lugar de relevo no imaginário medieval do Porto, apesar das lendas bretãs, formadas em torno do rei Artur e dos seus cavaleiros da Távola Redonda, não serem de todo estranhas ao espírito medieval portuense. (A obra de M. Rodrigues Lapa deve ser revisitada e reformulada.) A minha hipótese aponta mais na direcção de uma articulação tensa e, por vezes, conflitual, entre a imaginação religiosa e a mentalidade burguesa, como se o Porto Medieval fosse sempre-já um Porto Renascentista. A escola episcopal começou a funcionar no Porto no século XIII e, quando da instalação das ordens mendicantes na cidade, os burgueses portuenses aliaram-se aos franciscanos na sua luta contra os bispos, pedindo ao papa Gregório IX que permitisse aos franciscanos edificarem um convento, pedido este que lhes foi concedido: a aliança entre as ordens mendicantes e a burguesia portuense contra os bispos, em especial D. Pedro Salvadores, merece ser revisitada, de modo a captar a mentalidade portuense desse tempo.


J Francisco Saraiva de Sousa