Walter Benjamin |
«Pobreza de experiência: a expressão não significa que as pessoas sintam a nostalgia de uma nova experiência. Não, o que elas anseiam é libertar-se das experiências, anseiam por um mundo em que possam afirmar de forma tão pura e clara a sua pobreza, a exterior e também a interior, que daí nasça alguma coisa que se veja. E também não são sempre ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes é o contrário que se verifica: tiveram de "engolir" tudo isso, a "cultura" e "o Homem", e ficaram saturadas e cansadas. Ninguém se sentirá mais atingido pelas palavras de Scheerbart: "Vocês estão todos cansados - e afinal porquê? Porque não foram capazes de concentrar todas as vossas ideias num plano muito simples e muito grandioso". Ao cansaço segue-se o sono, e por isso não é raro vermos como o sonho compensa da tristeza e do desânimo dos dias, para demonstrar essa existência muito simples e muito grandiosa para a qual no estado de vigília nos faltaram as forças. Uma existência de Rato Mickey é um desses sonhos do homem de hoje. Uma existência cheia de milagres, que não se limitam a superar os prodígios da técnica, mas ainda se riem deles. Porque o que de mais estranho há nisso é o eles se produzirem todos sem maquinaria, improvisados, saindo do corpo do Rato Mickey, dos seus companheiros e dos seus perseguidores, das mais banais peças do mobiliário como das árvores, das nuvens ou dos lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto, fundiram-se aqui completamente. E diante dos olhos das pessoas cansadas das infinitas complicações da vida quotidiana, e para as quais a finalidade da vida se descortina apenas como ponto de fuga longínquo numa infindável perspectiva de meios, apresenta-se como redentora uma existência a cada momento auto-suficiente da forma mais simples e mais confortável, um modo de vida em que um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha e o fruto na árvore arredonda tão depressa como um balão insuflável. E agora é altura de recuar um passo e fazer o balanço.
«Ficámos pobres. Fomos desbaratando o património da humanidade, muitas vezes tivemos de o empenhar por um centésimo do seu valor, para receber em troca a insignificante moeda do "actual". À porta temos a crise económica, atrás dela uma sombra, a próxima guerra. "Preservar" é um verbo que se aplica hoje a um pequeno grupo de poderosos que, Deus sabe, não são mais humanos do que a maioria; geralmente, são mais bárbaros, mas não da espécie boa. Os outros, porém, têm de se arranjar, de maneira diferente e com muito pouco. Estão do lado daqueles que desde sempre fizeram do radicalmente novo a sua causa, com lucidez e capacidade de renúncia. Nas suas construções, nos seus quadros, nas suas narrativas, a humanidade prepara-se para, se necessário for, sobreviver à cultura. E o que é mais importante: faz isso a rir. Talvez esse riso soe aqui e ali a bárbaro. Seja. Desde que cada indivíduo de vez em quando ceda um pouco de humanidade àquelas massas que um dia lha devolverão com juros acrescidos.» (Walter Benjamin)
Theodor W. Adorno iludiu-nos a todos quando defendeu a tese de que Benjamin «escolheu permanecer completamente fora da tradição manifesta da filosofia». Uma distância quase infinita separa o pensamento filosófico de Benjamin da forma institucionalizada ou académica de fazer filosofia, é certo!, mas isto não significa que ele tenha abdicado da Filosofia: a expressão filosofia antifilosófica que constitui a corrente central da filosofia pós-hegeliana - tal como tem sido compreendida desde Martin Heidegger e Ludwig Wittgenstein! - não só é um oxímoro, como também não faz justiça aos grandes pensamentos filosóficos pós-hegelianos, a começar pelo pensamento de Karl Marx. A filosofia de Benjamin procura escapar aos parâmetros da filosofia institucionalizada, instalando-se não nas suas margens, como se pensa muitas vezes, mas num novo espaço em que a reflexão histórica e filosófica se associa à crítica do momento presente. A crítica de Benjamin é filosófica de lés a lés: o seu objectivo é fazer com que a filosofia abranja a totalidade da experiência, de modo a exprimir a experiência filosófica, a experiência da verdade. Ao tentar abarcar a totalidade da experiência à luz da experiência da verdade, Benjamin afasta-se da filosofia académica, e desde logo do neokantismo que dominava o meio académico alemão. O neokantismo tinha deixado de reivindicar a totalidade da tradição filosófica, refugiando-se numa teoria do conhecimento. Descontente com esta falta de ambição do neokantismo, se exceptuarmos a filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer, Benjamin reivindica a totalidade da tradição filosófica, começando a fazer filosofia a partir dos objectos da experiência cultural. A Origem do Drama Trágico Alemão é o berço da filosofia de Benjamin: «O objecto da crítica filosófica é o de demonstrar que a função da forma artística é a de transformar em conteúdos de verdade filosóficos os conceitos materiais históricos presentes em toda a obra (de arte) significativa. Esta transformação do conteúdo material em conteúdo de verdade faz do declínio da força de atracção original da obra, que enfraquece década após década, a base do renascimento no qual toda a beleza desaparece e a obra se afirma como ruína». E, logo no Prólogo Epistemológico-Crítico, Benjamin formula a sua teoria da rememoração: «Como a filosofia não pode pretender falar em tom de revelação, isso só pode acontecer por meio de uma rememoração que recupere antes de mais a percepção primordial. A anamnese platónica não andará longe desta forma de rememoração. A diferença é que aqui não se trata de uma presentificação de imagens por via intuitiva; pelo contrário, na contemplação filosófica a ideia enquanto palavra solta-se do recesso mais íntimo da realidade, e essa palavra reclama de novo os seus direitos de nomeação. Mas na origem desta atitude não está, em última análise, Platão, mas Adão, o pai dos homens no papel de pai da filosofia. O acto adâmico da nomeação está tão longe de ser jogo e arbitrariedade que nele se confirma o estado paradisíaco por excelência, aquele que ainda não tinha de lutar com o significado comunicativo das palavras». O interesse de Benjamin pela literatura constitui desde o início um meio para elucidar as suas inquietações filosóficas, jurando fidelidade à tradição da filosofia. A filosofia de Benjamin faz parte integrante da tradição filosófica do Ocidente, para a qual deu o seu contributo, transformando-a e levando-a a expandir-se e a aprofundar a sua concepção de si mesma. (A Transformação da Filosofia de Karl-Otto Apel constitui um empreendimento pálido quando confrontado com o de Benjamin!) A leitura da filosofia de Benjamin exige uma reinterpretação de toda a história da filosofia, distinta daquela que foi realizada por Heidegger. O tema das semelhanças e das diferenças entre Heidegger e Benjamin tão do agrado dos filósofos americanos radicais não pode eclipsar a superioridade da filosofia de Benjamin em relação à filosofia de Heidegger: Benjamin é o filósofo seminal do momento presente. Adeus Jürgen Habermas! Adeus Karl-Otto Apel! Adeus Albrecht Wellmer! Hi, Susan Buck-Morss!
A tese que estou a defender é muito simples: Não há um Benjamin crítico literário, um Benjamin modernista, um Benjamin marxista, um Benjamin judeu, um Benjamin cabalista, por detrás dos quais se esconde um Benjamin filósofo; há apenas um único Benjamin, o Benjamin Filósofo que foi judeu e marxista. Graças à difusão de um ensaio de Hannah Arendt sobre a figura-retrato-pensamento de Benjamin, os filósofos americanos radicais foram provavelmente os primeiros a descobrir o carácter radicalmente filosófico do seu pensamento, embora nem sempre o tenham compreendido da melhor forma. Benjamin procurou a forma consumada da totalidade da experiência primeiro nas obras de arte e depois na história como um todo redentor, tomado como a totalidade em relação à qual o vivido (das Erlebnis) pudesse ser experienciado como verdade. Mas convém não distanciar demasiado estes dois períodos: ambos os períodos estão ligados entre si pela ideia fulcral de destruição (Destruktion) como condição de possibilidade da experiência (Erfahrung) no sentido filosófico de uma experiência da verdade. No pensamento de Benjamin, destruição significa a destruição de uma forma falsa de experiência como condição produtiva para a construção de uma nova relação do homem com o objecto. Assim, por exemplo, na Origem do Drama Trágico Alemão, a primeira grande obra de Benjamin, a alegoria destrói a totalidade ilusória do símbolo, arrancando-o do contexto e inserindo-o em novas constelações de significado construídas de modo transparente, e, na própria obra de Benjamin, a montagem destrói a continuidade da narrativa como condição para uma nova construção da história, na qual o tempo de agora (Jetztzeit) destrói a experiência da história como progresso, a continuidade da marcha triunfal dos vencedores, substituindo-a pelo par apocalíptico da catástrofe e da redenção. No ensaio Eduard Fuchs, coleccionador e historiador, Benjamin aborda o problema da história da cultura nestes termos: «Para o materialista histórico, a distância a partir da qual a história da cultura apresenta os seus conteúdos é ilusória e fundada numa falsa consciência. Por isso (Fuchs) a olha com reservas. Essas reservas seriam legitimadas por um simples olhar para o passado: o que ele aí descobre de arte e ciência tem uma proveniência que não pode deixar de o horrorizar. Tudo isso deve a sua existência não apenas ao esforço dos génios seus criadores, mas também, em maior ou menor grau, à escravidão anónima dos seus contemporâneos. Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie. Nenhuma história da cultura fez ainda justiça ao que de essencial há neste facto, e dificilmente pode esperar fazê-lo». E, mais adiante, clarifica: «Em resumo: a história da cultura apenas aparentemente representa um avanço do ponto de vista, e nem aparentemente um avanço da dialéctica. Porque lhe falta o momento destrutivo que assegura o pensamento dialéctico e a autenticidade da experiência do historiador dialéctico. Aumenta com certeza o peso dos tesouros que se acumulam sobre os ombros da humanidade. Mas não lhe dá forças para os sacudir, e assim ficar com eles na mão». Esta ideia de que o momento destrutivo assegura o pensamento dialéctico é claramente explicitada no fragmento O Carácter Destrutivo das Imagens de Pensamento: «O carácter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; apenas uma actividade: esvaziar. A sua necessidade de ar puro e espaço livre é maior do que qualquer ódio. (...) O carácter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cuja afecção fundamental é a de uma desconfiança insuperável na marcha das coisas, e a disposição para, a cada momento, tomar consciência de que as coisas podem correr mal. Por isso, o carácter destrutivo é a imagem viva da fiabilidade». Benjamin faz da temporalidade do presente o momento da destruição: o seu interesse pelo presente como palco da experiência histórica leva-o a articular a sua teoria da experiência com a sua filosofia da história. Desta articulação resulta a originalidade filosófica de Benjamin: uma filosofia do tempo histórico que enfrenta o carácter do presente, num movimento de ruptura com qualquer tipo de historicismo que faça do presente um desdobramento do progresso. Ora, nesta nova filosofia da história, o passado depende da acção do presente, como demonstra a Tese V sobre a Filosofia da História: «A verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento. "A verdade não nos foge": esta fórmula de Gottfried Keller assinala, na concepção própria do historicismo, precisamente o ponto em que essa concepção é destruída pelo materialismo histórico. Porque é irrecuperável toda a imagem do passado que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como presente intencionado nela». Dissociado da cronologia, o presente não pode ser definido como um mero ponto no tempo, porque, não sendo o nunc stans, ele resulta de um acto complexo de temporalização, sempre susceptível de ser contestada, como evidencia a Tese VI: «Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo "tal como foi". Significa apoderarmo-nos de uma recordação (Erinnerung) quando ela surge como um clarão num momento de perigo. Ao materialismo histórico interessa-lhe fixar uma imagem do passado tal como ela surge, inesperadamente, ao sujeito histórico no momento de perigo. O perigo ameaça tanto o corpo da tradição como aqueles que a recebem. Para ambos, esse perigo é um e apenas um: o de nos transformarmos em instrumentos das classes dominantes. Cada época deve tentar sempre arrancar a tradição da esfera do conformismo que se prepara para a dominar. Pois o Messias não vem apenas como redentor, mas como aquele que superará o Anticristo. Só terá o dom de atiçar no passado a centelha da esperança aquele historiador que tiver apreendido isto: nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E este inimigo nunca deixou de vencer». A tradição e o presente só podem ser constituídos quando se tenta arrancar a tradição da esfera do conformismo, de modo a construir o presente na destruição e reconstituição da tradição. Deste modo, através da execução da tarefa de repensar a temporalidade histórica à luz desta concepção do presente, definimos e captamos filosoficamente o presente, estabelecendo um vínculo estreito entre ele e a acção (praxis política): Quebrar o contínuo da história dos vencedores, derrotar os vencedores.
J Francisco Saraiva de Sousa
3 comentários:
Hmmmm... Estou feliz por ter conquistado a Europa do Norte, os USA e a Rússia! :)
Editei uma foto da Merkel em trajes menores: acho que o Sarkosy não a deixou satisfeita!
Belo texto, J. Francisco, um convite à leitura de Benjamim que me deixou com vontade de ler um pouco mais do fílósofo marxista , judeu, crítico...
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