domingo, 13 de fevereiro de 2011

Apresentação de Adolf Portmann

«Em Basileia, Adolf Portmann, outro zoólogo, tinha assinalado que a situação especial do homem como ser que aprende mantém uma relação com a singularidade do primeiro ano de vida humana, singularidade que deveria ser qualificada de anomalia se se a compararmos com os processos respectivos na natureza, ou seja, se se fizermos de novo o paralelo com o animal. Se nos limitarmos à maturação dos órgãos, à capacidade de movimento, à potência sensorial, ao desenvolvimento da faculdade de comunicar e emitir sinais específicos, isto é, humanos - a linguagem, deveríamos considerar o recém-nascido como um produto típico de um parto prematuro. Somente ao fim do primeiro ano de vida alcança certa capacidade de orientação e de movimento, começando a comunicar com outras pessoas; todas estas são faculdades que os animais superiores exibem pouco depois do seu nascimento e, com frequência, poucas horas depois de nascerem. Por outras palavras, esta singularidade do primeiro ano de vida humana - que Portmann descreve como um ano de vida embrionária extra-uterina - indica que, quanto à percepção e ao movimento, os processos decisivos de maturação operam durante um ano inteiro como situações de aprendizagem sob a influência orientadora do meio circundante. A capacidade de aprendizagem do ser humano e esta influência orientadora do seu meio estão, por assim dizer, incluídas no plano de desenvolvimento puramente biológico, sendo a criança típica e normalmente (ainda que anormalmente em relação ao animal) sacada do corpo materno para ser submetida a essa influência do meio. O homem conserva por muitos anos esta docilidade de suas funções sensoriais, motoras e expressivas. Baseando-se nisto, o anatomista holandês Ludwig Bolk observou que a sua idade adulta e, até certo ponto, toda a sua vida, é caracterizada por uma notável retenção de traços da primeira infância.» (Arnold Gehlen)

«A adaptação a condições de vida demasiado cómodas significa degeneração». (Arnold Gehlen)

Felizmente, nem todos os biólogos foram seduzidos pela vulgata darwinista, e, entre eles, Adolf Portmann (1897-1982) merece um destaque especial: a originalidade da obra biológica de Portmann não reside somente no seu programa de pesquisa morfológica, mas sobretudo no seu contributo fundamental para a elaboração de uma bio-antropologia filosófica. Max Scheler - o pai fundador da antropologia filosófica, juntamente com Helmuth Plessner - partiu da comparação entre a conduta humana e a conduta animal para destacar a abertura ao mundo (Weltoffenheit) do homem e a vinculação ao meio (Umweltgebundenheit) do animal: o paralelo estabelecido entre o homem e o animal em termos de comportamento - o mesmo que atravessa o esboço antropológico de Herder - permite a Scheler fundamentar a peculiar posição do homem no reino animal no espírito (Geist) - a posição excêntrica do homem de Plessner - e nas suas relações espirituais. Arnold Gehlen retoma esta abordagem para analisar a essência do homem: frente à elevada especialização e segurança instintiva do animal, o homem apresenta-se biologicamente como um ser deficiente por causa da sua falta de especialização, da sua imaturidade e da sua pobreza instintiva. Para conseguir sobreviver, o homem é obrigado a compensar essa redução ou inibição dos instintos (Scheler) e de especializações com a sua própria acção: as suas realizações espirituais e culturais resultam desta compensação institucional. Porém, como demonstraram Portmann e Lorenz, as realizações positivas e superiores do homem não podem ser explicadas somente a partir do elemento negativo de uma deficiência: a peculiaridade do homem afecta - segundo Portmann - a sua própria constituição biológica, o seu comportamento e até mesmo o processo das fases do seu ciclo vital. Para Portmann, o homem, comparado com os demais mamíferos superiores, nasce de um parto prematuro e, por causa de nascer inacabado do ponto de vista fisiológico, está exposto na fase final do seu desenvolvimento embrionário extra-uterino às influências do meio social, do qual recebe impressões decisivas. Sendo prematuramente sacado do corpo materno, o recém-nascido, pelo menos durante o seu primeiro ano de vida, apresenta-se aberto ao mundo, «sofrendo» precocemente a acção orientadora e modeladora de uma multidão de impressões - inundação de estímulos sociais (Gehlen) - que se precipitam sobre ele. Porém, para Portmann, o homem já vem preparado biologicamente para lidar com as relações espirituais e culturais, com as relações pessoais e sociais e com o especificamente humano, enquanto, para Gehlen, a espécie humana exibe traços de uma paralisação da evolução: Gehlen explica a deficiência humana - o homem como ser incompleto e em perigo - a partir do nascimento prematuro (Portmann) e do primitivismo dos órgãos humanos caracterizados como «estados ou circunstâncias fetais que se tornaram permanentes» (Bolk), ao mesmo tempo que rejeita a hipótese da domesticação de Lorenz. Portmann distancia-se de Gehlen, sobretudo da sua concepção do homem como ser deficiente ou carente, quando afirma que «à debilidade relativa da organização instintiva no homem» se opõe «um crescimento pujante de outros sistemas centrais de impulsos», reconhecíveis pelo «poderoso aumento da massa do córtex cerebral e dos seus sulcos». A lentidão do desenvolvimento do homem - o prolongamento da infância - não deve ser vista unicamente como algo negativo, porque ela corresponde perfeitamente à peculiaridade psíquica do homem - o seu espírito - como ser cultural e social. Ora, é precisamente nesta abertura do biológico ao sócio-cultural que reside o génio científico e filosófico de Portmann.

Obras de Adolf Portmann que deviam ser traduzidas em língua portuguesa, pelos menos as assinaladas a negrito:

Portmann, Adolf (1962). Zoologie und das neue Bild des Menschen. Hamburg. (Esta obra foi publicada inicialmente com o título Biologische Fragmente zu einer Lehre vom Menschen, Basel 1944.)
Portmann, Adolf (1963). Biologie und Geist. Friburg.
Portmann, Adolf (1964). Um das Menschenbild: Biologische Beiträge zu einer Anthropologie. Stuttgart.
Portmann, Adolf (1971). Entläßt die Natur des Menschen? München.
Portmann, Adolf (1946). Natur und Kultur im Sozialleben: ein Beitrag der Lebensforschung zu aktuellen Fragen. Basel.
Portmann, Adolf (1948). Einführung in die vergleichende Morphologie der Wirbeltiere. Basel. (Obra fundamental de morfologia que encantou Hannah Arendt por causa da sua teoria da aparência e da sua inversão das prioridades.)
Portmann, Adolf (1948). Die Tiergestalt. Basel.
Portmann, Adolf (1953). Das Tier als soziales Wesen. Zürich.
Portmann, Adolf (1960). Neue Wege der Biologie. München.

J Francisco Saraiva de Sousa

6 comentários:

Izazevedo disse...

Boa tarde,
Procurava dados biográficos sobre Portmann, biólogo e zoólogo citado por H.Arendt- a propósito da inversão da hierarquia tradicional da metafísica - e venho a encontrar um "velho" colega da Fac.de Letras, Curso de Filosofia de 1980-84, Francisco Saraiva.
As minhas felicitações pelo teu percurso de vida, abarcando áreas tão diversas!
Abraço do Porto!
Isabel Azevedo

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá Isabel Azevedo!

Sim, os livros que H. Arendt leu são os que não estão a negrito, com excepção do de morfologia a negrito. Mas ela devia conhecer os restantes.

Neste post, concentrei-me no essencial, evitando dar uma aula de anatomia fisiológica!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Amigos/as de todo o mundo

Agradeço a divulgação do meu blog e de muitos posts, alguns já colocados em pdf. Mas já não consigo acompanhar todo esse movimento mundial: o ritmo da rede supera-me. :)

luci disse...

Ola , é possivel vc. falar um pouco sobre o processo de fatalização que se refere L.Bolk, o trabalho que li faz uma menção a vc. e Bolk,
meu email:lucarpintero@gmail.com,
cordialmente

luci disse...

Corrigindo, Fetalização que Lacan tambem nomeia de Neotenia

luci disse...

Corrigindo, Fetalização que Lacan tambem nomeia de Neotenia