segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Oswald Spengler: Sinais de Decadência

«Onde quer que, de qualquer forma, a vontade de poder se encontre em declínio, há sempre também uma regressão fisiológica, uma décadence./ Entendo a corrupção (...) no sentido da décadence; a minha afirmação é que todos os valores em que agora a humanidade condensa os seus desejos supremos são valeurs de décadence./ O «progresso» é simplesmente uma ideia moderna, ou seja, uma ideia falsa./ A décadence, para o tipo de homem que no Judaísmo e no Cristianismo aspira ao poder, é uma linhagem sacerdotal, unicamente um meio: este tipo de homem tem um interesse vital, a saber, tornar a Humanidade doente e perverter os conceitos de «bem» e «mal», de «verdadeiro» e «falso», num sentido perigoso para a vida e infamante para o mundo./ A nossa suavização dos costumes (...) é uma consequência da decadência; a dureza e a ferocidade dos costumes pode, pelo contrário, ser uma consequência da superabundância de vida./ Todo o Ocidente deixou de ter aqueles instintos de que nascem as instituições, de que brota o futuro: talvez nada repugne mais ao seu «espírito moderno». Vive-se para hoje, vive-se muito depressa, vive-se muito irresponsavelmente: eis o que chamam «liberdade»./ Chega tão longe a décadence do instinto de valor dos nossos políticos, dos nossos partidos políticos, que preferem instintivamente o que dissolve, o que acelera o fim.../ As nossas instituições já não servem: a este respeito existe acordo. Isso, porém, não depende delas, mas de nós./ A modernidade (é) a autocontradição fisiológica." (Friedrich Nietzsche)
A biologia usa o termo homologia de órgãos para designar a sua equivalência morfológica, em oposição à analogia que se refere à equivalência das suas funções. Oswald Spengler recorreu ao conceito de homologia para comparar as culturas: todas as culturas manifestam "formações homólogas de feições mais ou menos características e de importância diferente, mas que sempre aparecem nas mesmas fases da sua evolução, de maneira que cabe afirmar que elas correspondem umas às outras". Este "tacto fisiognomónico" permite-lhe não só reconstruir os nexos morfológicos, como também predeterminar o curso das necessidades morfológicas. A grande característica morfológica reside no facto de que "cada cultura percorre fases de envelhecimento iguais às da vida do indivíduo. Todas as culturas têm a sua infância, a sua adolescência, a sua virilidade e a sua velhice". E é neste momento que Spengler introduz a distinção entre cultura e civilização: "cada cultura tem a sua própria civilização". Spengler encara e concebe a civilização como a consequência orgânico-lógica, isto é, como o remate e o término, da cultura: "A civilização é o destino inevitável de cada cultura. Com (a civilização), alcançamos o cume onde se tornam solúveis os derradeiros, os mais difíceis problemas da morfologia histórica. Civilizações são estados extremos, mais artificiosos, que uma espécie superior de homens é capaz de atingir. São um término. Seguem ao processo criador como o produto criado, à vida como a morte, à evolução como a rigidez, ao campo e à infância das almas como a decrepitude espiritual e a metrópole petrificada e petrificante. Representam um fim irrevogável, ao qual sempre se chega com absoluta necessidade". Tudo o que nasce morre após um período de florescimento e de decadência, e, nalguns casos como sucedeu com a alma mágica, a cultura árabe, pode morrer à nascença sem chegar a florir. Isto significa que, ao contrário do que se pensa frequentemente, em especial Robert Nisbet, a abordagem cíclica e pluralista das culturas feita por Spengler não nega completamente o progresso: cada cultura evolui até atingir o seu ponto de esgotamento e finalmente perecer. O que Spengler parece não aceitar é a ideia defendida por Toynbee, segundo a qual cada nova civilização possui vantagens sobre as anteriores: a morfologia da História Universal de cunho spengleriano rejeita essa «progressão histórico-civilizacional» e parece ser muito pessimista quanto à possibilidade do Ocidente se libertar da idolatria da tecnologia para entrar numa nova fase de desenvolvimento espiritual.
Ora, nesta perspectiva, a decadência do Ocidente significa necessariamente o problema da civilização, na medida em que é a única civilização no nosso planeta a ter atingido a sua plenitude. A transição da cultura para a civilização realizou-se, segundo Spengler, durante o século XIX. Esta mesma transição operou-se na Antiguidade no decorrer do século IV a. C. e pode ser vista de relâmpago na diferença entre os gregos e os romanos: "Os gregos tinham alma; os romanos, intelecto: eis a diferença!" O destino espiritual e material de todas as épocas em declínio é geralmente entregue nas mãos de homens de mentalidade robusta, como os romanos, absolutamente avessos à metafísica. O resultado é inexoravelmente este: "A civilização pura, como processo histórico, consiste na demolição gradual de formas mortas, que já se tornaram inorgânicas". A teoria da decadência de Spengler é deveras complexa e apoia-se sobre uma base comparativa de «factos» históricos muito rica: sua erudição histórica é simplesmente impressionante. Para facilitar a exposição, tentaremos captar a constelação orgânica da decadência civilizacional, sem entrar nos seus pormenores: as decisões espirituais já não são tomadas no "mundo inteiro", mas concentram-se em três ou quatro grandes metrópoles que absorvem o sumo da história, rebaixando o resto do mundo à categoria de "província": "A Metrópole significa o cosmopolitismo em lugar da "terra natal", termo profundo, que recebe o seu sentido pleno, quando o bárbaro se transforma em homem culto, e que o perde novamente no mesmo instante em que o homem civilizado começa a professar o ubi bene ibi patria".
A Metrópole não só concentra toda a vida espiritual em detrimento de todas as outras regiões, como também substitui o povo pelas massas, avessas a quaisquer tradições, hostis à cultura e profundamente naturalistas, sobretudo ao nível dos temas sociais e sexuais: A Civilização aniquila o conceito de povo e promove, sobretudo com o advento dos mass media, o "quarto Estado", a massa, "avessa por princípio à Cultura e às suas formas naturalmente evoluídas. A massa é o absolutamente informe. Persegue com o seu ódio qualquer espécie de forma, quaisquer diferenças hierárquicas, a propriedade organizada, o saber disciplinado. É o novo nomadismo das metrópoles" que flutua e vagueia, sem distinção e sem rumo, totalmente desprendido das suas origens, desdenhoso no que se refere ao passado e desprovido de futuro: "A massa é o fim, é o nada radical". As massas manipuladas pelo sistema económico capitalista subverteram completamente os princípios culturais e políticos e deixam-se submeter facilmente pelos poderes superiores à tirania do "grande silêncio": "Hoje vivemos entregues, sem resistência, à acção dessa artilharia espiritual, de maneira que poucos são os que podem manter a distância interior suficiente para perceberem com toda a clareza a monstruosidade inerente a esse espectáculo (montado pelos mass media). (...) Também (neste domínio da comunicação) triunfa o dinheiro, pondo ao seu serviço os espíritos livres. Não há sátira mais cruel contra a liberdade de pensamento. Outrora não era lícito pensar livremente; agora temos tal direito, porém somos incapazes de exercê-lo. (...) Os leitores só chegam a saber o que devem saber, e uma vontade superior cria para eles a imagem do mundo".
A própria política civilizada é jornalismo ou propaganda, colocado ao serviço da abstracção que representa o poder da civilização: o Dinheiro. O dinheiro anulou a democracia e arruína as instituições políticas e culturais: "No mundo das verdades, a prova decide tudo. No mundo das realidades, por sua vez, quem decide é o êxito. Pelo dinheiro, a Democracia anula-se a si própria, depois do dinheiro ter anulado o espírito. O cesarismo cresce no solo da Democracia, mas as suas raízes penetram profundamente nas camadas ínfimas do sangue e da tradição. Por mais energeticamente que os poderosos do futuro, já que a grande forma política da cultura se desfez irremediavelmente, dominarem a terra como se esta fosse a sua propriedade particular, esse poderio informe, ilimitado, terá todavia uma missão a cumprir: a missão de cuidar sem descanso deste mundo. Tal cuidado é o contrário de todos os interesses na época da hegemonia do dinheiro e requer um senso de honra elevadíssimo, bem como a plena consciência do dever. Justamente por isso, porém, produz-se agora a luta final entre a Democracia e o Cesarismo, entre os poderes dominantes de um plutocracia ditatorial e a vontade organizadora, puramente política, dos Césares". Para Spengler, o Imperialismo é o símbolo típico do final, porque produz petrificações extensivas que, no nosso tempo, escapam ao controle do próprio Ocidente: "O Imperialismo é civilização pura. (...) O homem culto dirige as suas energias para dentro: o civilizado, para fora". O seu lema foi formulado por Cecil Rhodes: "A expansão é tudo". A ditadura do dinheiro reduz toda a vida a possibilidades extensivas. No nosso tempo, essa expansão é denominada Globalização, a nova forma de imperialismo que ameaça verdadeiramente o Ocidente, porque reduz a expansão à deslocalização. Os núcleos triunfantes da actual globalização cristalizam-se na aliança negra entre a "democracia" (globalização da cleptocracia ou plutocracia), o dinheiro (globalização dos capitais) e a "imprensa" (globalização da comunicação).
A perspectiva de Spengler opõe-se completamente à modernidade que, tal como Nietzsche, encara como decadência, e é movida por uma nostalgia dos tempos medievais ou rurais que o leva a condenar em bloco a sagrada trilogia astral da modernidade: Kant, Hegel e Marx. Spengler teve o mérito inegável de mostrar que a realização de todos os grandes princípios promovidos pelo esclarecimento se converteu no seu contrário: a barbárie ou, como prefere dizer, a decadência. Ora, um tal diagnóstico e um tal prognóstico assemelha-se muito aquele que foi feito mais tarde por dois herdeiros de Marx, Horkheimer e Adorno, bem como por Benjamin: "o progresso converte-se em regressão". Quer sejam de Direita ou de Esquerda, os grandes filósofos chegaram finalmente a um consenso; contudo, divergem quanto ao tratamento. Aceitar a decadência com as armas nas mãos pode ter o seu lado heróico, mas significa desistir de lutar contra as trevas que ameaçam o poder ocidental: o fatalismo é sempre amigo do processo em curso, de resto entregue às arbitrariedades do capitalismo destrutivo. A outra atitude protagonizada por Ernst Bloch consiste no optimismo militante. A revisão dialéctica do conceito de progresso deve procurar reconciliar os mestres numa síntese que exige necessariamente o uso sábio da violência restauradora na esfera interna, e da inteligência maquiavélica nas relações internacionais. O progresso torna-se sinónimo de triunfo do mal radical sempre que os homens deixam de ter esperança e de lutar pelo salto qualitativo radical: a restituição (interna) do mundo é a salvação do Ocidente. É provável que a nova grande política exija o recurso a uma teoria do mal radical (antropologia dialéctica), a qual, além de não ser incompatível com a utopia concreta de Bloch, implica uma reforma radical do Estado e do Direito. Abdicar da acção restauradora e da violência externa é deixar o mundo entregue ao mal. Em suma, uma teoria positiva do progresso e da racionalidade só é possível em solo ocidental.
J Francisco Saraiva de Sousa

7 comentários:

Fräulein Else disse...

Boa noite Francisco,

Pego na sua expressão de «violência externa» e recordo o "incidente" da Finlândia. Incidente entre aspas, porque é Nemesis a ditar. Parece que uma das formas (talvez a única?) de fazer estalar esta realidade falsificada e conspurcada é por lances de extrema violência. Aí, por instantes, o "medinho" torna-se medonho e a morte que esqueceram por via das receitas de "longevidade", é-lhes queimada a ferros.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá Fraulein Else

Estou desactualizado em termos de notícias: não sei qual foi o "incidente da Finlândia". Entre nós, procuro salvar a modernidade mas estou "afogado" no seu miolo interno. Neste momento, as contradições são mais evidentes do que as "fugas", mas pressinto que tenho uma grã-teoria alternativa e, sem violência (detesto), não vamos lá.

Sim, a "realidade" está mesmo falsificada; só o homem metabolicamente reduzido não se apercebe como o nosso mundo tem os pés de barro! A mim preocupa-me a memória dos vencidos da História: é ela que me move e talvez a vida e a natureza... :)

Fräulein Else disse...

Até pode exumar "vencidos", mas desconfio da "salvação" da "modernidade". De qualquer maneira, desejo-lhe sucesso na sua investida. :)

Sobre o "incidente" da Finlândia: http://ultimahora.publico.pt/noticia.aspx?id=1343773&idCanal=62

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá Fraulein Else

Estv a ler os comentários ao post do D. Murcho. Pelo menos, uma pessoa não entendeu a minha crítica, chamando-me "crente". Fui conciso e coloquei em causa o modo de fazer "filosofia" do Murcho.

Vou ver a notícia. Quanto à modernidade, no fundo, é o capitalismo na sua lógica irracional que está a destruir tudo... Por isso, falei de uma reforma radical do Estado: o capitalismo deve ser vigiado pelo Estado reformulado.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vou escrever talvez um post sobre a teoria das diversas ordens da realidade, para mostrar como se faz filosofia.

Fräulein Else disse...

Ah! O Sr. Desidério Murcho a mim murcha-me o espírito, por isso esquivo-me de segui-lo, mas visito esporadicamente este blog: http://blog.criticanarede.com/
que anuncia algumas novidades filosóficas editoriais e etc.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não esgotei a teoria da decadência de Spengler, e, neste contexto de crise financeira nos USA que ameaça também a Europa, podia ter falado na Bolsa, mas não tive tempo para acrescentar isso ao post.