José M. R. Delgado (1915-2011) |
José Delgado investigou durante a sua vida científica os mecanismos neurológicos do prazer, da agressividade e das emoções, bem como a influência dos campos electromagnéticos sobre os genes, o desenvolvimento embrionário e o comportamento. Em 1969, publicou a sua obra Physical Control of the Mind: Towards a Psychocivilized Society, onde expõe a sua perspectiva sobre a possibilidade de controlo do comportamento e da sua amplitude. A fama mundial de Delgado foi conquistada quando ele fixou à cabeça de um touro um rádio-receptor de reduzidas dimensões, ao qual estavam ligados os eléctrodos implantados nos núcleos cerebrais inibitórios da agressividade desse mesmo animal. (O núcleo estimulado por Delgado foi, pelo menos nas suas primeiras experiências, o núcleo caudado, estrutura responsável pelo controlo motor. Os núcleos corticomediais da amígdala é que exercem um papel inibidor da agressividade, modelando afectivamente os comportamentos violentos.) O touro foi libertado numa arena do Novo México: o animal investiu contra Delgado que estava munido de um rádio receptor-transmissor. Quando o touro chegou a cerca de seis metros dele, Delgado estimulou o centro cerebral inibitório da agressividade pressionando um botão no seu rádio receptor-transmissor: o touro parou, balançou a cabeça, começou a andar em círculo, voltou-se e afastou-se calmamente de Delgado. A utilização da estimulação eléctrica para localizar as áreas cerebrais responsáveis por certos comportamentos ou estados mentais foi, em grande medida, iniciada na década de 1920 por Walter R. Hess, que estudou o hipotálamo dos gatos, e Stephen W. Ranson, aos quais se ligaram os nomes de Delgado (reacção de medo dos gatos) e de James Olds (centros do prazer). José Delgado tem o mesmo tipo de relação com Ramón y Cajal que António Damásio tem com Egas Moniz: ambos parecem reclamar a respectiva herança neurocientífica nacional, de modo a promover a imagem científica dos respectivos países no mundo.
Leitor assíduo de obras filosóficas, José Delgado enriqueceu com os seus contributos o diálogo entre neurociências e filosofia, chegando mesmo a fazer propostas filosóficas originais, tais como o psicorealismo e a ética biológica. De certo modo, este interesse pela filosofia justifica-se pelo facto da chamada Década do Cérebro, potenciando mundialmente os estudos neurobiológicos, desde 1990 ao ano de 2000, ter dado resultados insuficientes, embora tenha realizado descobertas importantes que permitem utilizar o cérebro e as suas qualidades mentais em proveito de todos os seres humanos sem distinção de sexo, raça e cultura. O problema cérebro-mente chamou a sua atenção, tendo escrito em 1979 um artigo intitulado «Triunism: a transmaterial brain-mind theory», onde propõe uma teoria que procura aclarar uma parte do problema cérebro-mente. A palavra "triunismo" traz à memória a célebre teoria do cérebro triuno de Paul MacLean, segundo a qual temos três cérebros distintos, intimamente interligados, que reflectem a nossa relação ancestral com os répteis, os primeiros mamíferos e os mamíferos superiores. O primeiro cérebro, o complexo R, é uma expansão do tronco cerebral superior, onde se encontram os mecanismos responsáveis pelos comportamentos envolvidos na autoconservação e na preservação da espécie, tais como os programas responsáveis pela predação, orientação, acasalamento, estabelecimento do território e luta. O segundo cérebro, o sistema límbico que compartilhamos com os mamíferos, ocupa-se dos sentimentos emocionais que guiam o comportamento: a destruição de partes do sistema límbico faz o animal regredir à sua «condição de réptil». O terceiro cérebro, o córtex cerebral, que alcança o seu maior desenvolvimento nos seres humanos funciona como uma espécie de dispositivo de resolução de problemas e memorização, auxiliando as duas formações cerebrais mais antigas na luta pela sobrevivência e dando-nos as nossas qualidades mais humanas: a linguagem, a capacidade de raciocinar, de trabalhar com símbolos e de desenvolver uma cultura. Custódio Rodrigues iniciou-me desde cedo na teoria do cérebro triuno de MacLean, com o qual se correspondia, tendo recebido dele a sua última grande obra. E, quando falava da agressividade, recordava a célebre experiência de tourear de Delgado. Sempre achei que o meu professor tinha ficado prisioneiro da pesquisa pioneira da localização das funções cerebrais. Embora admirasse o modelo de MacLean, eu estava já nessa altura a cavalgar outra onda neuronal, na companhia do meu professor de neuroanatomia. A teoria dos módulos desviou a nossa atenção do triunismo transmaterial de Delgado. Delgado reprova claramente o dualismo, e, em menor grau, o monismo, embora reconheça que o último tem o mérito de permitir a investigação das actividades mentais pela metodologia científica, evitando assim inacessíveis mistérios sobrenaturais. O seu triunismo transmaterial que deriva da sua teoria dos sistemas biológicos postula que a mente é uma unidade com três elementos estruturais, sendo cada um deles tão essencial que a sua ausência impede a existência da mente. Estes elementos estruturais são os seguintes: os portadores materiais formados pelas células e vias do cérebro que, além da sua plasticidade, possuem propriedades materiais e transmateriais (1); o fluxo de informação procedente do exterior, que é codificada e transduzida nos receptores sensoriais, circulando intracerebralmente e modificando a anatomia e a fisiologia neuronal (2); e, como resultado da existência da matéria cerebral e do fluxo de informação, produzem-se fenómenos orientados para o exterior sob a forma de comportamento, e para o interior sob a forma de sensações (3). Sem cérebro não há mente; sem informação sensorial a mente não se estrutura nem pode aparecer; e sem expressão como comportamento ou como sensações, a mente não se reconhece nem pelo meio nem pelo indivíduo. Cérebro, fluxo de informação e manifestações externas ou internas são as três entidades essenciais para a existência da mente. As estruturas cerebrais são essenciais para funções específicas. Assim, por exemplo, se destruirmos a área de Broca, fazemos desaparecer a linguagem articulada, e se lesionarmos a área de Wernicke, deixamos de compreender a fala. A extirpação do córtex motor produz a paralisia. A informação e as ideias são entidades que circulam através dos elementos materiais, podendo mudar de portador sem perder o seu significado. Embora careçam de massa, de energia e de outras propriedades materiais, podem transcender a existência pessoal. O aspecto sensível da teoria de Delgado reside no facto dele considerar que a análise do cérebro nos dá pouca informação sobre as ideias e as emoções que possam existir. Em vez de atribuir propriedades emergentes aos neurónios, dependentes das suas interligações, Delgado prefere supor que as funções mentais dependem do fluxo das recepções sensoriais interagindo com a matéria cerebral. A mente como interface?
J Francisco Saraiva de Sousa
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