Porto: Ponte D. Luís I |
«É-nos impossível pensar com clareza acerca das crises da cultura ocidental, acerca das origens e formas dos movimentos totalitários na Europa Central e na repetição da guerra à escala do mundo, sem termos bem presente no espírito que a Europa, após 1918, se achava ferida nos seus centros vitais. Reservas decisivas de inteligência, de têmpera nervosa, de talento político, tinham sido aniquiladas. A ideia satírica de Brecht e de Georges Grosz, segundo a qual tinham sido assassinadas as crianças que não chegaram a nascer, tem um sentido biológico concreto. Perdeu-se todo um conjunto de potencialidades físicas e mentais, de variantes e novas formas híbridas, excessivamente rico para o podermos avaliar, em termos da preservação e da evolução posterior da humanidade ocidental e das suas instituições. Já numa acepção biológica, é verdade que estamos perante uma cultura diminuída ou uma "pós-cultura"». (George Steiner)
Trata-se de um pensamento profundo, não na pena de Steiner que o usa para sobre-humanizar os judeus, mas na pena de Georg Trakl. Steiner pensa-o no quadro da extensão e das ramificações do elemento genético na história social, deixando adivinhar o esboço de uma genética histórica. Porém, aquilo que ele deveras lamenta é o facto dos campos de extermínio terem assassinado as crianças judias que não chegaram a nascer: as reservas de inteligência de que fala dizem respeito às crianças que não chegaram a nascer, porque os seus pais foram eliminados nos campos de extermínio. Assim, à luz deste elemento genético, manipulado para exaltar a suposta superioridade mental dos judeus, o sentido biológico do holocausto implica a perda de potencialidades, em termos da evolução posterior da humanidade ocidental, e a eliminação de uma «parte significativa do melhor futuro da Europa». Devido a este sectarismo judaico, aquilo que é verdade na poesia de Georg Trakl torna-se falso na prosa de Steiner: a cultura diminuída mais não é do que a cultura privada dos seus elementos judeus. Steiner apropria-se, sem pudor, da ordem da cultura clássica, como se fosse uma criação judaica, para responsabilizar e culpabilizar os europeus não-judeus pela degradação da cultura ocidental. O elogio que Steiner faz da cultura americana é puro veneno: os judeus que fugiram da Europa foram para os USA, onde se apropriaram das universidades. Elogiar a cultura americana é, pois, elogiar a inteligência dos judeus. Mas, afinal, onde está a superioridade da cultura americana de massas? A cultura de massas é a figura viva da cultura diminuída, da cultura do decibel, cuja emergência implica a morte da cultura clássica. O elemento judeu aparece aqui associado ao suicídio da cultura ocidental: os Estados Unidos da América são hoje o coveiro da civilização ocidental. Curiosamente, à luz dos critérios estipulados por Steiner para avaliar a perda de potencialidades, em virtude do assassinato dos não-nascidos, somos forçados a concluir que a Europa não perdeu nada com o extermínio dos judeus. Porém, independentemente destas considerações racistas sempre presentes na sua obra, Steiner esquece uma verdade mais essencial, de certo modo implícita na articulação entre o tempo e a morte ou mesmo entre a linguagem e o silêncio: a morte de uns dá espaço de vida aos outros. A morte é fundamental para haver renovação das reservas de inteligência. Hoje, neste nosso tempo indigente e sombrio, o envelhecimento populacional europeu mostra até à exaustão que uma civilização que adia a morte, prolongando irracionalmente a vida, não tem futuro: a gerontocracia instalada na Europa procede como se os seus membros fossem os últimos europeus. Mas muito antes da invenção dos campos de extermínio e da gerontocracia europeia, os portugueses já tinham descoberto um procedimento de liquidar os não-nascidos e os próprios nascidos. Com efeito, em Portugal, reina o princípio de que quem chega primeiro domina tudo, vedando o acesso aos outros que, para sobreviver, são forçados a emigrar. As classes dirigentes portuguesas funcionam como uma monarquia hereditária: apropriam-se fraudulentamente de todos os recursos nacionais, condenando os outros à eterna escassez. O atraso estrutural de Portugal deve-se a este princípio da corrupção malvada: impedir a renovação das reservas de inteligência através do bloqueio da mobilidade social. Aqueles que chegam primeiro agarram-se aos postos de poder e, tal como os cães que abocanham furiosamente um osso, mostram os dentes a quem se aproxime deles. A imbecilidade das elites portuguesas é de tal modo evidente que, para conservar a sua posição de privilégio de mentira, assassinam em vida todos aqueles que lhes lembram a sua mediocridade constitucional. Sem mobilidade, as instituições portuguesas não se renovam e não se modernizam, e, por isso, em vez de libertar o futuro, bloqueiam-no. A ditadura da mediocridade pode ter efeitos mais letais do que os campos de extermínio: a morte em vida é talvez mais cruel do que a morte. Neste sentido, a história de Portugal pode ser definida como um holocausto permanente: o extermínio planeado das reservas de inteligência e, por consequência, da redução das possibilidades futuras. Não admira que, quando morre uma personalidade pública, os portugueses festejem a sua morte, mesmo que simulem um luto recreativo. A morte significa abertura ao futuro: a morte de uns é a vida de outros. E quando se procura contornar esta lei, o resultado é a estagnação. Como é evidente, não podemos avaliar a perda de pessoas que não chegaram a nascer, a não ser para condenar a geração maldita, em nome de uma realidade que ainda não é, como sucede na poesia de Georg Trakl. Steiner segue outra via: ontologiza a condição do judeu, partindo do pressuposto teológico de que a morte de um judeu implica um retrocesso civilizacional. Porém, a verdade é que a Europa não sofreu um retrocesso civilizacional depois da Segunda Guerra Mundial: a ontologia judaica é assim desmentida. O verdadeiro holocausto está a acontecer no nosso tempo: o elemento judeu do capitalismo (Sombart), tal como se desenvolveu nos países anglosaxónicos, ameaça mergulhar a humanidade no abismo. Ao não acreditar na benevolência do capitalismo, Steiner é forçado a reconhecer nele a presença do elemento judeu. Afinal, a obra de Steiner abre-nos inadvertidamente um horizonte não-diminuído: radicalizar todo o processo de secularização e banir todos os elementos do judaísmo-cristianismo que penetraram no seio da cultura ocidental. Ao abandonar a ideia de progresso Steiner baniu o judaísmo que permaneceu infiltrado - embora de uma forma secular - na cultura ocidental iluminista: o seu elogio do judaísmo converte-se finalmente no seu contrário, a condenação do próprio judaísmo. Negando o seu elemento judaico, a Europa pode recuperar a juventude da sua origem grega. Abdicamos alegremente do Paraíso, mas fazemos questão em reter o Inferno, o nosso escudo contra a barbárie!
J Francisco Saraiva de Sousa
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