O debate de Prós e Contras (15 de Dezembro de 2008) foi dedicado à actual crise financeira e económica e, entre os seus convidados, destaco as participações de Dom José Policarpo, e Luís Campos e Cunha (economista), além de Walter Oswald (moral), Carlos Fiolhais (físico) e Rui Pena Pires (sociólogo). Desta vez, Fátima Campos Ferreira procurou dar voz a outras pessoas que não são economistas e o próprio Luís Campos e Cunha frisou a necessidade de introduzir o ensino da "verdadeira" Filosofia nas escolas para evitar a ingenuidade das abordagens ditas técnicas que confundem o modelo com a realidade, referindo o papel fundamental da teoria do conhecimento na estruturação de uma atitude crítica e prudencial diante da sociedade estabelecida e dos projectos de mudança social. Devo dizer que a análise feita por Dom José Policarpo aproxima-se muito das análises que tenho feito neste blogue a propósito da crise financeira, sobre a qual falei muito tempo antes deste assunto entrar na agenda política portuguesa. Quem está minimamente atento ao que se passa no mundo e deseja lutar por uma sociedade mais justa encontra facilmente informação disponível on-line sobre a actual crise financeira cujas peripécias recuam aos anos anteriores a 2007, quando foi datada oficialmente. E, como sempre defendi neste blogue, esta crise coloca em questão o capitalismo, a globalização e a corrupção. Dom José Policarpo considera que a crise é uma crise do modelo e não uma mera crise dentro do modelo. Por isso, pôde defender a ideia de que esta crise pode vir a ser uma "revolução", no sentido de levar toda a "sociedade civil" (e não unicamente as chamadas "classes médias") a repensar um novo futuro para Portugal e o Ocidente. Neste sentido, como já tenho dito, a actual crise do capitalismo permite repensar criticamente o actual modelo de sociedade vigente, precisamente aquele que foi implementado pelo neoliberalismo a partir dos anos 80, e substituí-lo por um novo modelo capaz de melhorar o futuro da humanidade e de fazer face aos novos desafios do mundo global. Isto significa que a crise financeira e económica é a crise do modelo económico vigente e, como lembrou Walter Oswald, da sociedade de consumo que leva as pessoas a recorrer a empréstimos, portanto, a endividarem-se, para satisfazer necessidades supérfluas enquadradas num estilo de vida metabolicamente reduzido. Contudo, a crítica moral do modelo predominante é insuficiente para ajudar a melhorar o mundo, na medida em que a moral irrompe sempre-já num mundo decadente e corrupto que a usa como justificação ideológica das misérias e das desigualdades. A crítica só é produtiva quando os seus conceitos negativos são trasladados e realizados pela praxis política, não só a praxis dos lideres políticos, mas também a praxis de toda a sociedade civil. A crise da educação e o poder irracional dos mass media minaram e continuam a minar a dialéctica da libertação. É preciso dizer que os mass media "moldam" a chamada opinião pública à custa da perda da experiência e do bom senso. Em Portugal, a comunicação social é um cancro maligno. As personagens que se exibem nos ecrãs da televisão ou nas folhas da imprensa carecem das qualidades necessárias referidas por Dom José Policarpo para o exercício do poder político e público: competência, sentido de serviço e sabedoria, completamente distinta da racionalidade instrumental científica. São personagens degradantes, corruptas e de inteligência reduzida, a personificação da vulgaridade que, em Portugal, raptou as esferas do poder, perseguindo a inteligência criativa. Esta mediocridade humana, profundamente ladra e invejosa, instalou-se na sociedade portuguesa e, se não for afastada das posições que raptaram paulatinamente depois do 25 de Abril, Portugal continuará a ser indefinidamente um país adiado. As pseudo-elites portuguesas nunca estiveram ao serviço do bem público. A actual crise financeira revela a crise do elemento humano português e da sua anti-cidadania. Carlos Fiolhais defendeu um optimismo pseudo-científico exagerado, tendo sido acompanhado pelos convidados da plateia que vêem nesta crise a oportunidade para repetir os "mesmos erros", tais como "ensinar e gerir talentos", os "direitos humanos", o papel da ONU, o multiculturalismo ou a "igualdade", que conduziram à presente situação de miséria e de decadência, portanto, uma oportunidade de conquistar um lugar ao sol, tal como o fizeram os gestores corruptos. O optimismo é uma patologia da alma, pelo simples facto de levar as pessoas a afastar do seu horizonte de visão e de compreensão a miséria humana. Conquistar Marte não é expandir a humanidade: a expansão espacial não implica necessariamente a expansão espiritual ou cultural, como observou discretamente Dom José Policarpo, além da ciência por si só não poder garantir um futuro melhor, a menos que seja inserida numa dimensão cultural mais vasta capaz de orientar a humanidade. A expansão espiritual do Ocidente exige uma renúncia ao mundo: a crise possibilita a emergência dessa renúncia, pelo menos no espírito das pessoas que precisam nascer duas vezes para se reconciliarem com o mundo. Só uma mente pessimista pode nascer duas vezes e, deste modo, opor-se às chamadas "mentes equilibradas" que nasceram uma única vez, apropriando-se e instalando-se no mundo que controlam em função dos seus interesses particulares, sem levar em conta o "bem público". O optimismo, sobretudo o optimismo tecnológico, nega o lado negro da existência: o mal é sistematicamente negado, como se não existisse, e, por isso, nada se faz para o eliminar. O optimismo é, em última análise, justificação ideológica das desigualdades sociais, da injustiça, do sofrimento e da miséria humana. O pessimismo metódico é a única atitude adequada à tarefa da libertação: o homo consumens precisa morrer para uma vida irreal, aquela que vive no âmbito de uma sociedade de consumo, idolatrada pela ideologia perversa difundida pelos mass media, a fim de nascer para uma nova vida real. Isto significa que, sem contracção material, não pode haver expansão espiritual. A alma ocidental só pode ser reanimada pela prática da ascese: a renúncia do mundo irreal e irracional em que vivemos e que ameaça a saúde de Gaia. Controlar a todo o custo os efeitos negativos produzidos pela crise financeira na economia real pode significar perder a oportunidade de criar um mundo firme, estável e equilibrado, a partir do actual momento de tempestade, tensão e incoerência: a actual crise financeira ajuda a clarificar os erros viscerais do modelo de sociedade vigente e, se o Estado fizer intervenções irracionais para suavizar os seus efeitos, em especial na bolsa dos corruptos e dos "muito ricos", perde a oportunidade de nascer uma segunda vez. Este segundo nascimento só pode ser alcançado através da renúncia sistemática do modelo económico neoliberal e da sociedade de consumo, bem como de uma concepção "gorda" do Estado. Só o horror mortal que podemos experienciar diante dos efeitos nefastos desta crise constitui a reacção adequada à situação: o sofrimento redime, libertando-nos desta agonia impotente. É preciso lutar com todas as armas por um "mundo melhor". O optimismo é inadequado como teoria filosófica, porque os factos maus que rejeita constituem uma porção genuína da realidade e talvez a chave adequada para o sentido da vida e os únicos despertadores capazes de abrir os nossos olhos para os níveis mais profundos e elevados da verdade. O que vem aí só pode ser redimido e exorcizado por um olhar pessimista, o único que garante a esperança. J Francisco Saraiva de Sousa
11 comentários:
Oi amigos
Cheguei ontem e ainda assisti ao programa Prós e Contras. Prometo retomar este tema. Agora estou com dores de cabeça e deveras cansado. :(
Ah, não sou contra os transexuais, como foi insinuado por uma pessoa que deixou comentário num post recuado no tempo. Porém, sou mais amigo da verdade: o meu temperamento não me permite fugir da verdade. Enfim, sou um asceta! :)
Olá Francisco,
Espero que recupere esse físico e melhore rapidamente das dores de cabeça.
Então por onde tem andado?
Pela Montanha?
Pelo que diz, ser um asceta, e a avaliar pelos seus últimos textos (meditação e experiências místicas), bem fez o Francisco em ter ido até à ‘Montanha’ e ter-se abstido dos doces venenos da vida. Espero que tenha conseguido a tal visão unitária ao fundir o místico com o monístico.
Os arrebates entusiastas e extasiados de Fiolhais não me convenceram. A sua embriaguez contrastou com a sobriedade de Policarpo.
O discurso de Fiolhais é completamente inútil quando se trata de partilhar com o resto da sociedade contemporânea ocidental as suas preocupações com a corrupção e os vícios da sua elite rica e poderosa.
Estes debates podiam servir para encontrar terapêuticas alternativas às que têm sido levadas a efeito por padres e polícias destes dois últimos mil anos. Mas este psico-drama é de tal modo complexo, e o ponto está de tal modo viciado, que os terapeutas profissionais já estão mas é a fechar os seus consultórios porque já perceberam que vêm aí outra vez as batalhas campais. Vai andar tudo à pancada.
Precisamos de gente sóbria e não de gente embriagada para enfrentar os manipuladores que têm distibuído de forma batoteira e injusta o escabroso peso deste mundo.
Quanto aos filósofos, desde Platão, precisamente por terem abandonado a embriaguez de Eleusis, cá está um paradoxo, já não têm nada a dizer sobre a embriaguez dos ‘fiolhais’. Em Eleusis existiam autênticos sábios, admitiu Platão, mas ele já não passava de um amador da sabedoria. Platão limitou-se a revelar o segredo do ofício, e Aristóteles com a Lógica deu-lhe a machadada final. Xamãs e místicos para um lado, matemáticos e merceeiros para o outro. Os actuais terapeutas profissionais que dão pelo nome de economistas são herdeiros bastardos destes antigos merceeiros. Isto é modesta filosofia analítica e não elaborada filosofia crítica, pelo que não tem qualquer alcance ofensivo.
Olá Fernando Dias
De facto, as "tiradas" de Fiolhais deixaram-me com uma má imagem dele: mais parecia um "tolinho" (sem ofensa) do que um homem sério. Sim, também apreciei a seriedade de D. Policarpo.
Os da plateia foram simplesmente "oportunistas": buscam um lugar ao sol, repetindo em proveito próprio os eternos erros da humanidade.
A filosofia de Platão pode ser relida em nova chave: o ascetismo espiritual está lá e Marx, apesar de criticar certas práticas da filosofia, nunca negou esse impulso asceta. A decadência da filosofia deve-se à massificação e ao carácter indigente do nosso tempo. Em tal tempo indigente, é difícil fazer filosofia, porque todos pensam ser filósofos. :(
Já estou um pouco melhor, mas não foram férias mas trabalho. Vou ver se dou continuidade ao post sobre meditação. :)
Olá, Francisco! Faço votos para que consiga exorcizar as dores de cabeça.
Acho que estou a me tornar um asceta também :)
Ainda não tive tempo para ler os seus posts anteriores, mas o farei assim que puder.
Um abraço!
Olá André
Voltou a nevar e aqui na cidade o nevoeiro está de tal modo espesso que não se vê nada: muita humidade, aliás um convite ao ascetismo!
Ah ah ah! Pensei que "humidade" fosse um convite ao não-ascetismo... ;)
Mas de que coisa falam, os caríssimos? Da "askesis" no sentido original, ou do ascetismo enfermo do Cristianismo?
Não foi esse o ensinamento de Sócrates, nem de Jesus Cristo. A sabedoria não está em recusar o mundo, mas em aceitá-lo e vivê-lo regradamente. Lembrem-se do Symposium de Platão: Sócrates não é aquele que não bebe, antes, é aquele que bebe mais e que nunca se embebeda, controla-se e nunca perde a visão, a theoria.
Ou se preferirem as Sagradas Escrituras: Jesus Cristo dá a outra face, não foge cobardemente e responde de maneira controlada...: é de coragem e vida, meus senhores, de que é feita a mais divina sabedoria!
O ascetismo é a disciplina dos fracos e moribundos! Mas isso também sabeis vós!
E allora, vado via... :) buona sera
Oi Else
Eu referia-me à necessidde de romper com o modelo de consumo que consome a terra e o homem, portanto, à criação de uma sociedade mais virada para a espiritualidade do que para a materialidade. É sair da prisão em que vivemos e respirar ar puro!
Oi Francisco,
Ótimo texto. Claro e exato como sempre.
Abs,
MM
Oi Marcelo
Obrigado. Há algum tempo que não editava um post, mas já editou e sempre com novas sugestões e desafios. :)
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