Agustina Bessa Luís: Escritora Portuense |
«A extraordinária presença de António Inácio, a graça, que era nele uma espécie de investimento da ilusão, tornaram José Matildes no que ele era realmente: um homem só em busca de integração no grupo social. Subitamente produziu-se nele o curto-circuito estratégico, e foi buscar ao imaginário da economia política e da ciência a linguagem; e tecnocrata apareceu muito de um materialismo próprio em que a máquina social se move sem qualquer intervenção da ideologia moral, religiosa ou filosófica. O seu casamento com Rosamaria deu-se nesse tempo, em parte porque ela era o travesti do seu primo António Inácio, em parte porque toda a decisão de alcance económico começa por uma tomada de posição ao nível da vida privada. Amava Rosamaria tanto mais seriamente quanto ela registava o seu domínio de classe, isto é, supremacia da concepção masculina, visão técnica da procriação». (Agustina Bessa Luís)
Um confronto entre Mrs. Dalloway de Virginia Woolf e Os Meninos de Ouro de Agustina Bessa Luís revela a existência de um abismo entre as duas escritoras: Agustina Bessa Luís nunca perde a autoridade, isto é, a omnisciência, em relação às personagens dos seus romances, donde resulta que, na sua obra, a realidade social não é representada através dos pensamentos, impressões e outras experiências imediatas das diversas personagens, como sucede nos romances de Virginia Woolf, mas sim através da omnisciência e da concepção superior da autora. A epistemologia romanceada de Agustina Bessa Luís é profundamente social. Cada personagem tem a sua própria visão do mundo, mas o processo de representação da realidade social não resulta da justaposição das diversas visões do mundo das personagens. Não há, portanto, uma representação pluripessoal da realidade nos romances da escritora portuense: a autora impõe-lhes uma perspectiva superior que permite ao leitor compreender a realidade em que se movem as suas personagens. O realismo de Agustina Bessa Luís tem mais afinidades como a teoria marxista da sociedade do que com o realismo da filosofia de Cambridge: o solipsismo metodológico de Bloomsbury é algo estranho ao universo literário e filosófico de Agustina Bessa Luís. Os seus mundos literários não são construções de um mundo comum - o mundo público de Russell - a partir de perspectivas diferentes da realidade ou mesmo de mundos privados. Virginia Woolf enfrentou um mundo em transformação violenta que tanto produzia tentativas de interpretação sintética e objectiva como as derrubava rapidamente a um ritmo alucinante. Seria demasiado fácil explicar as diferenças entre as duas escritoras alegando os diversos atrasos estruturais de Portugal, aliás evidenciados pela contemporaneidade da escritora portuense. Mas esta não é a única explicação possível. Apesar de ter nascido fatalmente em Portugal, o ermo inóspito da Europa, a terra dos loucos, Agustina Bessa Luís não perdeu o contacto com o mundo exterior, o mundo desenvolvido que sofria essas transformações sociais profundas que demoravam a chegar a Portugal. O atraso estrutural de Portugal e a pobreza mental dos seus habitantes reforçaram a omnisciência de Agustina Bessa Luís, cuja "filosofia" rejeita a construção russelliana de um universo leibniziano hipotético: a realidade social não é, para Agustina Bessa Luís, um somatório de perspectivas das mónadas de Leibniz. Agustina Bessa Luís tem uma concepção sintética e objectiva da realidade social, que ousa articular politicamente com a perspectiva da salvação: «O que significa a salvação senão aquele ponto em que os homens desistem de oprimir outros homens, e se retiram com a sua limitada perfeição?» A escritora portuense detesta o carácter narcisista da sociedade portuguesa: a sua "crónica social" tritura as personalidades públicas portuguesas e a montanha de có-có que produzem desalmadamente. Os meninos de ouro portugueses são feitos de matéria fecal: o seu narcisismo traduz-se no abuso de poder e na síndrome de hostilidade contra os outros, sobretudo contra as mulheres. Agustina Bessa Luís descobriu a síndrome masculina de hostilidade associada ao narcisismo muito tempo antes dela ter sido definida pela psiquiatria. Mais: ela descobriu que os homens portugueses - feitos de matéria fecal - não prestam: a tecnocracia é pura violência. A matéria fecal diz-se de muitas maneiras. Ora, se os homens portugueses são feitos de matéria fecal, a sua diversidade psicológica que exprime a diversidade de matéria fecal tem como princípio denominador comum o travestismo: os homens portugueses feitos de matéria fecal são travestis que partilham uma mesma concepção do mundo, a "visão técnica da procriação". (Natália Correia dizia que os açorianos eram "mariquitas". Uma vez disse-lhe que, no fundo, os homens portugueses eram "mariquitas" e ela concordou, acrescentando que também as mulheres portuguesas eram "mariquitas". J. M. Bailey defendeu recentemente o carácter travesti dos homens latinos, concepção que partilho sem reservas.) Como é evidente, estou a forçar a concepção superior da autora chamada Agustina Bessa Luís, sem no entanto a violar: a escritora portuense ousou ser no seu universo literário aquilo que não foi na vida real, a trituradora das masculinidades travestis portuguesas, cujo abuso de poder reflecte um défice de masculinidade genuína. Todos os seres verdadeiramente inteligentes que nasceram em Portugal, o país onde os homens se comem uns aos outros, real ou ritualmente, odeiam Portugal. O ódio que nutrem por Portugal exprime-se numa espécie de ciência melancólica, a filosofia subjacente a todos os grandes pensamentos partilhados pelos exilados portugueses. Os Meninos de Ouro de Agustina Bessa Luís terminam com este pensamento filosófico: «As geresianas não são produto da insistência da relação com objectos e pessoas. São o tempo original em que a alma convive com a eternidade; o coração repousado no amor do seu destino aguarda e vê. O indivíduo escapa ao nosso entendimento, as grandes ideias não se unificam nem se movem em turbilhão; a identidade extinguiu-se porque as pessoas, como chamas, se confundem, para sempre esquecidas da noção de dois mundos, de duas realidades. Desde que se atingem as vertentes das geresianas, um ser humano dissolve-se num outro «como uma gota de orvalho cintilante» - diria a meu poeta, assim como disse que às vezes Deus dá o sinal de que passa pelas trevas distantes, e tudo se imobiliza, cóleras, segredos, vento que desce da serra, ecos das torrentes, palavras que descem como torrentes, tudo - e um amor imenso paira e reconcilia todas as coisas. Velha amiga que é a terra, ela não nos decepciona, e poderemos durante milénios chamar nobre à raça humana. Se uma lágrima descer sobre estas linhas como um fio de prata, é porque existe consolação até ao último homem que por último desaparecer; quando a Terra rolar à volta do Sol, com noites e manhãs, e só talvez o lírio geresiano olhe e pense no seu seio de cinzas» (Porto, 25 de Junho de 1982).
Infelizmente, ainda não posso realizar uma análise filosófica exaustiva da obra de Agustina Bessa Luís, a maior romancista da língua portuguesa de todos os tempos, e é provável que nunca venha a realizar esse estudo, até porque não há em Portugal leitores inteligentes. Em Portugal reina a insanidade mental. Qualquer tentativa de escapar à loucura reinante é em vão: as palavras não encontram eco em mentes adormecidas e entorpecidas pelas forças da loucura. A primeira grande fatalidade de um ser inteligente é ter nascido em Portugal, o túmulo em vida de todas as individualidades que anseiam pelo seu alargamento e pela sua expansão. Agustina Bessa Luís nasceu fatalmente em Portugal, mas esta primeira fatalidade não é da sua responsabilidade. Se pudéssemos escolher a nossa nacionalidade de nascença, não escolheríamos nascer portugueses. Ser português é um estigma que se carrega para toda a vida. É uma tortura mental lidar todos os dias com criaturas burras e invejosas: os portugueses são especialistas em terrorismo íntimo e na arte de roubar a vida aos outros. Quem lida com portugueses deve saber que está a lidar com malvados. A posição de privilégio que a autora toma em relação às suas personagens "demasiado portuguesas" mostra que Agustina Bessa Luís soube distanciar-se dos portugueses, sugerindo a retirada das personalidades narcisistas da cena política. No entanto, a omnisciência que conquistou no universo literário perdeu-a no universo real da vida quotidiana: Agustina Bessa Luís rodeou-se de pessoas erradas que a levaram a tomar más decisões políticas e existenciais. A sua ligação ao PSD foi fatal para a recepção alargada da sua obra literária. A vida pública de Agustina Bessa Luís é uma sucessão de erros fatais: o PSD é uma espécie de buraco negro que suga a luz de quem se aproxima dele. A Direita não tem cultura: o PSD, o grande amigo das práticas de corrupção, sugou toda a luz de Agustina Bessa Luís, afastou os leitores cultos da sua obra, distanciou a sua vida pública do seu universo literário e não promoveu a sua obra no mundo, de modo a ser lida e admirada por um auditório universal e a garantir a entrega do Prémio Nobel da Literatura à sua autora. (Os portugueses não servem para nada, nem para ler obras!) Todos sabemos como a Direita reaccionária e inculta portuguesa reagiu à entrega do Prémio Nobel a José Saramago: Rui Rio recusou dar o seu nome a uma rua da cidade do Porto e Cavaco Silva não compareceu ao seu funeral. A Direita portuguesa é o coveiro da cultura. "Direita" e "Cultura" são duas palavras que não casam entre si: onde há Direita não há cultura e onde há cultura não há Direita, o que equivale a dizer que toda a cultura superior é de Esquerda. Para resgatar a obra literária de Agustina Bessa Luís das grilhetas incultas do PSD, é preciso conhecer muito bem a sua biografia: alguma coisa a coloca desde cedo na proximidade de um campo social nefasto, do qual a sua obra se distancia de diversos modos, usando diversas técnicas narrativas. Mas, para todos os efeitos, Agustina Bessa Luís não teve na vida real a coragem que demonstrou ter no seu universo literário: ela foi na vida real escrava de um sistema, provavelmente o sistema da "concepção masculina", com o qual o seu universo literário rompe: «A vida de família corrompe muito da originalidade humana». (Quem escreve uma tal frase deve estar cansado da estupidez da família! O arrependimento de ter constituído família?) É a própria autora que aponta aqui para uma fatalidade familiar. Jean-Paul Sartre escreveu duas belas obras, uma sobre Flaubert e outra sobre Jean Genet, nas quais pensa todas essas mediações, incluindo a mediação familiar. Algo semelhante deve ser realizado em relação à vida e obra de Agustina Bessa Luís: as homenagens ritualizadas e formais que lhe são prestadas pelos bajuladores malvados não acrescentam à sua imensa obra as determinações do conhecimento, as únicas que podem garantir-lhe a imortalidade da fama. Sei que esta tarefa teórica ultrapassa o universo mental português e, por isso, resolvi escrever este texto para dar a conhecer ao mundo a obra de uma escritora portuense chamada Agustina Bessa Luís.
J Francisco Saraiva de Sousa
8 comentários:
Quando conheci Natália Correia era muito novinho: a sua morte precoce não nos permitiu desenvolver a leitura revolucionária dos Lusíadas, sobretudo do canto IX, tal como a esboçámos numa taberna de Lisboa.
Ela morreu em 1993. Nessa altura vivia em Lisboa.
Ah, fui sempre portista; acho mesmo que nasci portista. Isto para evitar responder a perguntas maldosas.
Agora já posso concluir o texto sobre a virginia woolf. :)
Farto-me de rir sozinho: o conceito de matéria fecal está de certo modo ligado à psicanálise, mas foi uma elaboração gira: em poucas palavras capto a essência dos portugueses. :)
Por vezes, sou diplomático a dizer as coisas: lá onde o fui eu apontei o caminho correcto. :)))
Ai, ai, e ai: ainda não decidi a quem dar o meu apoio para as presidenciais americanas. É muita papelada para ler...
Francisco Saraiva de Sousa, a sua visão da direita é tendenciosa e não se confirma, a prova de que a direita pode ser genial é precisamente a Agustina, ou o Almada Negreiros. É mentira que a cultura seja um apanágio da esquerda. É um cliché que cai nas críticas que faz aos portugueses, e com as quais concordo. Não pode falar da Direita como se soubesse o que ela é. A corrupção não é tendencialmente de direita, pelo contrário, se tivéssemos de estabelecer um padrão diríamos que há na esquerda uma inclinação natural para a corrupção (basta o Triunfo dos Porcos para lhe dar como exemplo e não citar exemplos próximos) e para perverter a realidade natural. Realidade natural que não pode escapar aos lúcidos.
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