William James (1902) criou a Psicologia Transpessoal, cujo objecto de estudo é a "consciência cósmica", um estágio de consciência que transcende os limites do indivíduo e elimina as fronteiras que limitam a sua consciência. A filosofia da experiência de James considera a religião, não como uma crença na experiência alheia, mas como uma experiência pessoal, que não pode ser relegada à categoria de mera fantasia ou mesmo da loucura, tal como defende o "materialismo médico": a religião diz respeito aos "sentimentos, actos e experiências de indivíduos na sua solidão, na medida em que se sintam relacionados com o que quer que possam considerar o divino". James rejeita a tese psicopatológica, mostrando o que distingue o "santo" e o "místico" do doente mental e expondo os critérios que permitem reconhecer a experiência mística legítima. A sua hipótese é a de que o "self" subconsciente constitui o intermediário entre o poder superior e a natureza propriamente dita. O principal objectivo da neurociência espiritual, algumas vezes denominada neuroteologia, é identificar e explicar os correlatos neurais das experiências místicas, espirituais e religiosas, sem pretender depreciar ou minimizar o seu significado e valor e negar ou confirmar a realidade externa de Deus mediante o delineamento dos correlatos neurais da sua experiência. Estas experiências constituem uma dimensão fundamental da existência humana e estão presentes através de todas as culturas humanas. A neurociência espiritual parte do pressuposto de que estas experiências são mediadas pelo cérebro, tal como todos os outros aspectos da experiência humana. A experiência mística é caracterizada por um sentido de união com Deus. Além disso, inclui outros elementos, tais como o sentido de ter tocado ou alcançado o último fundamento da realidade, a experiência da eternidade e do ilimitado, o sentido de união com a humanidade e o universo, bem como sentimentos de afecto positivo, paz, alegria e amor incondicional. James destacou quatro aspectos que caracterizam os estados de consciência mística ou experiência mística legítima: 1) a sua inefabilidade, 2) a sua qualidade noética, 3) a sua transitoriedade e 4) a sua passividade. A experiência mística é inefável no sentido de não poder ser comunicada aos outros precisamente por ser experimentada directamente, na primeira pessoa do singular, e dotada de uma qualidade noética, no sentido de ser um estado de visão interior dirigida às profundezas da verdade não sondadas pelo intelecto discursivo. Estas duas características são suficientes para definir um estado de experiência mística como um estado de sentimento e de conhecimento peculiar. As outras duas qualidades da consciência mística são menos nítidas. A experiência mística é também transitória, no sentido de não poder ser sustentada durante muito tempo, e passiva, no sentido do místico sentir que a sua própria vontade está adormecida, embora o seu estado exija inicialmente operações da vontade, como a fixação da atenção ou a execução de determinados gestos corporais. Persinger (1983) elaborou a hipótese de que as experiências místicas, espirituais e religiosas são evocadas por micro-ataques eléctricos (ou convulsões), transitórios e passageiros, no interior dos lobos temporais. Os estudos de Devinski (2003), Naito & Matsui (1998) e Saver & Rabin (1997) evidenciaram que estas experiências ocorrem frequentemente em conjunção com experiências de ataques ictais, peri-ictais e pós-ictais ligadas à epilepsia do lobo temporal (TLE). Ogata & Miyakawa (1998) e Trevisol-Bittencourt & Troiano (2000) associaram-nas à intensificação interictal de sentimentos místicos e espirituais, e Dewhurst (1970), à conversão religiosa. Num estudo realizado com dois pacientes com epilepsia do lobo temporal, Ramachandran & Blakeslee (1998) verificaram que, em comparação com as respostas dadas pelo grupo de não-religiosos, eles responderam com maior ênfase ou excitação emocional às palavras religiosas da lista apresentada do que aos termos sexuais e violentos. Foram realizados cinco estudos sobre diversos tipos de meditação, em especial Yoga (Herzog et al., 1990-91), Yoga Tântrico (Lou et al., 1999), Tibetana (Newberg et al., 2001), Kundalini (Lazar et al., 2000) e Yoga Nidra (Kjaer et al., 2002). Porém, vou destacar apenas dois neuro-estudos sobre o misticismo cristão: um estudo de SPECT (photon emission computed tomography study) e outro de fMRI que também envolvem o lobo parietal. Newberg et al. (2003) mediram o fluxo sanguíneo cerebral regional de monges franciscanos enquanto rezavam uma oração que envolvia a repetição interna de uma frase particular: o estado de oração mostrou um aumento significativo de fluxo sanguíneo cerebral no córtex pré-frontal, nos lobos frontais inferiores e no lóbulo parietal inferior. A alteração observada no córtex pré-frontal direito mostrou uma correlação inversa com aquela observada no lóbulo parietal superior ipsilateral. As mudanças na actividade do lóbulo parietal superior foram interpretadas como reflexo de um sentido modificado do esquema corporal experienciado durante o estado de oração (Newberg et al., 2001). Beauregard & Paquette (2006) mediram a actividade cerebral de frades carmelitas contemplativos enquanto eles estavam subjectivamente num estado de união com Deus. Este estado estava associado a locais de activação significativa no córtex orbitofrontal medial direito (área 11 de Brodmann), no córtex temporal médio direito (área 21 de Brodmann), nos lóbulos parietal superior (área 7 de Brodmann) e inferior (área 40 de Brodmann) direitos, no caudado direito, no córtex pré-frontal medial esquerdo (área 10 de Brodmann), no córtex cingulado anterior esquerdo (área 32 de Brodmann), no lóbulo parietal inferior esquerdo (área 7 de Brodmann), na ínsula esquerda (área 13 de Brodmann), no caudado esquerdo e no brainstem esquerdo. O córtex extra-estriado visual também foi activado. Isto significa que as experiências místicas são mediadas por diversas regiões e sistemas do cérebro: os "estados de consciência mística" implicam mudanças nas esferas da percepção, da cognição e da emoção. A activação temporal medial direita parece estar relacionada com a impressão subjectiva de contacto com uma realidade espiritual e o sistema neural que suporta esta união com o divino pode ser largamente o mesmo que apoia a união com outro ser humano. Núcleo Caudado. Estudos anteriores de fMRI mostraram que o núcleo caudado é sistematicamente activado em tarefas que envolvam emoções positivas, tais como felicidade (Damásio et al. 1999), amor romântico (Bartels & Zeki, 2000) e amor maternal (Bartels & Zeki, 2004). Isto significa provavelmente que, na experiência mística, a activação deste núcleo está relacionada com os sentimentos de alegria e de amor incondicional. Tronco Cerebral. Damásio (1999) mostrou que certos núcleos do tronco encefálico mapeiam o estado interno do organismo durante a emoção. É provável que, na experiência mística, a activação do tronco cerebral esquerdo esteja ligada às alterações somatoviscerais associadas aos sentimentos de alegria e de amor incondicional. Ínsula. A ínsula estabelece fortes conexões com as regiões envolvidas na regulação autonómica (Cechetto, 1994) e contém uma representação topográfica dos inputs provenientes das áreas somatossensorial, auditiva, visual, gustativa, olfactiva e visceral. Augustine (1996) mostrou que a ínsula integra representações da experiência sensorial externa e do estado somático interno. É activada no processamento emocional e pode fornecer uma representação das respostas visceral e somática acessível à consciência (Critchley et al., 2004; Damásio, 1999). A activação da ínsula esquerda (área 13 de Brodmann) na experiência mística está relacionada com a representação de reacções somatoviscerais associadas aos sentimentos de alegria e de amor incondicional. Córtex Pré-Frontal Medial. A activação do córtex pré-frontal medial esquerdo (área 10 de Brodmann) está ligada à consciência desses sentimentos. Outros estudos de fMRI mostraram que esta área cerebral está envolvida na representação metacognitiva do seu próprio estado emocional (Lane & Nadel, 2000), recebe informação sensorial do corpo e do meio externo via córtex orbitofrontal e está interconectada com as estruturas do sistema límbico, tais como amígdala, striatum ventral, hipotálamo, região periaqueductal cinzenta do mesencéfalo e núcleos do tronco cerebral (Barbas, 1993; Carmichael & Price, 1995). Córtex Cingulado Anterior. A activação do córtex cingulado anterior dorsal esquerdo (área 32 de Brodmann) está ligada à consciência emocional associada com a detecção interoceptiva de sinais emocionais durante a experiência mística (Lane et al., 1997; Lane et al., 2000). Esta área cerebral projecta-se para as áreas da regulação visceral do hipotálamo e da região periaqueductal cinzenta do mesencéfalo (Ongur, Ferry & Price, 2003). Córtex Orbitofrontal Medial. O córtex orbitofrontal medial é responsável pelo prazer subjectivo (Kringelbach et al., 2003), sendo activado no agrado produzido por estímulos olfactivos ou gustativos (Araujo et al., 2003; Rolls et al., 2003) ou musicais (Blood & Zatorre, 2001). Os córtices insular e cingulado estão reciprocamente conectados (Carmichael & Price, 1995; Cavada et al., 2000). A activação do córtex orbitofrontal medial direito (área 11 de Brodmann) foi relacionada com o facto das experiências vividas durante o estado místico serem consideradas pelos sujeitos como emocionalmente agradáveis. Lóbulo Parietal Superior. O lóbulo parietal superior direito (área 7 de Brodmann) está envolvido na percepção espacial do self (Neggers & Van der Lubbe, 2006). A sua activação durante a experiência mística pode reflectir uma modificação do esquema corporal associada com a impressão vivida pelos sujeitos de serem absorvidos por alguma coisa maravilhosa. Lóbulo Parietal Inferior. O lóbulo parietal inferior esquerdo está envolvido no processamento da representação visuo-espacial do corpo (Felician et al., 2003). Na experiência mística, a sua activação estava relacionada com uma alteração do esquema corporal. O lóbulo parietal inferior direito desempenha um papel fundamental na distinção entre o self e os outros (Ruby & Decety, 2003), bem como na imagética motora (Decety, 1996) experienciada durante o estado de união com Deus. Finalmente, a activação do córtex visual extra-estriado durante a experiência mística está relacionada com as imagens visuais mentais (Ganis, Thompson & Kosslyn, 2004). (Este post começa a cumprir a promessa feita aqui.) J Francisco Saraiva de Sousa
15 comentários:
Vou dedicar o próximo post à meditação e, deste modo, posso clarificar melhor os mecanismos envolvidos nas experiências espirituais. :)
Aliás, vou ser pouco político (já chega o sistema nacional de corrupção totalmente visível) e entregar-me à quadra natalícia: Espírito Humano, aquele que se perde na vida metabolicamente reduzida contemporânea. :)
Muito interessante o seu texto, Francisco. Aqui em São Paulo há um pesquisador que tem feito alguns estudos sobre os cristais da glândula pineal. Segundo ele, há uma possibilidade de que tais cristais sejam responsáveis pelos fenômenos mediúnicos.
Como vê, existe uma forte tendência que pretende dar um status científico a eventos do âmbito da espiritualidade. Não sei aonde vamos chegar :)
Olá André
Sim, estou a pensar neste tema e há alguma coisa que não encaixa; pelo menos, num dos estudos as áreas da linguagem deviam ser activadas.
Mas vou rever os estudos sobre meditação não-verbal, embora a espiritualidade necessite de muita linguagem.
Não conheço nenhum estudo mediúnico.
Francisco, vou lhe enviar um texto que escrevi há alguns meses sobre a experiência religiosa como um fenômeno arquetípico, na obra de Carl Gustav Jung.
NA realidade, referia-me a um médico que procurou estudar os correlatos neuronais das chamadas experiências mediúnicas, presentes na literatura espírita. Não conheço profundamente tal pesquisa.
Ok, se quiser edito o seu texto amanhã.
Afinal, o problema mente/cérebro não tem solução à vista. Aqui está frio e no interior neve! :(
Ok, vou lhe enviar o texto, que nada mais é do que um levantamento bibliográfico sobre o tema da função religiosa da psique. Esteja à vontade para editá-lo, corrigi-lo, bem como para me propor alterações.
Na ocasião eu tinha escrito um pequeno texto sobre o "Cristo interior", concepção formulada por alguns místicos e retomada por Carl Gustav Jung.
Francisco, mande-me o seu endereço de e-mail. Não estou conseguindo consultá-lo no seu blogue, pois o meu office está com problemas :(
Oi André
Já lhe enviei o meu e-mail e apaguei o seu aqui na caixa de comentários. Estive a ver duas séries policiais. :)
Corrigi um erro científico que deixei passar por distração e cansaço! Sorry!
Olá, Francisco! Já lhe enviei o meu texto. Estou numa correria danada. Excesso de estudos (alguns muito desgastantes), de trabalhos para entregar... É triste constatar que cada vez mais pareço menos dono do meu tempo. Boa época aquela em que os estóicos e os membros da escola cínica faziam apologia da autarkeia ("auto-suficiência"). Se eles tivessem vivido na nossa época talvez teriam de revisar boa parte de seus preceitos :)
Um abraço!
André
Vou ler e depois edito o seu texto.
Estava a estudar o Yoga e reparei que as suas técnicas de meditação (a libertação) interpretam esse estado em termos de vida vegetal, o que ajuda a compreender os neuroestudos. Por vezes, os cientistas não ligam à "filosofia" subjacente a tais práticas de meditação e fazem mal. Vou tentar fazer uma breve suma do Yoga como introdução ao próximo post.
Aguardo a sua suma do Yoga. Uma escolha excelente!
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