A Substância (prakrti). A substância é tão real e eterna como o espírito, embora seja dinâmica e criadora. Esta substância homogénea primordial possui três modos de ser que lhe permitem manifestar-se de três maneiras diferentes, as chamadas gunas: 1) sattva que é a modalidade da luminosidade e da inteligência, 2) rajas que é a modalidade da energia motora e da actividade mental, e 3) tamas que é a modalidade da inércia e da obscuridade psico-mental. As gunas possuem um duplo-aspecto: um objectivo, uma vez que constituem os fenómenos do mundo exterior, e outro subjectivo, uma vez que sustentam, alimentam e condicionam a vida psico-mental. Após sair do seu estado inicial de equilíbrio perfeito e assumir especificações condicionadas pelo seu instinto teleológico, a substância (prakrti) manidesta-se sob a forma de uma massa energética denominada mahat, "o Grande". O impulso interior de desenvolvimento (parinâma) força-a a passar do estado de mahat para o estado de ahamhâra: massa unitária aperceptiva, desprovida ainda de consciência "pessoal", mas com a consciência obscura de ser um ego (aham). Nesta etapa, o processo de evolução bifurca-se em duas direcções opostas: uma conduz ao mundo dos fenómenos objectivos, a outra leva ao mundo dos fenómenos subjectivos.
O universo mais não é do que a evolução de uma etapa inicial da natureza (ahamkâra), aquela em que pela primeira vez da massa homogénea e energética surge a consciência da individualidade, levando-a, através de um duplo processo de desenvolvimento e de criação, a criar um duplo mundo, o interior e o exterior, ligados entre si por correspondências electivas. Isto significa que os fenómenos objectivos e os fenómenos psico-fisiológicos têm uma matriz comum: a substância primordial, informe e eternamente imóvel. O que os separa é a fórmula dos gunas: o sattva predomina nos fenómenos psico-mentais, o rajas, nos fenómenos psico-fisiológicos, e o tamas, nos fenómenos do mundo material. Toda a experiência psíquica é vista pelo Sâmkhya-Yoga como um simples processo "material". A simpatia orgânica entre o homem e o cosmos é garantida pelos gunas que impregnam todo o universo. A criação de formas infinitas, cada vez mais compostas e variadas, exige uma justificação e um sentido exteriores ao próprio universo. Este sentido revela-se no carácter teleológico da criação: a sua missão é servir o espírito e, fora dessa missão, o cosmos carece de sentido. Isto significa que tudo na natureza tem um "superintendente", que não é a actividade mental e os seus estados de consciência, mas o próprio espírito. Dinamizada pelo instinto teleológico, a prakrti está inteiramente voltada para a libertação do purusa: a criação existe em proveito do espírito. Embora não tenha explicado a razão e a origem da estranha associação entre o espírito e os estados de consciência, a filosofia indiana explica a natureza da sua associação: a inteligência (buddhi) na sua forma de pura luminosidade tem a qualidade específica de reflectir o espírito, sem alterar o ego ou fazê-lo perder as suas modalidades ontológicas. Técnicas de Ascese e Métodos de Meditação. «O Yoga inicia-se onde acaba o Sâmkhya» (Mircea Eliade). Segundo Patañjali, o conhecimento metafísico não conduz o homem à libertação: apenas prepara o terreno para a conquista da liberdade que deverá ser obtida mediante uma técnica ascética e um método de meditação. Para Patañjali, o Yoga é "a supressão dos estados de consciência" que fazem parte de três categorias. Estas categorias correspondem a três possibilidades de experiência: 1) os erros e as ilusões, 2) a totalidade das experiências psicológicas normais, e 3) as experiências para-psicológicas desencadeadas pela técnica do Yoga e acessíveis apenas aos iniciados. O objectivo do Yoga clássico é abolir as duas primeiras categorias de experiências e substituí-las por uma experiência enstática (samâdhi), supra-sensorial e extra-racional. Isto significa que o Yoga tem como tarefa a destruição dos estados de consciência através do seu "conhecimento experimental": os turbilhões de consciência (cittavrtti) só podem ser controlados e destruídos através da sua experimentação. A experiência garante o acesso pleno à liberdade e à condição paradoxal do "liberto em vida". A eliminação da ignorância não é suficiente para destruir ou eliminar os estados de consciência, porque existem no subconsciente imensas reservas de latências (vâsanâ) prontas a emergir. A sua destruição exige a ruptura do circuito subconsciente/consciência. O ponto de partida da meditação yóguica é a "concentração num único objecto" (ekâgratâ), o qual pode ser um objecto físico, um pensamento ou Deus. Este exercício ekâgratâ procura controlar as duas fontes geradoras da fluidez mental, a actividade sensorial e a actividade do subconsciente, através da execução de exercícios espirituais e de práticas psico-fisiológicas (anga). Os anga constituem etapas do itinerário ascético e espiritual que visa a libertação final e compreendem (1) as obrigações (yama), (2) as restrições (niyama), (3) as posturas do corpo (âsana), (4) o controle da respiração (prânâyâma), (5) a emancipação da actividade sensorial em relação à influência dos objectos exteriores (pratyâhâra), (6) a concentração (dhâranâ), (7) a contemplação yóguica (dhyâna) e (8) o entase (samâdhi). Embora sejam necessárias como práticas ascéticas preliminares, as obrigações ("não matar", "não mentir", "não roubar", "abstinência sexual" e "não ser avarento") e as restrições (o asseio, a serenidade, a ascese, o estudo da metafísica yoga e o esforço para fazer de Deus o motivo de todas as suas acções) não proporcionam um estado yóguico: proporcionam apenas um estado "purificado", superior ao dos homens profanos. A técnica Yoga começa com a prática da âsana: a postura yóguica definida como "estável e agradável". O yogui procura manter o corpo sem esforço na mesma posição. A âsana possibilita abolir as modalidades específicas da existência humana e, ao nível corporal, é uma concentração num só ponto (ekâgratâ), o corpo concentrado numa só posição, de modo a abolir a mobilidade e a disponibilidade do corpo. Se a âsana recusa o movimento, reduzindo as posições corporais possíveis a uma só postura, imóvel e hierática, o prânâyâma ou disciplina da respiração é a recusa a respirar como um homem comum. A arritmia e a variação da respiração comum produzem fluidez psíquica e, portanto, instabilidade e dispersão da atenção. O yogui procura suprimir o esforço respiratório, tornando a respiração rítmica e "automática", de modo a poder esquecê-la e a "penetrar" certos estados de consciência, nomeadamente os que caracterizam o sono, geralmente inacessíveis no estado de vigília. Através do prânâyama que lhe permite prolongar cada vez mais a expiração e a inspiração, bem como conservar o ar, o yogui passa sem descontinuidade da consciência do estado da vigília para as outras modalidades de consciência reconhecidas pela "psicologia indiana": a consciência diurna, a consciência do sono com sonhos, a consciência do sono sem sonhos e a consciência "cataléptica" (turîya), cada uma das quais está relacionada com um ritmo respiratório específico, o qual é mais lento no homem adormecido do que no homem acordado. A âsana, o prânâyâma e a ekâgratâ suspendem a condição humana durante o tempo que o exercício leva para ser realizado: "Imóvel, ritmando a sua respiração, fixando o olhar e a atenção num só ponto, o yogui está «concentrado», «unificado»" (Eliade) e pode verificar a qualidade da sua concentração pelo prâtyâhâra. O retraimento dos sentidos (ou a abstracção) mais não é do que a faculdade de libertar a actividade sensorial da influência dos objectos exteriores. Nesta última fase da ascese psico-fisiológica em que os sentidos, em vez de se dirigirem para os objectos, "permanecem em si mesmos", o yogui já não será distraído ou perturbado pela actividade sensorial e pelas faculdades psico-mentais e, por conseguinte, pode praticar a concentração (dhâranâ) e a meditação. Patañjali define a dhyâna ou meditação yóguica como "uma corrente de pensamento unificado" ou, como comenta Vyâsa, "um continuum do esforço mental para assimilar o objecto da meditação, livre de qualquer outro esforço por assimilar outros objectos". A meditação yóguica distingue-se completamente da meditação profana, pelo facto de permitir "penetrar" os objectos e assimilá-los magicamente. O Deus (Isvara) da filosofia Yoga não é um criador, objecto de devoção ou de fé, mas o arquétipo do iogui, cuja essência "sempre livre" pode apressar a tarefa da libertação, colaborando com o eu que quer libertar-se das redes ilusórias da existência através do Yoga. O resultado final e o coroamento destes esforços e exercícios espirituais do asceta é o samâdhi ou, na tradução de Mircea Eliade, a enstase yóguica: o estado contemplativo em que o pensamento apreende imediatamente a forma do objecto, sem o auxílio das categorias e da imaginação. Isto significa que o objecto já não é apreendido como fenómeno, mas "como se estivesse vazio de si mesmo": o objecto revela-se "em si mesmo" (svarûpa), no que tem de essencial e "como se estivesse vazio de si mesmo". Deste modo, o conhecimento do objecto e o objecto do conhecimento coincidem. Contudo, o samâdhi é mais do que conhecimento, na medida em que é fundamentalmente um estado ou uma modalidade enstática ióguica que torna possível a auto-revelação do eu. Existem duas «modalidades» de enstase: a diferenciada, "com apoio" (samprajñâta samâdhi), e a indiferenciada (asamprajñâta). A enstase diferenciada é obtida através do fixar do pensamento num ponto do espaço ou numa ideia e constitui um meio de libertação, já que torna possível a compreensão da verdade e põe termo ao sofrimento. A enstase indiferenciada é obtida fora de qualquer relação, sendo simplesmente uma plena compreensão do ser, que, além de destruir as impressões (samskâra) de todas as funções mentais antecedentes, consegue deter as forças kármicas desencadeadas pela actividade passada do yogui. Dado compreender diversas etapas, a enstase diferenciada pode ser substancialmente melhorada e aperfeiçoada graças a certo conhecimento. No samâdhi, a ruptura de nível, isto é, a passagem do conhecer ao ser, permite ao yogui adquirir os "poderes milagrosos", quer em relação aos objectos experimentados, quer em relação às suas existências anteriores, porque tudo o que é meditado é assimilado e possuído. Porém, se quiser alcançar a liberdade suprema ou absoluta, o yogui deve renunciar a estes "poderes extraordinários" e às tentações divinas que lhe permitem obter o domínio dos elementos e participar da condição divina. A passagem do samprajñâta para o asamprajñâta samâdhi é obtida espontaneamente através da iluminação ou sabedoria (prajñâ) quando o yogui realiza o "isolamento absoluto" (kâivalya), isto é, a libertação do purusa do império da prakrti. Esta maneira de ser espírito refere-se à ausência total de objectos na consciência: a consciência não está esvaziada de todo o conteúdo, mas saturada por uma intuição directa e total do ser. A cessação definitiva de toda a experiência psico-mental (nirodha) constitui, segundo Madhava, o suporte de uma condição particular do espírito: a enstase da vacuidade total, o estado incondicionado que já não é uma experiência, mas uma revelação. Depois de ter cumprido a sua missão, o intelecto (buddhi) retira-se, destacando-se do espírito, e reintegra-se na prakrti. O espírito liberta-se e o yogui é um "liberto em vida" (jîvan-mukta) que vive num eterno presente, "no nunc stans pelo qual Boécio definia a eternidade" (Eliade), para além do domínio do tempo. Porém, como observou correctamente Mircea Eliade, esta situação do ser "liberto em vida" é uma situação paradoxal: primeiro, porque está em vida e, no entanto, encontra-se já liberto; segundo, porque tem um corpo e, no entanto, conhece-se a si mesmo, sendo por isso um purusa (espírito); e terceiro, porque vive na duração e, ao mesmo tempo, participa da imortalidade. O samâdhi é um estado/conhecimento paradoxal, porque esvazia e, ao mesmo tempo, enche o ser e o pensamento, transcendendo os contrários (coincidência dos contrários) e reintegrando as diferentes modalidades do real na não-dualidade primordial, a plenitude não diferenciada anterior à bipartição do real em objecto/sujeito, enriquecida pelo conhecimento da unidade e da beatitude, isto é, pelas dimensões da liberdade e da trans-consciência. A dimensão espiritual da liberdade é inserida nos modos cegos e tristemente condicionados do cosmos e da vida. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa
O universo mais não é do que a evolução de uma etapa inicial da natureza (ahamkâra), aquela em que pela primeira vez da massa homogénea e energética surge a consciência da individualidade, levando-a, através de um duplo processo de desenvolvimento e de criação, a criar um duplo mundo, o interior e o exterior, ligados entre si por correspondências electivas. Isto significa que os fenómenos objectivos e os fenómenos psico-fisiológicos têm uma matriz comum: a substância primordial, informe e eternamente imóvel. O que os separa é a fórmula dos gunas: o sattva predomina nos fenómenos psico-mentais, o rajas, nos fenómenos psico-fisiológicos, e o tamas, nos fenómenos do mundo material. Toda a experiência psíquica é vista pelo Sâmkhya-Yoga como um simples processo "material". A simpatia orgânica entre o homem e o cosmos é garantida pelos gunas que impregnam todo o universo. A criação de formas infinitas, cada vez mais compostas e variadas, exige uma justificação e um sentido exteriores ao próprio universo. Este sentido revela-se no carácter teleológico da criação: a sua missão é servir o espírito e, fora dessa missão, o cosmos carece de sentido. Isto significa que tudo na natureza tem um "superintendente", que não é a actividade mental e os seus estados de consciência, mas o próprio espírito. Dinamizada pelo instinto teleológico, a prakrti está inteiramente voltada para a libertação do purusa: a criação existe em proveito do espírito. Embora não tenha explicado a razão e a origem da estranha associação entre o espírito e os estados de consciência, a filosofia indiana explica a natureza da sua associação: a inteligência (buddhi) na sua forma de pura luminosidade tem a qualidade específica de reflectir o espírito, sem alterar o ego ou fazê-lo perder as suas modalidades ontológicas. Técnicas de Ascese e Métodos de Meditação. «O Yoga inicia-se onde acaba o Sâmkhya» (Mircea Eliade). Segundo Patañjali, o conhecimento metafísico não conduz o homem à libertação: apenas prepara o terreno para a conquista da liberdade que deverá ser obtida mediante uma técnica ascética e um método de meditação. Para Patañjali, o Yoga é "a supressão dos estados de consciência" que fazem parte de três categorias. Estas categorias correspondem a três possibilidades de experiência: 1) os erros e as ilusões, 2) a totalidade das experiências psicológicas normais, e 3) as experiências para-psicológicas desencadeadas pela técnica do Yoga e acessíveis apenas aos iniciados. O objectivo do Yoga clássico é abolir as duas primeiras categorias de experiências e substituí-las por uma experiência enstática (samâdhi), supra-sensorial e extra-racional. Isto significa que o Yoga tem como tarefa a destruição dos estados de consciência através do seu "conhecimento experimental": os turbilhões de consciência (cittavrtti) só podem ser controlados e destruídos através da sua experimentação. A experiência garante o acesso pleno à liberdade e à condição paradoxal do "liberto em vida". A eliminação da ignorância não é suficiente para destruir ou eliminar os estados de consciência, porque existem no subconsciente imensas reservas de latências (vâsanâ) prontas a emergir. A sua destruição exige a ruptura do circuito subconsciente/consciência. O ponto de partida da meditação yóguica é a "concentração num único objecto" (ekâgratâ), o qual pode ser um objecto físico, um pensamento ou Deus. Este exercício ekâgratâ procura controlar as duas fontes geradoras da fluidez mental, a actividade sensorial e a actividade do subconsciente, através da execução de exercícios espirituais e de práticas psico-fisiológicas (anga). Os anga constituem etapas do itinerário ascético e espiritual que visa a libertação final e compreendem (1) as obrigações (yama), (2) as restrições (niyama), (3) as posturas do corpo (âsana), (4) o controle da respiração (prânâyâma), (5) a emancipação da actividade sensorial em relação à influência dos objectos exteriores (pratyâhâra), (6) a concentração (dhâranâ), (7) a contemplação yóguica (dhyâna) e (8) o entase (samâdhi). Embora sejam necessárias como práticas ascéticas preliminares, as obrigações ("não matar", "não mentir", "não roubar", "abstinência sexual" e "não ser avarento") e as restrições (o asseio, a serenidade, a ascese, o estudo da metafísica yoga e o esforço para fazer de Deus o motivo de todas as suas acções) não proporcionam um estado yóguico: proporcionam apenas um estado "purificado", superior ao dos homens profanos. A técnica Yoga começa com a prática da âsana: a postura yóguica definida como "estável e agradável". O yogui procura manter o corpo sem esforço na mesma posição. A âsana possibilita abolir as modalidades específicas da existência humana e, ao nível corporal, é uma concentração num só ponto (ekâgratâ), o corpo concentrado numa só posição, de modo a abolir a mobilidade e a disponibilidade do corpo. Se a âsana recusa o movimento, reduzindo as posições corporais possíveis a uma só postura, imóvel e hierática, o prânâyâma ou disciplina da respiração é a recusa a respirar como um homem comum. A arritmia e a variação da respiração comum produzem fluidez psíquica e, portanto, instabilidade e dispersão da atenção. O yogui procura suprimir o esforço respiratório, tornando a respiração rítmica e "automática", de modo a poder esquecê-la e a "penetrar" certos estados de consciência, nomeadamente os que caracterizam o sono, geralmente inacessíveis no estado de vigília. Através do prânâyama que lhe permite prolongar cada vez mais a expiração e a inspiração, bem como conservar o ar, o yogui passa sem descontinuidade da consciência do estado da vigília para as outras modalidades de consciência reconhecidas pela "psicologia indiana": a consciência diurna, a consciência do sono com sonhos, a consciência do sono sem sonhos e a consciência "cataléptica" (turîya), cada uma das quais está relacionada com um ritmo respiratório específico, o qual é mais lento no homem adormecido do que no homem acordado. A âsana, o prânâyâma e a ekâgratâ suspendem a condição humana durante o tempo que o exercício leva para ser realizado: "Imóvel, ritmando a sua respiração, fixando o olhar e a atenção num só ponto, o yogui está «concentrado», «unificado»" (Eliade) e pode verificar a qualidade da sua concentração pelo prâtyâhâra. O retraimento dos sentidos (ou a abstracção) mais não é do que a faculdade de libertar a actividade sensorial da influência dos objectos exteriores. Nesta última fase da ascese psico-fisiológica em que os sentidos, em vez de se dirigirem para os objectos, "permanecem em si mesmos", o yogui já não será distraído ou perturbado pela actividade sensorial e pelas faculdades psico-mentais e, por conseguinte, pode praticar a concentração (dhâranâ) e a meditação. Patañjali define a dhyâna ou meditação yóguica como "uma corrente de pensamento unificado" ou, como comenta Vyâsa, "um continuum do esforço mental para assimilar o objecto da meditação, livre de qualquer outro esforço por assimilar outros objectos". A meditação yóguica distingue-se completamente da meditação profana, pelo facto de permitir "penetrar" os objectos e assimilá-los magicamente. O Deus (Isvara) da filosofia Yoga não é um criador, objecto de devoção ou de fé, mas o arquétipo do iogui, cuja essência "sempre livre" pode apressar a tarefa da libertação, colaborando com o eu que quer libertar-se das redes ilusórias da existência através do Yoga. O resultado final e o coroamento destes esforços e exercícios espirituais do asceta é o samâdhi ou, na tradução de Mircea Eliade, a enstase yóguica: o estado contemplativo em que o pensamento apreende imediatamente a forma do objecto, sem o auxílio das categorias e da imaginação. Isto significa que o objecto já não é apreendido como fenómeno, mas "como se estivesse vazio de si mesmo": o objecto revela-se "em si mesmo" (svarûpa), no que tem de essencial e "como se estivesse vazio de si mesmo". Deste modo, o conhecimento do objecto e o objecto do conhecimento coincidem. Contudo, o samâdhi é mais do que conhecimento, na medida em que é fundamentalmente um estado ou uma modalidade enstática ióguica que torna possível a auto-revelação do eu. Existem duas «modalidades» de enstase: a diferenciada, "com apoio" (samprajñâta samâdhi), e a indiferenciada (asamprajñâta). A enstase diferenciada é obtida através do fixar do pensamento num ponto do espaço ou numa ideia e constitui um meio de libertação, já que torna possível a compreensão da verdade e põe termo ao sofrimento. A enstase indiferenciada é obtida fora de qualquer relação, sendo simplesmente uma plena compreensão do ser, que, além de destruir as impressões (samskâra) de todas as funções mentais antecedentes, consegue deter as forças kármicas desencadeadas pela actividade passada do yogui. Dado compreender diversas etapas, a enstase diferenciada pode ser substancialmente melhorada e aperfeiçoada graças a certo conhecimento. No samâdhi, a ruptura de nível, isto é, a passagem do conhecer ao ser, permite ao yogui adquirir os "poderes milagrosos", quer em relação aos objectos experimentados, quer em relação às suas existências anteriores, porque tudo o que é meditado é assimilado e possuído. Porém, se quiser alcançar a liberdade suprema ou absoluta, o yogui deve renunciar a estes "poderes extraordinários" e às tentações divinas que lhe permitem obter o domínio dos elementos e participar da condição divina. A passagem do samprajñâta para o asamprajñâta samâdhi é obtida espontaneamente através da iluminação ou sabedoria (prajñâ) quando o yogui realiza o "isolamento absoluto" (kâivalya), isto é, a libertação do purusa do império da prakrti. Esta maneira de ser espírito refere-se à ausência total de objectos na consciência: a consciência não está esvaziada de todo o conteúdo, mas saturada por uma intuição directa e total do ser. A cessação definitiva de toda a experiência psico-mental (nirodha) constitui, segundo Madhava, o suporte de uma condição particular do espírito: a enstase da vacuidade total, o estado incondicionado que já não é uma experiência, mas uma revelação. Depois de ter cumprido a sua missão, o intelecto (buddhi) retira-se, destacando-se do espírito, e reintegra-se na prakrti. O espírito liberta-se e o yogui é um "liberto em vida" (jîvan-mukta) que vive num eterno presente, "no nunc stans pelo qual Boécio definia a eternidade" (Eliade), para além do domínio do tempo. Porém, como observou correctamente Mircea Eliade, esta situação do ser "liberto em vida" é uma situação paradoxal: primeiro, porque está em vida e, no entanto, encontra-se já liberto; segundo, porque tem um corpo e, no entanto, conhece-se a si mesmo, sendo por isso um purusa (espírito); e terceiro, porque vive na duração e, ao mesmo tempo, participa da imortalidade. O samâdhi é um estado/conhecimento paradoxal, porque esvazia e, ao mesmo tempo, enche o ser e o pensamento, transcendendo os contrários (coincidência dos contrários) e reintegrando as diferentes modalidades do real na não-dualidade primordial, a plenitude não diferenciada anterior à bipartição do real em objecto/sujeito, enriquecida pelo conhecimento da unidade e da beatitude, isto é, pelas dimensões da liberdade e da trans-consciência. A dimensão espiritual da liberdade é inserida nos modos cegos e tristemente condicionados do cosmos e da vida. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa
17 comentários:
Se na meditação a ignorância metafísica é vencida sem a inteligência, será que é preciso fé? Ou bastará a intuição? É na intuição que assenta o nosso sentido de compaixão perante a fenomenologia do sofrimento, mesmo que seja de uma mosca.
Tudo isto são ferramentas psíquicas para traçarmos o nosso caminho no mundo. As meditações oriundas da Índia são para todos os efeitos equivalentes pragmatistas à moda de William James. Mas se os místicos pudessem conhecer qualquer coisa da realidade quando experimentam conhecimento não mediado, então o pragmatismo estaria absolutamente errado. É difícil encontrar aqui qualquer ordem causal. Mesmo aqueles que acreditam que a mente é inteiramente dependente de mecanismos no cérebro, terão dificuldade em encontrá-la.
O mestre convence por algo de espiritualmente relevante que consegue através de uma prática infalível?
Oi Fernando Dias
Este post está a exigir mais tempo do que aquele que lhe queria dispensar, porque me obrigou a revisitar Eliade e outros autores da filosofia religiosa.
Curiosamente, a própria doutrina yoga pode ser confrontada com os seus correlatos neurais: o espírito não se encontra na mente ou no cérebro. E a neurociência espiritual devia estudar melhor aquilo que procura clarificar, tendo mais cuidado com o recrutamento dos voluntários.
Impressionante é a conexão que podemos estabelecer entre esta doutrina e a própria filosofia. Porém, a doutrina yoga é paradoxal: o seu desperto continua prisioneiro da sociedade. Bem, mas aqui já entrava a teoria crítica e esse não é o meu objectivo nesta série de posts.
Com esta série de posts pretendo alertar para os estudos da neurociência espiritual e mostrar que o seu desenho experimental pode ser alterado, de modo a facilitar a interpretação dos resultados. Há o problema de medir estados ou declarações espirituais, mas penso que pode ser facilmente contornado.
Coloca questões que exigem novas incursões na filosofia indiana e, a este respeito, estou a ver um novo acesso à lógica indiana que está associada à espiritualidade hindu. Trata-se de um sistema metafísica deveras surpreendente e muito sedutor: merece ser pensado.
Oi Francisco,
o yôguin não quer tornar a respiração automática, precisamente o contrário, os exercícios de pránáyáma servem para nos concentrarmos na respiração e controlarmos-lhe o ritmo, e obter os efeitos que quisermos: expandir ou controlar a energia (prana), ou como exercício preparatório para a meditação. De qualquer forma, as técnicas variam em quantidade e modo consoante os tipos de yôga, e há 108 tipos reconhecidos, senão me engano.
Os yôguins são discípulos do deus-bailarino Shiva! :)
Oi Else
Existem muitos tipos de yoga, mas preferi começar pelo tipo clássico. Quando entrar na interpretação neuronal vou reduzir a meditação a duas formas básicas. Bem, existe muito yoga que é degenerado e comercial, do tipo combater o stress mas sem espiritualidade. Aliás, os animais metabolicamente reduzidos dependem quase exclusivamente do tronco encefálico com algumas conexões ao sistema límbico: perderam o espírito e estão mergulhados na ignorância pegajosa do metabolismo fecal. :)
Sim, isso ou de forma mais objectiva: a voracidade e espectacularidade do capitalismo que tudo deforma e torna veículo de lucro e palhaçada.
Quando falava de tipos de yôga, naturalmente, terá que ver com a filosofia e ética subjacente aos mesmos.
Não tenho informação sobre todas essas "filosofias" subjacentes, mas ainda não decidi como vou introduzir a meditação tibetana.
Sim, os corruptos do sistema capitalista deviam ser disciplinados através das obrigações que violam constantemente, porque roubam e mentem, e das restrições, mas, em vez de yoga, devia ser-lhes servida a guilhotina. Abaixo o capitalismo sem espírito! :)
Sim, o yôga é uma técnica que pode ser suportada por várias filosofias/éticas combinadas, por ex: tantra-samkhya, tantra-vêdanta, brahmacharya-vêdanta, etc. etc.
Há algumas ceitas perigosas que endoutrinam de forma perversa e exploram os praticantes. Como por exemplo essa famosa "universidade" de yôga brasileira que tb existe aí no Porto, chamada "De Rose"... enfim...
*seita
Sim, mas essa universidade é ... (não digo a palavra). :)
Seja o que for, deve-se alertar as pessoas.
Eu pratico tantra-samkhya, mas não de linha branca, como tinha dito abaixo, pq a minha purificação corporal é-me dolorosa, e tenho de consumir alguma carne, álcool e etc. Mas não sei como se diz "linha cinzenta" em sânscrito... ahah :)
Bom, vou "meditar" para a minha cama! ;)
Durma bem Elsinha e sonhos azuis ou rosa, como preferir! Estive a ver policiais! Adoro séries policiais!
Bem, vejo que sabe muito sobre yoga e talvez pudesse fazer um post sobre a técnica yoga que pratica. Apesar de ter ironizado com certas formas ou usos comerciais do yoga, não tenho absolutamente nada contra, até porque sou seduzido pelas filosofias subjacentes. Quanto à moral no yoga que estou a analisar, não ocupa grande lugar. Quase diria que não há num tal universo uma moral.
Faria com muito gosto esse post que me pede, e partilhar assim o meu escasso conhecimento sobre o assunto. Mas, confesso que há anos que não pego nesses livros que, aliás, estão já confinados a um caixote algures na garagem. Tudo aquilo que ainda me lembro, conceitos, termos e etc., é porque, como lhe disse, estudei bastante sobre o assunto entre os meus 16 e 18 anos, influências do meu irmão. E apesar da minha memória me trair tantas e tantas vezes - efeitos da falhada purificação corporal - muitas coisas me ficaram e, entretanto, encontrei um professor há 3 anos de quem gosto muito e que me fez reiniciar a prática com prazer, mas já não com a mesma paixão que sentimos na rajada da adolescência. :)
Por tudo isto, terei de declinar o desafio, não sem com algum pesar, porque gosto de agradar ao Francisco. :))
Bom dia alegria! :)
Ah, mas sobre a moral, há claramente uma moral ou mais precisamente uma ética: é assim que deve ser definido o tantrismo, por exemplo. Não é uma técnica para atingir o hiperorgasmo como o vulgo pensa, mas é uma forma de vida, na linha sensualista, aproximadamente epicurista.
Bem, o post ficou longo, mas já está quase pronto. Mesmo que não acrescente mais nada, ele já fala por si mesmo. Enfim, estou cansado e ansioso, porque quero passar ao próximo post. :)
Recebi mais de 100 estudos de neurociência espiritual, mas já não vou processar tudo. Vou ver se dedico um post às relações da religião com a saúde. E agora vou ler/estudar... :(
Bom fim-de-semana. Regresso na próxima semana. :)
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