«Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo». (Sophia de Mello Breyner Andresen)
Pensar o 25 de Abril de 1974 é, nesta situação presente de crise financeira e económica profunda, confrontar a revolução dos cravos vermelhos com aquilo que prometeu e que não cumpriu: o "descobrimento" de um "mundo recomeçado a partir da praia pura" (Sophia). António Costa, um homem que se diz socialista, insurgiu-se contra todos aqueles que falam de corrupção, contando um episódio que sucedeu com Jorge Sampaio. Num passeio de rua, uma figura popular gritou "Gatunos" à passagem de Sampaio e este, indignado, voltou atrás e, agarrando-o pelo braço, perguntou-lhe: "O que lhe roubei?". Este episódio insignificante revela claramente que a promessa do 25 de Abril foi traída pela classe de dirigentes políticos: a reacção de Jorge Sampaio foi precipitada e insensível ao sentir profundo dos portugueses, como se quisesse fazer da sua "meia verdade" toda a verdade, confiscando a palavra ao outro e negando-lhe o rosto. Portugal anseia pela verdade inteira e, nesta hora de ofuscamento e de corrupção do "tempo terrestre", "é preciso dizer a verdade toda, mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo" (Sophia), porque a meia verdade narrada pela classe política estabelecida "é como habitar meio quarto, ganhar meio salário, como só ter direito a metade da vida" (Sophia). "Com fúria e raiva", a figura popular, tão desprezada pela classe política estabelecida que governa Portugal como se governasse à sua própria conta bancária, acusa "o demagogo e o seu capitalismo das palavras" (Sophia), urdidas na teia do fatalismo economicista, o discurso oficial que nos condena eternamente à pobreza, à miséria e ao agravamento das assimetrias de poder e das desigualdades sociais. A invocação do povo nas comemorações oficiais do 25 de Abril é profundamente hipócrita: condenado à condição de sem-abrigo, o povo foi traído por todos aqueles que, sem o conhecer verdadeiramente, falam em seu nome e, nesse gesto arrogante, lhe confiscam a "palavra sagrada" na qual o homem "sabe de si" (Sophia).
Existem duas versões do 25 de Abril: a meia verdade comemorada pelas classes dirigentes sediadas em espaços da noite e do silêncio, envolvida em demagogia e falsidade, e a ânsia pela verdade inteira manifestada por Portugal, pela língua e pelo seu povo. Uma revolução é, poeticamente falando, "casa limpa", "chão varrido", "porta aberta", "puro início", "tempo novo sem mancha nem vício", "interior de um povo", "página em branco onde o poema emerge", enfim, arquitectura onde o homem ergue a "sua habitação" (Sophia). O 25 de Abril prometeu um tempo absolutamente novo para Portugal, um mundo melhor onde o homem pudesse habitar e morar "em memória e demora" o seu "breve encontro com a vida" (Sophia), mas, decorridos 35 anos, continuamos a habitar a noite e o silêncio, o sem-mundo, o abismo que ameaça mergulhar Portugal na noite mais terrível da sua história milenar. O devir não foi inocente nem justo; fluiu a favor dos interesses das classes dirigentes instaladas em todas as esferas de decisão nacional e do seu séquito de oportunistas, as chamadas elites nacionais que traíram a língua onde a alma do povo português está "confiada" (Sophia). No puro início da revolução, aquele momento maravilhoso e ímpar de todas as revoluções sociais que não são meros golpes de Estado, o povo português encarnou alegremente o papel de profeta armado, capaz de abrir todas as portas, desobstruir os caminhos e lavrar o terreno, para nele "construir a festa do terrestre na nudez de alegria que nos veste" (Sophia), dando início a um novo tempo imaculado e liberto do vício da corrupção, onde o interior do povo, a democracia da palavra feita acção, se expande à custa da oligarquia e da palavra confiscada; porém, com o decorrer do tempo, as classes dirigentes emergentes acabaram por desarmar e banir o povo, tal como Estaline fez em relação a Trótski, e, no momento presente, o poder do povo, a democracia, converteu-se em cleptocracia: as portas voltaram a fechar-se e a festa do terrestre foi eliminada a favor da orgia mediática das intrigas das figuras bombásticas e medíocres do regime político estabelecido e dos seus jogos escuros de poder. O povo foi exilado e continua exilado da sua "inteireza" (Sophia), como se tivesse perdido Abril, "o dia inicial inteiro e limpo, que habitou nosso tempo mais concreto", e a "sua luz de prumo e de projecto" (Sophia).
Esta é, infelizmente, a outra metade da verdade que o discurso oficial quer omitir e banir completamente, mesmo que tenha de recorrer aos tribunais ou à violência. Homens que se comportam deste modo são mais do que "gatunos", como diz a figura popular, no sentido de não governarem no interesse nacional; são fundamentalmente "sabujos" (Sartre), que, em vez de assumirem a sua liberdade e a sua responsabilidade pela catástrofe nacional iminente, se demitem perante o mundo e os acontecimentos que ajudaram a criar, entrincheirando-se por detrás de discursos fatalistas ou pseudo-optimistas. Para regressar do "longo exílio" a que o condenou o poder estabelecido, o povo precisa retomar a palavra e o seu poder, a democracia, exigindo "uma verdade inteira e não meia verdade". A proposta da verdade inteira implica a desmistificação da retórica política predominante: "o demagogo diz da verdade a metade e o resto joga com habilidade, porque pensa que o povo só pensa metade" e "não percebe nem sabe" (Sophia) que eles governam apenas em benefício próprio, manipulando a verdade como "uma especialidade" de "clérigos letrados" que podem impor a todos os que não se identificam com o regime político e partidário estabelecido. Nas comemorações do 25 de Abril, os dirigentes nacionais e os lideres políticos gritam povo, mas, na verdade, o que é preciso é "expor", isto é, entregar novamente a palavra ao povo e às suas forças criativas, para que este possa, a partir do "olhar da mão e da razão", da "terra onde os homens estão" e "do seu fundamento", a "casa térrea", "construir o canto terrestre", onde o demagogo não se promova "à sombra da palavra" feita poder e transformada em "moeda" (Sophia). Confiscar a palavra ao povo é roubar-lhe a pátria (Fernando Pessoa): a Casa dos Portugueses. A língua portuguesa fala-nos e fala neste poema de Sophia de Mello Breyner Andresen:
«Será possível que nada se cumprisse?
Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
- Que nada sejam senão seu rosto ido
Sem regresso nem resposta - só perdido?»
J Francisco Saraiva de Sousa
5 comentários:
Este post é uma mera improvisação levada a cabo ao abrigo da poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, a propósito do dia que se comemora hoje: o 25 de Abril.
O relato do episódio dado a conhecer na Quadratura do Círculo por António Costa não implica uma avaliação negativa das presidências de Jorge Sampaio; pelo contrário, faço uma avaliação positiva, sobretudo do seu último acto político. :)
Gostei bastante da pertinência da tua análise. ;)
De facto as actuais gerações desconhecem a realidade histórico-política da Revolução de Abril. Em bom rigor sentem repulsa em relação à mesma, o que indicia uma viragem à direita, ainda por cima a tocar o seu extremo... :(
Eu sou progressista e creio firmemente na democracia, por isso sou um admirador do 25ABR74.
Se essa revolução não tivesse ocorrido, o nosso país estaria hoje muito pior, orgulhosamente só na globalização.
O que me aflige, porém, é o facto de se andar a querer branquear o Estado Novo. Como é possível não nos lembrarmos do Tarrafal, da exploração colonial, da PIDE, dos latifúndios e da miséria no campo?
Odeia-se gratuitamente os comunistas. Não sou simpatizante da sua ideologia, pelo menos na interpretação leninista e maoísta, mas admiro a coragem e a tenacidade do PCP, o qual era o única força política bem organizada e capaz de enfrentar as restrições do salazarismo.
E fico por aqui, pois o resto poderás ver no meu post acerca do 25ABR:
http://a-terceira-via.blogspot.com/2009/04/abril-sempre.html
Sim, "branquear o Estado Novo" não é tarefa nobre, mas devemos ter paciência, porque, com excepção de Lisboa e do Porto, o país interior é muito atávico e, de certo modo, perigoso: empurra-nos para baixo e para trás! :(
Bem, mudando de assunto e voltando atrás, se a Filosofia é sempre uma meditatio mortis, como defendia o Divino Platão, devo retomar a série "Meditatio Mortis e Sentido da Vida", lançando um conceito que descobri na medicina do século XVII: a sensibilidade do cadáver. A Medicina actual encara a morte como o final de um processo de doença, ignorando depois o morto que despacha para o cemitério: o corpo do morto só é estudado pela medicina legal. É um conceito impressionante, o da sensibilidade do cadáver, e, de certo modo, temos uma abordagem capaz de o clarificar. Porém, a tarefa é muito técnica para um post. Vou ver o que posso fazer...
Esqueci que entre o momento da morte, geralmente no Hospital, e o sepultamento dos restos mortais, há o momento da espoliação do cadáver fresco levado a cabo pela Indústria da Morte. Vivemos numa sociedade que, apesar de negar a morte, comercializa órgãos sacados aos mortos: a face, o fígado, o coração, o pâncreas, os ossos, a pele, o sangue, etc. O espírito metabolicamente reduzido espolia tudo, mesmo o metabolismo residual do morto! É necrófilo e necrológico! :(
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