Experiência Genética |
Nick Martin planeou uma carreira profissional na política, tendo iniciado uma licenciatura em Artes. Mas o seu interesse pela tensão existente entre as ideias políticas de igualdade perante a lei e a realidade biológica das diferenças individuais levou-o a iniciar o seu primeiro estudo de gémeos durante o seu período estudantil na Universidade de Adelaide (Austrália). Atraído pela análise genética do comportamento que se realizava em Birmingham, Nick Martin foi para Inglaterra para realizar a sua tese de doutoramento, onde trabalhou com Lindon Eaves e John Jinks. Martin e Jinks desenvolveram a análise genética da estrutura da covariância, em que se baseia em grande medida a análise genética multivariante. Os cálculos da potência dos estudos de gémeos revelaram que estes estudos deviam ser mais extensos que os realizados até aí. Martin regressou à Austrália para fundar o Registo Australiano de Gémeos, em torno do qual desenvolveu os seus estudos sobre genética da personalidade, alcoolismo e outros traços psiquiátricos, estando actualmente a realizar estudos de ligamento e associação para descobrir os genes implicados nos caracteres do comportamento humano.
Martin trocou a carreira política pela carreira de investigação científica no domínio da genética do comportamento. As massas anarquistas de "esquerda" suspeitam da genética: a ciência da hereditariedade é, para estas criaturas sem qualidades, uma ciência capitalista. Em 1969, foi publicada nos Estados Unidos da América a tradução inglesa do livro de Z. A. Medvedev - The Ascent and Fall of T. D. Lysenko. Deste maravilhoso livro retenho apenas dois parágrafos, um do próprio Lysenko e outro do seu discípulo Prezent. Sobre a competição entre membros de uma mesma espécie. Lysenko escreve em 1947: «A humanidade constitui uma só espécie biológica. Segundo os capitalistas, é da lei natural que os membros de uma espécie compitam entre si para obter os recursos necessários para sobreviver; os indivíduos mais bem adaptados, saem vitoriosos. O mesmo, dizem, ocorre com a espécie humana: os empresários vivem com luxo e os seus milhões de operários vivem na miséria, devido a que os empresários são mais inteligentes e capazes, dada a sua herança biológica». Prezent reforça a convicção de Lysenko: «O capitalismo, durante o seu período histórico florescente e no cume da sua cultura, produzia uma das criações supremas do pensamento biológico: o darwinismo, uma visão histórica do mundo orgânico. O capitalismo corrupto produziu, durante o período imperialista do seu desenvolvimento, um bastardo abortado da ciência biológica: a doutrina metafísica e anti-histórica da genética formal». Com o apoio de Estaline e mais tarde de Kruschov, Lysenko e Prezent - o teórico do lysenkysmo - apresentaram uma nova teoria da hereditariedade, rejeitando a teoria morgano-mendeliana como um produto capitalista que negava os princípios fundamentais do "materialismo dialéctico". Para eles, os genes não existiam: a hereditariedade era uma propriedade geral interna da matéria viva que, como tal, não necessita de um sistema genético separado, localizado nos cromossomas. Escusado será dizer que quando foram aplicadas às práticas agrícolas a teoria da hereditariedade de Lysenko (sic) e a sua pretensa descoberta do processo de vernalização - enfim, a biologia mitchurinista por oposição à biologia capitalista - produziram fracassos agrícolas desastrosos, levando a URSS a importar cereais do estrangeiro. O lysenkysmo não só criticou o darwinismo social, o que era e é justo, como também aboliu o ensino da genética mendeliana nas academias soviéticas, gerando um atraso estrutural da investigação biológica na URSS. Usar o lysenkysmo para condenar o materialismo dialéctico não faz sentido, bastando ler as obras de Marx e Engels para nos convencermos disso. No entanto, apesar das intuições geniais de Engels, a maior parte do marxistas seguiu a via das ciências sociais sem procurar clarificar a sua base natural. Os marxistas traíram a teoria da história de Marx. O medo da genética de Lysenko propagou-se a todos aqueles que lutam por uma igualdade nivelada por baixo, em nome da qual sacrificaram o desenvolvimento exaustivo do materialismo histórico. O resultado dessa luta fraudulenta salta à vista: os menos aptos ingressaram nas ciências sociais, enquanto os mais aptos optaram pelas ciências naturais. As ciências sociais abortaram sem ter conseguido aperfeiçoar o paradigma científico de Marx; as ciências naturais desenvolveram-se de tal modo que procuram realizar aquilo que não foi efectuado nas ciências sociais pelos menos aptos, cujo objectivo de vida é partilhar aquilo que é produzido pelos outros ou que deriva da sua actividade. A clivagem entre ciências sociais e ciências naturais é uma clivagem de competências: os menos aptos apoderaram-se do domínio das ciências sociais, provocando a sua estagnação. E são de tal modo destituídos de capacidades mentais que não se aperceberam de que a ideia de selecção não é estranha ao materialismo histórico. Vistas à luz do conhecimento de que dispomos hoje, as teorias de Darwin e de Marx não são teorias rivais; pelo contrário, elas são complementares, até porque ambas germinaram no século XIX no seio da sociedade inglesa. O que é a teoria da ideologia de Marx a não ser uma teoria da selecção social das ideias? A aproximação de Marx a Darwin permite concluir a teoria do materialismo histórico, ao mesmo tempo que prepara o terreno para a sua integração na teoria sintética da evolução. O marxismo soviético fracassou lá onde ele se distanciou do materialismo histórico: a queda da URSS não fez mossa na teoria da história de Marx.
Os meus últimos textos movem-se em terrenos movediços e perigosos. A tese que pretendo defender é a seguinte: a teoria sintética da evolução não está completa enquanto não integrar o materialismo histórico no seio do seu quadro teórico. Nem todos os sociobiólogos reagiram do mesmo modo ao estudo dos comportamentos humanos: os americanos mostram-se muito mais propensos a ver os seres humanos como organismos sociobiológicos do que os ingleses. Trivers (1976), Alexander (1975) e Wilson (1975) consideram que a selecção natural é responsável pela nossa formação, sendo necessário compreendê-la para conhecer as nossas identidades. Dawkins (1976) que nunca fez parte do círculo íntimo de Wilson está menos disposto a aplicar a sociobiologia aos seres humanos, os quais escaparam nos seus aspectos mais importantes às regras biológicas. Maynard Smith (1972) vai mais longe quando se dissocia completamente da sociobiologia humana, negando a sua relevância para o domínio do homem. Dawkins propôs a sua própria teoria da evolução cultural, na qual os memes - tipos de unidades intelectuais - substituem os genes. Uma ideia semelhante já tinha sido proposta por Jacques Monod sob a designação de teoria da selecção natural das ideias. O modelo da hominização esboçado por Engels permite explicar a emergência da cultura no seio do mundo natural, sem ceder ao idealismo. Quando falo da necessidade de integrar o materialismo histórico na nova síntese, refiro-me à articulação das duas formas de evolução, a biológica e a cultural. Os etólogos e os sociobiólogos perderam muito tempo a tentar produzir uma teoria da cultura quando na verdade ela já tinha sido produzida por Marx, em conformidade com a estratégia materialista da ciência. A teoria da cultura assume na obra de Marx a forma de uma teoria da história: a teoria da cultura é, portanto, teoria da história humana. Não se pode ser materialista no plano da biologia humana e idealista no plano da cultura humana. Este contra-senso que atravessa as obras de cientistas revolucionários deve-se ao facto do seu temor pelo comunismo os ter afastado da obra de Marx. Uma vez depurado deste elemento ideológico externo, o marxismo revela ser aquilo que sempre foi: um programa de investigação científica da história humana, fundado na ciência natural. Além disso, os cientistas revolucionários não podem negar a antiga visão tipológica do mundo, substituindo-a pelo esquema da evolução, com base na biologia das populações, e, ao mesmo tempo, conservar uma visão imobilista da história do homem. O conceito marxista de história como uma sucessão descontínua de formações sociais é o único conceito adequado à teoria sintética da evolução. Alguns destes cientistas recorrem à teoria das revoluções científicas de Thomas S. Kuhn para pensar a novidade revolucionária das suas teorias, sem no entanto compreenderem que essa teoria mais não é do que a aplicação do esquema marxista da história ao estudo do crescimento científico. De facto, o mundo nunca mais voltou a ser o que era depois de Marx. Como é evidente, esta integração do materialismo histórico na nova síntese não pode ser levada a cabo sem a participação da neurobiologia e da ecologia. É mais fácil começar pela segunda, reformulando a teoria marxista da reprodução social à luz da teoria da população, do que pela primeira, embora a genética do comportamento abra uma via nesse sentido, como veremos mais adiante. A síntese eco-marxista é um passo fundamental na estratégia de fusão do materialismo histórico e da teoria sintética da evolução. A dificuldade em relação à neurobiologia não reside na explicação neuronal dos comportamentos humanos: a integração de toda a super-estrutura ideológica e noológica implica o desenvolvimento prévio de uma biologia do espírito humano, em articulação com o paradigma da natureza humana. As neurociências têm proposto soluções para o problema mente/cérebro sem levar em conta um factor crucial de estruturação da vida mental: a sociedade. Embora nunca tenha abordado este assunto, pelo menos de modo directo e explícito, Marx abriu a via que permite clarificá-lo, desde os Manuscritos de 1844 até às suas últimas obras. Na Ideologia Alemã, podemos ler esta orientação teórico-metodológica: «E só agora, depois de já examinados quatro momentos, quatro aspectos das relações históricas originárias, nos apercebemos de que o homem também possui "consciência". (Variante: o homem tem "espírito" e esse "espírito" manifesta-se como consciência.) Mas não se trata de uma consciência que seja de antemão "pura". Desde sempre pesa sobre o "espírito" a maldição de estar "imbuído" de uma matéria que aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, sob a forma da linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência real, prática, que existe também para outros homens e que, portanto, existe igualmente só para mim, e, tal como a consciência, só surge com a necessidade, as exigências dos contactos com os outros homens. Onde existe uma relação, ela existe para mim. O animal "não se encontra em relação" com coisa alguma, não conhece de facto qualquer relação; para o animal, as relações com os outros não existem enquanto relações. A consciência é, pois, um produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens. A consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência; é simultaneamente a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, todo-poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramente animal e que os atemoriza tanto como aos animais; é, por conseguinte, uma consciência de natureza puramente animal (religião natural). Por outro lado, a consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos que o cercam marca para o homem a tomada de consciência de que vive efectivamente em sociedade. Este começo é tão animal como a própria vida social nesta fase; trata-se de uma simples consciência gregária e, neste aspecto, o homem distingue-se do carneiro pelo simples facto de a consciência substituir nele o instinto ou de o seu instinto ser um instinto consciente. Esta consciência gregária ou tribal desenvolve-se e aperfeiçoa-se posteriormente devido ao aumento da produtividade, das necessidades e da população, que constitui aqui o factor básico». (Marx, pelo menos na Ideologia Alemã, parece ser tentado a definir a "consciência" como uma espécie de interface entre o indivíduo e o meio natural e social. A "consciência" como interface pode ser um conceito produtivo.) Depois de ter tentado apresentar uma solução para o problema mente/cérebro, o naturalismo biológico, ao longo de mais de 300 páginas, John R. Searle conclui a sua viagem de redescoberta da mente afirmando que é necessário redescobrir o carácter social da mente. No entanto, quando noutra obra tenta realizar essa tarefa, esquece que a descoberta do carácter social da mente se deve a Marx, tendo sido desenvolvida e ampliada pelos estudos de L. S. Vygotsky, A. R. Luria e Mikhail Bakhtin, para já não falar de E. Fromm e de G. H. Mead. A recusa da teoria de Marx traduz-se sempre num desvio idealista: Tanto John Searle como António Damásio são idealistas quando tentam resolver o problema da natureza da mente sem levar em conta a sua formação social. A superioridade intelectual de Marx em relação aos biólogos reside no facto de não fazer moralismo: quase todas as teorias biológicas propostas acabam por conduzir a uma ética tão individualista - portanto, idealista - quanto o seu pressuposto individualismo metodológico. A integração do marxismo na teoria sintética da evolução desafia alguns dos seus princípios, obrigando-a a reformulá-los e a depurá-los dos seus elementos ideológicos liberais. Um desses desafios diz respeito à unidade fundamental da selecção natural. Estou convencido de que a sugestão de Dawkins é aquela que se adequa melhor à noção marxista de "portador" que aparece explicitada na opus magnum de Marx, O Capital: «a unidade fundamental da selecção (...) não é a espécie, nem o grupo, nem mesmo a rigor o indivíduo - é o gene, a unidade da hereditariedade», donde resulta que os seres vivos são «máquinas de sobrevivência» dos genes.
A genética constituiu um dos maiores avanços científicos do século XX, tendo começado com a redescoberta das leis de Mendel e terminado com a sequência completa do genoma humano. A genética do comportamento constitui uma ponte entre as ciências biológicas e as ciências do comportamento. Para estudar os factores genéticos do comportamento, a genética do comportamento utiliza diversas estratégias de investigação, como por exemplo os estudos de gémeos e de adopção (genética quantitativa), que investigam a influência dos factores genéticos e ambientais, e as estratégias para identificar genes específicos (genética molecular). A genética do comportamento aplica todas estas estratégias de investigação ao estudo do comportamento normal e anómalo, incluindo disciplinas como a genética psiquiátrica, que estuda as perturbações mentais, e a psicofarmacogenética, que estuda as respostas comportamentais às drogas. (:::/:::) O primeiro livro que definiu a genética do comportamento - Behavior Genetics de J. L. Fuller & W. R. Thompson - foi publicado em 1960. Os anos 60 do século XX foram caracterizados por inúmeras controvérsias sobre natureza (genes, herança) versus educação (meio). Um dia será necessário fazer a história destas controvérsias. A grande responsável pelo atraso da investigação genética do comportamento foi precisamente a psicologia, a "ciência" que foi demolida pela etologia, ecologia do comportamento e sociobiologia. O facto de alguns psicólogos trabalharem hoje no campo da genética do comportamento não nos deve impedir de olhar para a psicologia como a grande derrotada pelo progresso científico. O fundador do behaviorismo, J. B. Watson, descartou-se dos factores hereditários, alegando que as estruturas hereditárias podem ser conformadas de mil maneiras distintas, dependendo do meio em que a criança é educada. Nascia assim o mito da educação - o ambientalismo - que veio a ser destruído pela revolução etológica e pela revolução sociobiológica. Em 1992, a Associação Americana de Psicologia destacou a genética como o tema que melhor representava o futuro da psicologia, dando início à invasão da genética do comportamento por psicólogos. Ninguém é contra a participação activa dos psicólogos na investigação genética do comportamento, mas se compararmos os manuais de genética do comportamento com os manuais de outras disciplinas biológicas, verificamos a ausência de um paradigma da natureza humana desenvolvido em conformidade com a teoria sintética da evolução. A psicologia evolutiva não é argumento porque, ela própria, mais não é do que outra designação dada à sociobiologia. Ao longo da sua história já centenária a psicologia nunca conseguiu fazer a sua própria revolução científica: a sua prática normal é "anexar" as descobertas realizadas noutros campos disciplinares. Uma das descobertas científicas que ajudou a clarificar o papel dos genes no comportamento foi a fenilcetonúria (FKU), defeito devido a um único gene - o gene codificante de PAH, a enzima que converte a fenilalanina em tirosina, que era antes causa de um retardamento mental severo e responsável por cerca de 1% dos indivíduos atrasados institucionalizados. Estudos bioquímicos sobre as vias que unem genes e comportamento indicaram que a causa última do retardamento mental era a incapacidade para degradar a fenilalanina, que se traduz na acumulação de níveis elevados desta substância no sangue, danificando gravemente o cérebro em desenvolvimento. Os indivíduos que sofrem de FKU podem ser tratados administrando-lhes durante o período de desenvolvimento uma dieta baixa em fenilalanina. (:::/:::)
Ora, como se sabe, o cérebro constitui a conexão funcional entre os genes e o comportamento, sendo mais impressionante do que o genoma pelos triliões de sinapses em vez de biliões de pares de bases de ADN e pelas centenas de neurotransmissores em vez de quatro bases nucleotídicas do ADN. A neurobiologia - ou neurociência - estuda a função cerebral e, na actual conjuntura teórica, constitui uma das áreas mais activas da ciência. A genética do comportamento interessa-se não só pela descoberta dos genes relacionados com o comportamento, como também pelo modo como funcionam esses genes. Chama-se genómica funcional ao estudo de como funcionam os genes: ela abarca todos os níveis de análise, desde os genes até ao comportamento. Os biólogos moleculares estudam a função ao nível celular, identificando os produtos génicos - as proteínas - e examinando a sua função celular. A este nível a variação genética implica mudanças na estrutura tridimensional das proteínas. Um nível de análise superior é o das mudanças moleculares que ocorrem na sinapse: a plasticidade sináptica tem sido estudada pela neurogenética para compreender a aprendizagem e a memória como processos que implicam mudanças celulares na sinapse. Outros níveis superiores de análise da função cerebral são os dos padrões de estimulação entre neurónios e através de distintas regiões cerebrais e do comportamento do organismo inteiro. A neurogenética é o estudo genético da estrutura e da função cerebral em relação com o comportamento. Utilizando animais mutantes, isto é, animais portadores de mutações espontâneas, mutações produzidas por mutagénese química ou mutações dirigidas, a neurogenética já produziu resultados importantes em pelo menos três áreas: a do ritmo circadiano, onde descobriu vários genes clock cuja expressão controla este ritmo; a da aprendizagem e memória, onde se descobriram mudanças na estrutura e função da sinapse, impulsionadas geneticamente, que desempenham um papel crucial na sinfonia de transformações implicadas nestes processos; e a da resposta a fármacos. (:::/:::)
Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa
2 comentários:
As minhas posições teóricas começam a radicalizar-se. Com o fluir do tempo virá artilharia pesada com cálculo.
Termino em simultâneo com o novo texto. :)
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