A espiritualidade indiana pode ser clarificada mediante quatro conceitos fundamentais e solidários: Karman, Mâyâ, Nirvâna e Yoga. Conforme demonstrou Mircea Eliade, a Índia procurou compreender, desde a época pós-védica, (1) a lei da causalidade universal ou lei do karman, que solidariza o homem com o universo, condenando-o a transmigrar indefinidamente; (2) a ilusão cósmica ou mâyâ, o processo misterioso que engendra e sustém o cosmos e que, ao proceder assim, torna possível o eterno retorno das existências, ilusão apoiada e valorizada pelo homem profano mergulhado na nesciência (avidyâ), a confusão entre o espírito e a actividade psico-mental; (3) a realidade absoluta, o Si (âtman), Brahman, o incondicionado, o transcendente, o imortal, o indestrutível ou nirvâna, «situada» em alguma parte, mais além da ilusão cósmica criada por mâyâ e da experiência humana condicionada por karman; e (4) os meios para alcançar o Ser ou as técnicas adequadas para conquistar a libertação (moksa, mukti) que constituem propriamente o Yoga. O pensamento indiano encara a verdade como algo valioso, não em si mesmo, mas em virtude da sua função soteriológica: o conhecimento da verdade é valorizado enquanto ajuda o homem a libertar-se, isto é, a conquistar outro modo de ser que transcende a condição humana submetida à lei do karman. A posse da verdade não constitui o objectivo supremo do sábio hindu, mas o meio ou o caminho que lhe permite conquistar a liberdade absoluta. Por isso, no pensamento hindu, o conhecimento metafísico é traduzido em termos de ruptura e morte, portanto, em termos de iniciação: a busca da verdade, sob a orientação e a direcção de um mestre, o guru, possibilita ao yogui romper com a condição humana, portanto, morrer para tudo o que é humano, e, ao mesmo tempo, re-nascer para um modo de ser não condicionado, a libertação da nesciência (ignorância) e do sofrimento. Filosofia Yoga (yoga-darsana). A palavra yoga possui muitos significados na literatura hindu, mas o mais preciso é aquele exposto por Patañjali nos seus tratados Yoga-Sûtras, onde recolhe e publica as tradições doutrinárias e técnicas do Yoga. Um darsana não é evidentemente um sistema filosófico no sentido ocidental, mas um conjunto de afirmações coerentes que procuram interpretar a experiência humana no seu conjunto e que têm por finalidade "libertar o homem da ignorância". O Yoga é um dos seis "sistemas filosóficos" hindus ortodoxos, isto é, tolerados pelo brahamanismo (ou bramanismo), e é este Yoga clássico, formulado por Patañjali e interpretado pelos comentadores, que iremos expor, levando em conta a doutrina do mais antigo darsana hindu, Sâmkhya-Yoga. Aliás, estes dois tratados sistemáticos distinguem-se em dois aspectos básicos: 1) o Sâmkhya clássico é ateu, enquanto o Yoga é teísta, no sentido de postular a existência de um Senhor (Isvara); e 2) o Sâmkhya considera que o único caminho para alcançar a libertação é o do conhecimento metafísico, enquanto o Yoga atribui muita importância às técnicas da meditação. Apesar destas duas diferenças e de outras menores, as doutrinas Sâmkhya podem ser consideradas válidas para as estruturas teóricas dos Yoga-sûtras. O Mundo é Sofrimento. Patañjali proclama o sofrimento universal, no qual as técnicas soteriológicas e as doutrinas metafísicas encontram a sua razão de ser: toda a experiência humana gera e engendra o sofrimento. No entanto, a concepção indiana da dor universal não conduz a uma "filosofia pessimista" e ao desespero, porque a sua revelação constitui a condição sine qua non da emancipação. Como diz Isvara Krishna, o desejo do homem que está na base desta filosofia é o desejo de escapar à tortura dos três sofrimentos, nomeadamente da miséria celeste provocada pelos deuses, da miséria terrestre desencadeada pela natureza e da miséria interior ou orgânica. O sofrimento universal leva o sábio e o asceta a recordar que o único meio que possuem para atingir a liberdade e a beatitude é retirar-se do mundo, desprender-se dos bens e das ambições e isolar-se radicalmente do mundo. O homem não é o único ser que sofre, porque a dor é uma modalidade cósmica e ontológica que condena todas as formas orgânicas que perduram no tempo ao sofrimento. Existir no tempo e ter duração implicam a dor. Porém, ao contrário dos deuses e dos outros seres vivos, o homem é o único ser que tem a possibilidade de recusar efectivamente a sua condição e abolir o sofrimento. O homem pode anular as forças kármicas que o dirigem e emancipar-se do sofrimento. Aliás, este é o objectivo de todas as filosofias e místicas indianas: o conhecimento metafísico persegue um fim soteriológico. Mediante o conhecimento, o homem desprende-se das ilusões do mundo dos fenómenos e, encontrando o seu próprio centro que coincide com o seu verdadeiro espírito (purusa, âtman), desperta para o espírito na condição de liberto ou de desperto (buddha): o conhecimento transforma-se em meditação e a metafísica torna-se soteriologia, doutrina da salvação. Este aspecto da filosofia indiana pode ser clarificado pela explicitação das causas do sofrimento humano. A miséria humana deve-se à ignorância, mais precisamente à ignorância da verdadeira natureza do espírito, e não a um castigo divino ou ao pecado original, como sucede no judaísmo e no cristianismo. Esta ignorância é de ordem metafísica, porque leva o homem a confundir ou identificar o espírito com a experiência psico-mental, atribuindo-lhe qualidades e atributos que não lhe pertencem. O conhecimento que suprime esta ignorância é metafísico, porque conduz o discípulo até ao limiar da iluminação: revela o verdadeiro Si-mesmo como princípio eterno. A emancipação só é possível quando se suprime a ignorância do espírito, aquela ignorância que confunde o espírito com os estados psico-mentais. Ora, segundo a filosofia indiana, os estados psíquicos e o espírito pertencem a dois modos distintos do ser. A vida mental do homem não é idêntica ao espírito. Só quem compreende esta verdade pode alcançar a libertação, não só mediante a gnose (Sâmkhya), mas também e sobretudo através da ascese e da técnica meditativa (Yoga). O Si ou Espírito (purusa). Tal como o âtman dos Upanixades, o purusa é inexprimível. Os seus atributos são negativos: O Si é aquele que vê, é isolado, indiferente, mero espectador inactivo, e, dado ser irredutível e desprovido de qualidades, não possui inteligência ou intelecto, porque não tem desejos que, não sendo eternos, não lhe pertencem. O espírito é eternamente livre e, por isso, os estados de consciência e o fluxo da vida psico-mental são-lhe estranhos. Isto significa que o Sâmkhya e o Yoga negam ao espírito todo o atributo e toda a relação: purusa é aquilo que é e que conhece. Segundo Patañjali, a ignorância (avidyâ) consiste em considerar o efémero (anitya), o impuro (asuci), o doloroso (duhkha) e o não-espírito (anâtma) como sendo eterno (nitya), puro (suci), beatitude (sukha) e espírito (âtman). A percepção, a memória, o raciocínio e as outras faculdades psico-mentais pertencem à inteligência (buddhi): a ilusão reside no facto dos homens profanos atribuírem estas faculdades mentais ao espírito. Apesar de ser eternamente puro, impassível, autónomo e irredutível, o espírito deixa-se envolver na experiência psico-mental. Reside aqui um problema, o problema da estranha relação que liga o espírito à natureza, o purusa à prakrti. A causa e a origem desta associação são dois aspectos de um problema insolúvel. Segundo os mestres hindus, é inútil procurar uma solução para este problema, porque tal tarefa cognitiva supera a capacidade actual da compreensão humana. O intelecto ou inteligência do homem (buddhi) é um produto da substância primordial (prakrti) e, como tal, só pode manter vínculos de conhecimento com outros fenómenos. Isto significa que o intelecto não pode conhecer o espírito, a realidade transcendente, com a qual não tem nenhum tipo de relação. A causa da servidão humana é a ignorância metafísica, cujo aparecimento histórico não pode ser fixado pelo intelecto humano. O conhecimento do espírito revela-se somente quando o homem rompe as cadeias que o ligam ao mundo e supera a condição humana. Este conhecimento metafísico é um mero despertar que revela imediatamente a realidade transcendente do espírito, sem a ajuda e a ingerência da inteligência. (CONTINUA) J Francisco Saraiva de Sousa
2 comentários:
É provável que as últimas duas entradas sejam transportadas para outro post, uma vez que esta é uma série que culimina na neurociência.
Bem, "era provável", mas já não é mais, porque o segundo post desta série compreende precisamente essas duas últimas entradas que estiveram parcialmente presentes neste primeiro post. O terceiro post da série já entra no domínio da neurociência espiritual. Ainda não decidi se vou tratar da sua relação com a saúde, em especial com a proteção do sistema imunitário.
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