Porto: Jardins do Palácio de Cristal |
«O mesmo conhecimento que levou o dilema ao seu clímax, contém a solução.» (Edward O. Wilson)
Em Portugal, as pessoas que me conhecem dizem que «o Saraiva tem um temperamento difícil», o que quer dizer que eu sou muito exigente, sobretudo em matérias científicas e filosóficas. É provável que este dito seja uma espécie de censura, mas eu tomo-o como um elogio: ser exigente neste país parado no tempo é ser contra o sistema que bloqueia o seu futuro. Não há grandes dissonâncias entre o que penso e o que faço: critico o carácter nacional tanto na teoria como na prática: não suporto o jogo de fingir ser aquilo que não se é. A minha actividade teórica e prática confronta as pessoas com a sua própria mediocridade. E elas detestam ser testadas porque sabem que são fraudes diplomadas: os diplomas pouco valem quando os seus portadores não estão à sua altura. Um cientista ou um filósofo não precisam de diplomas fraudulentos para vencer na luta pelo reconhecimento: o que conta é o seu desempenho na resolução de problemas. Tinha prometido escrever um texto sobre a imagem do homem na ecologia. Porém, quando me preparava mentalmente para cumprir essa promessa, descobri que tinha ao meu dispor diversas vias de abordagem do tema. A ecologia é uma ciência extremamente complexa e os seus dispositivos teóricos não são conhecidos pelas pessoas banais que a identificam com o ecologismo e as campanhas verdes. Convém distinguir entre ecologia e ecologismo. A palavra "ecologia" foi, pela primeira vez, utilizada por E. Haeckel em 1866 para designar «a ciência que estuda as relações entre o ser vivo e o meio em que ele se encontra». De certo modo, esta definição continua a ter valor, embora os ecólogos possam diferir quanto à delimitação do campo da ecologia: Paul R. Ehrlich apresenta uma definição de ecologia muito mais ampla fazendo dela a combinação das disciplinas da chamada biologia populacional. A ecologia aparece assim como uma ciência de síntese que pode ser definida nestes termos: o estudo das condições de existência dos seres vivos e das interacções, de qualquer natureza, existentes entre esses seres vivos e o seu meio. Ou, numa única expressão: o estudo da economia da natureza (Ricklefs, 1993). O facto da maior parte dos ecólogos serem ecologistas contribui para a confusão entre a ciência da ecologia e o ecologismo. As crises do mundo contemporâneo têm causas ecológicas e, por isso, ajudam a fomentar uma consciência ecológica que está, de algum modo, na base do aparecimento da biologia da conservação. Os movimentos ecologistas que surgem por todo o mundo representam a "ecologia-forma de pensamento" e não a "ecologia = ciência do meio": o seu objectivo primordial é agir de modo a assegurar a conservação do meio e a sobrevivência da civilização. O ecologismo é, portanto, uma nova política. Nestas matérias ecológicas aconselho o estudo das obras dos ecólogos anglo-saxónicos, tais como H. G. Andrewartha & L. C. Birch (1954, 1984), J. H. Brown & A. C. Gibson (1983), C. Elton (1927), J. L. Harper (1977), G. E. Hutchinson (1978), C. J. Krebs (1978), J. R. Krebs & N. D. Davies (1978), R. H. MacArthur (1972), E. P. Odum (1971), R. E. Rickfels (1979), J. Roughgarden (1979), M. E. Soulé & B. A. Wilcox (1980), R. H. Whittaker (1975), e Paul R. Ehrlich (1986). Os autores franceses (Roger Dajoz, por exemplo) tendem a acompanhar Schröter (1896, 1902) quando dividem a ecologia em Auto-Ecologia e Sinecologia: a primeira estuda a influência dos factores externos sobre o animal ou o vegetal, enquanto a segunda estuda as comunidades naturais, de que fazem parte animais e vegetais. A Sinecologia subdivide-se, por sua vez, em dois ramos: a Demecologia que estuda o crescimento, as variações de densidade e o declínio das populações animais ou vegetais; e a Biocenótica que estuda as biocenoses, isto é, as comunidades de seres vivos que habitam uma porção da paisagem, estando adaptados às condições médias deste meio natural. Esta divisão da ecologia é artificial: a utilização dos modelos dos níveis hierárquicos de organização ecológica dispensa esta divisão. A pátria da ciência é a língua inglesa: é uma estupidez publicar traduções de obras francesas em detrimento das obras "inglesas", porque todo o conhecimento verdadeiramente produtivo está nas segundas e não nas primeiras. Ecologia e evolução formam uma aliança que possibilita o estudo aprofundado da ecologia fisiológica, da ecologia populacional, da ecologia do comportamento, da ecologia das interacções (predação, mutualismo e competição), da biogeografia, da ecologia das comunidades e da ecologia dos ecossistemas.
No mundo anglo-saxónico, as universidades oferecem cursos de Filosofia Ambiental (Environmental Philosophy). Dale Jamieson (2001, 2003) coordenou o seu manual de texto mais conhecido: A Campanion to Environmental Philosophy. Como é evidente, não concordo com muitos dos contributos particulares desta obra colectiva, mas o que me levou a escrever este texto foi a necessidade de impugnar a designação dada à nova disciplina filosófica. Prefiro claramente a expressão Filosofia Ecológica ou Eco-filosofia para designar este novo campo da investigação filosófica. A ecologia substituiu o termo "natureza" por um novo conceito: a biosfera. A biosfera é a parte do globo terrestre em que vivem os animais e os vegetais. Compreende a atmosfera até uma altitude de cerca de 15 000 m, o solo (litosfera) até algumas dezenas de metros de profundidade, as águas doces e as camadas superficiais (menos de 1000 m) das águas marinhas (hidrosfera). A substituição da natureza pela biosfera implica, pelo menos no plano filosófico, uma distinção entre filosofia da natureza e filosofia ecológica. Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel, a filosofia da natureza compreende a mecânica, a física e a física orgânica (geologia, botânica e zoologia). Poderíamos recorrer também à filosofia da natureza dos românticos para mostrar que o âmbito objectual da filosofia da natureza é mais vasto do que o da filosofia ecológica. A filosofia da natureza integra a filosofia ambiental ou ecológica, cujo objecto de estudo é apenas a biosfera. Infelizmente, a filosofia contemporânea tende a estar mais próxima das "letras" do que das "ciências", correndo o risco de se converter num género literário. Chegou a hora de expulsar esses literatos do campo da filosofia e de reactivar a Grande Tradição: o vínculo primordial entre filosofia e ciência. Não consigo conceber um filósofo destituído de conhecimentos científicos. Em Portugal, aqueles que dizem ser "filósofos profissionais" (sic) são idiotas culturais que nem sequer conhecem a história da filosofia nas suas ligações orgânicas com a ciência e a política. Quando pretendem passar da ecologia-ciência para a ecologia-política, os ecólogos precisam da mediação filosófica que não se esgota na mediação ética: Sem filosofia não há verdadeiramente política ecológica, porque é a filosofia que representa a política na esfera da ciência. Ora, uma tal mediação filosófica é extremamente elaborada: ela implica desde logo uma ruptura entre o saber ecológico e a ciência da ecologia. O saber ecológico de um pescador ou de um índio da Amazónia, por exemplo, constitui o objecto de estudo da etno-ecologia. A ecologia humana ocupa-se do saber ecológico das comunidades humanas, mas este conhecimento em primeira-mão não é suficiente para elaborar uma teoria da ecologia. Este aspecto não tem sido compreendido pelos ecologistas que defendem o regresso às origens, isto é, às comunidades primitivas. O primitivismo de certas políticas ecológicas deve ser desmistificado pela filosofia: a luta contra o progresso não implica necessariamente um retrocesso civilizacional. É perfeitamente ridículo opor outras tradições culturais - indígenas, chinesa, indiana, budista, islâmica, etc. - à civilização ocidental, como se as primeiras tivessem o monopólio das "boas" práticas ecológicas. A civilização ocidental é a única civilização capaz de salvar a natureza. Assim, por exemplo, os eco-feminismos - estas aberrações do espírito humano! - esquecem que nunca poderiam ter germinado fora da tradição ocidental: a imagem da mulher ocidental no mundo extra-ocidental não é nada favorável às feministas. O feminismo é uma ideologia nefasta que deve ser desconstruída, até porque está a degradar os pilares fundamentais da civilização ocidental. A ética ambiental proposta pelo eco-feminismo é uma espécie de ética de cabaret. Têm sido propostas diversas éticas ambientais - a meta-ética, ética normativa, sencientismo, ética da terra, ecologia profunda e eco-feminismo, das quais a mais infrutífera é, sem dúvida, a perspectiva eco-feminista, que, além de prostituir a filosofia, mistifica o ambiente, desviando a atenção dos verdadeiros problemas ecológicos. Não sou completamente avesso à tentativa de elaborar uma ética ambiental, embora saiba que ela não resolve os problemas ecológicos. O Projecto Filosofia ecológica propõe-se abrir caminho para o nascimento de uma visão teórica integrada da ecologia, capaz de orientar as práticas políticas adequadas, em defesa do controle da população, da biodiversidade e da conservação biológica.
J Francisco Saraiva de Sousa
1 comentário:
Está concluído e ainda não sei se irei acrescentar mais clarificações.
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