sábado, 31 de dezembro de 2011

Porto Conquistador, Porto Amuralhado

Edifício da Rua da Reboleira, Conquista de Ceuta, Porto

Casa da Rua da Reboleira, 59, Porto

Casa dos Redemoinhos, Estilo Flamengo, Porto

Casa da Rua da Reboleira, Porto

Porto Romano: Salinas Romanas

Tanque de Salga Romano de Angeiras, Matosinhos

Tanque de Salga Romano de Angeiras, Matosinhos

Tanques de Salga Romanos de Angeiras, Matosinhos

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Notas Programáticas

Postigo do Carvão, Ribeira, Porto
Ainda não concluí dois estudos: a História da Iluminação do Porto e o Nascimento da Medicina Social. Tenho estado a pesquisar os arquivos e, como possuo novos dados, vou adiar a sua conclusão para 2012. Entretanto, estou a ler algumas obras sobre a Cidade do Porto, uma das quais causou em mim uma certa revolta. Refiro-me à História do Porto, dirigida por Luís A. de Oliveira Ramos, que, na minha perspectiva, não avança muito em relação à clássica História da Cidade do Porto, organizada por Damião Peres. É certo que avança com novas problemáticas teóricas, mas não é capaz de inovar a construção desse novo objecto de estudo que é a Cidade do Porto, até porque carece de uma perspectiva teórica consistente e em conformidade com a Nova História: a imaginação historiográfica espantou-se e fugiu da cabeça dos sete historiadores que elaboraram a obra, cuja apresentação gráfica é simplesmente feia, como sucede com quase todas as obras editadas pela Porto Editora. Desejo dedicar - em 2012 - alguns textos a desconstruir esta obra, com o objectivo de renovar a construção teórica da História da Cidade do Porto, fazendo justiça aos seus primeiros historiadores: Alexandre Herculano, Almeida Fernandes, António de Sousa Machado, Camilo de Oliveira, Cardeal Saraiva, Gama Barros, Jaime Cortesão, Luís de Pina, Magalhães Basto, Mendes Correia, Monteiro de Andrade, Rogério de Azevedo, D. Rodrigo da Cunha, Sampaio Bruno, António Cruz e Torquato de Sousa Soares. Ontem, no FaceBook, fui mais radical, apresentando a Faculdade de Letras como a vergonha da Universidade do Porto: a FLUP é um antro de mediocridade (avessa ao mérito), de promiscuidade sexual, de corrupção, de pornografia de gabinete, de abuso de poder e de cunhismo badalhoco. Entregue a cérebros sexuais decadentes e velhos, a FLUP converteu-se em espaço da grande mentira cultural: quem não faça o jogo sexual das múmias diplomadas não tem futuro; o segredo reside no sexo oral; os eleitos - ou melhor, as eleitas! - são aqueles que mamam sem protestar. A oralidade inerente às Faculdades de Letras foi reduzida a uma função sexual: a sexualização do saber aboliu a cultura humanista, e muitos professores trocaram o ensino de rigor pela carreira de estrelas porno, usando os gabinetes para realizar exibições fálicas, ao mesmo tempo que fazem a apologia da (sua) verga. (E quantas FLUP's há em Portugal? A Universidade Portuguesa é uma instituição doente!) Não mudei de opinião, mas pretendo ser mais moderado quando realizar a crítica da História do Porto, reconhecendo o mérito lá onde ele existe e criticando severamente as lacunas teóricas. Termino com este poema - parte do soneto Portucale - de António Sardinha (Pequena Casa Lusitana):

«Chamou-se Portucale o burgo antigo,
À flor das ondas, a cismar consigo,
É terra ainda e já pertence ao mar!

«Nasceu depois um reino pequenino.
E porque herdou do burgo o seu destino
Tomou-lhe o nome, ao ir-se baptizar.»

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Portugal Zombie: DarkPower

Zombies Portugueses no poder
Sem comentários: pelo olhar - sem expressão afectiva e mortalmente inumano - podemos reconhecer as pessoas que dirigem o fatídico destino nacional. Há um aspecto da História de Portugal que nunca foi contado: a epidemia de zombies que alterou o genoma português, fazendo do país um enorme cemitério, onde à noite despertam os mortos-vivos para saciar a sua fome infinita. Tal como os bovinos, os portugueses são pasto para os zombies que recusam encarar a sua verdade: o facto de estarem mortos desde que D. Afonso Henriques ousou ser rei de Portugal. A falta de sensibilidade denuncia o zombie: as emoções fugiram do seu rosto. Emocionalmente desabitado, o zombie é o anti-rosto. O poder do anti-rosto é poder diabólico. A epidemia portuguesa é uma terrível maldição. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Jean-Paul Sartre: A Filosofia está morta?

Feliz Natal 2011!
«Numa civilização tecnocrata - como a nossa - já não há lugar para a filosofia, a não ser que ela própria se transforme em técnica. Veja o que se passa nos Estados Unidos: a filosofia foi substituída pelas ciências humanas. O que subsiste sob o seu nome é uma espécie de devaneio vago, de reflexão muito geral, que em nada se assemelha à interroga-ção filosófica.

«Há, aliás, um sinal claro desta evolução: a filosofia tende a tornar-se o apanágio dos universitários. É certo que os filósofos entre nós foram sempre professores. Mas outrora procurava-se levar os alunos a tomar consciência dos problemas, deixando-lhes o cuidado de eles próprios os resolverem. Hoje tranquilizam-nos. O filósofo técnico sabe, e diz o que sabe. A verdade está aí, imediata, separada das suas determinações anteriores. Ou, mais precisamente: ela dá-se de uma só vez no presente, como se entre o momento presente e o momento passado houvesse um verdadeiro corte. Um corte que não se explica, mas que se verifica.

«Reencontramos assim o nosso problema inicial. Trata-se sempre de pensar a favor de ou contra a história. Se se admite, como eu, que o movimento histórico é uma totalização perpétua, que cada homem é a todo o momento totalizador e totalizado, a filosofia representa o esforço do homem totalizado para se apoderar do sentido da totalização. Nenhuma ciência pode substituí-la, pois toda a ciência se aplica a um domínio do homem já delimitado. O método das ciências é analítico; o da filosofia só pode ser dialéctico. Enquanto interrogação sobre a praxis, a filosofia é ao mesmo tempo uma interrogação sobre o homem, quer dizer, sobre o sujeito totalizador da história. Pouco importa que esse sujeito esteja ou não descentrado. O essencial não é o que se fez do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele. O que fizeram do homem são as estruturas, os conjuntos significantes que as ciências humanas estudam. O que ele faz é a própria história, a superação real dessas estruturas numa praxis totalizadora. A filosofia situa-se nessa charneira. A praxis é, no seu movimento, uma totalização completa, mas ela nunca atinge mais do que totalizações parciais, que serão, por seu turno, ultrapassadas. O filósofo é o que tenta pensar essa superação.

«Para isso, dispõe ele de um método, o único que dá conta do conjunto do movimento histórico numa ordem lógica: o marxismo. O marxismo não é um sistema petrificado; é uma tarefa, um projecto a efectuar. Por toda a espécie de razões, produziu-se na realização dessa tarefa uma paragem. Os marxistas durante muito tempo recusaram interrogar os conhecimentos novos sobre o homem, e por causa disso o marxismo empobreceu-se. A questão, hoje, está em saber se queremos dar-lhe nova vida, alargando-o, aprofundando-o, ou se preferimos deixá-lo morrer. Renunciar ao marxismo seria renunciar a compreender a passagem. Ora, eu penso que nós estamos sempre na passagem, sempre em vias de desagregar produzindo, e de produzir desagregando; que o homem está permanentemente desfasado em relação às estruturas que o condicionam, porque ele é outra coisa do que aquilo que o faz ser o que é. Não compreendo, pois, que se fique pelas estruturas: isso é para mim um escândalo lógico» (Jean-Paul Sartre).

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Com que voz... Bom Natal para Todos!

O Nascimento da Medicina Social

Capa do livro de Ricardo Jorge (1899)
«Cito Marx sem dizê-lo, sem colocar aspas, e, como eles não são capazes de reconhecer os textos de Marx, passo por ser aquele que não cita Marx. Será que um físico, quando faz física, experimenta a necessidade de citar Newton ou Einstein? Ele utiliza-os, mas não tem necessidade de aspas, de nota de rodapé ou de aprovação elogiosa que prove a que ponto ele é fiel ao pensamento do Mestre. E como os demais físicos sabem o que fez Einstein, o que ele inventou e demonstrou, reconhecem imediatamente (a sua presença). É impossível fazer história actualmente sem utilizar uma sequência infindável de conceitos ligados directa ou indirectamente ao pensamento de Marx e sem se colocar num horizonte descrito e definido por Marx. Em última análise, poder-se-ia perguntar que diferença poderia haver entre ser historiador e ser marxista.» (Michel Foucault)

Ricardo Jorge (1858-1939) formou-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1879, tendo apresentado uma dissertação sobre O Nervosismo no Passado, onde esboçou a história da neurologia. Em 1880, após ter defendido a sua dissertação do concurso para professor - Localizações Motrizes do Cérebro, assumiu a docência das cadeiras de Anatomia, Histologia e Fisiologia Experimental, mas o seu interesse inicial pelo saber neurológico levou-o a viajar pela Europa: Ricardo Jorge deslocou-se frequentemente a Estrasburgo e a Paris, onde assistiu às lições de Jean-Martin Charcot (1825-1893) e visitou os hospitais locais. Porém, em 1884, trocou a neurologia pela Saúde Pública: a sua obra Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa (1884) inaugurou uma nova abordagem da saúde pública em Portugal: «Cada vez mais insalubre, a cidade não tem nas condições devidas nem água, nem esgotos, esses dois elementos imprescindíveis de limpeza, que a experiência tem demonstrado reduzirem a cifra da mortalidade geral. O hospital é um antro infecto, onde se amontoam doentes fora de todos os limites da tolerância e num desprezo repugnante das leis mais comezinhas da boa higiene. As classes pobres, o mundo dos proletários, vegetam ancoradas nuns alvéolos húmidos e lôbrengos, sem ar e sem luz, e abandonadas a uma especulação torpe que tão sordidamente as explora com a miserável edificação das ilhas. Há a desfiar um estendal de misérias e vergonhas, de males e de incúrias. É forçoso lavrar um protesto contra tanto desleixo, contra tanta inépcia, contra tanta loucura criminosa» (Ricardo Jorge). Ao abraçar a causa da higiene, Ricardo Jorge estava perfeitamente convicto de que à medicina cabe um papel supremo na direcção mental e social: «Venha à medicina o primado, como o sonhara o espírito eminente de Augusto Comte, projectando-a ao ápice do seu sistema de hierarquia sociológica; porque só ela conhece o homem em corpo e espírito, nas suas imperfeições e nos seus vícios, nas suas misérias e fraquezas; porque só ela pela higiene, o mais florão da sua coroa, pode promover o bem-estar físico e moral, a evolução meliorista da actividade somática e intelectual» (Ricardo Jorge). Entre 1891 e 1899, Ricardo Jorge foi médico municipal do Porto, levando a cabo o seu saneamento (O Saneamento do Porto,1888), de modo a garantir o fornecimento de água pura, captada e canalizada, e a prática da desinfecção e do saneamento, e responsável pelo Laboratório Municipal de Bacteriologia, e, em 1895, tornou-se professor titular da cadeira de Higiene e Medicina Legal na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. A sua consagração nacional e internacional como higienista e investigador ocorreu quando chegou à prova clínica e epidemiológica da peste bubónica - depois confirmada bacteriologicamente por ele próprio e Câmara Pereira - que assolou a cidade do Porto em 1899. Ora, para erradicar a peste no Porto, Ricardo Jorge iniciou operações profiláticas, como, por exemplo, a evacuação de casas e o isolamento e desinfecção de domicílios, que desencadearam a fúria popular. Infelizmente, a saúde pública no Porto - oitocentista e novecentista - ainda não foi historiada. A obra seminal de Ricardo Jorge já pertence à era bacteriológica da Saúde Pública, inaugurada pelas descobertas científicas de Louis Pasteur (1822-1895) e Robert Koch (1843-1910), entre outros: o que quer dizer que a sua fórmula de medicina social retoma o modelo inglês que ligou - entre si - a assistência aos pobres, o controle da saúde da força de trabalho e o esquadrinhamento geral da saúde pública, de modo a proteger as classes mais ricas dos perigos gerais. O conhecimento de que "criaturas microscópicas" - e não vagos miasmas químicos (T. Sydenham, 1624-1689) - causavam as doenças contagiosas implicou a ampliação dos horizontes da Saúde Pública e da reforma sanitária: tornou-se possível proteger a comunidade contra as doenças transmissíveis, prolongando a vida dos seus membros, e operar o saneamento do ambiente. As medidas profiláticas tomadas por Ricardo Jorge para erradicar a peste bubónica no Porto desencadearam revoltas populares que, incentivadas por forças políticas, o obrigaram a abandonar a cidade e a ir para Lisboa, onde foi nomeado Inspector-Geral de Saúde em 1899, e retomou a sua actividade docente na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Da sua imensa actividade merece especial destaque a organização da luta contra a pandemia de gripe de 1918 - Pneumónica ou Gripe Espanhola - e contra as epidemias de tifo, varíola e difteria que surgiram como consequência das deficientes condições sanitárias do período pós-guerra.

Privados de uma história da Saúde Pública no Porto Oitocentista, não podemos reconstituir os episódios de fúria popular dirigida contra a figura de Ricardo Jorge, de modo a explicitar a forma de medicina social introduzida na cidade do Porto. Apesar disso, a referência à obra pioneira de Ricardo Jorge permite-nos abordar o nascimento da medicina social na Europa, tal como foi formulado por Michel Foucault, sendo no entanto movidos por uma preocupação política. O pensamento de Esquerda (Walter Benevides et al., 1974) tende a opor a medicina social à medicina individual, como se a socialização da medicina fosse uma conquista das classes trabalhadoras, em nome do Direito à Saúde garantido pelo Estado. Nesta perspectiva, a medicina socializada é uma medicina de Estado. Não admira que Leo Huberman e Paul Sweezy (1970) tenham recorrido ao modelo cubano de planificação da saúde pública para mostrar as virtudes da medicina socializada sob o regime socialista: «Uma única vida humana tem mais valor que todo o ouro do homem mais rico do mundo» (Che Guevara). Os estudos de Michel Foucault sobre o nascimento da medicina social introduziram alguma inquietude nesta maneira de conceptualizar a saúde, na medida em que defende a hipótese de que, «com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina colectiva para uma medicina privada, mas precisamente o contrário»: Desenvolvendo-se nos finais do século XVIII e início do século XIX, o capitalismo «socializou um primeiro objecto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência e pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política» (Michel Foucault): o que quer dizer que a medicina moderna que nasceu no final do século XVIII entre Morgagni (1682-1771) e X. Bichat (1771-1802), graças ao aparecimento da anatomia comparada, é uma medicina social fundada sobre uma determinada tecnologia do corpo social: «E nesta nova imagem - a do tacto - que se dá de si mesma, a experiência clínica arma-se para explorar um novo espaço: o espaço tangível do corpo, que é ao mesmo tempo esta massa opaca em que se ocultam os segredos, invisíveis lesões e o próprio mistério das origens. E a medicina dos sintomas, pouco a pouco, entrará em regressão, para se dissipar diante da medicina dos órgãos, do foco e das causas, diante de uma clínica inteiramente ordenada pela anatomia patológica. É a idade de Bichat» (Michel Foucault). A hipótese de Michel Foucault é tributária de duas grandes obras: a de Victor Bullough sobre a medicina na Idade Média, e a de George Rosen sobre a história da saúde pública. Entrando numa polémica deslocada e desnecessária com Marx, Michel Foucault distingue três etapas na formação da medicina social: a medicina de Estado, que se desenvolveu na Alemanha no começo do século XVIII, a medicina urbana, que apareceu em França nos finais do século XVIII, e, finalmente, a medicina dos pobres e da força de trabalho, que emergiu em Inglaterra no segundo terço do século XIX. Michel Foucault é peremptório quando afirma que, embora o corpo tenha sido investido política e socialmente, o poder médico não começou por o atingir enquanto força de trabalho: «A medicina dos pobres, da força de trabalho, do operário, não foi o primeiro alvo da medicina social, mas o último. Em primeiro lugar, o Estado, em seguida a cidade e, finalmente, os pobres e trabalhadores foram objectos de medicalização» (Michel Foucault). (:::/:::)

1. Medicina de Estado. Marx, o cérebro mais filosófico da Alemanha, lamentou o atraso económico do seu país, sem no entanto lhe ter negado o mérito de ter produzido uma Staatswissenschaft, uma ciência do Estado, de resto bem explicitada por Hegel na sua Filosofia do Direito. (:::)

2. Medicina Urbana. A medicina social que surgiu em França nos finais do século XVIII não tinha como suporte a estrutura do Estado, mas o fenómeno da urbanização. 

3. Medicina da Força de Trabalho. Devido ao atraso nacional, Ricardo Jorge foi obrigado a trabalhar em duas frentes: o saneamento da cidade do Porto e o controle da população pobre, mas a sua obra sobre Higiene Social está mais próxima do modelo inglês (medicina dos pobres e dos trabalhadores) do que do modelo francês (medicina da cidade), repleta como está de brilhantes páginas de denúncia humanitária que nos fazem lembrar as que foram escritas por Marx e, sobretudo, por Engels. No decorrer do século XVIII, os pobres não foram problematizados como fonte de perigo médico. Michel Foucault destaca três razões para explicar a problematização médica dos pobres no segundo terço do século XIX: as grandes agitações sociais do começo do século XIX mostraram que os pobres já eram uma força política capaz de participar activamente na revolta contra o sistema (1). E esta nova força política evidenciou-se quando os serviços prestados pela população pobre foram substituídos pelo sistema postal e pelo sistema de carregadores (2): o povo pobre revoltou-se contra estes sistemas que lhe retiravam o pão e a possibilidade de viver. Finalmente, uma outra razão foi a cólera de 1832 que começou em Paris, propagando-se a toda a Europa (3): a cólera desencadeou uma série de medos políticos e sanitários em relação à população pobre, levando à divisão do espaço urbano em espaços pobres e espaços ricos. 

Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O Nascimento da Psiquiatria no Porto

Hospital (Psiquiátrico) de Magalhães Lemos, inaugurado
em Outubro de 1962, Porto
«É sobretudo aos médicos judeus, peregrinos todos, que a medicina portuguesa deve o seu máximo esplendor. São no século XVI Amato e Rodrigo de Castro, Zacuto no século XVII, Ribeiro Sanches no século XVIII. A intolerância religiosa foi o principal estorvo que encontrou, entre nós, o desenvolvimento da medicina, como de resto o de todas as outras ciências». (Maximiano Lemos)

A História da Psiquiatria em Portugal está por fazer: o esboço traçado por Barahona Fernandes que introduziu a ergoterapia no Hospital de Júlio de Matos em Lisboa (1942), é insuficiente e paupérrimo. A pobreza psicológica dos portugueses - provavelmente um traço genético desta população ibérica - ajuda a compreender o seu desinteresse pela psicologia. Todas as histórias da psiquiatria que tenho lido, não referem um único autor português como precursor ou construtor da psiquiatria moderna. Isto não significa que não tenha havido em Portugal psicólogos e psiquiatras dignos de serem referidos nessas histórias da psiquiatria europeia. A única excepção a esta regra do silêncio é o nome de Egas Moniz (1874-1955), utilizado para mostrar como os portugueses tratam a vida mental dos seus doentes mentais: a psicocirurgia destrói grande massa de tecido nervoso, privando os doentes mentais de partes importantes do seu cérebro. No entanto, não podemos responsabilizar os autores estrangeiros pelo facto de não levarem em conta os contributos portugueses: os portugueses devem ser responsabilizados pelo facto de não serem levados a sério pelas comunidades científicas do mundo civilizado. Algumas histórias da psiquiatria - sobretudo as anglófonas - destacam um ou outro contributo espanhol, nomeadamente o de Juan Luis Vives (1492-1540), cujo tratado De Anima et Vita (1538) é visto como um precursor do De Passionibus de Descartes (1596-1650). Porém, no momento em que começou a emergir a psiquiatria moderna no decurso do século XVIII, estas histórias da psiquiatria deixam de mencionar autores ibéricos, concentrando-se exclusivamente nos movimentos ocorridos nos países europeus mais influenciados pela Reforma. Há, portanto, algumas datas a reter para compreender o desenvolvimento do discurso da loucura ao longo dos séculos XVII e XVIII. A primeira data a fixar é 1347, quando a Grande Peste Negra devastou grande parte da Europa, despovoando-a dramaticamente e dizimando algumas cidades. Desconhecendo a causa natural da peste bubónica - um bacilo transmitido pelo rato, os europeus começaram a culpar o demónio, os judeus ou a sua própria pecaminosidade pela escalada do número de mortos. Possuídas ou não pelo demónio, pelo menos essa era a crença oficial dos clérigos, algumas pessoas empreenderam dramáticas exibições de auto-mortificação, ao mesmo tempo que ocorriam crises histéricas envolvendo grupos inteiros que, como por exemplo os flagelantes da Hungria, se chicoteavam em público em orgias de auto-açoitamento. Mas o alvo preferencial da punição foram as mulheres, acusadas de serem bruxas e, por isso, responsabilizadas pela devastação. Alguns clérigos descreveram a mulher como um «templo construído sobre um esgoto». Em 1487, Heinrich Krämer e James Sprenger - dois monges dominicanos - publicaram a sua obra Malleus Maleficarum, cujo alvo era metade da espécie humana, isto é, as mulheres: «Toda a maldade é pouca comparada à maldade de uma mulher. Razão pela qual São João Crisóstomo diz: Não é bom casar. O que mais é uma mulher do que uma inimiga da amizade, uma punição inevitável, um mal necessário, uma tentação natural, um prejuízo deleitante, um pecado da natureza, pintado em lindas cores!». Convertida em manual dos Inquisidores, esta obra legitimou a prática inquisitorial da caça às bruxas e aos hereges. Eis portanto outra data a reter: a da criação da Inquisição que, em Portugal, ocorreu em 1536, a pedido de D. João III (1531), tendo sido abolida tardiamente em 1821: «A bula da Inquisição foi concedida em 1536, embora já desde 1534 houvesse um inquisidor e seja deste último ano o procedimento contra Gil Vicente. O primeiro auto-de-fé realizou-se em 1541. Nos cento e quarenta e três anos que vão até 1684 foram queimadas mil trezentas e setenta e nove pessoas. Depois, o ritmo desceu, mas as execuções continuaram até ao tempo do marquês de Pombal. O maior número dos condenados à morte é formado por acusados de judaísmo, mas há muitas condenações por feitiçaria e por depravação de costumes» (José Hermano Saraiva). Mas, no caso dos dois Estados Ibéricos, há ainda outras datas anteriores a reter: Em 1492, os Reis Católicos, Fernando e Isabel, decretaram a expulsão dos judeus dos seus Estados - Aragão e Castela - no prazo de quatro meses e sob pena de morte. D. João II autorizou a instalação das famílias judias mais ricas em Portugal a troco de altas quantias. Porém, em 1496, D. Manuel - sob pressão dos monarcas do país vizinho - ordenou a expulsão de todos os judeus de Portugal, tanto os refugiados castelhanos como os portugueses. É certo que D. Manuel tentou reter os judeus em Portugal, forçando o baptismo dos seus filhos e recusando meios de transporte para a sua saída por mar, mas estas medidas criaram uma cisão nacional entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Em 1506, Lisboa foi palco de motins em que os cristãos-novos foram ferozmente perseguidos: a peste que grassava na cidade levou os clérigos fanáticos e repressivos a culpá-los pela calamidade e o povo enfurecido investiu contra eles, fazendo mais de dois mil mortos. Este micro-holocausto lisboeta quebrou a unidade nacional, a qual já estava seriamente fracturada desde 1434. Entretanto, apesar do ofuscamento mental da Idade Média, foram realizados alguns esforços a favor dos insanos: o primeiro asilo da Europa foi construído em Hamburgo em 1375, seguido por outro em Valência em 1410 e, pouco depois, por mais outro em Londres. Com o desaparecimento da lepra no final do século XV, alguns leprosários ou lazaretos foram convertidos em asilos (casas dos loucos), onde os loucos coexistiam com os pobres e os portadores de doenças venéreas. O século XV fará um enorme esforço para compreender o insano como um doente e não como uma criatura possuída pelo demónio. Michel Foucault escolheu a Nau dos Loucos de Bosch - a Stultifera Navis de Brant - para caracterizar a loucura nos séculos XV e XVI, articulando-a com a Danse Macabre de Huyot Marchand e a Dança dos Mortos do Cemitério dos Inocentes: «Até à segunda metade do século XV, ou mesmo um pouco depois, o tema da morte impera sozinho. O fim do homem, o fim dos tempos, assume o rosto das pestes e das guerras. O que domina a existência humana é este fim e esta ordem à qual ninguém escapa. A presença que é uma ameaça no próprio interior do mundo é uma presença descarnada. E eis que nos últimos anos do século esta grande inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a acompanha. Da descoberta desta necessidade, que fatalmente reduzia o homem a nada, passou-se à contemplação desdenhosa deste nada que é a própria existência. (...) A cabeça que se tornará crânio, já está vazia. A loucura é o já-está-aí da morte. (...) Agora, os elementos inverteram-se. Não é mais o fim dos tempos e do mundo que mostrará retrospectivamente que os homens eram uns loucos; é a ascensão da loucura, a sua surda invasão, que indica que o mundo está próximo da sua derradeira catástrofe; é a demência dos homens que a invoca e a torna necessária» (Michel Foucault).

A escolha destas datas não é arbitrária: há um fio condutor que as liga e que permite - ou não! - resgatar toda a história da "psiquiatria" portuguesa anterior a 1883, ao mesmo tempo que nomeia as causas estruturais do seu atraso. A expulsão dos judeus foi fatal para Portugal, não só em termos de desenvolvimento económico, mas também em termos de desenvolvimento cultural. A Espanha teve o seu Maimónides (1135-1204) que escreveu extensamente sobre as doenças da alma, ou mesmo Abraham Abulafia de Saragoça que desenvolveu a técnica do salto, mas Portugal também teve todo um conjunto de judeus nacionais que desbravaram o território da psicologia, uns de um modo mais revolucionário do que outros, bastando referir os nomes de Leão Hebreo (1460-1520), Abrahão Ferreira, Samuel da Silva, Uriel da Costa (falecido em 1640) e João Serram, para já não falar de dois portugueses não-judeus e de outro judeu - nascido na Holanda - dignos de figurar na história da psiquiatria: Pedro Hispano (falecido em 1277), Francisco Sanches (falecido em 1623) e Bento de Espinoza (1632-1677). Primeiro a expulsão dos judeus e depois a Inquisição privaram Portugal dos seus intelectuais mais proeminentes, colocando o ensino fora do circuito da ciência e da filosofia que se praticavam na Europa renovada pela Reforma. Nas fogueiras da Inquisição portuguesa ardeu o campo erudito da nossa cultura, onde a tradição árabe e judaica tinha suscitado alguns nomes de relevo. O outro lado deste fio condutor é a questão das mulheres: acusadas de serem aliadas das forças maléficas, as mulheres eram queimadas nas fogueiras da Inquisição. Libertar as mulheres da suspeita de bruxaria foi um dos movimentos seguidos pela "psicologia" para se autonomizar da tutela clerical. Mas antes de avançar neste terreno, destaco desde já a obra médica - profundamente racional e naturalista - de Rodrigo de Castro (nascido em 1546), descendente de cristãos-novos, que se dedicou às doenças das mulheres, sendo assim o fundador da ginecologia portuguesa numa obra que o imortalizou: De universus mulierum medicina. A obra divide-se em duas partes, sendo a primeira consagrada à anatomia e à fisiologia dos órgãos genitais femininos, e a segunda à patologia e à clínicas respectivas. A sua análise está fora do âmbito deste estudo, bastando referir que, nos primeiros capítulos do livro terceiro da segunda parte, Rodrigo de Castro aborda a esterilidade, atribuindo-a à falta de actividade do esperma, às doenças do útero ou dos seus anexos e à impropriedade da idade da mulher, e a impotência do homem para o coito ou para a geração. Ora, no decurso deste longo período, a impotência do homem era atribuída à bruxaria. Assim, por exemplo, os dois monges dominicanos distinguiram dois tipos de impotência, uma devida à natureza e outra devida à bruxaria: «Quando o membro (viril) não pode ser excitado, e não pode realizar o acto do coito, isto é um sinal de frigidez da Natureza; mas quando ele é excitado e se torna erecto, mas, contudo, não pode desempenhar (a sua função), isto é um sinal de bruxaria». Para combater a crença em demónios e em espíritos infernais, os "psiquiatras" dos séculos XVI e XVII tiveram de assumir uma atitude racional perante a bruxaria. Em 1584, Reginald Scot (1538-1599) publicou a sua obra Discoverie of Witchcraft, onde procura demonstrar que as crenças populares sobre os pactos das bruxas com os demónios mais não são do que concepções imaginárias. Mas é no decorrer do século XVII que surgem as ideias mais inovadoras sobre a bruxaria. A sífilis surgiu pela primeira vez na Europa por volta de 1500. Embora estivesse mais suave no século XVII, a infecção manifestava-se como uma degeneração cerebral gradual, sendo por isso identificada como uma forma de insanidade, a qual levou os franceses a interessar-se, já no final do século XVI, pela loucura causada por amores frustrados. Em 1618, Charles LePois (1563-1633) defendeu que a histeria não tinha nada a ver com o útero, podendo assim ocorrer tanto nos homens como nas mulheres. O contributo mais significativo veio da Holanda: Johann-Caspar Westphal publicou Pathologia Daemonica (1707), onde descreveu uma série de doenças nervosas atribuídas até aí à bruxaria, tais como epilepsia, catalepsia, melancolia e determinadas condições dermatológicas, tratando-as a todas como obsessões. Utilizando o termo latino fascinatio (fascinação) para designar a bruxaria, Westphal definiu-a como um «intenso poder e acção da imaginação dirigida ao corpo de outra (pessoa)». Ora, este termo deriva do grego baskanon que significa amuleto. Fascinus era uma divindade na forma de um falo e o fascinum era um amuleto na forma de um pénis, usado na Idade Média pelas crianças em torno do pescoço para as proteger dos poderes maléficos da feitiçaria. Esta prática mostra como os homens exteriorizavam as suas dificuldades sexuais com as mulheres. Para se protegerem dos feitiços femininos, eles tinham de usar um falo extra - o amuleto - com poderes maiores do que aqueles da fascinatio, de modo a garantir a sua capacidade de funcionar sexualmente como homens. Edward Jorden (1569-1632), um alienista inglês, foi um dos primeiros médicos a considerar as mulheres - acusadas da prática de bruxaria - como pessoas infelizes que sofriam de alguma condição médica. A sua preocupação com as causas naturais da infelicidade dessas mulheres levou-o a ser testemunha em julgamentos de mulheres acusadas de feitiçaria. Num desses julgamentos - o de Elizabeth Jackson, Jorden utilizou dois termos para designar a perturbação dessa mulher: histérico e strangulatus uteri, termos que lhe permitiam compreender alguns dos seus sintomas, como por exemplo a falta de ar, as palpitações ou a paralisia, bem como a diversidade de ritmos dos ataques de histeria. Porém, o juiz não aceitou a explicação de que os ataques atribuídos à feitiçaria eram naturais, alegando que, sem a definição de uma razão natural e uma medicação natural para as perturbações da ré, não podia levar em conta o testemunho dos alienistas. A História da Loucura de Michel Foucault deixou de lado o horizonte religioso da feitiçaria e a sua evolução no decorrer da era clássica. Apesar de ter previsto um estudo sobre o horizonte religioso da feitiçaria, Michel Foucault não cumpriu essa promessa que o levaria a invadir o território da psiquiatria transcultural, um território que os portugueses descobriram precocemente quando ousaram o descobrimento do mundo. Os arquivos e as bibliotecas portuguesas guardam tesouros que ainda não foram revelados: a promessa não-cumprida de Michel Foucault pode ser realizada a partir de documentos portugueses, uns relativos à Inquisição, outros relativos aos contactos interculturais. Todos os contributos dos alienistas referidos, bem como o de Rodrigo de Castro que, sob o signo do regresso à medicina de Hipócrates, fundou a ginecologia portuguesa, geraram a erosão da crença em manifestações demoníacas, vendo as chamadas bruxas como mulheres mental e emocionalmente perturbadas. A Inquisição Portuguesa alimentou durante longos séculos essa crença, condenando muitas bruxas à fogueira. E no resto da Europa, a caça às bruxas regressou ao primeiro plano no século XVI e início do século XVII: as lutas entre protestantes e católicos foram acompanhadas por uma epidemia de processos por bruxaria. O espírito anti-autoritário de Paracelso (1493-1541) levou-o a denunciar os queimadores de bruxas, mas a obra que culmina este movimento é, sem dúvida, a de Thomas Hobbes (1588-1674).

O Hospital de Rilhafoles - instalado no velho convento de S. Vicente de Paula - data de 1848, tendo sido o primeiro asilo de alienados a surgir em Lisboa, mas, ao contrário do que diz Nuno Borja Santos, não foi o primeiro hospital psiquiátrico de Portugal, pelo menos na perspectiva da psiquiatria moderna: o Hospital de Rilhafoles era mais um depósito de alienados mentais do que um espaço de tratamento, que, sob a direcção de Craveiro, ainda deitava os doentes na palha, além de abusar dos meios ancestrais de contenção (coletes de forças, peias, correntes ou freios de ferro, cadeiras fortes, coleiras ou gravatas, peitilhos ou barbeiros), donde resultou a legenda de asilo de lunáticos. Em Portugal, a psiquiatria moderna nasceu no Porto e escolho como data do seu nascimento institucional a abertura do Hospital do Conde de Ferreira em 1883, sob a direcção de António Maria de Sena (1845-1890) que soube introduzir no nosso país o programa de humanização do tratamento dos doentes mentais de Philipe Pinel (1745-1826) e de Samuel Tuke (1784-1857), neto do Quacre William Tuke (1732-1822), que dirigiu o famoso Retiro de York situado no campo, tendo descrito a instituição em 1813. Pinel e Tuke são dois nomes famosos associados à libertação dos acorrentados: «O asilo de Pinel, retirado do mundo, não será um espaço de natureza e de verdade imediata como o de Tuke, mas um domínio uniforme da legislação, um lugar de sínteses morais onde se apagam as alienações que nascem nos limites exteriores da sociedade. Toda a vida dos internos, todo o comportamento dos vigilantes em relação a eles, bem como o dos médicos, são organizados por Pinel para que essas sínteses morais se efectuem. E isso através de três meios principais: (o silêncio, o reconhecimento pelo espelho e o julgamento perpétuo)» (Michel Foucault). Embora tenha privilegiado mais a ordem da legislação do que o crescimento do conhecimento, Pinel é considerado, pelo menos pelos franceses, como o pai da psiquiatria moderna, pelo facto de ter rejeitado a teoria humoral de Galeno - articulada com a teoria dos demónios por Arnold de Villanova (1240-1313) - e os tratamentos de purgação e de sangria por ela inspirados. (E o que dizer do tratamento da mania através da incisão de uma cruz no couro cabeludo, perfurando o crânio a fim de deixar escapar os demónios e os vapores mórbidos, recomendado por Villanova?) Pinel foi o director de dois grandes hospitais psiquiátricos em Paris: o Bicêtre (hospital de homens) e, depois, o Salpêtriére (hospital de mulheres), cujo nascimento foi magnificamente analisado por Michel Foucault. Pinel atribuía a doença mental à hereditariedade ou às paixões intoleráveis, tais como o medo, a raiva, o ódio, a exaltação ou a tristeza, e, levando à letra os princípios de Rousseau, defendeu e praticou no seu hospital a remoção das correntes - o uso de correntes foi um procedimento aconselhado por Félix Plater (1536-1614), o criador do termo alienação, para controlar os pacientes altamente perturbados - dos doentes mentais hospitalizados. A remoção das correntes dos indivíduos insanos já tinha ocorrido em Valência no início do século XV e, em França, Jean Baptiste Pussin removeu-as em Bicêtre, substituindo-as por coletes-de-forças, três anos antes de Pinel o ter feito em Salpêtriére (1800). Em 1794, Pinel apresentou na Sociedade de História Natural o seu Ensaio sobre a Loucura, onde retrata os doentes mentais como homens e mulheres desafortunados que merecem respeito e compaixão, tanto da parte dos médicos e dos assistentes como da parte da comunidade. Pinel escreveu histórias de casos «simpáticos e eloquentes» e, tal como Joseph Daquin (1733-1815), lutou contra todos os preconceitos do passado sobre os cuidados administrados aos doentes mentais, instituindo diversos tipos de tratamento moral: exercícios, entretenimento, actividades úteis, trabalho agrícola e permissão para andar livremente dentro do pátio e dos jardins do hospital. Além disso, Pinel incentivou os médicos encarregados dos doentes mentais a morar nos espaços interiores do hospital e a despender mais tempo para os conhecer. Com excepção de uma ou de outra recomendação mais exótica, as sugestões terapêuticas de Pinel tinham uma base racional e empírica, constituindo um grande avanço sobre as sangrias e as purgações praticadas pelos seus antecessores. Ao lidar com os loucos mais violentos, Pinel adoptou uma abordagem não-violenta, levando toda a equipa hospitalar a ir ao encontro deles, de modo a instalar algum medo e a tornar a resistência inútil. Com esta táctica, pretendia tornar possível o diálogo entre o louco violento e a equipa que o socorria. O esquema de diagnóstico das doenças mentais de Pinel era simples: melancolia, mania sem delírio, mania com delírio, demência e idiotismo, eis alguns rótulos usados por Pinel. O uso que ele fez do termo mania não corresponde à nossa noção de depressão maníaca (perturbação bipolar): Pinel usou-o para designar perturbações psiquiátricas severas, com ou sem perturbação do entendimento. A sua mania sem delírio incluía todos os casos de compulsão que implicavam actos violentos, sem no entanto haver defeito da razão. Pinel descreveu também a histeria, a anorexia, a bulimia, a hipocondria, as obsessões e as compulsões, observando que os doentes com obsessões religiosas eram extremamente difíceis de curar. Alguns casos que relata são muito semelhantes às nossas perturbações obsessivo-compulsivas. Por fim, Pinel referiu um caso de compulsão homicida, o de um missionário que imolou os seus filhos para lhes garantir a vida eterna no céu. A esta trilogia de nomes consagrados da psiquiatria moderna - Tuke, Pinel e Daquin - devemos acrescentar o nome de António Maria de Sena, cuja obra Os Alienados em Portugal (1885) é digna de figurar ao lado do Ensaio sobre a Loucura de Pinel (1794) e de A Filosofia da Loucura de Daquin (1791).

A construção do Hospital Conde de Ferreira iniciou-se em 1868, por disposição testamentária do Conde de Ferreira (1782-1866). Para dar cumprimento aos desígnios deste benemérito foi comprada a quinta da Cruz das Regateiras: uma extensa e aprazível propriedade, com 120 000 m2, com a abundância de água e boa exposição higiénica, o que possibilitou a existência de jardins, prados e terrenos cultiváveis, considerados factores indispensáveis na terapêutica psiquiátricaO projecto é da autoria do professor de arquitectura civil na Academia de Belas Artes do Porto, Manuel de Almeida Ribeiro, que se inspirou no Hospício Pedro II, inaugurado em 1852 no Rio de Janeiro. Após a sua morte, a construção foi dirigida por Faustino José da Vitória (Director das Obras Públicas do Distrito do Porto), que fez várias alterações ao projecto inicial. A fachada do edifício é simples, elegante e harmoniosa. O frontão é encimado pela estátua do Fundador, em mármore de Carrara, obra do escultor Teixeira Lopes, mais tarde colocada sobre um plinto, no espaço ajardinado da entrada do Hospital Psiquiátrico. Segundo Domingos de Almeida Ribeiro, escriturário do testamento do Conde de Ferreira, a ideia da construção do hospital tinha sido inspirada por D. Pedro V, que lhe indicara a necessidade de um estabelecimento daquela natureza no Porto. A construção do edifício demorou cerca de 10 anos e nela foram gastos 524.183 réis. Inaugurado a 24 de Março de 1883, com doentes provenientes do Hospital de Santo António de Rilhafoles de Lisboa, o Hospital Conde de Ferreira é a primeira construção de raiz feita para a Psiquiatria em Portugal. Antes da sua fundação, os dementes eram encarcerados no porão do Hospital Geral de Santo António ou mesmo nas cadeias ou prisões da cidade do Porto. Para director clínico desta nova unidade especializada de saúde, a Misericórdia do Porto convidou António Maria de Sena (1845-1890), oriundo da Faculdade de Medicina de Coimbra, onde se doutorou com a tese Análise Espectral do Sangue e com o trabalho intitulado Delírio nas Moléstias Agudas, no concurso para professor daquela faculdade. António Maria de Sena criou um modelo de organização hospitalar ousada para o seu tempo, a favor daqueles que denominou «seres humanos infelizes, afectados do padecimento mais cruel»: «A alienação mental é um facto social de uma importância culminante. Merece estudo e pede a atenção dos governos. /Na classe tão numerosa dos inválidos, o alienado sobressai, com efeito, na generalidade da desventura, nas proporções da invalidez, não menos nas perturbações que causa ao estado social. /Desde o fim do século passado (século XVIII) que se desenvolveu um movimento de clemência a favor dos alienados em toda a Europa e América. /As autoridades públicas, as famílias, os estabelecimentos pios têm por estes infelizes o mais condenável desprezo, preocupando-se apenas com os perigos que podem advir à sociedade da sua existência em liberdade; (é preciso) ajudá-los, confeccionar leis protectoras dos desventurados, por dever de humanidade como também por verdadeiro interesse nacional» (António Maria de Sena). Além disso, eleito Par do Reino, em Viana do Castelo, sob um governo progressista, António Maria de Sena elaborou a primeira lei psiquiátrica em Portugal, a chamada Lei Sena, promulgada em 1889, a qual previa a construção de novos estabelecimentos hospitalares e de um «fundo de beneficência pública dos alienados». Em 1890, António Maria de Sena - o primeiro grande psiquiatra português que defendeu a higiene e profilaxia das doenças mentais - faleceu precocemente na Granja, com apenas 45 anos de idade. António Maria de Sena exerceu as suas funções directivas entre 1883 e 1890, tendo como médico-adjunto Júlio de Matos e médico-ajudante Magalhães Lemos. Após a sua morte, Júlio de Matos assumiu a direcção do Hospital de Alienados do Porto entre 1890 e 1911, quando aceitou suceder a Miguel Bombarda na direcção do Hospital de Rilhafoles (Lisboa): o seu adjunto, Magalhães Lemos, ascendeu a director do Hospital do Porto em 1911, tendo exercido essa função até ao ano da sua aposentação em 1924. O Hospital Conde de Ferreira é constituído por um vasto edifício que se desenvolve por quatro grandes alas e dois pavilhões envolvidos por jardins. Os doentes estavam distribuídos em duas partes distintas: a ala norte era ocupada por alienados do sexo masculino e a ala sul acolhia alienados do sexo feminino. O corpo principal do edifício dividia-se em três partes: as partes norte e sul eram destinadas à habitação dos doentes, sendo a parte central ocupada pelas instalações dos serviços gerais, casa da aceitação e laboratório de Antropologia. Os médicos, directores e adjuntos viviam nesta parte central e, no seu lado posterior, funcionavam a cozinha, a farmácia e a habitação dos restantes funcionários hospitalares. Em anexo, foi construído um pavilhão para observação médico-legal dos criminosos de ambos os sexos, assim como o laboratório. Poucos anos após a sua inauguração foram construídos dois pavilhões para doentes furiosos (8.ª enfermaria). Em 1904, foi construído mais um pavilhão para alojar criminosos (9.ª enfermaria), e, em 1907, verificou-se a abertura de um edifício para doentes agitados (10.ª enfermaria). De todas estas estruturas arquitectónicas merece especial destaque o panóptico portuense: uma estrutura fechada em forma de eneágono (nove lados) a que chamaram Pavilhão dos Furiosos, a qual servia para isolar os doentes mais agitados ou perigosos e, desses tempos de disciplinarização hospitalar, guarda ainda hoje vários objectos, como microscópios, um colete-de-forças e uma panóplia de máquinas de choques eléctricos introduzidas no hospital em 1922. Como se sabe, Michel Foucault foi buscar a figura arquitectónica do panóptico a Jeremy Bentham (1748-1832), para designar uma máquina de vigilância em que, com visibilidade plena, se pode controlar de uma torre central todo o círculo do edifício dividido em alvéolos e onde os vigiados, alojados em células individuais e separadas umas das outras, são vistos sem verem. O modelo de organização em panóptico do edifício do Pavilhão dos Furiosos servia para controlar os loucos perigosos através deste dispositivo de vigilância hospitalar. Como complemento existiam estruturas de apoio, como as oficinas, a tipografia, a lavandaria, a rouparia, a cozinha, entre outras. Os doentes estavam distribuídos pelas quatorze enfermarias tendo como princípio a sua patologia - tipo e fase da doença: tranquila, convalescente, agitação, furor, estado imundo e incurabilidade - e a classe social. Os valores das mensalidades variavam em função da classe social a que pertencia o doente e a quantia paga determinava a qualidade da assistência que lhe era prestada. Todos os internados nesta instituição total do Porto podiam ocupar-se em actividades oficinais ou agrícolas, tendo-se assim inaugurado a psicoterapia colectiva pelo trabalho. No Hospital Conde de Ferreira, fizeram carreira alguns dos mais conceituados psiquiatras portugueses, como por exemplo Júlio de Matos e Magalhães Lemos, o primeiro dos quais não «herdou» as qualidades humanas do mestre, quando radicalizou a "sua" teoria da degenerescência. O nascimento do hospital psiquiátrico em Portugal obedece ao esquema genealógico estabelecido por Michel Foucault: o encarceramento dos loucos foi acompanhado por medidas jurídicas e administrativas que os libertaram das correntes de ferro para os encerrar de novo nas leis do internamento, dando-lhes a chancela de alienados, privando-os da liberdade e sequestrando-os nos asilos de loucos ou hospitais de alienados. Tal como Pinel ou mesmo Esquirol (1772-1840), António Maria de Sena contribuiu para a "invenção" das doenças mentais como entidades nosológicas, confinadas num espaço de observação clínica, mas, dada a sua filiação liberal e progressista, próxima das aspirações da Geração 70, soube defender a assistência aos doentes do espírito como um dever social e não como exercício de caridade, tendo por isso polemizado com Domingos Almeida Ribeiro, cujo catolicismo reaccionário proclamava a valia superior das instituições fundadas pela caridade cristã

Anexo: Este estudo começa a dar corpo à promessa anunciada em A Alienação Mental no Porto: Notas para uma pesquisa, e complementa em termos de psiquiatria o Esboço da Evolução do Hospital Moderno.

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A Europa está morta

Cemitério militar norte-americano, em Colleville-sur-Mer, Normandia, França
A Europa está morta e já não podemos fazer nada para ressuscitá-la. Morreu decadente, corrupta e velha. Enterremo-la.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Prós e Contras: Ensino Superior, Ciência e Investigação

Hospital de São João e Faculdade de Medicina
da Universidade do Porto
Os portugueses começam a discordar com o modelo competitivo de baixos salários que está a ser implementado por este governo de Direita Retrógrada: o planeamento da pobreza ameaça lançar Portugal na miséria do Estado Novo. Prós e Contras debateu (12 de Dezembro) o Ensino Superior, a Ciência e a Investigação, como aposta no futuro de Portugal. O Ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, apresentou a sua reforma da educação, em especial as linhas gerais da revisão da estrutura do ensino básico e secundário e a reestruturação da rede do ensino superior. No que se refere ao primeiro tópico, ficámos a saber que o ministro brindou o Português e a Matemática, a História e a Geografia com mais tempo curricular, com o objectivo de produzir jovens mais bem preparados para o ingresso na universidade. Nuno Crato considera que a cultura humanista é fundamental para as pessoas se orientarem na vida. Não vou esboçar uma história das humanidades, bastando dizer que o seu objecto principal é a própria condição humana. Mas vou mais longe para dizer que não só as ciências sociais e humanas como também as ciências da natureza devem reclamar a tradição das humanidades e incorporar-se nela: todas as ciências ocupam-se, de uma forma ou de outra, com a investigação da condição humana e do lugar do homem no mundo. A beleza da matemática, tão aplaudida por Lobo Antunes (Conselheiro de Estado), não é indiferente à condição humana, como mostrou Ana Bela Cruzeiro, investigadora portuguesa que estuda o campo das probabilidades e dos processos estocásticos. Escutando-a, fiquei com a impressão de que a matemática é, provavelmente, uma das ciências mais humanas - logo a seguir à Filosofia - do saber ocidental. O Ocidente que inventou a Filosofia e a Ciência, é hoje confrontado com a mundialização da sua ciência e da sua tecnologia: culturas estranhas ao espírito ocidental apoderaram-se delas, mas sem integrar e incorporar a sua tradição humanista. As mais importantes disciplinas das humanidades são a Filosofia e a História. Infelizmente, Nuno Crato privilegiou a História em detrimento da Filosofia, sem compreender que a pesquisa interdisciplinar implica necessariamente a intervenção crítica da Filosofia. A Filosofia construiu ao longo do tempo uma tradição crítica que moldou a matriz da civilização ocidental: anular a Filosofia implica abandonar essa tradição crítica, perder a nossa identidade cultural e praticar a ciência ao nível meramente instrumental das culturas que lhe são profundamente estranhas. A ciência praticada no Ocidente não pode perder a sua marca de origem: a tradição crítica que possibilitou o seu aparecimento. Nesta filiação originária, a ciência e a tecnologia ocidentais podem competir - de modo superior - com a ciência e a tecnologia praticadas nos espaços extra-ocidentais: a consciência como condição de liberdade é algo que marca a nossa diferença no mundo global. Os intelectuais ocidentais devem ligar organicamente a educação à libertação intelectual e política. Por isso, aprovo a intenção de reformular os currículos, de modo a eliminar o currículo oculto que destruiu a educação em Portugal: Nuno Crato foi peremptório quando afirmou que não deseja currículos fluídos; a sua intenção é introduzir currículos mais objectivos e mais exigentes, acompanhados pela avaliação rigorosa dos alunos e pela formação de professores competentes. Uma boa reforma curricular é já uma boa reforma da educação! Desejo que o ministro seja bem-sucedido nessa reforma curricular que visa introduzir rigor e exigência no ensino básico e secundário, libertando-o da tutela de professores incompetentes que - supostamente - aprenderam a ensinar sem, no entanto, saber o que ensinar aos alunos indisciplinados e mimados.

O tema que permitiu operar a transição da revisão da estrutura do ensino básico e secundário para o ensino superior foi a fusão entre a Universidade (Clássica) de Lisboa e a Universidade Técnica de Lisboa, cada uma das quais representada neste debate - moderado por Fátima Campos Ferreira - pelo seu reitor: António Nóvoa (UL) e António Cruz Serra (UTL). Segundo António Nóvoa, para quem a universidade deve ser uma instituição de mudança, mesmo em tempos de crise financeira e económica, a fusão que está a ser negociada entre as duas academias, visa fundamentalmente suprimir o fosso existente entre a Universidade Clássica e a Universidade Técnica de Lisboa, de modo a ganhar escala para conquistar massa crítica, escala ao nível da interdisciplinaridade dos saberes, ao nível da valorização económica e social do conhecimento e ao nível internacional, com intervenção privilegiada no espaço cultural dos países de língua portuguesa. António Cruz Serra reforçou esta perspectiva, destacando a competição inter-universitária, tanto a nível nacional como a nível internacional. Porém, lamentou o facto do país, em especial o governo, não estar a ajudar na tarefa de tornar as universidades portuguesas mais competitivas. A autonomia financeira e administrativa das universidades está a ser posta em questão pelo governo: os cortes cegos no financiamento das universidades - 20% de quebra do investimento público no ensino superior - podem afastar as universidades portuguesas da arena da competição internacional. As melhores universidades do mundo são aquelas que gozam de grande autonomia - autonomia essa que o governo de Passos Coelho quer cercear às universidades portuguesas. João Lobo Antunes que visitou as faculdades ligadas às ciências da vida, defendeu a fusão, alegando que ela permite criar uma universidade com escala e dimensão científica. Além disso, a fusão permite gerar projectos comuns de investigação, com ganho de massa crítica. Uma das áreas a promover nessa nova universidade urbana e internacional será, segundo Lobo Antunes, a área das ciências da vida, o grande desafio do século XXI. Quanto à medicina, Lobo Antunes disse que o grande pensamento será a ciência da translação (sic) da bancada para a cama do doente. A biomedicina lança um novo repto à educação médica: os alunos de medicina devem ser envolvidos na investigação interdisciplinar. De facto, urge introduzir a Filosofia, em especial a Filosofia Médica, no campo da biomedicina, isto é, das ciências biomédicas: a interdisciplinaridade, tão defendida neste debate, deve ser orgânica, tal como ocorreu entre a física e a matemática ou entre a física e a química ou mesmo entre a química e a biologia (biologia molecular), e não o resultado de uma mesa redonda. Althusser criticou isso quando denunciou os abusos da interdisciplinaridade na unificação artificial e externa de diversas áreas disciplinares do saber. Achei encantador o facto de Lobo Antunes ter retomado o velho conceito de ciências da vida, tão do agrado de Georges Canguilhem que esboçou a sua história científica. Fernando Ulrich (Presidente do Conselho Geral da Universidade do Algarve) desmentiu Fátima Campos Ferreira quando esta lhe atribuiu a seguinte afirmação: «A universidade formou canudos sem competências». Na presença de tantos professores universitários, Fernando Ulrich fez um balanço positivo das universidades portuguesas, como se o problema da educação portuguesa residisse mais no ensino básico e secundário do que no ensino superior. Porém, Fernando Ulrich esqueceu que os professores do ensino básico e secundário são formados - ou deformados? - no e pelo ensino superior, o que não abona a favor da sua qualidade. Da sua participação retenho as falas proferidas enquanto empregador no sector bancário: Fernando Ulrich quer - ou diz empregar - pessoas dotadas de conhecimentos e de métodos-hábitos de trabalho, capazes de enfrentar problemas - pensá-los, interpretá-los e solucioná-los de modo criativo - e de trabalhar em equipa. Enfim, um conjunto de competências que todos nós admiramos nas pessoas que trabalham connosco. Será que o ensino superior português fornece esse conjunto de competências aos portugueses?

Com esta questão, voltamos ao discurso de Nuno Crato. De modo a responder a algumas críticas dirigidas ao governo, Nuno Crato acentuou ser necessário um esforço para racionalizar os meios e produzir excelência. Além disso, afirmou respeitar e prezar a autonomia universitária - sobretudo a sua capacidade de criar e gerir os seus próprios fundos, como sucede na escola de economia e gestão, representada neste debate por Fátima Barros (Universidade Católica de Lisboa) - reclamada por António Cruz Serra, sem responder directamente à sua proposta de reorganizar o sistema de ensino superior e de financiar de forma diferenciada aquilo que é diferente ou que produz resultados desiguais, premiando as instituições universitárias que produzem melhores resultados. No domínio da ciência e da investigação científica, Nuno Crato elogiou os seus progressos tremendos, prestando homenagem aos anteriores ministros por terem incentivado projectos sustentados ao longo dos anos e contribuído para a sedução pela ciência entre os jovens portugueses. Apesar do dinheiro não ser infinito, Nuno Crato mostrou-se empenhado na tarefa de internacionalizar a ciência que se faz em Portugal: a ciência "portuguesa" deve sair da sua paróquia para entrar no território universal da ciência que se faz no mundo. Mas, para que isso aconteça em maior escala, é necessário aprender, avaliar, apostar na qualidade do ensino e da investigação nacional, cooperar e concentrar esforços. Continuidade na mudança? Nuno Crato não quer que as estatísticas deformem a realidade: o seu desejo é que as estatísticas reflictam fielmente uma realidade em mudança no sentido da qualificação real - e diferencial - dos portugueses. Por fim, acabou por esboçar uma resposta à questão relativa à reestruturação da rede do ensino superior, de resto exemplificada pela tentativa em curso de fusão das duas universidades de Lisboa. Para Nuno Crato, as universidades portuguesas devem pensar na oferta formativa e tentar - em cooperação - racionalizá-la. A palavra de ordem lançada pelo ministro foi a racionalização da rede de oferta. Esta tarefa de redimensionar a rede de ensino superior vai começar em 2012. Nuno Crato terminou o debate, fazendo uma única promessa: «Concentrar-se no essencial, apostando na excelência». Infelizmente, não posso aprofundar algumas ideias ventiladas pelos participantes neste debate, cujo desenvolvimento se encarregou do seu próprio eclipse. Espero que o sadismo das finanças não roube a palavra ao ministro da educação e ciência, submetendo a sua tutela a uma política economista restritiva!

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Esboço da Evolução do Hospital Moderno

Hospital Geral de Santo António, Porto.
Projectado por John Carr, o edifício de estilo neoclássico
inglês foi construído entre 1779 e 1824.
«O Hospital como instrumento terapêutico é uma invenção relativamente nova, que data do final do século XVIII. A consciência de que o hospital pode e deve ser um instrumento destinado a curar aparece claramente em torno de 1780 e é assinalada por uma nova prática: a visita e a observação sistemática e comparada. Houve na Europa uma série de viagens, entre as quais podemos destacar a de Howard, inglês que percorreu hospitais, prisões e lazaretos da Europa, entre 1775-1780, e a do francês Tenon, a pedido da Academia de Ciências, no momento em que se colocava o problema da reconstrução do Hôtel-Dieu de Paris.» (Michel Foucault)

A hipótese de Michel Foucault sobre o nascimento do hospital como "máquina de curar" não é tão original como se pensa: o Hospital Moderno nasceu do ajustamento do deslocamento da intervenção médica e da disciplinarização do espaço hospitalar, através do aparecimento de uma disciplina hospitalar, cuja função era assegurar o esquadrinhamento e a vigilância do mundo confuso do doente e da doença, e transformar as condições do meio onde os doentes eram colocados. Quando publicou a sua obra História da Medicina em Portugal em 1899, Maximiano Lemos estava ciente de que o nascimento do hospital moderno tinha deixado para trás o hospital-exclusão, onde os doentes eram entregues à morte: «Os primeiros hospitais que possuímos (...) eram mais asilos para os pobres do que recolhimento para doentes». A reorganização hospitalar que se operou no decorrer do século XVIII resultou, segundo Maximiano Lemos, da separação da medicina dogmática da medicina ministrante, donde a importância conferida - na sua obra - à relação da história da medicina portuguesa com o desenvolvimento geral das ciências médicas. Como é evidente, Maximiano Lemos desconhecia o conceito de poder disciplinar, como foi elaborado por Michel Foucault para caracterizar a organização do poder nas sociedades modernas, mas, mesmo sem ele, conseguiu ver que a reorganização do hospital se deve à transformação do saber e da prática médicas. A história da medicina portuguesa de Maximiano Lemos cobre um longo período entre 1130 e 1825, distinguindo quatro grandes épocas: 1130-1290 (Da criação dos estudos em Santa Cruz ao estabelecimento da Universidade), 1290-1504 (Do estabelecimento da Universidade à criação do Hospital de Todos os Santos), 1504-1772 (Da criação dos estudos cirúrgicos no referido Hospital à reforma da Universidade) e 1772-1825 (Da reforma da Universidade à criação das escolas médico-cirúrgicas). Em termos de organização hospitalar, temos a sucessão de três tipos de hospitais: o hospital medieval ou cristão, o hospital renascentista e, finalmente, o hospital moderno. Como veremos, Michel Foucault simplifica esta sucessão de organizações hospitalares, reduzindo-a a uma descontinuidade entre o hospital clássico e o hospital moderno. Os hospitais, tal como os conhecemos, surgiram no decorrer do século XVIII, embora procedam de uma tradição de mil e quinhentos anos que reflecte um traço fundamental da cultura humana: as formas adoptadas pelos homens para preservar a saúde. O hospital desenvolveu-se no contexto sócio-ideológico proporcionado pelas teorias sobre as doenças e pelas necessidades da sociedade: a estrutura do hospital sofreu mudanças ao longo do tempo em função das transformações ocorridas nesse contexto. As civilizações antigas consideravam a doença como algo sobrenatural, servindo-se de rituais religiosos para controlar e curar as doenças. Os "médicos" da Antiguidade eram sacerdotes ou magos, cujas "curas" foram tematizadas em termos religiosos: a "medicina" mais não era do que religião aplicada. Os hospitais pagãos, como por exemplo o templo grego de Esculápio, eram instituições religiosas que resistiram à poderosa influência da medicina antiga, de base racional como a de Hipócrates, pelo menos até ao tempo de Galeno. O advento do cristianismo não alterou substancialmente o culto das artes curativas, embora tenha lançado três fundamentos do hospital moderno: a noção de serviço e de bem-estar, o alargamento da assistência a todas as pessoas necessitadas e a instituição de custódia. Para o cristianismo, a doença e o sofrimento, sejam ou não de causa natural, estavam sujeitos à vontade de Deus. Daí que a assistência aos doentes e aos necessitados tenha sido considerada como virtude e como manifestação da misericórdia de Deus. Os motivos que levavam as pessoas a prestar ajuda aos doentes e aos necessitados não eram a devolução da saúde e o prolongamento da vida, mas salvar as suas próprias almas: «Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres. Instituição de assistência, como também de separação e de exclusão. O pobre como pobre tem necessidade de assistência e, como doente, portador de doença e de possível contágio, é perigoso. Por estas razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-lo, como para proteger os outros do perigo que ele encarna. O personagem ideal do hospital, até ao século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está a morrer. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramento. Esta é a função essencial do hospital. Dizia-se correntemente, nesta época, que o hospital era um morredouro, um lugar onde morrer. E o pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas a conseguir a sua própria salvação. Era um pessoal caritativo - religioso ou leigo - que estava no hospital para fazer uma obra de caridade que lhe assegurasse a salvação eterna. Assegurava-se, portanto, a salvação da alma do pobre no momento da morte e a salvação do pessoal hospitalar que cuidava dos pobres. Função de transição entre a vida e a morte, de salvação espiritual mais do que material, aliada à função de separação dos indivíduos perigosos para a saúde geral da população» (Michel Foucault). Os hospitais cristãos eram estruturados como instituições para a prática da caridade e não como lugares de cura. Por isso, o pessoal hospitalar cuidava não só dos doentes, mas também dos necessitados de alojamento. Com efeito, o seu propósito é indicado pelo seu nome derivado do latim: hospitalis - relativo a hospites, a hóspedes, isto é, a todos os indivíduos necessitados de asilo. Os hospitais medievais foram construídos como as igrejas e tinham uma ordenação monástica: eles abriam as suas portas aos doentes, aos inválidos, aos pobres, aos mendigos, enfim aos viajantes, bastando que cada um destes utentes jurasse ser fiel a Deus, ser sóbrio e casto de corpo, amar o próximo, obedecer aos superiores e participar nos serviços religiosos. O pessoal hospitalar era dirigido por um capelão ou hospitaleiro, responsável pelas necessidades espirituais dos necessitados e pela manutenção da disciplina, e auxiliado pelas irmãs, geralmente religiosas, que realizavam os trabalhos domésticos; por um secretário, que cuidava da correspondência e dos livros; pelo porteiro, que controlava o acesso de bebidas alcoólicas no interior do estabelecimento; e pelo médico, que curava os doentes. O funcionamento do hospital na Europa permite a Michel Foucault definir duas séries - a médica e a hospitalar - que, durante a Idade Média, permaneceram distintas: o hospital medieval não era uma instituição médica e a medicina não era uma prática hospitalar. O hospital medieval foi, até ao começo do século XVIII, uma instituição de exclusão, de assistência e de transformação espiritual, da qual a função médica estava excluída. Com efeito, a prática médica estava longe de ser uma medicina hospitalar: «A medicina dos séculos XVII e XVIII era profundamente individualista. Individualista da parte do médico, qualificado como tal ao término de uma iniciação assegurada pela própria corporação dos médicos que compreendia conhecimentos de textos e transmissão de receitas mais ou menos secretas ou públicas. A experiência hospitalar estava excluída da formação ritual do médico. O que o qualificava era a transmissão de receitas e não o campo de experiências que ele teria atravessado, assimilado e integrado. Quanto à intervenção do médico na doença, ela era organizada em torno da noção de crise. O médico devia observar o doente e a doença, desde os seus primeiros sinais, para descobrir o momento em que a crise apareceria. A crise era o momento em que se afrontavam, no doente, a natureza sadia do indivíduo e o mal que o atacava. Nesta luta entre a natureza e a doença, o médico devia observar os sinais, prever a evolução, ver de que lado estaria a vitória e favorecer, na medida do possível, a vitória da saúde e da natureza sobre a doença. A cura era um jogo entre a natureza, a doença e o médico. Nesta luta o médico desempenhava o papel de prognosticador, árbitro e aliado da natureza contra a doença. Esta espécie de teatro, de batalha, de luta em que consistia a cura só podia desenvolver-se na forma de relação individual entre médico e doente. A ideia de uma longa série de observações no interior do hospital, em que se poderia registar as constâncias, as generalidades, os elementos particulares, etc., estava excluída da prática médica» (Michel Foucault).

A prática médica desta época não permitia a organização de um saber hospitalar e a própria organização do hospital vedava o acesso à intervenção da medicina: as séries hospitalar e medicina permaneceram independentes até meados do século XVIII quando surgiu, pela primeira vez, o hospital terapêutico. Nos seus estudos sobre o nascimento do hospital, Michel Foucault não atribuiu qualquer importância ao hospital renascentista. Durante o Renascimento, com o desaparecimento do monaquismo em alguns países europeus, muitos hospitais fecharam temporariamente: os pobres e os doentes foram despejados nas ruas sem alojamento e meios de assistência. Em Inglaterra, desenvolveu-se um sentimento de cidadania que permitiu aos cidadãos de Londres agir conjuntamente para cuidar dos doentes e dos pobres. Em 1601, este sentimento de cidadania tomou forma na English Poor Law, que permitia aos alcaides estabelecer impostos para aliviar os pobres, obrigar os pobres saudáveis a trabalhar e fundar instituições para lhes prestar cuidados. Os hospitais que surgiram, além de serem instituições seculares, cuidavam dos doentes, dos pobres e dos indigentes, curando as suas doenças e dando-lhes assistência médica, cirúrgica e farmacêutica. O hospital renascentista sofreu mudanças estruturais significativas que apontavam no sentido da estruturação do hospital moderno. A mudança mais importante foi a profissionalização dos médicos, processo de educação médica incorporado à instituição hospitalar que teve como consequência o aparecimento do pessoal médico e hospitalar organizado como um factor independente na estrutura social do hospital: o monopólio do conhecimento médico deu-lhes - aos médicos a funcionar em rede hospitalar - o controle do hospital. Estas alterações não são estranhas à hipótese do duplo nascimento do hospital de Michel Foucault, que, apesar disso, preferiu destacar os hospitais marítimos e militares - em vez dos hospitais civis - para explicar como os hospitais foram medicalizados e a medicina pôde tornar-se hospitalar. A primeira grande organização hospitalar a surgir na Europa no século XVII é, segundo Michel Foucault, o hospital militar: a reorganização do hospital militar constitui assim o ponto de partida ou o modelo que permite compreender a medicalização do hospital, na medida em que o seu reordenamento foi levado a cabo não a partir de uma técnica médica, mas sim a partir de uma nova tecnologia política: a disciplina que lhe possibilitou anular os efeitos negativos e a desordem do hospital. Quando formula a hipótese de que o hospital se medicalizou primeiramente por intermédio da anulação das desordens de que era portador - as doenças que suscitava nas pessoas internadas e na própria cidade onde estava situado, por exemplo, o alvo da sua crítica é claramente a teoria do Estado e dos aparelhos ideológicos de Estado de Althusser: «A disciplina é uma técnica de exercício de poder que foi, não inteiramente inventada, mas elaborada nos seus princípios fundamentais durante o século XVIII» (Michel Foucault). É certo que os mecanismos disciplinares são muito antigos, encontrando-se presentes tanto na Idade Média (os mosteiros, por exemplo) como na Antiguidade (a escravatura, por exemplo), mas a sua existência era isolada e fragmentada, pelo menos até aos séculos XVII e XVIII, quando o poder disciplinar foi aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão dos homens. Tomando como exemplos o exército e a escola - um aparelho repressivo de Estado e um aparelho ideológico de Estado, respectivamente, na terminologia de Althusser, Michel Foucault procura demonstrar o aparecimento do poder disciplinar como nova tecnologia política no decurso do século XVIII. O aperfeiçoamento do poder disciplinar revelou-se no aparecimento de quatro mecanismos disciplinares, a saber: (1) a arte da distribuição espacial dos indivíduos, mediante a qual os corpos militares foram inseridos num espaço individualizado, classificatório e combinatório; (2) a arte do corpo, através da qual a disciplina exercia o seu controle sobre o desenvolvimento da própria acção e não sobre o seu resultado; (3) a técnica de poder que implicava vigilância permanente e constante dos indivíduos, submetendo-os - no caso do exército - a uma perpétua pirâmide de olhares; e (4) o registo contínuo que, através da anotação-exame do indivíduo e da transferência da informação de baixo para cima, assegurava a integridade do saber detido pela cúpula da pirâmide disciplinar: «A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos na sua singularidade. É o poder de individualização que tem o exame como instrumento fundamental. O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo. Através do exame, a individualidade torna-se um elemento pertinente para o exercício do poder» (Michel Foucault).

A medicalização do hospital resultou da introdução destes mecanismos disciplinares no seio do seu espaço confuso e contagioso. Disciplinar o hospital, reorganizando o seu espaço interior e a sua localização no espaço urbano, entre outros aspectos da disciplina médica, foi um dos processos pelos quais o hospital se medicalizou. O outro processo diz respeito à transformação do saber e da prática médicas: «As razões económicas, o preço atribuído ao indivíduo, o desejo de evitar que as epidemias se propaguem, explicam o esquadrinhamento disciplinar a que estão submetidos os hospitais. Mas se esta disciplina se torna médica, se este poder disciplinar é confiado ao médico, isto se deve a uma transformação no saber médico. A formação de uma medicina hospitalar deve-se, por um lado, à disciplinarização do espaço hospitalar, e, por outro, à transformação, nesta época, do saber e da prática médicas» (Michel Foucault). O grande modelo epistemológico da medicina do século XVIII e, portanto, da inteligibilidade da doença foi a botânica, a classificação de Lineu: a doença, quando compreendida como um fenómeno natural, passou a ter espécies, características observáveis, curso e desenvolvimento, como toda a planta. Ou como escreveu Michel Foucault: «A doença é a natureza, mas uma natureza devida a uma acção particular do meio sobre o indivíduo. O indivíduo sadio, quando submetido a certas acções do meio, é o suporte da doença, fenómeno limite da natureza. A água, o ar, a alimentação, o regime geral, constituem o solo sobre o qual se desenvolvem num indivíduo as diferentes espécies de doença. De modo que a cura é, nesta perspectiva, dirigida por uma intervenção médica que se endereça, não mais à doença propriamente dita, como na medicina da crise, mas ao que a circunda: o ar, a água, a temperatura ambiente, o regime, a alimentação, etc. É uma medicina do meio que está a constituir-se, na medida em que a doença é concebida como um fenómeno natural obedecendo a leis naturais». Ora, como já vimos, o hospital médico nasceu do ajustamento da introdução da disciplina no espaço hospitalar e do deslocamento da intervenção médica da doença para o meio. Esta hipótese do duplo nascimento do hospital pelas técnicas de poder disciplinar e de intervenção médica sobre o meio permitiu a Michel Foucault compreender três características fundamentais do hospital médico ou moderno. A primeira característica do hospital médico no final do século XVIII diz respeito ao espaço: a localização do hospital no espaço urbano e a distribuição interna do seu espaço. A localização do hospital deve ajustar-se ao esquadrinhamento sanitário da cidade, de modo a evitar que ele seja uma região sombria e obscura onde se difundem perigosamente miasmas, ar poluído ou água suja. Além disso, a distribuição interna do seu espaço deve ser feita em função de critérios rigorosos que garantam o sucesso da cura pela acção eficaz sobre o meio, tais como: constituir em torno de cada doente um pequeno meio de espaço individualizado, específico e modificável segundo o doente, a doença e a sua evolução; realizar uma autonomia funcional do espaço de sobrevivência do doente, suprimindo o dormitório - o leito comum - onde se amontoam diversas pessoas e dando uma cama a cada doente; enfim, construir em torno do doente um meio manipulável que permita individualizar o seu espaço de respiração em salas colectivas. A segunda característica do hospital médico no final do século XVIII diz respeito à transformação do sistema de poder no interior do hospital: a partir do momento em que o hospital foi concebido como um instrumento de cura, usando a distribuição do espaço como instrumento terapêutico, o poder deslocou-se do pessoal religioso para o corpo médico. Os médicos tomaram o poder da organização hospitalar, substituindo a sua anterior forma de claustro e de comunidade religiosa pela organização médica do espaço. O personagem do médico hospitalar surgiu, portanto, no final do século XVIII, e, com ele, o ritual da visita que marca o advento do poder médico, um desfile diário em que o médico, acompanhado pela hierarquia do hospital (assistentes, alunos, enfermeiras), vai ao leito de cada doente. Finalmente, a terceira característica do hospital médico no final do século XVIII refere-se à organização de um sistema de registo permanente e exaustivo do que acontece no interior do hospital. O sistema de registo inclui não só a identificação dos doentes e as fichas com o nome e a doença do paciente, mas também toda uma série de registos que acumulam e transmitem informação: registo geral de entradas e saídas, registo de cada sala realizado pela enfermeira-chefe, registo da farmácia, registo do médico e a obrigação dos médicos confrontarem as suas experiências e os seus registos. Constituiu-se assim um campo documental no interior do hospital, lugar de cura e de registo, acumulação e formação de saber médico. Ora, a partir do momento em que a formação do médico passa pelo hospital e não pelos tratados clássicos de medicina, aparece a clínica como dimensão essencial do hospital: o hospital torna-se lugar de formação e de transmissão do saber médico, ao mesmo tempo que a medicina toma como objecto de observação o indivíduo e a população. Graças à tecnologia hospitalar, o indivíduo e a população são dados como objectos de saber e alvos da intervenção médica. Escolhi como imagem de fundo o Hospital Geral de Santo António, porque a sua história criticamente elaborada permite reconstituir toda a evolução do hospital médico, desde o final do século XVIII até ao presente. Uma monografia completa deste hospital portuense possibilita colmatar as lacunas históricas e teóricas da hipótese de Michel Foucault, lançando luz sobre a discussão silenciosa que ele travou com o marxismo renovado de Althusser. Afinal, onde devemos localizar o hospital na tópica de Althusser? Será o hospital, tal como a escola, a família ou a comunicação social, um aparelho ideológico de Estado? Ou será necessário recusar situá-lo na super-estrutura jurídico-política e ideológica? Colocar estas questões é, desde já, apontar o limite do esboço histórico de Michel Foucault que não diz nada de relevante sobre as relações sociais de produção e sobre o campo da luta de classes.

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J Francisco Saraiva de Sousa