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quarta-feira, 21 de março de 2012

António Nobre: Do Porto a Baltimore

Cidade do Porto: Ponte D. Luís I
De Maio a fins de Junho de 1897, António Nobre viajou até à América do Norte, aproveitando a sua paragem pelos Açores para cumprir um voto expresso na sua poesia: visitar o túmulo de Antero de Quental. Nos Estados Unidos, a mesma intenção o levou a Baltimore, em homenagem à poesia de Edgar Poe. Baltimore, a cidade americana onde morreu o poeta admirado nos meios literários do Porto, sugeriu-lhe as quintilhas intituladas Sensações de Baltimore, incluídas na sua obra póstuma Despedidas: «Meu caro Antero de Figueiredo, como post-scriptum à minha última carta, envio-lhe esse belo magazine, Bookman, onde desde já poderá ir estudando feições da sua Revista. Tanto mais que ela publica neste número um estudo sobre Edgar Poe, acompanhado desses retratos, que muito lhe deve interessar. Cheguei, há pouco, aqui procedente de Baltimore onde fui visitar o túmulo do pobre Allan, do "Corvo". Também vi um convento de Pretos. Adeus» (Filadélfia, sábado, 29 de Maio de 1897). Hoje estive a estudar a cartografia de António Nobre. Das cidades que conheceu a que mais amou foi a sua terra natal, a cidade do Porto, que ele canta a partir da Foz e dos Rios Douro e Leça: «Tu não gostas de Lisboa, dizes. É pour? E daí, é possível que sejas franco. Eu, por mim, só me sinto bem, quando estou no Porto, em minha casa, com a minha família, com os meus amigos. Tenho muitas saudades do Porto...» (Carta de Eduardo Coimbra dirigida a António Nobre, 3 de Abril de 1884). (Lisboa d'O Desejado é uma pedra no meu sapato hermenêutico! Porém, a pedra dissolve-se quando penso que o António é o herói Anrique!) Eis o poema incompleto sobre Baltimore:

«Cidade triste entre as tristes,
Oh Baltimore!
Mal eu diria que na terra existes
Cidade dos Poetas e dos Tristes,
Com teus sinos clamando "Never-more".

«Os comboios relâmpagos voando,
Pela cidade de Baltimore,
Levam uns sinos que de quando em quando
Ferem os ares, o coração magoando,
E os sinos clamam "Never-more, never-more. (...)» (Baltimore, 1897)

E sobre o mar do Porto - da Foz a Leça - retenho este soneto antigo, Ao Mar: António Nobre retém das cidades tudo aquilo que o evoca, como se depreende de uma carta dirigida da Madeira a Antero de Figueiredo, datada de 28 de Junho: «Creia que tenho as maiores saudades do nosso Portugal. Os meus estios, se bem que no Doiro, administrativamente, diante de Deus e do céu estrelado, estão no Minho também. Que saudades dessas fontes, dessas águas! A Madeira é linda, mas falta-me o passado que é tudo em mim, nada me evoca por mais que eu olhe».

«Ó meu amigo Mar, meu companheiro
De infância! dos meus tempos de colégio,
Quando pra vir nadar como um poveiro
Eu gazeava à lição do mestre-régio!

«Recordas-te de mim, do Anto trigueiro?
(O contrário seria um sacrilégio)
Lembras-te ainda desse marinheiro
De boina e de cachimbo? Ó mar, protege-o!

«Que tua mão oceânica me ajude.
Leva-me sempre pelo bom caminho,
Não me faltes nas horas de aflição.

«Dá-me talento e paz, dá-me saúde,
Que um dia eu possa, enfim, poeta velhinho!
Trazer meus netos a beijar-te a mão...»

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Desenredos: Walter Benjamin, Progresso e Experiência

Miradouro, Porto
Saiu o novo número (Ano IV, nº. 12, Janeiro Fevereiro Março de 2012) de dEsEnrEdoS, uma revista de cultura e literatura, onde poderá ler ou reler o meu texto - Walter Benjamin: Progresso e Experiência da Pobreza. Aconselho a leitura integral deste novo número da revista editada pelos meus amigos Wanderson Lima e Adriano Lobão Aragão: todos os seus artigos, ensaios e secções merecem ser lidos e meditados. Boa leitura de Inverno, pelo menos em Portugal e na Europa! Boa leitura tropical nos países "quentes" de língua oficial portuguesa, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Timor!

Anexo: O meu arqui-inimigo (sic) voltou a atacar a minha teoria da homofobia aqui. Mas depois da minha longa viagem pelas civilizações pré-colombianas não me apetece voltar a discutir o sexo dos anjos com uma pessoa absolutamente intolerante e reaccionária. Os frades espanhóis também criticaram a homossexualidade asteca, usando os mesmos argumentos intolerantes, como se não soubéssemos da existência de práticas homossexuais nos mosteiros e seminários ao longo da Idade Média e dos Tempos Modernos. O que posso dizer é que a redução obsessiva da homossexualidade à imagem do pénis dentro do ânus é sintomática: ela revela o desejo sexual reprimido daqueles que a usam. Além disso, não preciso de recorrer à autoridade dos cientistas, porque eu próprio sou um cientista que dialoga com outros cientistas na busca cooperativa da verdade: o que nos interessa é revelar a realidade e não discutir "tretas" à velha maneira dos escolásticos. Ciência dura é tudo aquilo que fazemos de modo cooperativo, uns com os outros, sem "conversar" com calhaus destituídos de imaginação científica que, lá onde julgam ser "livres", são escravos daquilo a que chamam "condição heterossexuada do homem" (sic), uma condição "moral" (sic) aberta à condição lésbica e à condição transsexual! Um homem heterossexual seguro da sua orientação sexual não anda sempre a pensar em actos homossexuais, porque o indivíduo que passa toda a sua vida a falar contra a homossexualidade só pode ser um grande "paneleiro" empastelado e rançoso e, portanto, um "gay reprimido" com o "cu" do tamanho de uma cratera lunar, como demonstrou a experiência de laboratório realizada por Adams, Wright & Lohr (1996).

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 1 de outubro de 2011

10 Melhores Postagens do Mês de Setembro

Zona da Boavista à noite, Porto
O meu amigo Wanderson Lima, autor do blog O Fazedor, escolheu o meu texto - Lucien Lévy-Bruhl: A Mentalidade Primitiva - como uma das 10 melhores postagens do mês de Setembro. Este ensaio sobre Lévy-Bruhl faz parte integrante de um conjunto de textos dedicados aquilo a que chamei a Filosofia Primitiva, uma nova abordagem teórica do pensamento primitivo levada a cabo do ponto de vista da Filosofia Ocidental. Embora tenha escrito muitos outros textos sobre este tema, destaco apenas aquele em que lancei o próprio termo Filosofia Primitiva para designar uma nova área de investigação filosófica, precisamente Filosofia Primitiva. Aconselho a leitura das 10 melhores postagens do mês de Setembro.


Anexo: Tenho estado a realizar uma nova linha de investigação e, qual o meu espanto, quando verifico a formação espontânea de uma aliança luso-brasileira masculina. Ou melhor, esta aliança também envolve participantes dos outros países que falam a língua portuguesa, em especial Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Por isso, será melhor designá-la por este novo termo: comunidade PT. Devo confessar que esta comunidade desafia de tal modo o meu espírito de tolerância que, por vezes, fico perplexo. Mas o que mais tem chamado a minha atenção é a proximidade que se gera entre portuenses, brasileiros e a diáspora luso-brasileira. Se tivesse de definir os portuenses a partir dos marcadores que utilizo nessa investigação, diria simplesmente que eles são os melhores exemplares da população portuguesa. De facto, em termos políticos, os portuenses e o Norte devem libertar-se de Portugal e lutar pela sua Independência. A Constituição Portuguesa possibilita essa luta pela autonomia total: o Porto/Norte anda a ser demasiado sacrificado e está na hora de acordar do pesadelo sulista que o explora e o oprime, formar um povo e lutar pela sua independência.


J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Apresentação da Obra de Oliveira Martins

Casa da Pedra, Águas Férreas, Porto, onde Oliveira Martins viveu.
Aqui - nesta casa portuense - realizaram-se muitas tertúlias 
da Geração de 70. Porto Mental: eis a nossa marca.
«O homem é menos belo, o homem desceu, por isso mesmo que se tornou, de centro e objecto da civilização, em instrumento dessa própria civilização que, engrandecendo-se, o deprime.» (Oliveira Martins)

«Mais de uma vez me tem passado pela cabeça emigrar - porque a filosofia é excelente, mas antes disso é mister viver. E viver para mim, que não tenho riqueza, nem ofício ou profissão definida, é um problema, querendo, como quero, conservar-me limpo.» (Oliveira Martins)


«A androfagia aparece como um momento da evolução mental do homem, exprimindo a primeira definição dos sentimentos guerreiros. Demonstra já um elevado grau de capacidade moral, e provém exclusivamente de um movimento da inteligência. A revolução natural deu-se quando de herbívoro o homem se tornou carnívoro; e o canibalismo, atingido agora, não tem importância para o organismo: a carne das rezes e a dos homens é uma e a mesma carne. /Como negar, pois, que o canibalismo seja relativamente um passo enorme andado na evolução moral do homem, se daí nascem as religiões? Ainda hoje a androfagia é um rito entre selvagens nossos contemporâneos: devorar o inimigo é para eles comungar; cada parte do corpo tem virtudes suas: o coração trincado dá-lhes força, o sangue bebido conserva-lhes a vida; e os olhos engolidos aumentam-lhes a perspicácia.» (Oliveira Martins)


Vou apresentar as obras de Oliveira Martins (1845-1894) pela data da sua publicação, tecendo alguns comentários sobre cada uma delas. A edição das obras completas (Guimarães Editores) compreende - tanto quanto sei - 43 volumes.

1867: Febo Monis. (Livro de intenção política quanto ao problema do federalismo ibérico.)
1869: Teófilo Braga e o Cancioneiro e o Romanceiro Português. (Durante este período, Oliveira Martins escreveu algumas peças teatrais que, tanto quanto sei, ainda são inéditas.)
1872: Os Lusíadas: Ensaio sobre Camões e a sua Obra. (Obra revista e ampliada em 1891, sendo reeditada com o título - Camões e os Lusíadas.)
1872: A Teoria do Socialismo: Evolução Política e Económica das Sociedades Europeias.
1873: Portugal e o Socialismo: Exame Constitucional da Sociedade Portuguesa e a sua Reorganização pelo Socialismo. (Oliveira Martins elabora nestas duas últimas obras a sua própria perspectiva da sociedade portuguesa, de modo a propor a sua reconstrução e reorganização pelo socialismo. Infelizmente, o socialismo de Oliveira Martins tem a marca de Proudhon!)
1877: A Reorganização do Banco de Portugal. (Opúsculo de intervenção política e de análise económica.)
1878: Circulação Fiduciária. (Com este opúsculo Oliveira Martins ganhou o concurso aberto pela Academia das Ciências para uma memória sobre o melhor sistema de circulação fiduciária.)
1878: As Eleições. (Opúsculo de intervenção política.)
1878: O Helenismo e a Civilização Cristã. (A grande obra de filosofia de Oliveira Martins.)
1879: História da Civilização Ibérica. (Obra interessante, da qual retemos a ideia de que a decadência peninsular é obra do Catolicismo.)
1879: História de Portugal. (Como escreve António Sérgio: «A História de Portugal é o livro de um feiticeiro, mas não de um mestre, - apesar do intuito de nos ministrar, pelo exame crítico dos factos, as lições políticas correspondentes». Nem sempre concordo com as análises críticas de António Sérgio: a História de Portugal de Oliveira Martins é, tal como a História de Roma de Mommsen (Prémio Nobel da Literatura), uma obra de arte literária.)
1880: O Brasil e as Colónias Portuguesas. (Ensaios de história económica nacional.)
1880: Elementos de Antropologia. (Uma história natural do Homem: obra importante para a elaboração de uma antropologia filosófica. A posição de Oliveira Martins aproxima-o do esquema das antropologias filosóficas produzidas na Alemanha.)
1881: Portugal Contemporâneo. (Esta obra - injustamente esquecida - desacredita a Dinastia de Bragança, pelo menos foi essa a marca que nos deixou. Portugal Contemporâneo - 2 vols. - começa onde a História de Portugal tinha terminado: ambas as obras fornecem-nos uma filosofia da História de Portugal, que, apesar da ausência da influência de Marx, se articula com uma filosofia política e uma praxis de intervenção política nacional. Esta filosofia da História de Oliveira Martins continua a ser actual.)
1881: As Raças Humanas e a Civilização Primitiva (2 vols.). (Obra de divulgação, com um poderoso toque de génio pessoal: o que é lamentável é o facto de Oliveira Martins não ter compreendido o conceito de espécie, tal como funciona na teoria da evolução de Darwin. Porém, Oliveira Martins captou os grandes momentos do pensamento biológico: a visão tipológica e a visão populacional evolucionista.)
1882: Sistema dos Mitos Religiosos. (Obra de divulgação que merece ser revisitada pela filosofia da religião.)
1883: Quadro das Instituições Primitivas. (Obra de divulgação genial.)
1883: O Regime das Riquezas. (Obra brilhante de divulgação.)
1884: Taboas de Cronologia. (Oliveira Martins foi um divulgador de génio. Muitas destas obras foram escritas para suportar e preencher os tópicos do seu projecto pessoal da Biblioteca das Ciências Sociais, anunciado em 1879.)
1884: O Empréstimo Real de 1832. (Este opúsculo não foi lançado no mercado.)
1885: História da República Romana (2 vols.). (Uma obra arrojada que merece figurar ao lado da História Social e Económica do Império Romano de Rostovtzeff e da História de Roma de Theodor Mommsen. A defesa do cesarismo socializante, tão criticado por António Sérgio!)
1885: Política e Economia Nacional. (Ensaios brilhantes de história económica nacional.)
1887: Projecto de Lei sobre o Fomento Rural. (Na edição das obras completas, intitula-se Fomento Rural e Emigração. Estudo brilhante!)
1889: Portugal nos Mares (2 vols.). (Ensaios de história económica nacional.)
1891: Os Filhos de D. João I (2 vols.). (Ensaio histórico sobre a Dinastia de Avis.)
1891: Portugal em África. (Ensaios de história económica nacional. Convém dizer que Oliveira Martins escreveu bons ensaios de economia.)
1892: A Inglaterra de Hoje. (Conjunto de cartas escritas durante o seu exílio em Londres e dirigidas ao Jornal do Comércio do Rio de Janeiro.)
1893: Vida de Nun'Álvares. (Ensaio histórico.)
1892: Começa a escrever O Príncipe Perfeito. (Obra inacabada, publicada, com uma introdução de Barros Gomes, em 1896).
1895: Cartas Peninsulares. (Oliveira Martins morreu em 1894: o que quer dizer que esta obra é póstuma, sendo constituída pelas cartas que escreveu durante a sua viagem a Espanha, todas elas dirigidas ao Jornal do Comércio do Rio de Janeiro.) A colaboração de Oliveira Martins em diversos jornais e revistas foi editada postumamente em livros - tais como Política e História (2 vols.), O Repórter (2 vols.), A Província (5 vols.), Jornal (Dispersos) e Literatura e Filosofia

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Bob Gonsalves: Towerof Knowledge & Written World


  • A pintura de Bob Gonsalves é uma pintura para crianças e jovens: o seu realismo mágico, quase ilusionista, liberta a imaginação e fantasia a vida, sem no entanto liquidar a realidade. Seleccionei dois quadros de Bob Gonsalves: Towerolf Knowledge e Written World, ambos ligados ao mundo dos livros.

    Towerolf
    Knowledge.
    Que saudade deste mundo do estudo! Hoje os jovens não estudam: o mundo da cultura foi desvalorizado pelo capitalismo tardio. No topo do mundo, já não está a cultura e o conhecimento, mas sim o saber económico e
    administrativo. Por isso, vivemos num mundo cognitivamente indigente e mentalmente atrofiado. As crianças deixaram de sonhar: a imaginação foi sufocada pelo mundo fetichista da mercadoria e do cartão de crédito.

    Written World. Tudo o que é biblioteca e livros fascina-me e, quando era miúdo, sonhava com esse mundo dos livros e da escrita. Construí e edifiquei a minha própria biblioteca. A leitura atenta e activa de livros permite abrir portas - as portas de novos mundos. Aqueles que o
    s assimilam possuem a chave que permite abrir diversos mundos fantásticos para além da realidade dada. Actualmente, o
    s jovens perderam a criatividade: não fazem coisas, consomem coisas. Os burrecos diplomados só sabem imitar e copiar: comem tudo e devoram o mundo, em vez de o conhecer. Para estes desgraçados ignorantes, mentalmente atrofiados e cognitivamente indigentes, a realidade reduz-se ao super-mercado: a mente fechou-se à descoberta de mundos fantásticos.

    J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 17 de abril de 2010

Jean-Paul Sartre: Situações

«Serão precisos dois séculos de crise - crise da Fé, crise da Ciência - para que o homem recupere a liberdade criadora que Descartes atribuiu a Deus e para que se conceba finalmente essa verdade, base essencial do humanismo: o homem é o ser cuja aparição faz com que um mundo exista. Mas não censuramos Descartes pelo facto de ter atribuído a Deus o que nos pertence por direito; admiramo-lo principalmente por ter, numa época autoritária, lançado as bases da democracia, por ter seguido até ao fim as exigências da ideia de autonomia e por ter compreendido, muito antes de Heidegger de Vom Wesen des Grundes, que o único fundamento do ser era a liberdade». (Jean-Paul Sartre, Situações I.)
A vida académica portuguesa é uma fuga organizada ao estudo: em vez de estudar e de preparar um futuro novo para Portugal, os estudantes universitários preferem beber até ficar bêbados e ir parar às urgências dos Hospitais, e urinar nas ruas. Publicações Europa-América publicaram em língua portuguesa, ainda no tempo do fascismo, uma obra de Sartre - em dez volumes -, cuja leitura recomendo aos estudantes universitários que se alienaram de si mesmos, da história e do mundo. Os estudantes universitários portugueses, bem como os seus professores, estão fora de situação. Situações é o título dessa obra capital de Jean-Paul Sartre (1905-1980), que recolhe diversos ensaios literários, filosóficos e políticos, escritos entre 1938 e 1965, muitos dos quais foram publicados pela primeira vez na revista Les Temps Modernes fundada em 1945 por Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty. Destaco apenas três ensaios: o famoso ensaio literário O que é a Literatura? (1947), o ensaio político Os Comunistas e a Paz (1952-54) e o sempre actual ensaio filosófico Materialismo e Revolução (1946).
A paixão de Sartre pela actualidade da sua época e o desejo de a inflectir levaram-no ao engajamento: a defesa dos oprimidos, sem complacência pelos opressores. Ora, o combate político contra a injustiça sob todas as suas formas colocou-o imediatamente nas proximidades do marxismo. Em 1934, Sartre escreve: «Sempre me pareceu que uma hipótese de trabalho tão fecunda como o materialismo histórico não exigia de modo nenhum como fundamento essa absurdidade que é o materialismo metafísico. Não é, com efeito, necessário que o objecto preceda o sujeito para que os pseudo-valores espirituais se dissipem e para que a moral reencontre as suas bases na realidade. Basta que o Eu seja contemporâneo do mundo e que a dualidade sujeito-objecto, que é puramente lógica, desapareça definitivamente das preocupações filosóficas. O Mundo não criou o Eu, o Eu não criou o Mundo, eles são dois objectos para a consciência absoluta, impessoal, e é por ela que eles estão ligados. Esta consciência absoluta, quando purificada do Eu, nada mais tem que seja característico de um sujeito, nem é também uma colecção de representações: ela é muito simplesmente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência. E a relação de interdependência que ela estabelece entre o Eu e o Mundo basta para que o Eu apareça como "em perigo" diante do Mundo, para que o Eu (indirectamente e por intermédio dos estados) retire do Mundo todo o seu conteúdo. Nada mais é preciso para fundamentar filosoficamente uma moral e uma política absolutamente positivas». A obra de Sartre, donde retirámos esta citação - A Transcendência do Ego, procura assimilar o projecto husserliano, ao mesmo tempo que o radicaliza: a análise crítica da noção de sujeito transcendental, desenvolvida por Husserl nas Meditações Cartesianas, leva Sartre a expulsar o Ego do campo transcendental, fazendo dele um ser do mundo, colocado no mesmo plano que o Ego do outro. Deste modo, Sartre funda objectivamente a autonomia da consciência irreflectida - do psíquico -, salvando a fenomenologia da armadilha do solipsismo ontológico. Contra a suspeita do seu amigo Nizan, Sartre pensa que a fenomenologia pode ser mais do que um «idealismo que ignora o sofrimento, a fome, a guerra», bastando-lhe fazer do Ego um ser existente contemporâneo do mundo: a partir deste Ego como ser do mundo, a fenomenologia pode criar uma moral e uma política positivas.
Em 1934, os ingredientes essenciais do pensamento de Sartre, tal como aparece resumido nesta pequena obra, já eram o compromisso político - a luta contra a opressão, o interesse pela teoria marxista da história e a recusa a sacrificar a liberdade humana a qualquer tipo de determinismo, local ou universal. Tal como o jovem Marcuse, fortemente marcado pelo pensamento de Heidegger, Sartre procura pensar uma fundamentação fenomenológica para o marxismo e, de certo modo, esse foi o grande projecto de toda a sua vida, que se materializou em duas grandes obras filosóficas: O Ser e o Nada (1943) e a Crítica da Razão Dialéctica (1960). Sartre leu Marx muito cedo na vida e nunca escondeu a sua admiração incondicional pelos seus escritos de juventude e pelo Livro I de O Capital: a dialéctica histórica era vista por Sartre como uma hipótese fecunda para interpretar a história; o que Sartre rejeitou desde sempre foi o «materialismo dialéctico» - essa metafísica dissimulada num positivismo, que, na sua perspectiva, exposta no ensaio Materialismo e Revolução (1946), mais não é do que uma ideologia congelada, absolutamente avessa ao autêntico movimento dialéctico do marxismo: Como é que a matéria poderia engendrar a ideia de matéria? O materialismo é, para Sartre, «a subjectividade dos que têm vergonha da sua subjectividade». Aprovo - em termos gerais - a crítica que Georg Lukács fez do existencialismo de Sartre, completamente distinto do de Jaspers e do de Heidegger, mas vejo a questão do "terceiro partido" e da "terceira via" numa outra perspectiva. Quando publicou o ensaio Os Comunistas e a Paz, Sartre tornou-se um «companheiro de viagem» do Partido Comunista Francês, rompendo com Merleau-Ponty e travando uma polémica com Claude Lefort. A aproximação ao PCF mostra que Sartre optou claramente pelo socialismo, vendo nele a verdadeira aspiração da humanidade, mas esta aproximação política - meramente conjuntural - não implica que ele tenha escolhido o materialismo metafísico. Sartre é um homem de Esquerda que lutou contra o fascismo e a opressão: o seu ódio pelo capitalismo é uma constante que anima todas as suas tomadas de posição. Embora reconheça a superioridade intelectual e política de Sartre, Lukács censura-lhe - com razão - a opção pelo existencialismo - reduzido na Crítica da Razão Dialéctica a uma mera ideologia destinada a inserir-se no quadro mais amplo do marxismo, a «insuperável filosofia do nosso tempo» - como a terceira via que supera o eterno conflito entre o idealismo e o materialismo: o existencialismo não é, de facto, a terceira via, até porque está organicamente ligado ao idealismo subjectivo. Porém, Sartre também tem razão quando procura separar a questão do terceiro partido da questão da terceira via, rejeitando as identificações que Lukács opera entre capitalismo e idealismo e entre socialismo e materialismo, mediante a alegação de que o socialismo é incompatível com uma filosofia materialista, na medida em que «o socialismo propõe como fim um humanismo que o materialismo torna inconcebível»: «Idealismo e materialismo fazem desvanecer igualmente o real, um porque suprime a coisa, o outro porque suprime a subjectividade. /Um ser contingente, injustificável, mas livre, inteiramente mergulhado numa sociedade que o oprime, mas capaz de ultrapassar essa sociedade pelos seus esforços para a modificar, eis o que reclama ser o homem revolucionário. O idealismo mistifica-o por o ligar a direitos e valores já dados; esconde-lhe o seu poder para inventar os seus próprios caminhos. Mas o materialismo mistifica-o também, ao roubar-lhe a sua liberdade. A filosofia revolucionária deve ser uma filosofia da transcendência» (Sartre). Paradoxalmente, se abstrairmos o contexto político da época, levando em conta que - mais tarde - o materialismo soviético acabou por abafar o projecto revolucionário, Lukács e Sartre estão muito próximos: a terceira via - além do idealismo e do materialismo - é a dialéctica, entendida como «o pensamento dos oprimidos enquanto se revoltam em conjunto contra a opressão» (Sartre) e os opressores - a classe dirigente - que reivindicam perversamente para toda a sua classe o direito divino, fazendo dos oprimidos - os homens de dever divino - a classe que nasceu para servir os supostos homens de direito divino.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O Porto Filosófico

«O aspecto moral da segunda cidade do país pouco se tem analisado; sobre ele declara-se, favorável ou hostilmente. /O Porto divergiu de todo o tempo, nos sentimentos, no modo de pensar, nos hábitos de vida, do tipo exibido, como modelo, pela capital do país. Cioso da sua autonomia, existe entre o Porto e Lisboa uma velha rivalidade. /Como se verifica por toda a parte, mercê da benignidade do seu céu, normalmente azul, e do seu clima docemente temperado, o autóctone do sul é um homem de rua, falador, vivo, pouco tenaz; de carácter suave mas frouxo, ele é naturalmente propenso a viver mais do exterior, respirando abundantemente das circunstâncias ambientes, preso ao conjunto das pessoas pelos laços de uma solidariedade que o convívio intensifica. No norte, os longos invernos, as persistentes chuvas, a tristeza das cidades enlameadas não tornam fácil o conceito de Diderot: C'est beau, la rue. O carácter enrijece na disciplina da inospitalidade da natureza e a vida de família ganha na proporção em que os hábitos de rua se obliteram e deperecem. /A comprovação histórica verifica a indução, quando assinala na sinceridade das impressões dos viajantes, ainda os mais recentes, como Ch. de Mazade para Lisboa e Olivier Merson para o Porto, que a primeira destas duas cidades é uma cidade francesa e a segunda uma cidade inglesa». (Sampaio Bruno)
Quando afirma que a Renascença Portuguesa não poderia ter nascido senão no Porto, Fernando Pessoa está a reconhecer a superioridade intelectual dos portuenses em relação aos sulistas, dando razão à lei estabelecida por Oliveira Martins: o embate do carácter do norte, representado no Porto, com o carácter do sul, simbolizado em Lisboa, é explicado a partir de variedades de tipo étnico. Portugal é um país etnicamente dividido e a sua história pode ser reduzida a um confronto étnico entre o tipo celta do Norte e a etnia mourisca do Sul. E este confronto tem sido vencido por Lisboa que, através da centralização despótica do poder político, coloniza todo o território nacional, sacando-lhe todas as riquezas que canaliza para a capital e tirando-lhe todas as oportunidades de desenvolvimento económico e cultural. A história de Portugal vista como história da centralização lisboeta atinge o seu ponto culminante depois do 25 de Abril: o regime fascista usou o Benfica para colonizar as mentes dos portugueses, dando-lhes a ilusão de uma coesão nacional inexistente, mas o regime democrático - sobretudo com os governos de Cavaco Silva - deslocalizou todo o poder económico, financeiro, comunicacional e cultural do país para a capital, criando as condições necessárias para a crise profunda que vivemos no momento presente. Sampaio Bruno não acolhe cabalmente a tese de Oliveira Martins, preferindo justificar a cisão nacional a partir de diferenças económicas - o Porto burguês e liberal - e climáticas, tal como já tinha sido feito por Montesquieu: a inospitalidade da natureza atiça o desenvolvimento intelectual da mente portuense e enrijece o corpo para a luta de vida ou de morte (Hegel) contra o centralismo canibal lisboeta.
Heródoto, Aristóteles, Montesquieu e Jean Bodin já tinham insistido na influência directa do clima nos comportamentos humanos: «O grande calor debilita a força e a coragem dos homens, enquanto nos climas frios existe uma certa força do corpo e do espírito que torna os homens capazes de acções duradouras, difíceis, grandes e audaciosas». Montesquieu conclui que a cobardia dos povos dos climas quentes os torna escravos, enquanto a coragem dos povos dos climas frios os mantém livres. A servidão civil está, portanto, ligada ao clima: «Os homens (dos climas quentes) só são levados a executar tarefas penosas pelo medo do castigo». O clima frio conduz à liberdade e o clima quente à servidão. Na peugada de Bodin, Sampaio Bruno considera que a inospitabilidade da natureza é compensada pelo aperfeiçoamento das faculdades mentais e cognitivas superiores: os homens dos climas frios vivem mais da interioridade do que da exterioridade. O recolhimento interior aguça o desenvolvimento do espírito. A oposição entre o Norte e o Sul de Portugal converte-se assim numa oposição entre o homem interior e o homem exterior. Sampaio Bruno recorre à arquitectura para explicar esta diferença de carácter: a remodelação de Lisboa pelo Marquês de Pombal - uma iniciativa do Estado - uniformizou as edificações em andares, promovendo a prosmicuidade de uma escada comum e tornando de tal modo o domicilio odioso que os seus habitantes são levados a preferir a rua. O homem exterior é o homem da rua que, tendo «o dia garantido pela sinecura do emprego público», tende a ser imprevidente e frouxo. A vida fácil do lisboeta, garantida pelo emprego público e pela iniciativa do Estado, conduz à regressão cognitiva e à atrofia dos órgãos mentais. Sampaio Bruno apreende um conceito bio-antropológico fundamental: o homem exterior desenvolve uma intolerância para com o desprazer que induz a perda da capacidade de empreender trabalhos difíceis e o desenvolvimento da exigência impaciente da imediata satisfação de todos os desejos que despontam. A necessidade incoercível de satisfação converte o homem exterior em presa fácil dos produtores e das empresas comerciais: o homem exterior é um consumidor que não tem consciência do facto de ser escravo das compras a crédito e o seu estilo de vida é capturado pelo tédio mortal. No Porto nada disto sucedia no tempo de Sampaio Bruno, porque na Cidade Invicta o pão tinha de «ser laboriosamente conquistado dos lucros do comércio»: o estímulo da iniciativa do portuense era aguçado pelas actividades comerciais e as eventualidades da hora seguinte redobravam «o espírito sobre si mesmo, imprimindo ao carácter seriedade e dando-lhe ao mesmo tempo maleabilidade e resistência». A análise do carácter do Norte e do carácter do Sul realizada por Sampaio Bruno enquadra-se no âmbito da interpretação económica da história fundada por Karl Marx: Sampaio Bruno sintetiza-a neste preceito irremediável - Primum vivere, deinde philosophari. O homem precisa de comer antes de filosofar: a compreensão de toda a superstrutura das instituições políticas e jurídicas exige o estudo da estrutura económica. O marxismo explica a maneira de pensar dos homens duma época determinada pela sua maneira de viver, isto é, pelo seu modo de produção, em vez de explicar, como faz a concepção idealista da história, a sua maneira de viver pela sua maneira de pensar. O Porto liberal e burguês, o Porto comercial e cosmopolita, o Porto da iniciativa privada e do trabalho, exigia - e continua a exigir - uma nova maneira de pensar: a Escola do Porto elaborou a filosofia adequada à modernização de Portugal e à criação de uma sociedade aberta.
Porto e Lisboa representam duas visões de Portugal completamente distintas e antagónicas: o Porto - a cidade inglesa - tem um projecto para Portugal, um projecto de desenvolvimento económico e cultural integrado e não-desigual, enquanto Lisboa - a cidade francesa ou talvez tropical - é o seu próprio projecto nacional. Nesta hora de crise nacional, a pergunta pessoana vira-se contra a própria capital: Onde está o erro estrutural de Portugal? O erro estrutural de Portugal está em Lisboa, como é evidente. Que benefícios tira o país em ser governado por uma capital que, depois de servir-se dos seus impostos e das suas escassas riquezas, o abandona à miséria, à pobreza e ao desemprego? Lisboa governa no seu próprio interesse regional: a sua política é sangrar o país para investir em si própria. Lisboa não tem um projecto para Portugal: Lisboa come e engorda, Lisboa faz do país o seu refeitório privado, Lisboa rouba e empobrece todos os portugueses, enfim Lisboa é uma puta estéril, velha, feia e gorda, incapaz de gerar um messias. Os movimentos das cruzadas não conseguiram expulsar todos os mouros de Portugal: a capital foi tomada paulatinamente pelos mouros sobreviventes que, no decorrer do tempo, se vingaram, expulsando os judeus de Portugal - o povo arqui-inimigo da mouraria - e mandando liquidar Francisco Sá Carneiro - o seu arqui-inimigo portuense. Lisboa é uma vagabunda de pernas abertas ao mundo, verdadeiramente insaciável na sua ganância estúpida e na sua vaidade saloia, que, no momento presente, quer atrair novos clientes, deslocalizando a organização de Red Bull Air Race do Porto para a capital e ligando-se a Madrid pelo TGV e ao mundo do turismo sexual pela construção de um novo aeroporto. Além de ser invejosa, mentirosa, desleal e falsa, Lisboa da mouraria é avessa ao espírito ocidental e à inteligência e, como tal, é uma cidade asiática que, após ter perdido o império colonial, se comporta como uma espécie de Estado asteca, controlado por uma teia corrupta e intriguista de burocratas e de colarinhos-brancos que gera a colecta de impostos e os fundos comunitários, de modo a garantir a manutenção dos seus próprios privilégios em detrimento do interesse nacional.
Karl Wittfogel analisou a sociedade asiática, articulando a noção liberal de despotismo oriental e a noção marxista de modo de produção asiático. A tese fundamental de Wittfogel afirma a existência de formas pré-industriais de sistemas de Estado totalitário. As formas de Estado despótico - o despotismo oriental de Locke e de Montesquieu - surgiram, no passado remoto, por causa da necessidade de controlar os recursos hidráulicos e o sistema da agricultura de irrigação. O despotismo oriental é uma forma de dominação total, cuja essência reside no controle burocrático e administrativo de todas as instituições e actividades sociais, económicas, jurídico-políticas e culturais. A forma de governo predominante é altamente centralizada, burocrática e arbitrária: a burocracia não só calcula e coordena, como também comanda todas as actividades sociais, bloqueando o surgimento na sociedade civil de associações e de grupos sociais independentes que possam limitar e contrair o poder político. Nas sociedades asiáticas, entre as quais podemos integrar o centralismo lisboeta, as classes dirigentes - e os seus partidos políticos - são completamente fechadas e a burocracia instalada monopoliza o acesso aos meios de administração e aos centros de decisão. Este controle monopolista dos aparelhos de Estado, tanto dos repressivos como dos ideológicos, públicos ou privados, significa um monopólio do poder social real - político, jurídico, económico e ideológico, que não decorre da propriedade privada, mas do acesso aos meios burocráticos de controle centralizado e de apropriação corrupta dos bens públicos. A sociedade asiática constitui um sistema sob controle total de um staff administrativo - as classes dirigentes -, que existe por causa do sistema de Estado.
Alguns historiadores lisboetas lamentam a inexistência de liberalismo em Portugal, mas este lamento só é verdadeiro quando se falsifica a História de Portugal, identificando-a com a História de Lisboa: a capital de Portugal foi sempre uma feroz adversária do liberalismo, da democracia e da iniciativa privada. Graças ao Tratado de Methwen, o Porto encheu-se de ingleses, operando-se uma infiltração do carácter britânico sobre o portuense, através das relações comerciais, do contacto social e da transfusão de sangue (casamentos entre portuenses e ingleses). O Porto tornou-se uma cidade inglesa, isto é, uma cidade liberal e burguesa: «os burgueses do Porto acostumaram-se a fazer educar seus filhos na Inglaterra, o cultivo da língua inglesa foi exigido aos empregados do comércio e a imitação portuguesa do tipo britânico prolongou-se até às exterioridades do vestuário, aos gostos, às minuciosas meticulosidades mais despercebíveis» (Sampaio Bruno). O romance Uma Família Inglesa de Júlio Dinis retrata com fidelidade esse Porto burguês e liberal, fortemente seduzido pela cultura democrática e pela literatura clássica inglesas: Júlio Dinis bebeu em Charles Dickens o elixir de filantropia que dilui nos seus romances «uma vaga tinta socialista, pela condenação dos abusos tradicionais, pela consciência do progresso». Consciência do progresso, isto é, do desenvolvimento económico, tecnológico e cultural, é precisamente aquilo que marca a História do Porto no contexto da História de Portugal. Quando elabora a sua teoria da formação democrática de Portugal, Jaime Cortesão - ilustre membro da Escola do Porto e o maior historiador da nacionalidade portuguesa - destaca o papel de motor do desenvolvimento económico, político e cultural desempenhado pela cidade do Porto na luta contra o atraso estrutural nacional: «Os progressos sociais correm parelhas com os da actividade económica. Onde o comércio e a indústria houverem atingido maior desenvolvimento, aí, em princípio, devemos procurar as classes urbanas, mais diferenciadas. O Porto é, durante a Idade Média, o símbolo perfeito da concordância desses dois fenómenos, em Portugal. Ali, pelas vantagens do porto, juntamente fluvial e marítimo, pela posição geográfica que tornara o burgo o entreposto da região mais populosa e rica do País, o comércio marítimo tomou tão rápido incremento, que em 1361 os representantes do concelho se ufanavam de haver ali mais navios que em todo o restante Reino. E dali, em 1415, saía ainda uma armada que os homens bons da cidade mais tarde proclamavam que doutro qualquer lugar da Espanha não poderia sair tão forte e numerosa. Já então, entre os produtos exportados pela barra do rio e difundidos pelos portos do Norte da Europa e do Levante, sobrelevavam os vinhos de Riba-Douro. Na rude labuta da pesca, da construção naval, do tráfico a distância por mar e terra, se formaram e enriqueceram os burgueses e os mesteirais do Porto, cujo passado constitui a mais bela página de toda a história social e urbana, em Portugal. Burgo episcopal, os seus habitantes, quase todos adventícios, acorridos do interior às novas fainas do mar, desde o meado do século XII, houveram que travar batalha, que durou séculos, para arrancar as suas liberdades e franquias à prepotência senhorial dos bispos. À violência dos senhores mitrados, que os oprimiam sem piedade, e a cada passo do alto do sólio episcopal jogavam os raios da excomunhão sobre os vassalos rebelados, os homens do burgo responderam com violência igual».
O Porto formou-se na luta contra os abusos feudais e conseguiu prosperar em grande parte «graças à acérrima firmeza com que soube defender-se da parasitagem das duas classes oligárquicas: o alto clero e a nobreza militar», elevando-se durante a Idade Média, como outros grandes burgos comerciais da Europa, à «categoria duma democracia urbana, dum pequeno Estado dentro do Estado». Durante todo esse período dos três últimos quartéis do século XIV, o Porto já exibia «uma forte independência, não só em relação às outras classes, mas ao próprio Estado, sem que aliás tivesse constituído um elemento dissolvente em relação à unidade nacional». Jaime Cortesão lembra-nos que um dos actos de maior alcance político na história da Nação foi um tratado de comércio com a Inglaterra (1353), negociado e firmado por um burguês do Porto - Afonso Martins, em nome dos burgueses e dos mesteirais das povoações marítimas de Portugal. Este acto político mostra que o Porto já era nesse tempo a «metrópole social do Reino»: as suas classes urbanas, mau grado os abusos e opressivos privilégios do clero e da nobreza militar, tiveram um poder de iniciativa na formação política de Portugal, até porque se gerou nessas relações comerciais com a Inglaterra a aliança política que garantiu mais tarde a vitória do Mestre de Avis, que se casou com uma inglesa na Sé-Catedral do Porto e nos deu esse magnífico portuense - o Infante D. Henrique. O Porto é o pequeno Estado precursor dentro do Estado Português e, como escola política da Nação, imprimiu o rumo da evolução política que o Reino só mais tarde havia de realizar. O Porto foi sempre a vanguarda consciente de Portugal que liga a nossa nação ao mundo, ao Brasil e ao Norte da Europa.
Onde começa o pensamento filosófico em Portugal? Jaime Cortesão compara aquilo a que chama milagre luso ao milagre grego (Renan, John Burnet) ou mesmo ao milagre holandês: os três povos são de minúsculo volume demográfico, mas «notáveis justamente por uma cultura própria de forma urbana e laica e pela expansão geográfica». Ora, sabemos que o aparecimento da polis e o nascimento da filosofia são fenómenos intimamente ligados (Jean-Pierre Vernant): o pensamento racional é solidário das estruturas sociais e mentais das sociedades urbanas abertas. O milagre luso teve o seu berço na cidade do Porto, «onde durante as lutas contra os bispos, nos séculos XIII e XIV, se formou uma democracia urbana muito afim, pelo espírito de independência, das comunas da Flandres. O Porto tornou-se, durante aqueles séculos, a grande escola de educação política do povo português, como defensora, a ferro e fogo, das liberdades individuais e da supremacia do poder civil. Ali se formou o modelo mais perfeito da cidadania em Portugal, o cidadão do Porto, cujos direitos foram mais tarde reclamados pelas maiores cidades do Brasil e estão na base sucessiva das suas autonomias provinciais e independência de nação». O Porto foi a primeira cidade portuguesa a libertar-se do modelo de uma sociedade fechada - a cidade episcopal e feudal - e a desenvolver-se ao calor da economia burguesa e do modelo de sociedade aberta: o avanço temporal do Porto em relação à sociedade portuguesa em geral fez dele uma cidade universal e imortal que, ao longo do tempo, orienta o destino nacional como a estrela da redenção (Franz Rosenzweig) de Portugal. As origens históricas da Escola do Porto mergulham neste passado inovador da História do Porto, mas o seu aparecimento formal ocorre somente no final do século XIX como protesto contra o positivismo ladrão e corrupto predominante na capital: a Renascença Portuguesa nasceu no Porto e, como diz com tristeza Fernando Pessoa, «não poderia ter nascido senão no Porto». Acontecimentos aparentemente díspares revelam uma conexão essencial quando lidos à luz da luta portuense pela construção de uma sociedade aberta e de uma economia de mercado liberta da tutela corrupta do Estado e dos seus altos funcionários: O Porto é a primeira - ou uma das primeiras - cidade europeia a dotar-se da instituição da Bolsa (o acordo de 1293), Lisboa expulsa os judeus de Portugal (1496) e a Escola do Porto traz de volta os nossos judeus - o seu pensamento - a Portugal, a começar pelo mais ilustre - Baruch Espinosa. A aliança comercial entre o Porto e as cidades do Norte da Europa, onde se refugiaram os judeus portugueses expulsos da pátria por uma capital "amiga" invejosa, desleal e saloia da riqueza alheia, é, simultaneamente, uma aliança política e cultural: Porto e Amesterdão são cidades gémeas de tal modo idênticas que o futuro desenvolvimento da Cidade Invicta passa pela recuperação e revitalização dessa afinidade sanguínea. Pelas Notas do Exílio, sabemos que Sampaio Bruno terá visitado a Biblioteca dos judeus portugueses de Amesterdão, cujo nome de Árvore da Vida faz claramente uma alusão ao pensamento cabalista de Isaac Lúria. A Kabbalah exerceu uma grande influência sobre a elaboração da filosofia da história de Sampaio Bruno, fornecendo-lhe a ideia basilar do exílio de Deus em Deus e do exílio histórico de Portugal. António Telmo cita uma texto de Gershom Scholem, substituíndo o nome de Isaac Lúria pelo de Sampaio Bruno e alterando em consequência certas referências: «Em suma, podemos considerar a Kabbalah de Sampaio Bruno uma interpretação mística do exílio e da redenção ou até um grande mito do exílio. A substância dessa Kabbalah reflecte os sentimentos dos portugueses desterrados na sua própria Pátria. Para eles, o exílio e a redenção são, do modo mais exacto, grandes símbolos místicos. Esta nova doutrina de Deus e do Universo corresponde à nova ideia moral da humanidade que propagou nos seus livros: o ideal do filósofo, cujo fim é a reforma messiânica, a transcensão do mal do mundo, a reintegração de todos os seres em Deus. Assim, o homem de acção espiritual, graças ao movimento que recebe dos Anjos, pode quebrar o exílio, o exílio histórico de Portugal, o da humanidade, e este exílio interior no qual gemem todas as criaturas».
O jogo proposto por António Telmo capta a ideia basilar da filosofia da história de Sampaio Bruno - a ideia de exílio histórico de Portugal, mas desvirtua a filosofia portuense quando a trata como uma interpretação mística da história, como se a Renascença Portuguesa sediada no Porto estivesse desligada do renascimento político. A Kabbalah é, na sua mais pura essência, uma arma política revolucionária, e Sampaio Bruno "usa-a" para afirmar a heterodoxia do pensamento portuense e a sua dissidência política. Martin Buber, Franz Rosenzweig, Gershom Scholem, Leo Löwenthal, Franz Kafka, Walter Benjamin, Gustav Landauer, Ernst Bloch, Georg Lukács e Erich Fromm fizeram um uso semelhante da Kabbalah e, como «não há história sem uma filosofia subjacente» (Jaime Cortesão), a filosofia destes pensadores, bem como a de Sampaio Bruno, visa transformar qualitativamente o mundo - quebrar o exílio histórico de Portugal, o exílio da humanidade e o exílio interior no qual gemem todas as criaturas. O Brasil Mental de Sampaio Bruno não é somente uma crítica do positivismo brasileiro - esse catolicismo sem Deus, mas também e fundamentalmente uma crítica do positivismo português: a amizade pessoal entre Sampaio Bruno e Teófilo Braga e a confraternidade republicana não podem encobrir a ruptura da Escola do Porto com a ortodoxia positivista lisboeta. O positivismo lisboeta é pensamento gordo, no sentido de se acomodar à realidade social vigente, liquidando o desejo de a transcender e o desespero que ela suscita nos portugueses. Contra o pensamento satisfeito com a realidade estabelecida que se perpetua nas figuras lisboetas pardacentas da economia neoliberal - os amigos dos grandes investimentos públicos em Lisboa, a Escola do Porto, em especial Guerra Junqueiro, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, retoma o evolucionismo, imprimindo-lhe uma valência política que visa libertar a natureza (dimensão ecológica), o homem (dimensão antropológica universal) e a sociedade (dimensão social e política) da dominação do mal do mundo. Quando apresenta o marxismo no final da sua obra O Brasil Mental, Sampaio Bruno reconhece a sua dívida para com a dialéctica hegeliana: Hegel fez da filosofia um factor histórico concreto e trouxe a história à filosofia. No seu elemento estritamente português, a filosofia da história elaborada pelos ilustres portuenses é uma filosofia da esperança histórica de Portugal: o Encoberto, o Desejado, não é nem um príncipe predestinado nem mesmo um povo, mas o próprio Homem chamado a salvar Deus, os seus semelhantes, a natureza e as suas criaturas (Sampaio Bruno). Pela sua longa história democrática e pelo seu pensamento profundo e sério, o Porto que deu o nome a Portugal - conforme diz o Hino do FCPorto - guarda a memória de Portugal, zela pelo bom nome de Portugal e sonha com o futuro novo de Portugal. Em reconhecimento agradecido pela lealdade portuense à causa da liberdade, D. Pedro IV de Portugal - e Pedro I do Brasil - doou o seu coração à cidade do Porto, e D. Maria II, sendo ministro Almeida Garrett, atribuiu-lhe oficialmente a divisa «Antiga, muito nobre e sempre leal e invicta Cidade do Porto».
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Friedrich Nietzsche vota em José Sócrates

«Para atingir uma finalidade dessas era preciso um outro género de espíritos, diferentes dos que são possíveis neste nosso tempo: espíritos fortalecidos pela guerra e pela vitória, para quem a conquista, a aventura, o perigo e a dor se tivessem tornado mesmo uma necessidade; e para isso seria preciso uma habituação aos ares limpos das grandes altitudes, aos percursos a pé em plena invernia, ao gelo e às montanhas, em sentido real e figurado; seria inclusivamente necessária uma espécie de maldade sublime, uma suprema malícia do conhecimento, consciente de si própria, que é parte integrante da grande saúde; seria necessária - para dizer em poucas palavras e de forma terrível - precisamente essa grande saúde...! E será que ela ainda é possível?... Mas um dia, numa época mais forte do que este nosso presente podre e incapaz de acreditar em si próprio, terá que vir até nós o homem redentor do grande amor e do grande desprezo, o espírito criador cuja força impulsionadora o arrancará constantemente aos desvios e aos aléns, cuja solidão será mal compreendida pelo povo, como se fosse uma fuga para diante em relação à realidade..., quando de facto é apenas a sua maneira de mergulhar, de se introduzir profundamente dentro da realidade, para mais tarde, ao sair dela, ao voltar à luz, trazer consigo a redenção dessa realidade: a redenção dessa realidade face à maldição que o ideal até hoje reinante lançou sobre ela. Este homem do futuro, que nos salvará não só desse ideal, mas de tudo aquilo que dele tinha que nascer, da grande náusea, da vontade do nada, do niilismo (essa badalada do meio-dia e da hora da grande decisão), que voltará a libertar a vontade, que devolverá à Terra o seu objectivo e ao homem a sua esperança, este anticristo e antiniilista, este homem que triunfará sobre Deus e sobre o nada... virá necessariamente um dia...». (Nietzsche)
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 18 de julho de 2009

Polémica sobre Nietzsche

Este post retoma alguns comentários que teci na caixa de comentários do post anterior, onde se travou uma polémica amigável sobre Nietzsche, cujos intervenientes foram, além de mim, dois entusiastas adeptos do filósofo: Sr e Papillon. Eis algumas das minhas intervenções: O valor filosófico de Nietzsche reside essencialmente na crítica radical da cultura moderna e o seu contributo foi integrado pelas mais diversas e dispares problemáticas filosóficas. A crítica do poder de Nietzsche deve ser lida com cautela, mas a sua pretensa crítica da economia política não existe em estado teórico elaborado, como defendeu a Papillon: Nietzsche não tem uma teoria económica, sem a qual não se pode elaborar a sua crítica. Politicamente, Nietzsche era conservador, no sentido de perfilhar uma noção aristocrática da cultura e da história, sendo assim levado a condenar tanto o socialismo como o liberalismo: ambos limitam-se a propor modelos de gestão económica da sociedade, desvalorizando a cultura e usando o utilitarismo para governar.
Vejamos: Benjamin fala da História dos Vencedores e sabemos o que ele quer dizer com tal expressão. O que Nietzsche diz sobre as classes trabalhadoras? Ele fala da vitória dos escravos e da sua manha: um conjunto de dispositivos usados para amolecer os homens superiores. Os vencidos benjaminianos aparecem aqui como vencedores, mas os escravos nunca foram vencedores, e até mesmo o cristianismo posicionou-se historicamente ao lado dos poderes estabelecidos. Podemos contornar este erro histórico e antecipar uma crítica da cultura de massas, mas o conceito de massas implica o de elites. Em Nietzsche, predomina a visão aristocrática da história e da cultura superior. Os intérpretes de esquerda de Nietzsche procuraram livrar a sua obra da interpretação nazi e fascista, sendo levados para o efeito a encarar o super-homem como hybris que se opõe, com desprezo e atitude de soberania, ao rebanho e à sua moral. O super-homem apresenta-se como um comediante e um livre criador de símbolos e, como tal, subtrai-se violentamente à disciplina do mundo da ratio e à moral cristã. Como libertador, o super-homem transforma o homem num ser activo - não reactivo - capaz de realizar a identidade da existência e do valor e de ser feliz. Na sua obra O Sujeito e a Máscara, Gianni Vattimo realizou essa leitura de Nietzsche, mas nas obras seguintes acaba por abandonar a noção do sobrehumano nietzschiano como um sujeito dialecticamente reconciliado. De facto, o sobrehumano nietzschiano não pode ser visto como um libertador dialéctico da humanidade: a substituição do proletariado revolucionário de Marx pelo super-homem de Nietzsche falhou e hoje debatemo-nos com a praga do homem metabolicamente reduzido que já não precisa da cultura e do pensamento livre para viver. A regressão cognitiva é total.
A leitura do pensamento de Nietzsche confronta-se com o problema da inteligibilidade: existem muitas inflexões teóricas, fases ou períodos de desenvolvimento e predomínio dos fragmentos/aforismos. Cada um pode escolher os seus aforismos preferidos, mas não pode facilmente a partir dessa escolha unilateral tentar coagir a entrada do todo nessa perspectiva unilateral. Porque há uma linha condutora geral e esta pode ser conservadora no sentido de não ser sensível aos interesses dos verdadeiramente vencidos na história. Um outro exemplo é a crítica do cristianismo, onde Nietzsche tem cartas fortes. Mas já repararam na recepção dessa crítica? Muito sectária: a morte de Deus já tinha sido anunciada por Hegel e Feuerbach reformula o tema numa perspectiva mais antropológica. A postura de Marx é diferente: a sua posição não é ateísta, porque não faz sentido criticar Deus, sobretudo quando se diz que ele é uma quimera. A crítica deve incidir nos efeitos exercidos pelas práticas religiosas sobre as outras esferas da sociedade, da cultura e do poder. É preciso fazer uma reavaliação destes temas para fazer face aos actuais problemas que nos afligem. Porém, Nietzsche também faz parte da minha constelação teórica. Não sou dogmático!
Estive a folhear o livro Aurora - referido pela Papillon a propósito da crítica do economicismo - e a minha vista cansada descobriu alguns aforismos giros mas contraditórios. Porém, estava a pensar na possibilidade de fazer uma leitura geológica de Nietzsche: já a iniciei mas depois abandonei-a, embora esteja convencido que ela poderia trazer uma nova luz ao seu pensamento. Não vi a crítica da economia, mas sei que algo é dito nesse sentido no Humano Demasiado Humano. A crítica que faz da comunicação social é aristocrática, embora forneça elementos pertinentes. A Papillon defendeu a tese de que Nietzsche não era um ateísta, estando próximo da posição de Marx. É por isso que critico os ateístas da praça global e local: perante a questão da afirmação ou negação de Deus o melhor é ficar calado! Aliás, esse debate é uma manobra ideológica que desvia a atenção dos problemas reais que nos afligem. É como atribuir a crise financeira aos reguladores! Manobras ideológicas!
Sr defendeu que "Nietzsche não ficou fixado na teoria do poder. Pelo contrario, (o que) ele salienta é a importância e a necessidade de emergência duma CULTURA forte como a força bloqueadora por excelência desse mesmo poder". Em resposta a esta perspectiva de Sr, procurei esquematizar o contributo de Nietzsche para a filosofia política nestes termos simples: Nietzsche elaborou duas políticas:
1. A política da sobrevivência que, sem legislar novos valores, ironiza os ideais da humanidade, incluindo as grandes ideologias modernas (democracia liberal e socialismo); e
2. A política da crueldade que, associada ao seu radicalismo aristocrático, visa controlar as forças da história e, produzir, através da grande política (filosofia + poder político), uma nova humanidade. Nietzsche legitima esse governo aristocrático com a tal noção de cultura superior: os novos artistas-tiranos encontram legitimidade não na moral, mas na übermoralisch. Moldar a humanidade! A vida como único princípio da crítica! As grandes guerras! Uma nova direcção para a história! A vontade de poder! E, neste momento, o círculo fecha-se: podemos regressar às obras de juventude que exaltam a tragédia! Educação filosófica! Legislação filosófica! O Passado nobre da humanidade! Eis as linhas da "filosofia política" de Nietzsche!
A leitura de Nietzsche feita por Sr destaca a luta do indivíduo e da cultura forte contra o Estado. Os aforismos que refere dão corpo a essa leitura. Porém, Nietzsche passou posteriormente a criticar a democracia liberal que via como uma secularização da moral cristã que nivela a sociedade. Ele termina com a Grande Política: legislação filosófica + poder político. Há, pois, um impulso irracional a mover o pensamento de Nietzsche: está bem explicito na sua obra!
Última observação: A leitura que Sr faz implica a rejeição desse elemento aristocrático e violento. Ora, na GM, encontra um fio condutor susceptível de ser salvo via Kant: o homem como ser que faz promessas e as cumpre! Aqui podemos salvaguardar a liberdade do indivíduo contra esses poderes fortes, mantendo a crítica do igualitarismo. Em muitos aspectos, Nietzsche fez observações profundas que só podem ser salvas fora da moldura teórica que traçou.
Este debate está a ser um desafio frutífero: começo a compreender o fascínio que Nietzsche exerce sobre a "malta", sobretudo sobre os jovens. O super-homem até pode ser identificado com a figura da banda-desenhada! É melhor chamar-lhe "sobre-humano": ele seria o resultado da Grande Política - a construção de uma nova humanidade. Eu faço uma leitura mais "cínica" de Nietzsche, de modo a evitar ser confrontado com a política da crueldade. Acrescento três observações adicionais:
1. O parágrafo 473 de HDH, onde critica o socialismo, ele opõe duas visões do Estado: o mais Estado possível (noção que atribui ao socialismo) e o menos Estado possível (noção que antecipa o neoliberalismo de hoje). Bem, os dois tipos de Estado são terroristas, para usar o termo que ele imputa ao socialismo. Nietzsche trata Platão como o primeiro socialista: o seu Estado Ideal é uma acumulação de poder estatal. De acordo, ninguém deseja um tal Estado Gordo, mas também não desejamos um Estado Exíguo. E por uma razão simples referida por Nietzsche noutra ocasião: ambos os tipos de Estado produzem corrupção. São versões de um mesmo Estado Burocrático que ameaça a liberdade, o indivíduo, a cultura e a democracia, tal como viram Weber e Marx com a sua noção original de modo de produção asiático.
2. Sem levar em conta a defesa que faz do "federalismo europeu", uma mesma cidadania europeia (até dá um lugar aos judeus no período intermédio!), que implica necessariamente um poder superior forte capaz de derrotar os nacionalismos, Nietzsche não se preocupa com o problema da legitimidade: o seu governo deve transformar a humanidade mediante a grande política - legislação filosófica + poder político. Ora, um tal poder precisa mesmo de muito poder e de muita força para levar a cabo essa tarefa de educar esteticamente a humanidade. Nietzsche critica Platão mas não abdica da sua "ditadura pedagógica". Em termos de filosofia política, Nietzsche não introduz nenhuma novidade radical capaz de superar o niilismo moderno: o poder implica uma assimetria entre governantes e governados. Paradoxalmente, uma tal unificação de nações foi tentada pelo "império soviético" e Mao introduziu a revolução cultural: nos dois casos a liberdade foi severamente restringida ou suspensa.
3. O parágrafo 474 de HDH fala do desencontro conflituoso entre cultura e Estado e noutro sítio Nietzsche diz mesmo que a cultura só floresce lá onde o poder estatal está enfraquecido. A observação é certeira e concordo substancialmente com ela, mas a cultura superior que defende visa moldar esteticamente a humanidade: o seu programa de educação filosófica ou de auto-superação da humanidade. Nietzsche raramente é consequente com as suas ideias brilhantes por causa da sua visão aristocrática da história que é "fisiológica". Ora, é neste fisiologismo que reside o momento irracional do pensamento de Nietzsche que fez dele o ideólogo do totalitarismo nazi e fascista, mesmo que a sua filosofia não seja gritantemente fascista. Lukács demonstrou-o e bem.
Anexo: Com a participação do Tiago, fiz este esclarecimento sobre a obra mais poética de Nietzsche. O Livro AFZ apresenta as duas ideias centrais: o Übermensch ou além-do-homem ou sobrehumano e o eterno retorno do mesmo. O objectivo imediato é criar uma política de redenção numa época de niilismo. O niilismo é uma crise de autoridade: Deus está morto e, por isso, nenhuma autoridade política pode reivindicar sanção divina ou sagrada para a sua dominação. A missão dos filósofos futuros é a grande política: governar o mundo como um todo. O super-homem supera a humanidade, isto é, auto-supera o homem fraco, e, como criador e destruidor de valores, ele é redentor ou libertador. A sua vontade de poder é vontade criadora e legisladora: a grande política.
Com a ideia de redenção surge a doutrina do eterno retorno que, num primeiro momento, visa libertar a vontade da sua fixação no passado, restituindo ao homem a inocência do devir. Porém, mais adiante, esta doutrina assume outra forma: como natureza do tempo e como experiência da unidade criadora de todas as coisas. O super-homem é a visão que surge do enigma do eterno retorno. Ora, as duas ideias parecem estar em conflito: a ideia de super-homem implica uma concepção linear do tempo, enquanto a ideia de eterno retorno supõe uma noção cíclica do tempo. A primeira noção de tempo está prisioneira do ideal ascético criticado por Nietzsche: o sacrifício do presente nos altares do futuro esperado e desejado. Se a história é o triunfo da moral dos escravos - a moral de rebanho, o pensamento do eterno retorno deve conduzir a uma nova moralidade superior da afirmação. A moral dos nobres deve afirmar-se por oposição à moral dos escravos. O homem enquanto ser moral é forçado a afirmar juízos morais, e, neste caso, ele não diz apenas "sim, sim"; também diz "não, não" - o pathos da distância. Nietzsche é assim obrigado a abandonar a noção inicial do super-homem como ideal de redenção histórico-universal e a adoptar a ideia de rebelião local contra o niilismo. Mas no livro PABM adopta claramente um novo maquiavelismo para responder à crise dos valores e da autoridade típica da modernidade: a grande política abandona os logros da moral platónico-cristã e coloca-se ao serviço da superação estética do homem e da criação do além-do-homem. Ora, foi sobre esta última perspectiva que alinhavei os comentários reeditados neste post.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Walter Benjamin: Universidade, Estado e Empresas

«Baudelaire possui pouco daquilo que se podem considerar as condições materiais do trabalho intelectual: da biblioteca à casa própria, não houve nada a que não tivesse de renunciar no decurso da sua existência instável, dentro e fora de Paris. Em 26 de Dezembro de 1853 escreve à mãe: "Estou tão acostumado ao sofrimento físico, sei tão bem o que é ter de viver com umas calças rotas, um casaco que deixa passar o vento e duas camisas, tenho tanta prática a atamancar sapatos furados com palha ou mesmo com papel, que já quase só sinto como sofrimentos os que são de ordem moral. De qualquer modo, tenho de confessar que cheguei a um ponto em que, por receio de rasgar ainda mais as minhas coisas, deixei de fazer movimentos bruscos e de andar muito a pé"». (Walter Benjamin, A Modernidade)
As diversas versões conhecidas do Curriculum Vitae de Walter Benjamin são documentos literários que abordam os seus projectos de pesquisa, com referência a alguns dos seus trabalhos publicados mas sobretudo aos trabalhos em curso ou meramente projectados. Como qualquer estudante recém-licenciado, Benjamin não tinha "experiência profissional" ou, como se diria hoje, não tinha "emprego": Benjamin foi um eterno desempregado, um "deserdado" no sentido de Baudelaire, até à sua estranha morte, coberta de mistério, dependente dos seus amigos e das "mesadas" do pai, como confessa numa carta dirigida a Scholem. E como qualquer verdadeiro universitário, Benjamin sonhava com uma "carreira" universitária, ser eternamente professor e aluno, que lhe garantisse a estabilidade material necessária para levar a cabo os seus projectos de pesquisa, no seio de uma comunidade universitária vista como "lugar da revolução espiritual permanente". Esse lugar no seio da comunidade universitária foi-lhe negado por homens cinzentos, pardacentos e invejosos e o nazismo consumou essa negação, roubando-lhe a vida. De certo modo, Benjamin sabia desde muito cedo que a universidade já não obedecia à lógica da sua "verdadeira autonomia", mas que estava ao serviço do "espírito profissional" que tomou conta das próprias associações livres de estudantes. Benjamin não tinha um curriculum vitae, no sentido burocrático (Weber) e burguês da expressão, porque não tinha nem desejava ter experiência profissional; era a promessa de um projecto curricular de pesquisa permanente que deveria desabrochar no seio de uma comunidade unida pela Filosofia: a Universidade como "produtora e protectora da forma filosófica da comunidade", liberta da "ideologia da profissão" que algema a "consciência intelectual", a única capaz de "abandonar a segurança burguesa" e dedicar-se ao conhecimento genuíno, elevando-o à "universalidade", sob "a forma de filosofia".
No ensaio Das Leben der Studenten, Benjamin elabora a antítese entre o "espírito criativo" e o "espírito profissional", a qual permite pensar a oposição entre a verdadeira universidade e a falsa universidade, como lhe chamo, a noção ideológica e catastrófica da ciência como "escola profissional" e o destino da Universidade na nossa época metabolicamente reduzida. Nesta dialéctica sem compromissos, em que os elementos da contradição se excluem mutuamente, o espírito profissional deforma e ameaça aniquilar definitivamente o espírito criador, convertendo a universidade no lugar privilegiado em que se opera "a deformação do espírito criador em espírito profissional", levada a cabo quer no interesse do Estado quer no interesse das empresas, mas sempre contra a "ideia de saber" que funda originariamente a universidade. Isto significa que o processo de degradação do ensino universitário se funda na metamorfose perversa da noção de ciência, aplaudida pelo positivismo lógico e pela filosofia analítica e tematizada por Thomas S. Kuhn, sem disso ter consciência, na sua teoria da estrutura das revoluções científicas, onde converte a epistemologia em "sociologia da ciência": a apologia envergonhada da organização social da ciência e da pesquisa científica. Ao chamar a atenção para esta oposição, a crítica redentora limita-se a "apontar para a crise que, instalada na essência das coisas, leva a uma decisão (política) à qual os cobardes sucumbem e os corajosos se subordinam" e, deste modo, liberta "o futuro da sua forma presente desfigurada, através de um acto de conhecimento".
Missão da Universidade: o Espírito Criador. Para elaborar o conceito de verdadeira universidade, cujos vestígios recuam e se perdem cada vez mais no passado, é necessário descontextualizar o texto orientador de Benjamin, dando-lhe a "actualidade" que ele merece, isto é, resgatando-o do passado. A universidade funda-se originariamente na "ideia de saber", associada ao ideal de uma "vida justa". Pela sua própria essência, a ciência livre, no seu sentido não-positivista, "não admite que o pesquisador se desligue dela": a prática científica obriga-o a "ser sempre professor" e, simultaneamente, aluno. Sócrates já professava que saber é ser capaz de ensinar e Bachelard acrescenta que ensinar é ser capaz de aprender. Isto significa que o professor universitário é, simultaneamente, professor perante os seus estudantes que deve iniciar nas "coisas do conhecimento" e aluno face à realidade em processo de devir constante: o conhecimento não pode petrificar e perder-se num "amontoado de conhecimentos" não articulados pela filosofia, mas deve acompanhar ou até mesmo antecipar-se aos desafios reais.
A comunidade académica que é uma comunidade de homens criativos "eleva todo o estudo à universalidade, sob a forma de filosofia". Esta universalidade é alcançada quando a comunidade académica, articulando professores e estudantes, se compromete em ser, ela própria, "produtora e protectora da forma filosófica da comunidade, não nos termos limitados da filosofia de uma determinada ciência, mas em relação às grandes questões metafísicas" da tradição ocidental. Só deste modo pode a ciência livre estabelecer uma relação privilegiada da "profissão" com a vida: não uma vida profissional tout court, mas uma "vida aprofundada" aberta à cidadania mundial. Como lugar da "revolução espiritual permanente", a universidade fornece e difunde um "acervo teórico e metodológico" de conhecimentos, bem como uma "experimentação cautelosa", que possibilita colocar, de modo abrangente e profundo, os novos questionamentos da realidade em devir, e fornecer uma "orientação" de vida num mundo cada vez mais global. A universidade tem como missão incentivar, galvanizar e fomentar o espírito criativo nos seus membros, porque este espírito constitui o "grande transformador" que traduz em "questões científicas", a partir de uma abordagem filosófica mais abrangente, as novas ideias que costumam "despertar mais cedo na arte e na vida social do que na ciência".
Salvaguardar este núcleo de sabedoria significa reconquistar e garantir a autonomia. Na sua obra "La Trahison des Clercs", Julien Benda afirma formalmente uma dupla moral: "a do poder para os Estados e povos, a do humanismo cristão para os intelectuais". Para Benda, a função dos intelectuais no âmbito da história universal sempre foi a de "propagar os valores universais e abstractos da humanidade, liberdade, justiça e humanitarismo". A traição dos intelectuais reside, segundo Benda, no facto de se terem passado para o lado do poder, a sua "paixão política". Ora, como recorda Benjamin na peugada de Berl, o "homem do espírito" de Benda mais não é do que a "aparição invocada do anacoreta, do clérigo medieval na sua cela", porque a paixão política esteve sempre presente na actividade filosófica: a função do intelectual é precisamente fazer a "crítica radical da ordem estabelecida" e é, nessa actividade, que se revela a sua autonomia, o seu compromisso com o mundo. A filosofia de Marx mais não é do que a filosofia do e no mundo e para o mundo: ela é a promessa sempre renovada de um mundo melhor. Numa sociedade que dispensa o pensamento e se entrega ao consumismo voraz, como a actual sociedade, compete ao Estado renovado zelar pela autonomia dos seus intelectuais e não permitir que os restantes poderes, nomeadamente os económicos e os partidários, interfiram no funcionamento das universidades, o lugar onde o espírito criativo e crítico se abriga, garantindo a base económica do exercício livre do pensamento.
Espírito Profissional e Destruição da Universidade. A falsa universidade instalou-se paulatinamente em nome de um novo princípio que não tem nada de inocente: a universidade deve ajudar a preparar as pessoas para uma profissão. No «princípio», era o Estado/Nação, o Estado Moderno, que, no seu processo gigantesco de burocratização, precisava de recrutar e formar os seus funcionários públicos: "a administração burocrática, pelo menos toda a administração especializada, que é caracteristicamente moderna, pressupõe habitualmente um treino especializado e completo" (Max Weber). Para alcançar esse objectivo, o Estado Moderno retirou o poder eclesiástico das universidades e subordinou-as ao governo e ao Ministro que tutela o ensino superior, convertendo-as, como disse Althusser, em "aparelhos ideológicos de Estado": os professores, bem como potencialmente os estudantes, foram transformados em funcionários públicos que, em nome da eficácia do princípio burocrático, se esquivam das consequências de uma "vida intelectual crítica", com a qual deviam estar comprometidos, para ajudar a perpetuar o sistema de dominação burocrática vigente, através da aprendizagem técnica especial que envolve basicamente jurisprudência ou administração pública ou privada e muita "treta". A universidade começa assim a ser vista como uma "corporação de funcionários públicos e de portadores de diploma académico", deixando para trás a ideia de uma "comunidade de investigadores".
Como diz Weber, "a ocupação de um cargo é uma profissão" e, por conseguinte, para desempenhar qualquer cargo público ou privado, as pessoas precisam obter um diploma que garanta que foram submetidas a uma aprendizagem técnica especializada, isto é, que conhecem e dominam um conjunto de procedimentos ou de regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos exaustivas, que certificam as suas competências. O "medo do futuro" e da solidão leva os estudantes a pactuar com o inevitável espírito filisteu predominante, personificado na figura do "velho", e a comunidade académica rende-se à "segurança burguesa" e não resiste ao estado de coisas estabelecido: a universidade converte-se numa fábrica que distribui diplomas académicos. E, tal como sucedia no tempo de Benjamin, "os professores e os estudantes passam uns pelos outros sem nunca se verem", e actualmente os estudantes passam pela universidade sem frequentar as aulas e sem terem uma vida académica de esforço: a universidade é, no presente, uma instituição que passa arbitrariamente diplomas, enquanto os seus supostos estudantes se divertem nas praxes pseudo-académicas do vício. O estudo esforçado foi substituído pelo consumo de droga, álcool, sexo e comportamentos impróprios. Retomando uma ideia de Baudelaire, poderíamos dizer que a actual comunidade social de estudantes que parasita ocasionalmente os espaços universitários para fins recreativos está "infectada" de pseudo-democracia e de sífilis. A sua ideia obsessiva de "aproveitar" a juventude traduz na prática a deformação e o despedaçamento do "eros espiritual" e a sua conversão em eros sexual: as "prostitutas" viciadas em sexo e drogas estão sempre já presentes, não nas ruas, mas no novo estilo de vida estudantil, internacionalizado pelo Programa Erasmus.
Para a esmagadora maioria dos estudantes, "a ciência é uma escola profissional". Eles frequentam a universidade não para estudar mas para conquistar um diploma sem esforço que lhes garanta, de algum modo, um futuro emprego. Ora, como mostra Benjamin, "onde a ideia dominante da vida estudantil é a profissão e o emprego, não há lugar para a ciência", porque a ciência é uma actividade alheia ao espírito profissional. A ciência ensina a ser professor e não a exercer as "profissões públicas (ou privadas) de médico, jurista ou docente universitário": as "ciências actuais, através do desenvolvimento do seu aparato profissionalizante (e do seu know how) foram desviadas da sua origem comum, fundada na ideia do saber, a qual agora se transformou num mistério ou mesmo numa ficção". O que está aqui em questão não é o estatuto público ou privado das universidades, embora a concepção da universidade como empresa seja a consumação da má universidade, mas a degradação da própria noção de ciência e, neste aspecto, Benjamin antecipa um dos traços essenciais da teoria crítica: o seu antipositivismo e a sua aversão à pesquisa administrativa (Adorno). A ciência que se pratica actualmente nas universidades desmente o seu próprio pressuposto positivista de "uma ciência livre de pressupostos": quer esteja ao serviço de um Estado burocrático ou dos interesses comerciais das empresas, a ciência tende a ser reduzida a um conjunto de algoritmos que se "aprendem" e se aplicam de modo mecânico, não-criativo, sem verdadeiro conhecimento e na ausência total de pensamento. Isto significa que a própria ciência perdeu o contacto com a experiência, dispensou o pensamento e tornou-se uma espécie de autómato: a pesquisa científica tornou-se "trabalho de equipa", organizado socialmente em função do modelo burocrático predominante, cuja finalidade não é aprofundar o conhecimento e muito menos a "busca cooperativa da verdade" (Peirce), mas produzir "soluções" economicamente rentáveis ou resolver problemas que lhe são profundamente alheios. O "científico" reduzido ao "rentável", isto é, a instrumentalização da ciência por parte do sistema económico capitalista, significa que a ciência livre está morta: qualquer pessoa com treino prático pode fazer a ciência que hoje é feita nos laboratórios que usam as tecnologias mais avançadas, porque fazer este tipo de ciência não exige conhecimentos científicos; basta seguir os procedimentos padronizados e aguardar que a sua aplicação mecânica produza os efeitos esperados.
A burocratização do ensino, posteriormente protagonizada pelas chamadas "ciências da educação" e as suas pedagogias do "atrasado mental", produz necessariamente automatização. Os professores profissionalizados criados nesta má universidade são autómatos: uma cadeia de procedimentos reflexos montada por um engenheiro da burocracia do Estado e das empresas e do seu Ministério da Educação ou da Ciência; carecem de experiência e de conhecimentos; preenchem reflexamente papéis e são incapazes de imaginar (e muito menos de viver) uma "vida não regulamentada". São um reflexo da grande cadeia de reflexos que é o sistema social total e comportam-se como os cães de Pavlov: submetem-se acritica e passivamente aos comandos do posto hierarquicamente superior, submissão manifesta desde logo na facilidade com que um "subalterno" se sujeita aos caprichos sexuais de um qualquer superior hierárquico, sem tematizar uma tal submissão sexual como assédio sexual. Afinal, possuem diplomas e um curriculum vitae que certificam a sua conformidade, isto é, a sua incompetência. A unidade de vida encarada como "unidade de criação, eros e juventude" foi completamente esquecida. Precisamos rejuvenescer de modo sóbrio e ascético e criticar todas as figuras da má universidade que corrompem o espírito da ciência, através das burocracias do Estado e das empresas, e eros, através da "puta" viciada em vida fácil. Só deste modo podemos ter esperança na futura restauração da verdadeira universidade.
J Francisco Saraiva de Sousa