A Noite do Porto na Festa de S. João |
«Porque é que a noite é negra? /É a expansão do universo que nos fez passar do período do céu brilhante para o período presente. É a este título, estritamente, que ela se torna responsável pela existência da noite. A obscuridade da noite esclarece-nos, portanto, sobre a expansão do universo.» (Hubert Reeves)
A História da Iluminação da Cidade do Porto está por fazer: o único historiador português que dedicou algum tempo ao estudo da iluminação das cidades portuguesas foi, tanto quanto sei, Joel Serrão. O meu projecto dos Quadros Portuenses exige o conhecimento do domínio técnico que a cidade e os seus habitantes exerceram sobre a noite ao longo do tempo, mas, quando fui à sua procura, não encontrei nada, excepto dois escritos de Joel Serrão que, apesar de centrados sobre a iluminação da noite lisboeta, não são suficientes para reconstruir a própria história da iluminação de Lisboa. O meu interesse pelo processo histórico de iluminação da noite portuense é anterior ao próprio projecto dos Quadros Portuenses. Devo confessar que sou, por natureza, um ser nocturno e, como tal, prefiro o Porto Nocturno com a sua iluminação única. Mas a noite portuense que amo não a partilho com os autores que dão rosto aos Quadros Portuenses: eu nasci já em plena era da electricidade, sem ter conhecido qualquer outra forma de iluminação pública ou domiciliária, enquanto eles viveram a transição da iluminação a azeite e a gás para a iluminação eléctrica, usando em casa mais outras fontes de energia. O seu Porto era infinitamente mais escuro do que o meu Porto de hoje, que, à noite, é uma Cidade-Luz. Segundo Joel Serrão, por volta de 1770, «os moradores da Rua Nova, ou dos Ingleses, lançaram mãos à empresa colectiva da iluminação pública da sua rua». A. de Magalhães Basto conta que, em 1816, se calculou quanto custariam os 800 lampeões que se consideravam necessários, assim como o custo do respectivo combustível. O orçamento do custo da iluminação pública do Porto em 1816 era proibitivo: os lampeões custariam 16 480$000 réis e consumiriam por ano cerca de 30 105$000 réis. Ora, tal despesa estava acima das posses dos seus habitantes. A intervenção do governo só chegou em 1824 no que se refere à iluminação a azeite. Convém lembrar que Paris conheceu um esboço de iluminação a partir de Luís XIV, o qual só foi melhorado a partir de 1765. Em 1855, operou-se a instalação de sistemas de iluminação pública a gás, e, em 1895, foi introduzido o carro eléctrico no Porto. No entanto, a iluminação pública eléctrica só foi instalada no início do século XX, embora a sala e o palco do Teatro Sá da Bandeira já fossem iluminados com luz eléctrica em 1899. A instalação da iluminação eléctrica, tanto nas vias públicas como nas casas privadas, não só libertou o homem dos seus medos nocturnos, como também lhe permitiu prolongar as suas actividades - intelectual, fabril, domiciliária e lazer - pela noite dentro. O impacto da instalação de sistemas públicos de iluminação sobre a vida das pessoas só pode ser apreendido através da elaboração da história da vida quotidiana na cidade do Porto. Se os portuenses começaram a deitar-se mais tarde, como é que eles ocupavam esse tempo nocturno roubado ao sono? O Porto Oitocentista era um Porto Culto e Trabalhador. Deste modo esquemático, estabeleço uma distinção social: a ocupação do tempo roubado ao sono varia de classe social para classe social. Aqui vou destacar unicamente o estilo de vida da burguesia portuense, deixando os trabalhadores nas tabernas a beber as suas canecas de vinho e as mulheres da vida nas ruas e ruelas escuras à espera dos seus clientes. O Porto Mental que me interessa é claramente descrito pelos ilustres portuenses. Júlio Dinis e Sampaio Bruno destacam os temas dos serões e das tertúlias realizadas à volta da lareira, muitas vezes nas cozinhas, como se não houvesse animação nocturna fora dos fogos domésticos. Os cafés e os teatros animavam as noites portuenses. Na segunda metade do século XIX, após um início terrível marcado pelas invasões francesas e pelas guerras liberais que culminaram com o Cerco do Porto (1832-33), o Porto conseguiu entrar numa época de grande dinamismo: a malha urbana adensou-se e expandiu-se, ao mesmo tempo que o seu casario assumia diversas formas e dimensões, desde as pequenas casas operárias e os seus aglomerados chamados ilhas às casas da burguesia e às imponentes casas dos brasileiros. Durante este período de crescimento acelerado, surgiram no Porto muitas das construções que ainda hoje marcam a sua paisagem urbana, embora algumas delas tenham desaparecido: o Mercado do Anjo (1839), o Mercado do Bolhão (1837), o Jardim de São Lázaro (1834), o Jardim da Cordoaria (1866), a Praça do Infante (1885), o Cemitério de Agramonte (1855) e a Arquitectura do Ferro representada pelo Palácio de Cristal (1865) e pelo Mercado Ferreira Borges. Os sistemas de abastecimento de água a domicílio e de saneamento foram instalados em 1887, e, em 1840, fundou-se o Liceu Central do Porto. Para a travessia do Rio Douro, sucederam-se a Ponte das Barcas (1806), a Ponte Pênsil ou Ponte D. Maria II (1843), a Ponte (ferroviária) Maria Pia (1877) e a Ponte D. Luís I (1886). O Real Teatro de São João já tinha sido edificado em 1794. Porém, depois do incêndio de 1908, foi reconstruído, com projecto de Marques da Silva (1911), inaugurado em 1920 e adquirido pelo Estado Português em 1922. Entretanto, em 1855, foi inaugurado o Teatro-Circo, o qual foi demolido em 1887 e substituído pelo actual edifício do Teatro Sá da Bandeira (1870), nome dado em 1910 para substituir o seu nome anterior: Teatro-Circo do Príncipe Real. O Teatro Sá da Bandeira era tão - ou mesmo mais - importante como o Teatro Nacional de São João. Os teatros, a imprensa, os cafés, enfim as revistas ajudaram a criar a esfera pública portuense: os burgueses reuniam-se para debater as novas ideias que vinham do estrangeiro e para pensar a modernização do país. O Porto Culto (1912) e Portuenses Ilustres (1907-08) de Sampaio Bruno, obras consideradas "menores", devem ser lidas como tentativas de esboçar o perfil do portuense de 1870 que lia, estudava, concebia sonhos generosos e traçava largos planos de acção redentora, ao mesmo tempo que conspirava contra a monarquia. O Porto Culto era o Porto que lia tudo o que recebia do estrangeiro, em especial de Inglaterra e de França, e que - reunido em pequenos grupos nos cafés, no atelier de arte de algum pintor revolucionário ou nas casas privadas - discutia o futuro do país. Muitos dos ilustres portuenses liam à luz da Lua, da candeia de azeite ou ao canto do fogão, nos seus serões de trabalho. Alguns tiveram o privilégio de ver a iluminação eléctrica destronar sem clemência a luz do gás, o candeeiro de petróleo e a vela de estearina. Para construir o objecto da história da iluminação do Porto, devemos colocar esta questão: Como reagiram a imprensa e os ilustres portuenses à inovação do controle técnico da noite, desde a iluminação a azeite de oliveira e a iluminação a gás à iluminação eléctrica? Guilherme de Azevedo, poeta lisboeta, declara que, com o sucesso eléctrico ocorrido no Chiado (1848), a Humanidade conseguiu «apoderar-se do segredo da aurora. A luz eléctrica metida num globo de porcelana reduz toda essa fonte de poesia a um processo de extrema simplicidade, e dentro em pouco todos nós poderemos ter o pálido astro da noite (a Lua) ou o formoso astro do dia (o Sol) - simples diferença de abat-jour - no nosso quarto de dormir à razão de trinta réis a hora!» Com a descoberta da electricidade e a sua comercialização, o homem libertou-se do império da noite. Guilherme Braga, poeta portuense forjado na maré alta da crença no progresso, canta o triunfo da noite técnica quando pergunta e responde: «- Donde vens? - "venho das trevas" /- Onde vais? - "vou para a luz"» (Heras e Violetas). (:::)
Tenho muita dificuldade em imaginar as noites do Porto sem a sua iluminação eléctrica, porque, quando falha a electricidade, a vida pará e aguarda impacientemente à luz das velas a chegada da luz. Não me lembro de nenhum apagão geral na cidade do Porto e, se ele vier a ocorrer nos tempos próximos, serei tomado pela sensação de rapto. Sem luz, sou prisioneiro, não do medo e do perigo que habita a negritude da noite, mas da inactividade. Consigo produzir produtos teóricos de valor equivalente tanto de dia como à noite, embora à noite esteja geralmente mais inspirado. Todos os meus grandes pensamentos são nocturnos e, se pudesse, trocava alegremente a vida diurna pela vida nocturna, dormindo de dia e trabalhando à noite. Uma apagão geral roubaria de mim o meu próprio pensamento, levando-me ao desespero. A experiência das falhas de electricidade é completamente distinta da experiência que faço da cidade quando ela é coberta pelo nevoeiro cerrado. O Porto coberto de nevoeiro cerrado cativa a minha alma, levando-a a gerar imagens fluídas de corpos espectrais e de cenas de crime. O nevoeiro cerrado não me retém em casa; pelo contrário, desafia-me a sair para a rua para fazer a experiência da redescoberta da minha cidade, através das silhuetas espectrais do casario portuense que consigo vislumbrar à medida que me aproximo dos sinais de luz que o nevoeiro encobre. De certo modo, o nevoeiro cerrado rouba-me a cidade: olho ao meu redor mas não vejo a cidade que sei lá estar escondida pelas sombras que procuro rasgar com o meu olhar activo. Eu preciso de saber-ver-ler que o Porto existe para eu próprio existir: o nevoeiro que o rouba ao meu olhar obriga-me a ir à sua procura, como se fosse um detective a tentar encontrar indícios de um crime - o crime da existência - num terreno nebuloso que os esconde. O Porto-Fantasma, o Porto-Espectral, não desencadeia medo em mim e, muito menos, saudade, como sucede quando tenho de viver durante longos períodos em Lisboa ou noutra cidade do mundo. Eu que não nasci no Porto, quero morrer no Porto que conquistou a minha alma, mais pela imponência do seu casario verticalmente erguido e construído do que pelos seus habitantes, que, salvo raras excepções, tendo a desprezar. O Porto-Espectral que redescubro nas noites de nevoeiro é precisamente o conjunto arquitectónico das silhuetas do seu casario sem os habitantes. Por isso, falei de corpos espectrais e de cenas de crime. Nas noites de nevoeiro cerrado, sonho acordado - e em movimento - a existência do Porto que o nevoeiro encobre, cometendo um crime: privo-o dos seus habitantes, cujas vozes - quando as ouço - me interpelam a partir do túmulo de espessas paredes de betão, onde as sempre-já sepultei. Há vozes portuenses vivas que quero sepultar, privando-as de todos os seus vestígios existenciais: quero devolvê-las à morte que tudo devora e esquece. Mas, quando elas teimam em desencantar o meu sonho activo de redescoberta da existência do Porto, só me resta uma fantasia criativa: olhar para as silhuetas do velho casario, fingindo escutar as vozes espectrais que me interpelam do passado.
Em construção lenta. J Francisco Saraiva de Sousa
A História da Iluminação da Cidade do Porto está por fazer: o único historiador português que dedicou algum tempo ao estudo da iluminação das cidades portuguesas foi, tanto quanto sei, Joel Serrão. O meu projecto dos Quadros Portuenses exige o conhecimento do domínio técnico que a cidade e os seus habitantes exerceram sobre a noite ao longo do tempo, mas, quando fui à sua procura, não encontrei nada, excepto dois escritos de Joel Serrão que, apesar de centrados sobre a iluminação da noite lisboeta, não são suficientes para reconstruir a própria história da iluminação de Lisboa. O meu interesse pelo processo histórico de iluminação da noite portuense é anterior ao próprio projecto dos Quadros Portuenses. Devo confessar que sou, por natureza, um ser nocturno e, como tal, prefiro o Porto Nocturno com a sua iluminação única. Mas a noite portuense que amo não a partilho com os autores que dão rosto aos Quadros Portuenses: eu nasci já em plena era da electricidade, sem ter conhecido qualquer outra forma de iluminação pública ou domiciliária, enquanto eles viveram a transição da iluminação a azeite e a gás para a iluminação eléctrica, usando em casa mais outras fontes de energia. O seu Porto era infinitamente mais escuro do que o meu Porto de hoje, que, à noite, é uma Cidade-Luz. Segundo Joel Serrão, por volta de 1770, «os moradores da Rua Nova, ou dos Ingleses, lançaram mãos à empresa colectiva da iluminação pública da sua rua». A. de Magalhães Basto conta que, em 1816, se calculou quanto custariam os 800 lampeões que se consideravam necessários, assim como o custo do respectivo combustível. O orçamento do custo da iluminação pública do Porto em 1816 era proibitivo: os lampeões custariam 16 480$000 réis e consumiriam por ano cerca de 30 105$000 réis. Ora, tal despesa estava acima das posses dos seus habitantes. A intervenção do governo só chegou em 1824 no que se refere à iluminação a azeite. Convém lembrar que Paris conheceu um esboço de iluminação a partir de Luís XIV, o qual só foi melhorado a partir de 1765. Em 1855, operou-se a instalação de sistemas de iluminação pública a gás, e, em 1895, foi introduzido o carro eléctrico no Porto. No entanto, a iluminação pública eléctrica só foi instalada no início do século XX, embora a sala e o palco do Teatro Sá da Bandeira já fossem iluminados com luz eléctrica em 1899. A instalação da iluminação eléctrica, tanto nas vias públicas como nas casas privadas, não só libertou o homem dos seus medos nocturnos, como também lhe permitiu prolongar as suas actividades - intelectual, fabril, domiciliária e lazer - pela noite dentro. O impacto da instalação de sistemas públicos de iluminação sobre a vida das pessoas só pode ser apreendido através da elaboração da história da vida quotidiana na cidade do Porto. Se os portuenses começaram a deitar-se mais tarde, como é que eles ocupavam esse tempo nocturno roubado ao sono? O Porto Oitocentista era um Porto Culto e Trabalhador. Deste modo esquemático, estabeleço uma distinção social: a ocupação do tempo roubado ao sono varia de classe social para classe social. Aqui vou destacar unicamente o estilo de vida da burguesia portuense, deixando os trabalhadores nas tabernas a beber as suas canecas de vinho e as mulheres da vida nas ruas e ruelas escuras à espera dos seus clientes. O Porto Mental que me interessa é claramente descrito pelos ilustres portuenses. Júlio Dinis e Sampaio Bruno destacam os temas dos serões e das tertúlias realizadas à volta da lareira, muitas vezes nas cozinhas, como se não houvesse animação nocturna fora dos fogos domésticos. Os cafés e os teatros animavam as noites portuenses. Na segunda metade do século XIX, após um início terrível marcado pelas invasões francesas e pelas guerras liberais que culminaram com o Cerco do Porto (1832-33), o Porto conseguiu entrar numa época de grande dinamismo: a malha urbana adensou-se e expandiu-se, ao mesmo tempo que o seu casario assumia diversas formas e dimensões, desde as pequenas casas operárias e os seus aglomerados chamados ilhas às casas da burguesia e às imponentes casas dos brasileiros. Durante este período de crescimento acelerado, surgiram no Porto muitas das construções que ainda hoje marcam a sua paisagem urbana, embora algumas delas tenham desaparecido: o Mercado do Anjo (1839), o Mercado do Bolhão (1837), o Jardim de São Lázaro (1834), o Jardim da Cordoaria (1866), a Praça do Infante (1885), o Cemitério de Agramonte (1855) e a Arquitectura do Ferro representada pelo Palácio de Cristal (1865) e pelo Mercado Ferreira Borges. Os sistemas de abastecimento de água a domicílio e de saneamento foram instalados em 1887, e, em 1840, fundou-se o Liceu Central do Porto. Para a travessia do Rio Douro, sucederam-se a Ponte das Barcas (1806), a Ponte Pênsil ou Ponte D. Maria II (1843), a Ponte (ferroviária) Maria Pia (1877) e a Ponte D. Luís I (1886). O Real Teatro de São João já tinha sido edificado em 1794. Porém, depois do incêndio de 1908, foi reconstruído, com projecto de Marques da Silva (1911), inaugurado em 1920 e adquirido pelo Estado Português em 1922. Entretanto, em 1855, foi inaugurado o Teatro-Circo, o qual foi demolido em 1887 e substituído pelo actual edifício do Teatro Sá da Bandeira (1870), nome dado em 1910 para substituir o seu nome anterior: Teatro-Circo do Príncipe Real. O Teatro Sá da Bandeira era tão - ou mesmo mais - importante como o Teatro Nacional de São João. Os teatros, a imprensa, os cafés, enfim as revistas ajudaram a criar a esfera pública portuense: os burgueses reuniam-se para debater as novas ideias que vinham do estrangeiro e para pensar a modernização do país. O Porto Culto (1912) e Portuenses Ilustres (1907-08) de Sampaio Bruno, obras consideradas "menores", devem ser lidas como tentativas de esboçar o perfil do portuense de 1870 que lia, estudava, concebia sonhos generosos e traçava largos planos de acção redentora, ao mesmo tempo que conspirava contra a monarquia. O Porto Culto era o Porto que lia tudo o que recebia do estrangeiro, em especial de Inglaterra e de França, e que - reunido em pequenos grupos nos cafés, no atelier de arte de algum pintor revolucionário ou nas casas privadas - discutia o futuro do país. Muitos dos ilustres portuenses liam à luz da Lua, da candeia de azeite ou ao canto do fogão, nos seus serões de trabalho. Alguns tiveram o privilégio de ver a iluminação eléctrica destronar sem clemência a luz do gás, o candeeiro de petróleo e a vela de estearina. Para construir o objecto da história da iluminação do Porto, devemos colocar esta questão: Como reagiram a imprensa e os ilustres portuenses à inovação do controle técnico da noite, desde a iluminação a azeite de oliveira e a iluminação a gás à iluminação eléctrica? Guilherme de Azevedo, poeta lisboeta, declara que, com o sucesso eléctrico ocorrido no Chiado (1848), a Humanidade conseguiu «apoderar-se do segredo da aurora. A luz eléctrica metida num globo de porcelana reduz toda essa fonte de poesia a um processo de extrema simplicidade, e dentro em pouco todos nós poderemos ter o pálido astro da noite (a Lua) ou o formoso astro do dia (o Sol) - simples diferença de abat-jour - no nosso quarto de dormir à razão de trinta réis a hora!» Com a descoberta da electricidade e a sua comercialização, o homem libertou-se do império da noite. Guilherme Braga, poeta portuense forjado na maré alta da crença no progresso, canta o triunfo da noite técnica quando pergunta e responde: «- Donde vens? - "venho das trevas" /- Onde vais? - "vou para a luz"» (Heras e Violetas). (:::)
Tenho muita dificuldade em imaginar as noites do Porto sem a sua iluminação eléctrica, porque, quando falha a electricidade, a vida pará e aguarda impacientemente à luz das velas a chegada da luz. Não me lembro de nenhum apagão geral na cidade do Porto e, se ele vier a ocorrer nos tempos próximos, serei tomado pela sensação de rapto. Sem luz, sou prisioneiro, não do medo e do perigo que habita a negritude da noite, mas da inactividade. Consigo produzir produtos teóricos de valor equivalente tanto de dia como à noite, embora à noite esteja geralmente mais inspirado. Todos os meus grandes pensamentos são nocturnos e, se pudesse, trocava alegremente a vida diurna pela vida nocturna, dormindo de dia e trabalhando à noite. Uma apagão geral roubaria de mim o meu próprio pensamento, levando-me ao desespero. A experiência das falhas de electricidade é completamente distinta da experiência que faço da cidade quando ela é coberta pelo nevoeiro cerrado. O Porto coberto de nevoeiro cerrado cativa a minha alma, levando-a a gerar imagens fluídas de corpos espectrais e de cenas de crime. O nevoeiro cerrado não me retém em casa; pelo contrário, desafia-me a sair para a rua para fazer a experiência da redescoberta da minha cidade, através das silhuetas espectrais do casario portuense que consigo vislumbrar à medida que me aproximo dos sinais de luz que o nevoeiro encobre. De certo modo, o nevoeiro cerrado rouba-me a cidade: olho ao meu redor mas não vejo a cidade que sei lá estar escondida pelas sombras que procuro rasgar com o meu olhar activo. Eu preciso de saber-ver-ler que o Porto existe para eu próprio existir: o nevoeiro que o rouba ao meu olhar obriga-me a ir à sua procura, como se fosse um detective a tentar encontrar indícios de um crime - o crime da existência - num terreno nebuloso que os esconde. O Porto-Fantasma, o Porto-Espectral, não desencadeia medo em mim e, muito menos, saudade, como sucede quando tenho de viver durante longos períodos em Lisboa ou noutra cidade do mundo. Eu que não nasci no Porto, quero morrer no Porto que conquistou a minha alma, mais pela imponência do seu casario verticalmente erguido e construído do que pelos seus habitantes, que, salvo raras excepções, tendo a desprezar. O Porto-Espectral que redescubro nas noites de nevoeiro é precisamente o conjunto arquitectónico das silhuetas do seu casario sem os habitantes. Por isso, falei de corpos espectrais e de cenas de crime. Nas noites de nevoeiro cerrado, sonho acordado - e em movimento - a existência do Porto que o nevoeiro encobre, cometendo um crime: privo-o dos seus habitantes, cujas vozes - quando as ouço - me interpelam a partir do túmulo de espessas paredes de betão, onde as sempre-já sepultei. Há vozes portuenses vivas que quero sepultar, privando-as de todos os seus vestígios existenciais: quero devolvê-las à morte que tudo devora e esquece. Mas, quando elas teimam em desencantar o meu sonho activo de redescoberta da existência do Porto, só me resta uma fantasia criativa: olhar para as silhuetas do velho casario, fingindo escutar as vozes espectrais que me interpelam do passado.
Em construção lenta. J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
Bem, meti-me noutro sarilho teórico! Claro, amigos, sou sempre forçado a omitir desenvolvimentos, embora eles estejam presentes na sua ausência imposta pela natureza de um blog. Só escreverei tratados quando me pagarem para isso.
Gostei bastante!:)
Ainda não conclui. Um tema que merece pesquisa.
Aguardo:)
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