«La civilisation a son origine dans l'enfance retardée, et sa fonction est de sécurité. C'est un gigantesque système d'essais plus ou moins heureux pour protéger l'humanité contre le danger de la perte de l'objet - efforts formidables faits par un bébé qui a peur de rester seul dans le noir». (Géza Róheim)
«Dès les toutes premières tentatives d'application de la psychanalyse aux phénomènes culturels, l'analogie structurel de la culture et de la névrose - ou "formation du système psychique" - a été tacitement admise. Aucun psychanalyste ne semble être en mesure de contester valablement la fameuse trilogie freudienne, celle où Freud compare la paranoïa à la philosophie, la névrose obsessionnelle à la religion (rituel), et l´hystérie à l'art. En rapprochant ainsi trois des aspects les plus importants de la culture de trois types de névroses, Freud comparaît implicitement la culture elle-même à la névrose en général. Par ailleurs, si l'on examine les nombreux travaux de "psychanalyse appliquée", on s'aperçoit qu'à chaque instant, l'élément culturel, sous quelque forme qu'il se présente, est expliqué à partir des mêmes mécanismes qui sont à l'oeuvre dans les différentes sortes de névroses». (Géza Róheim) Géza Róheim (1891-1953) foi o primeiro grande antropólogo psicanalista que soube criar uma convergência produtiva entre a psicanálise e a etnologia a partir da combinação da sua autoridade clínica e de trabalhos de campo que realizou no continente australiano. Estou a lembrá-lo para arrancar o seu pensamento ao isolamento e ao esquecimento a que foi condenado pelos seus colegas de profissão que nunca lhe perdoaram o facto de ter denunciado o relativismo boasiano como indicador e resultado de um nacionalismo reprimido. A defensa boasiana de que os factores culturais podem impedir o surgimento dos sentimentos edipianos é interpretada como uma criação do complexo de Édipo do antropólogo ou do psiquiatra: os relativistas boasianos e os adeptos do particularismo histórico - o conceito de que cada cultura particular é produto de um desenvolvimento histórico separado e isolado - sofrem um complexo de Édipo não resolvido e, por isso, tendem a negar as provas etno-antropológicas da sua existência. Porém, Róheim vai mais longe quando os acusa de serem cripto-racistas: a repressão do complexo de Édipo caminha a par de outra tendência pré-consciente, a ideia nacionalista de que todas as nações são completamente diferentes umas das outras. Ora, a afirmação de que o objectivo da antropologia consiste em mostrar essa diferença é mais outra manifestação de nacionalismo que Róheim encara como a contrapartida democrática da doutrina racial nazi. As atitudes humanistas por detrás das quais se refugiam os relativistas boasianos resultam da formação de um compromisso entre duas tendências opostas: a formação de reacção da relatividade cultural resume-se a esta frase - "Você é completamente diferente de mim, mas eu estou pronto a perdoar-lhe". No entanto, neste perdão esconde-se a tendência mais antiga da humanidade: o grupo endógeno unido contra o grupo exógeno. Marvin Harris integra a antropologia psicanalítica de Róheim no âmbito do movimento de Cultura e Personalidade, na sua fase psicanalítica, junto de nomes tais como Bruno Bettelheim, Abram Kardiner, Ralph Linton e Erik Erikson. O culturalismo que se apoderou deste movimento paradigmático da antropologia encontra-se claramente definido nestas palavras de Ruth Benedict: «A história da vida individual de cada pessoa é acima de tudo uma acomodação aos padrões de forma e de medida tradicionalmente transmitidos na sua comunidade de geração em geração. Desde que o indivíduo vem ao mundo os costumes do ambiente em que nasceu moldam a sua experiência dos factos e a sua conduta. Quando começa a falar, ele é o frutozinho da sua cultura, e quando crescido e capaz de tomar parte nas actividades desta, os hábitos dela são os seus hábitos, as crenças dela, as suas crenças, as incapacidades dela, as suas incapacidades. Todo aquele que nasça no seu grupo delas partilhará com ele, e todo aquele que nasça num grupo do lado oposto do globo adquirirá a milésima parte dessa herança». Ao rejeitarem a herança arcaica da humanidade - no sentido de Freud, os culturalistas tendem a ver a mente do recém-nascido como um balde vazio que adquire conteúdos ao longo do processo de endoculturação: a cultura molda os seus próprios indivíduos e as culturas diferentes moldam indivíduos diferentes, como se não houvesse uma unidade do psiquismo humano. Mesmo quando recorrem à psicanálise, os culturalistas - Margaret Mead, Ruth Benedict, Ralph Linton, Erich Fromm, Karen Horney e A. Kardiner - acentuam o papel de moldagem da cultura, recusando a existência de traços humanos universais e de um modelo único de desenvolvimento. A articulação teórica que apresentam entre indivíduo, organização familiar e grupo imputa as tensões conflituais não à natureza humana, mas às condições culturais do funcionamento social. Em 1924, Malinowski publicou Família Matriarcal e Complexo de Édipo, onde fez ruir o edifício construído por Freud em Totem e Tabu (1913). Na ilha Melanésia de Trobriand, a filiação é matrilinear e as leis biológicas da paternidade são ignoradas. Os direitos e os deveres da paternidade ficam entregues a um tio materno que vive fora de casa, polarizando os sentimentos de hostilidade suscitados pela sua condição. Irmãos e irmãs, separados desde a adolescência por um tabu rigoroso, vivem numa relação amistosa com o pai verdadeiro. Como escreve Malinowski: «Sendo o direito matrilinear distinto do direito patrilinear, os sistemas de atitudes pertinentes a esses dois tipos de sociedade só podem ser radicalmente diferentes». Na sociedade matrilinear, as relações ambivalentes de veneração e hostilidade estabelecem-se entre o jovem varão e o seu tio materno: a repressão incide unicamente sobre o desejo incestuoso que tem por objecto a irmã e não a mãe. «O único complexo reconhecido pela escolha freudiana e considerado como tendo alcance universal, o complexo de Édipo, corresponde essencialmente ao nosso tipo de família, fundamentado na descendência patrilinear e no reconhecimento da patria potestas, que se apoia nos pilares do direito romano e da moral cristã». Malinowski conclui: «O complexo familiar não pode ser o mesmo em todas as raças e em todos os povos de que a humanidade se compõe: deve variar com a constituição da família». A família ocidental engendra um complexo onde a criança ama a mãe e alimenta um desejo de morte do pai, enquanto a família trobriandesa engendra um complexo onde é a irmã que é desejada e o tio materno que se quer matar. Usando o método psicanalítico fundado sobre a lei da associação, Róheim faz os nativos da Melanésia - ilhas de Normanby - falar a fim de os levar a uma reacção transferencial, ao mesmo tempo que analisa os sonhos, os jogos das suas crianças e os contos que lhe são contados. As suas conclusões opõem-se às de Malinowski. A estrutura anal transparece claramente nos sonhos com carácter obsceno, estando evidenciada na tendência dos melanésios para a retenção e para a avareza (1). Ao contrário da descrição dada por Malinowski, a mãe, longe de ser uma figura generosa, é vista pela criança como uma má mãe, até porque aleita mal os seus filhos e os desmama brutalmente no fim do primeiro ano. O rapaz é animado pelo desejo incestuoso da sua mãe e não da sua irmã ou da sua tia materna, desejo a que terá de renunciar (2). O pai não é aquela figura simpática retratada por Malinowski, porque os seus comportamentos com os filhos incluem actos tais como brincar a morder o pénis dos rapazes e ameaçá-los de castração em caso de desobediência: os rapazes melanésios vivem dominados pela angústia de castração pelo pai e a sua projecção fantasmática sob a forma do feitiçeiro (3). Durante os seis primeiros anos da sua vida, a criança é educada como entre nós com o seu pai e a sua mãe, passando para a autoridade do seu tio materno na época em que os seus conflitos edipianos já foram resolvidos: não há pois necessidade de substituir o complexo de Édipo pelo complexo avuncunlar, como faz Malinowski (4). Wilhelm Reich menciona a polémica travada entre Ernest Jones e Malinowski sobre o complexo de Édipo nas sociedades matriarcais para tomar partido pela posição de Malinowski historicizada: «A hipótese do complexo de Édipo vale para todas as sociedades patriarcais; mas, segundo as investigações de Malinowski, as relações entre pais e filhos são tão diferentes nas sociedades matriarcais, que nunca se pode falar de complexo de Édipo nestas sociedades». O complexo de Édipo não é uma estrutura eterna, mas um facto socialmente determinado, cuja forma se modifica com a estrutura social. G. Deleuze e F. Guattari situam-se na linha daqueles que negam a universalidade do complexo de Édipo: o complexo de Édipo não é um facto originário; a psicanálise é responsável pelo processo histórico de edipianizar os indivíduos, de modo a canalizar o desejo humano para poder culpabilizá-lo. Porém, O Édipo Africano (1966) de Marie-Céline e Edmond Ortigues reforça em novos moldes a perspectiva de Róheim contra a de Malinowski. Róheim mostrou que, nas ilhas Normanby, a relação filho/mãe/pai, determinante para a criança em tenra idade, transforma-se, no momento da puberdade, numa relação tio/tia/sobrinho, e, depois, aquando do casamento, essa relação desloca-se para as relações cunhado/mulher/marido. Como observa B. Valade, Róheim esboça uma espécie de caracterologia das culturas, isto é, das organizações sócioculturais que são outras tantas variações sobre o mesmo tema. Sem abandonar as figuras nucleares do freudismo, Róheim retoma as tentativas antropológicas de Freud que, das primeiras cartas a Fliess (1887-1902) passando por Totem e Tabu (1913), O Futuro de uma Ilusão (1927) e Mal-estar na Civilização (1929), nos conduz até Moisés e o Monoteísmo (1938), utilizando-as para produzir o conhecimento das sociedades arcaicas – as mais primitivas – que estuda no terreno: os aborígenes do deserto central australiano e as populações da Melanésia, da Somália e da América. A finalidade destes estudos de terreno é mais teórica do que etnográfica: Róheim elabora uma teoria da cultura cuja pedra angular é a unidade do género humano e as consequências decorrentes do facto de o homem ter uma infância prolongada. Róheim acentua mais a origem comum das culturas do que a sua diversidade. Todas as culturas primitivas estruturam a tribo em redor da personalidade de um ser com comportamento neurótico, através do qual emerge como princípio dominante da sociedade um determinado ideal colectivo fundado numa situação infantil. A analogia entre neurose e cultura realiza-se por intermédio desse princípio dominante que assegura a unidade de toda a atmosfera inconsciente comum a todos os membros do grupo social. Cada uma das atmosferas que configura uma cultura dá lugar a uma determinada figura dominante: a angústia de castração, o medo da mãe ou uma prática compulsiva. A redução de toda a cultura a um princípio único, visível em todas as suas manifestações, apaga a ligação entre o recalcamento e as sociedades actuais. Para Róheim, a sublimação não é da ordem do futuro como em Freud: a cultura actual difere da neurose pelo facto de não ser frustrante, oferecendo substitutos – bens, dinheiro, imagens sexuais – às pulsões e permitindo ao indivíduo encontrar satisfações no âmbito da sociedade: «A base da sociedade é constituída por estas substituições, e por conseguinte a psicologia do desenvolvimento confunde-se, em muitos dos seus aspectos, com a psicologia da cultura». Este elogio sem reservas da cultura afecta e anula o núcleo crítico da psicanálise, fazendo da sua terapia uma mera técnica de adaptação, ou melhor, um curso de resignação e de aceitação individual da arregimentação civilizada das suas necessidades instintivas, em especial da sua sexualidade, como demonstrou Marcuse quando denuncia o carácter conformista do revisionismo neofreudiano (Karen Horney, Harry Stack Sullivan, Clara Thompson ou mesmo Erich Fromm). Definida como um mecanismo de defesa do eu, a sublimação permite ao indivíduo orientar-se para os objectos acessíveis e desenvolver uma actividade útil para todos. Neste aspecto, Róheim não está muito distante dos adeptos do culturalismo (Ralph Linton, Abraham Kardiner) que critica: «A civilização é um sistema de instituições edificadas tendo em vista a segurança». Para Róheim, «a economia primitiva e a economia em geral entram certamente na categoria a que chamamos em psicanálise a actividade do eu». O que importa estudar é a maneira como as pulsões inconscientes influenciam e modelam todas as actividades do eu. Assim, o arroteamento e a utilização de instrumentos cortantes na agricultura remetem para as pulsões destruidoras e explicam os mitos onde a cólera de uma criança está na origem da agricultura. Com a agricultura, a pulsão de destruir é colocada ao serviço de uma actividade do eu. À teoria de Freud, Róheim acrescenta a teoria de Bolk, isto é, o princípio do prolongamento da infância humana que torna a humanidade apta para sofrer todos os tipos de condicionamentos, na medida em que a importância da ontogénese aumenta com o grau de retardamento. Compreender a natureza humana é compreender o fenómeno da infância prolongada, que provocou uma ruptura na adaptação biológica original ao meio. A dualidade humana específica – o contraste entre eu e id – enraíza-se neste processo de retardamento. A cultura significa, em termos antropológicos, humanização: o problema da origem da cultura, o problema da origem da humanidade e o problema dos traços específicos da espécie humana constituem um só e mesmo problema. A conexão lógica entre cultura e mente humana não concede o primado nem à cultura nem à mente, porque, historicamente, ambas co-emergiram e se pressupõem mutuamente. Georges Devereux considera que a aquisição da Cultura em si pela criança e a transformação que de um espécimen imaturo de genus homo – no sentido zoológico – realiza um ser humano intervêm simultaneamente. Devereux reserva o conceito de humanização para designar este duplo processo, funcionalmente indivisível, para o distinguir da etnização: o processo de aquisição de uma cultura específica. A humanização é realizada através da aquisição da Cultura e actualiza as potencialidades do homem, enquanto a etnização proporciona uma série de meios específicos para a sua actualização. Cultura e humanidade são conceitos equivalentes: a cultura humana é um sistema de defesa contra as situações libidinais infantis criadas pelo prolongamento da infância. Róheim desenvolve cabalmente a sua noção de cultura, trabalhando-a na sua diferença quer contra a noção filogenética de cultura proposta por Freud em Totem e Tabu, quer contra a noção de cultura proposta pela antropologia culturalista. Para Róheim, a cultura humana é a consequência da infância prolongada da espécie humana, e as diversas áreas culturais decorrem da situação infantil típica que reina em cada uma das culturas humanas. O que é preciso compreender não é como os seres humanos reagem a certas instituições, mas como as próprias instituições são condicionadas pelo infantilismo permanente: as profissões e as instituições mais não são do que deformações e projecções da situação infantil. Para Róheim, o retardamento da infância – a incapacidade de suportar tensões – levou a humanidade a inventar a civilização: os objectos culturais – sublimações – são os equivalentes super-orgânicos da infância. A diferença entre a neurose e a sublimação reside no facto da última ser um processo social: «Uma neurose isola; uma sublimação une». Na sublimação, alguma coisa nova é criada no seio de um grupo ou para o uso de um grupo. A sublimação dos instintos é um dos traços mais característicos da evolução cultural. Quando abandona a ideia de Freud de uma memória filogenética do parricídio primordial, Róheim recorre a certos traços próprios da espécie humana que dão conta de um complexo sexual universal. Três desses traços são a universal vinculação afectiva entre mãe e filho – a situação libidinal original, a sexualidade precoce dos seres humanos que desperta antes de terem atingido a maturidade física ou mental, e a combinação da sexualidade precoce com a maturação dos processos mentais que enchem a cabeça das crianças com imagens libidinosas. Segundo Róheim, a psicanálise não está ligada a uma determinada cultura – a nossa cultura patriarcal, e, por conseguinte, os seus métodos têm validade universal: «Pode haver muitos tipos de personalidade, mas só há um inconsciente». A defesa de um único inconsciente implica a defesa da doutrina da unidade psíquica da humanidade, isto é, da universalidade do psiquismo humano. Róheim reconhece a relevância da elaboração cultural individual, mas recusa compreendê-la separada dos seus ingredientes universais. A análise psicocultural explica os fenómenos culturais específicos em termos das modificações das experiências infantis pelos costumes culturalmente estabelecidos, sem no entanto esquecer a situação edipiana. Géza Róheim afirma constantemente a unidade do género humano ou, como prefere dizer, a unidade fundamental da humanidade, a qual só pode ser clarificada à luz deste enunciado simples - existem diversos tipos de personalidade, mas só existe um inconsciente. Ou, na linguagem preferida por Róheim, os sonhos têm a mesma significação latente em todas as culturas. Para Róheim, o traço indiscutivelmente comum da humanidade «é a sua infância prolongada e o carácter globalmente juvenil do Homo sapiens em relação às outras espécies animais». Róheim desenvolve uma teoria da natureza humana para explicar a continuidade e a mudança cultural: todos os traços culturais são, em grande medida, o produto de um conjunto de constantes biofísicas partilhadas por todos os seres humanos. As constantes biofísicas interagem com as variáveis dos meios natural e cultural específicos e constituem uma parte necessária da equação pela qual devemos explicar tipos específicos de fenómenos de ocorrência não universal. Eis aqui o «resumo do resumo» dessa teoria da natureza humana apresentado pelo próprio Róheim e inspirado nas descobertas básicas de Freud: A vida do indivíduo é condicionada pelos acontecimentos que ocorreram durante a sua infância ou pela totalidade do meio em que viveu, mas a criança não se limita a reflectir passivamente o seu meio; ela deforma-o. A evolução consiste numa combinação de factores autogénos e ectogénos (1). O homem não se comporta de uma maneira natural; pelo contrário, o homem comporta-se de uma maneira não natural, porque a educação significa uma infância prolongada e jamais ultrapassada. A natureza humana, que é cultura, funda-se sobre um substrato biológico: o homem é um feto de primata que atingiu a maturidade sexual (Bolk). Os factores autogéneos são principalmente a fetalização e o conflito endopsíquico - o conflito entre superego e ideal do eu (2). O superego é a agressão inconsciente voltada contra o ego e o parente considerado como responsável por essa agressão. O superego é um aparelho inconsciente, negativo ou oscilante, que nasce da situação mãe-criança, tal como observou Mélanie Klein, e se organiza posteriormente de forma mais fechada na situação triangular ou edipiana quando entra em cena o pai. Enquanto o superego é a autodestruição inconsciente, o ideal do eu emana da libido imanente ao corpo: o ideal do eu é a resposta do eu ao meio frustrante. Se o superego diz "não faças, não podes", o ideal do eu afirma "eu farei, eu posso". Em relação ao prolongamento da duração de vida, e particularmente da infância, os seres humanos conservam a taxa de crescimento fetal do cérebro: O cérebro continua a desenvolver-se durante o período pós-natal, no âmbito da situação mãe-criança protegida, isto é, da situação libidinal (3). Além disso, em relação ao ritmo de crescimento do corpo humano, a sexualidade humana é relativamente precoce (4). A associação deste facto com o crescimento fetal do cérebro humano ajuda a explicar a natureza libidinal do fantasma. Os mecanismos de defesa desenvolvem-se para proteger o ego contra a libido prematura (5). A infância prolongada ajuda a explicar o carácter traumático das experiências sexuais e a existência universal do complexo de Édipo - esse conflito entre antigos e novos objectos de amor: a fragilidade do ego em relação ao Id obriga o eu imaturo a forjar mecanismos de defesa para se proteger de quantidades excessivas de libido que não está preparado para afrontar. Os seres humanos são, pelo menos em parte, permanentemente juvenis (6). A fragilidade da sua infância relativamente prolongada é compensada pela identificação do adulto com a criança, isto é, pelo condicionamento ou pela educação. A existência do simbolismo e de certos traços humanos universais é devida a esta neotenia universal do género humano: o simbolismo e os traços universais são autogénos e, por conseguinte, não são condicionados pela cultura (7). Para Róheim, a interpretação psicanalítica não releva, portanto, da cultura: os seus métodos têm uma validade universal. Podem existir diversos tipos de personalidade, mas há somente um inconsciente. Por isso, a investigação etno-analítica de Róheim estilhaçou completamente as teses de B. Malinowsky que negavam a existência universal do complexo de Édipo, cobrindo-as de ridículo (Roger Dadoun): o complexo de Édipo conserva o seu significado tanto nas sociedades patriarcais como nas sociedades matriarcais. O conceito de personalidade de base (Ralph Linton), isto é, de uma personalidade fundada sobre uma situação infantil comum, é válido apenas quando aplicado a pequenos grupos, mas a sua validade é duvidosa quando aplicado às nações modernas, como fizeram Ruth Benedict, Melville J. Herskovits e Clyde Kluckhohn (8). Ao levar em conta apenas as nações modernas, a antropologia cultural nega tacitamente a unidade fundamental do género humano e o carácter único do indivíduo. Ler Géza Róheim é tarefa difícil, mas estas breves observações são suficientes para mostrar a actualidade de uma obra maliciosamente ignorada pela antropologia e pela filosofia. Geralmente, no âmbito da antropologia filosófica - disciplina filosófica fundamental dedicada a elaborar uma teoria coerente do homem e dos seus atributos, fundada por Max Scheler e realizada por H. Plessner, A. Portmann, A. Gehlen, E. Rothacker e M. Landmann -, é costume distinguir diversas problemáticas teóricas: a abordagem culturalista (Rothacker, Cassirer), a abordagem psicológica (Ph. Lersch, Ashley Montagu), a abordagem sociológica (Marcuse, Fromm), a abordagem etnológica (Lévi-Strauss) e a abordagem teológica (Pannenberg). Porém, duas das maiores figuras da abordagem psicológica - Géza Róheim e Georges Devereux - são sistematicamente escamoteadas. Se a antropologia filosófica pretende ajudar a orientar o homem num mundo que ameaça a continuidade da sua aventura, como observa Konrad Lorenz, deve prestar mais atenção à etnopsiquiatria de Devereux e à antropologia psicanalítica que Géza Róheim elaborou em diversas obras, das quais destacaremos Animismo, Magia e o Rei Divino (1934), O Enigma da Esfinge ou as Origens do Homem (1943), Origem e Função da Cultura (1943), Heróis Fálicos e Símbolos Maternos na Mitologia Australiana (1945), Psicanálise e Antropologia (1950), As Portas do Sonho (1953) e Magia e Esquizofrenia (1955). Na perspectiva destes autores, a antropologia não pode utilizar um sistema psicológico centrado no genus homo - definido zoologicamente -. mas no ser humano social que vive em comunidade organizada sócioculturalmente e não numa colmeia organizada biologicamente. Como a psicanálise satisfaz este critério, a etnologia deve recorrer ao seu método, com o objectivo de constituir de um modo produtivo uma ciência do homem que, sem menosprezar a natureza biológica do homem, saiba destacar o comportamento específica e exclusivamente humano, constituindo-se assim na última fortaleza do conceito de homem enquanto fim em si mesmo. (Ver este artigo da Wikipédia dedicado ao tema Antropologia e Psicanálise.) J Francisco Saraiva de Sousa
«Dès les toutes premières tentatives d'application de la psychanalyse aux phénomènes culturels, l'analogie structurel de la culture et de la névrose - ou "formation du système psychique" - a été tacitement admise. Aucun psychanalyste ne semble être en mesure de contester valablement la fameuse trilogie freudienne, celle où Freud compare la paranoïa à la philosophie, la névrose obsessionnelle à la religion (rituel), et l´hystérie à l'art. En rapprochant ainsi trois des aspects les plus importants de la culture de trois types de névroses, Freud comparaît implicitement la culture elle-même à la névrose en général. Par ailleurs, si l'on examine les nombreux travaux de "psychanalyse appliquée", on s'aperçoit qu'à chaque instant, l'élément culturel, sous quelque forme qu'il se présente, est expliqué à partir des mêmes mécanismes qui sont à l'oeuvre dans les différentes sortes de névroses». (Géza Róheim) Géza Róheim (1891-1953) foi o primeiro grande antropólogo psicanalista que soube criar uma convergência produtiva entre a psicanálise e a etnologia a partir da combinação da sua autoridade clínica e de trabalhos de campo que realizou no continente australiano. Estou a lembrá-lo para arrancar o seu pensamento ao isolamento e ao esquecimento a que foi condenado pelos seus colegas de profissão que nunca lhe perdoaram o facto de ter denunciado o relativismo boasiano como indicador e resultado de um nacionalismo reprimido. A defensa boasiana de que os factores culturais podem impedir o surgimento dos sentimentos edipianos é interpretada como uma criação do complexo de Édipo do antropólogo ou do psiquiatra: os relativistas boasianos e os adeptos do particularismo histórico - o conceito de que cada cultura particular é produto de um desenvolvimento histórico separado e isolado - sofrem um complexo de Édipo não resolvido e, por isso, tendem a negar as provas etno-antropológicas da sua existência. Porém, Róheim vai mais longe quando os acusa de serem cripto-racistas: a repressão do complexo de Édipo caminha a par de outra tendência pré-consciente, a ideia nacionalista de que todas as nações são completamente diferentes umas das outras. Ora, a afirmação de que o objectivo da antropologia consiste em mostrar essa diferença é mais outra manifestação de nacionalismo que Róheim encara como a contrapartida democrática da doutrina racial nazi. As atitudes humanistas por detrás das quais se refugiam os relativistas boasianos resultam da formação de um compromisso entre duas tendências opostas: a formação de reacção da relatividade cultural resume-se a esta frase - "Você é completamente diferente de mim, mas eu estou pronto a perdoar-lhe". No entanto, neste perdão esconde-se a tendência mais antiga da humanidade: o grupo endógeno unido contra o grupo exógeno. Marvin Harris integra a antropologia psicanalítica de Róheim no âmbito do movimento de Cultura e Personalidade, na sua fase psicanalítica, junto de nomes tais como Bruno Bettelheim, Abram Kardiner, Ralph Linton e Erik Erikson. O culturalismo que se apoderou deste movimento paradigmático da antropologia encontra-se claramente definido nestas palavras de Ruth Benedict: «A história da vida individual de cada pessoa é acima de tudo uma acomodação aos padrões de forma e de medida tradicionalmente transmitidos na sua comunidade de geração em geração. Desde que o indivíduo vem ao mundo os costumes do ambiente em que nasceu moldam a sua experiência dos factos e a sua conduta. Quando começa a falar, ele é o frutozinho da sua cultura, e quando crescido e capaz de tomar parte nas actividades desta, os hábitos dela são os seus hábitos, as crenças dela, as suas crenças, as incapacidades dela, as suas incapacidades. Todo aquele que nasça no seu grupo delas partilhará com ele, e todo aquele que nasça num grupo do lado oposto do globo adquirirá a milésima parte dessa herança». Ao rejeitarem a herança arcaica da humanidade - no sentido de Freud, os culturalistas tendem a ver a mente do recém-nascido como um balde vazio que adquire conteúdos ao longo do processo de endoculturação: a cultura molda os seus próprios indivíduos e as culturas diferentes moldam indivíduos diferentes, como se não houvesse uma unidade do psiquismo humano. Mesmo quando recorrem à psicanálise, os culturalistas - Margaret Mead, Ruth Benedict, Ralph Linton, Erich Fromm, Karen Horney e A. Kardiner - acentuam o papel de moldagem da cultura, recusando a existência de traços humanos universais e de um modelo único de desenvolvimento. A articulação teórica que apresentam entre indivíduo, organização familiar e grupo imputa as tensões conflituais não à natureza humana, mas às condições culturais do funcionamento social. Em 1924, Malinowski publicou Família Matriarcal e Complexo de Édipo, onde fez ruir o edifício construído por Freud em Totem e Tabu (1913). Na ilha Melanésia de Trobriand, a filiação é matrilinear e as leis biológicas da paternidade são ignoradas. Os direitos e os deveres da paternidade ficam entregues a um tio materno que vive fora de casa, polarizando os sentimentos de hostilidade suscitados pela sua condição. Irmãos e irmãs, separados desde a adolescência por um tabu rigoroso, vivem numa relação amistosa com o pai verdadeiro. Como escreve Malinowski: «Sendo o direito matrilinear distinto do direito patrilinear, os sistemas de atitudes pertinentes a esses dois tipos de sociedade só podem ser radicalmente diferentes». Na sociedade matrilinear, as relações ambivalentes de veneração e hostilidade estabelecem-se entre o jovem varão e o seu tio materno: a repressão incide unicamente sobre o desejo incestuoso que tem por objecto a irmã e não a mãe. «O único complexo reconhecido pela escolha freudiana e considerado como tendo alcance universal, o complexo de Édipo, corresponde essencialmente ao nosso tipo de família, fundamentado na descendência patrilinear e no reconhecimento da patria potestas, que se apoia nos pilares do direito romano e da moral cristã». Malinowski conclui: «O complexo familiar não pode ser o mesmo em todas as raças e em todos os povos de que a humanidade se compõe: deve variar com a constituição da família». A família ocidental engendra um complexo onde a criança ama a mãe e alimenta um desejo de morte do pai, enquanto a família trobriandesa engendra um complexo onde é a irmã que é desejada e o tio materno que se quer matar. Usando o método psicanalítico fundado sobre a lei da associação, Róheim faz os nativos da Melanésia - ilhas de Normanby - falar a fim de os levar a uma reacção transferencial, ao mesmo tempo que analisa os sonhos, os jogos das suas crianças e os contos que lhe são contados. As suas conclusões opõem-se às de Malinowski. A estrutura anal transparece claramente nos sonhos com carácter obsceno, estando evidenciada na tendência dos melanésios para a retenção e para a avareza (1). Ao contrário da descrição dada por Malinowski, a mãe, longe de ser uma figura generosa, é vista pela criança como uma má mãe, até porque aleita mal os seus filhos e os desmama brutalmente no fim do primeiro ano. O rapaz é animado pelo desejo incestuoso da sua mãe e não da sua irmã ou da sua tia materna, desejo a que terá de renunciar (2). O pai não é aquela figura simpática retratada por Malinowski, porque os seus comportamentos com os filhos incluem actos tais como brincar a morder o pénis dos rapazes e ameaçá-los de castração em caso de desobediência: os rapazes melanésios vivem dominados pela angústia de castração pelo pai e a sua projecção fantasmática sob a forma do feitiçeiro (3). Durante os seis primeiros anos da sua vida, a criança é educada como entre nós com o seu pai e a sua mãe, passando para a autoridade do seu tio materno na época em que os seus conflitos edipianos já foram resolvidos: não há pois necessidade de substituir o complexo de Édipo pelo complexo avuncunlar, como faz Malinowski (4). Wilhelm Reich menciona a polémica travada entre Ernest Jones e Malinowski sobre o complexo de Édipo nas sociedades matriarcais para tomar partido pela posição de Malinowski historicizada: «A hipótese do complexo de Édipo vale para todas as sociedades patriarcais; mas, segundo as investigações de Malinowski, as relações entre pais e filhos são tão diferentes nas sociedades matriarcais, que nunca se pode falar de complexo de Édipo nestas sociedades». O complexo de Édipo não é uma estrutura eterna, mas um facto socialmente determinado, cuja forma se modifica com a estrutura social. G. Deleuze e F. Guattari situam-se na linha daqueles que negam a universalidade do complexo de Édipo: o complexo de Édipo não é um facto originário; a psicanálise é responsável pelo processo histórico de edipianizar os indivíduos, de modo a canalizar o desejo humano para poder culpabilizá-lo. Porém, O Édipo Africano (1966) de Marie-Céline e Edmond Ortigues reforça em novos moldes a perspectiva de Róheim contra a de Malinowski. Róheim mostrou que, nas ilhas Normanby, a relação filho/mãe/pai, determinante para a criança em tenra idade, transforma-se, no momento da puberdade, numa relação tio/tia/sobrinho, e, depois, aquando do casamento, essa relação desloca-se para as relações cunhado/mulher/marido. Como observa B. Valade, Róheim esboça uma espécie de caracterologia das culturas, isto é, das organizações sócioculturais que são outras tantas variações sobre o mesmo tema. Sem abandonar as figuras nucleares do freudismo, Róheim retoma as tentativas antropológicas de Freud que, das primeiras cartas a Fliess (1887-1902) passando por Totem e Tabu (1913), O Futuro de uma Ilusão (1927) e Mal-estar na Civilização (1929), nos conduz até Moisés e o Monoteísmo (1938), utilizando-as para produzir o conhecimento das sociedades arcaicas – as mais primitivas – que estuda no terreno: os aborígenes do deserto central australiano e as populações da Melanésia, da Somália e da América. A finalidade destes estudos de terreno é mais teórica do que etnográfica: Róheim elabora uma teoria da cultura cuja pedra angular é a unidade do género humano e as consequências decorrentes do facto de o homem ter uma infância prolongada. Róheim acentua mais a origem comum das culturas do que a sua diversidade. Todas as culturas primitivas estruturam a tribo em redor da personalidade de um ser com comportamento neurótico, através do qual emerge como princípio dominante da sociedade um determinado ideal colectivo fundado numa situação infantil. A analogia entre neurose e cultura realiza-se por intermédio desse princípio dominante que assegura a unidade de toda a atmosfera inconsciente comum a todos os membros do grupo social. Cada uma das atmosferas que configura uma cultura dá lugar a uma determinada figura dominante: a angústia de castração, o medo da mãe ou uma prática compulsiva. A redução de toda a cultura a um princípio único, visível em todas as suas manifestações, apaga a ligação entre o recalcamento e as sociedades actuais. Para Róheim, a sublimação não é da ordem do futuro como em Freud: a cultura actual difere da neurose pelo facto de não ser frustrante, oferecendo substitutos – bens, dinheiro, imagens sexuais – às pulsões e permitindo ao indivíduo encontrar satisfações no âmbito da sociedade: «A base da sociedade é constituída por estas substituições, e por conseguinte a psicologia do desenvolvimento confunde-se, em muitos dos seus aspectos, com a psicologia da cultura». Este elogio sem reservas da cultura afecta e anula o núcleo crítico da psicanálise, fazendo da sua terapia uma mera técnica de adaptação, ou melhor, um curso de resignação e de aceitação individual da arregimentação civilizada das suas necessidades instintivas, em especial da sua sexualidade, como demonstrou Marcuse quando denuncia o carácter conformista do revisionismo neofreudiano (Karen Horney, Harry Stack Sullivan, Clara Thompson ou mesmo Erich Fromm). Definida como um mecanismo de defesa do eu, a sublimação permite ao indivíduo orientar-se para os objectos acessíveis e desenvolver uma actividade útil para todos. Neste aspecto, Róheim não está muito distante dos adeptos do culturalismo (Ralph Linton, Abraham Kardiner) que critica: «A civilização é um sistema de instituições edificadas tendo em vista a segurança». Para Róheim, «a economia primitiva e a economia em geral entram certamente na categoria a que chamamos em psicanálise a actividade do eu». O que importa estudar é a maneira como as pulsões inconscientes influenciam e modelam todas as actividades do eu. Assim, o arroteamento e a utilização de instrumentos cortantes na agricultura remetem para as pulsões destruidoras e explicam os mitos onde a cólera de uma criança está na origem da agricultura. Com a agricultura, a pulsão de destruir é colocada ao serviço de uma actividade do eu. À teoria de Freud, Róheim acrescenta a teoria de Bolk, isto é, o princípio do prolongamento da infância humana que torna a humanidade apta para sofrer todos os tipos de condicionamentos, na medida em que a importância da ontogénese aumenta com o grau de retardamento. Compreender a natureza humana é compreender o fenómeno da infância prolongada, que provocou uma ruptura na adaptação biológica original ao meio. A dualidade humana específica – o contraste entre eu e id – enraíza-se neste processo de retardamento. A cultura significa, em termos antropológicos, humanização: o problema da origem da cultura, o problema da origem da humanidade e o problema dos traços específicos da espécie humana constituem um só e mesmo problema. A conexão lógica entre cultura e mente humana não concede o primado nem à cultura nem à mente, porque, historicamente, ambas co-emergiram e se pressupõem mutuamente. Georges Devereux considera que a aquisição da Cultura em si pela criança e a transformação que de um espécimen imaturo de genus homo – no sentido zoológico – realiza um ser humano intervêm simultaneamente. Devereux reserva o conceito de humanização para designar este duplo processo, funcionalmente indivisível, para o distinguir da etnização: o processo de aquisição de uma cultura específica. A humanização é realizada através da aquisição da Cultura e actualiza as potencialidades do homem, enquanto a etnização proporciona uma série de meios específicos para a sua actualização. Cultura e humanidade são conceitos equivalentes: a cultura humana é um sistema de defesa contra as situações libidinais infantis criadas pelo prolongamento da infância. Róheim desenvolve cabalmente a sua noção de cultura, trabalhando-a na sua diferença quer contra a noção filogenética de cultura proposta por Freud em Totem e Tabu, quer contra a noção de cultura proposta pela antropologia culturalista. Para Róheim, a cultura humana é a consequência da infância prolongada da espécie humana, e as diversas áreas culturais decorrem da situação infantil típica que reina em cada uma das culturas humanas. O que é preciso compreender não é como os seres humanos reagem a certas instituições, mas como as próprias instituições são condicionadas pelo infantilismo permanente: as profissões e as instituições mais não são do que deformações e projecções da situação infantil. Para Róheim, o retardamento da infância – a incapacidade de suportar tensões – levou a humanidade a inventar a civilização: os objectos culturais – sublimações – são os equivalentes super-orgânicos da infância. A diferença entre a neurose e a sublimação reside no facto da última ser um processo social: «Uma neurose isola; uma sublimação une». Na sublimação, alguma coisa nova é criada no seio de um grupo ou para o uso de um grupo. A sublimação dos instintos é um dos traços mais característicos da evolução cultural. Quando abandona a ideia de Freud de uma memória filogenética do parricídio primordial, Róheim recorre a certos traços próprios da espécie humana que dão conta de um complexo sexual universal. Três desses traços são a universal vinculação afectiva entre mãe e filho – a situação libidinal original, a sexualidade precoce dos seres humanos que desperta antes de terem atingido a maturidade física ou mental, e a combinação da sexualidade precoce com a maturação dos processos mentais que enchem a cabeça das crianças com imagens libidinosas. Segundo Róheim, a psicanálise não está ligada a uma determinada cultura – a nossa cultura patriarcal, e, por conseguinte, os seus métodos têm validade universal: «Pode haver muitos tipos de personalidade, mas só há um inconsciente». A defesa de um único inconsciente implica a defesa da doutrina da unidade psíquica da humanidade, isto é, da universalidade do psiquismo humano. Róheim reconhece a relevância da elaboração cultural individual, mas recusa compreendê-la separada dos seus ingredientes universais. A análise psicocultural explica os fenómenos culturais específicos em termos das modificações das experiências infantis pelos costumes culturalmente estabelecidos, sem no entanto esquecer a situação edipiana. Géza Róheim afirma constantemente a unidade do género humano ou, como prefere dizer, a unidade fundamental da humanidade, a qual só pode ser clarificada à luz deste enunciado simples - existem diversos tipos de personalidade, mas só existe um inconsciente. Ou, na linguagem preferida por Róheim, os sonhos têm a mesma significação latente em todas as culturas. Para Róheim, o traço indiscutivelmente comum da humanidade «é a sua infância prolongada e o carácter globalmente juvenil do Homo sapiens em relação às outras espécies animais». Róheim desenvolve uma teoria da natureza humana para explicar a continuidade e a mudança cultural: todos os traços culturais são, em grande medida, o produto de um conjunto de constantes biofísicas partilhadas por todos os seres humanos. As constantes biofísicas interagem com as variáveis dos meios natural e cultural específicos e constituem uma parte necessária da equação pela qual devemos explicar tipos específicos de fenómenos de ocorrência não universal. Eis aqui o «resumo do resumo» dessa teoria da natureza humana apresentado pelo próprio Róheim e inspirado nas descobertas básicas de Freud: A vida do indivíduo é condicionada pelos acontecimentos que ocorreram durante a sua infância ou pela totalidade do meio em que viveu, mas a criança não se limita a reflectir passivamente o seu meio; ela deforma-o. A evolução consiste numa combinação de factores autogénos e ectogénos (1). O homem não se comporta de uma maneira natural; pelo contrário, o homem comporta-se de uma maneira não natural, porque a educação significa uma infância prolongada e jamais ultrapassada. A natureza humana, que é cultura, funda-se sobre um substrato biológico: o homem é um feto de primata que atingiu a maturidade sexual (Bolk). Os factores autogéneos são principalmente a fetalização e o conflito endopsíquico - o conflito entre superego e ideal do eu (2). O superego é a agressão inconsciente voltada contra o ego e o parente considerado como responsável por essa agressão. O superego é um aparelho inconsciente, negativo ou oscilante, que nasce da situação mãe-criança, tal como observou Mélanie Klein, e se organiza posteriormente de forma mais fechada na situação triangular ou edipiana quando entra em cena o pai. Enquanto o superego é a autodestruição inconsciente, o ideal do eu emana da libido imanente ao corpo: o ideal do eu é a resposta do eu ao meio frustrante. Se o superego diz "não faças, não podes", o ideal do eu afirma "eu farei, eu posso". Em relação ao prolongamento da duração de vida, e particularmente da infância, os seres humanos conservam a taxa de crescimento fetal do cérebro: O cérebro continua a desenvolver-se durante o período pós-natal, no âmbito da situação mãe-criança protegida, isto é, da situação libidinal (3). Além disso, em relação ao ritmo de crescimento do corpo humano, a sexualidade humana é relativamente precoce (4). A associação deste facto com o crescimento fetal do cérebro humano ajuda a explicar a natureza libidinal do fantasma. Os mecanismos de defesa desenvolvem-se para proteger o ego contra a libido prematura (5). A infância prolongada ajuda a explicar o carácter traumático das experiências sexuais e a existência universal do complexo de Édipo - esse conflito entre antigos e novos objectos de amor: a fragilidade do ego em relação ao Id obriga o eu imaturo a forjar mecanismos de defesa para se proteger de quantidades excessivas de libido que não está preparado para afrontar. Os seres humanos são, pelo menos em parte, permanentemente juvenis (6). A fragilidade da sua infância relativamente prolongada é compensada pela identificação do adulto com a criança, isto é, pelo condicionamento ou pela educação. A existência do simbolismo e de certos traços humanos universais é devida a esta neotenia universal do género humano: o simbolismo e os traços universais são autogénos e, por conseguinte, não são condicionados pela cultura (7). Para Róheim, a interpretação psicanalítica não releva, portanto, da cultura: os seus métodos têm uma validade universal. Podem existir diversos tipos de personalidade, mas há somente um inconsciente. Por isso, a investigação etno-analítica de Róheim estilhaçou completamente as teses de B. Malinowsky que negavam a existência universal do complexo de Édipo, cobrindo-as de ridículo (Roger Dadoun): o complexo de Édipo conserva o seu significado tanto nas sociedades patriarcais como nas sociedades matriarcais. O conceito de personalidade de base (Ralph Linton), isto é, de uma personalidade fundada sobre uma situação infantil comum, é válido apenas quando aplicado a pequenos grupos, mas a sua validade é duvidosa quando aplicado às nações modernas, como fizeram Ruth Benedict, Melville J. Herskovits e Clyde Kluckhohn (8). Ao levar em conta apenas as nações modernas, a antropologia cultural nega tacitamente a unidade fundamental do género humano e o carácter único do indivíduo. Ler Géza Róheim é tarefa difícil, mas estas breves observações são suficientes para mostrar a actualidade de uma obra maliciosamente ignorada pela antropologia e pela filosofia. Geralmente, no âmbito da antropologia filosófica - disciplina filosófica fundamental dedicada a elaborar uma teoria coerente do homem e dos seus atributos, fundada por Max Scheler e realizada por H. Plessner, A. Portmann, A. Gehlen, E. Rothacker e M. Landmann -, é costume distinguir diversas problemáticas teóricas: a abordagem culturalista (Rothacker, Cassirer), a abordagem psicológica (Ph. Lersch, Ashley Montagu), a abordagem sociológica (Marcuse, Fromm), a abordagem etnológica (Lévi-Strauss) e a abordagem teológica (Pannenberg). Porém, duas das maiores figuras da abordagem psicológica - Géza Róheim e Georges Devereux - são sistematicamente escamoteadas. Se a antropologia filosófica pretende ajudar a orientar o homem num mundo que ameaça a continuidade da sua aventura, como observa Konrad Lorenz, deve prestar mais atenção à etnopsiquiatria de Devereux e à antropologia psicanalítica que Géza Róheim elaborou em diversas obras, das quais destacaremos Animismo, Magia e o Rei Divino (1934), O Enigma da Esfinge ou as Origens do Homem (1943), Origem e Função da Cultura (1943), Heróis Fálicos e Símbolos Maternos na Mitologia Australiana (1945), Psicanálise e Antropologia (1950), As Portas do Sonho (1953) e Magia e Esquizofrenia (1955). Na perspectiva destes autores, a antropologia não pode utilizar um sistema psicológico centrado no genus homo - definido zoologicamente -. mas no ser humano social que vive em comunidade organizada sócioculturalmente e não numa colmeia organizada biologicamente. Como a psicanálise satisfaz este critério, a etnologia deve recorrer ao seu método, com o objectivo de constituir de um modo produtivo uma ciência do homem que, sem menosprezar a natureza biológica do homem, saiba destacar o comportamento específica e exclusivamente humano, constituindo-se assim na última fortaleza do conceito de homem enquanto fim em si mesmo. (Ver este artigo da Wikipédia dedicado ao tema Antropologia e Psicanálise.) J Francisco Saraiva de Sousa
26 comentários:
Aviso que este texto que já tinha sido editado vai sofrer uma transformação radical, dando origem a outro texto. :)
A obra de Róheim é extensa, difícil e complexa, mas de facto merece mais atenção por parte dos portugueses e dos filósofos. Um aspecto que aprecio em Róheim é o facto dele ter mostrado que a natureza humana tem uma base biológica: o tal prolongamento da infância devido a um parto prematuro, uma versão da teoria de Bolk. Porém, Róheim é um pouco redutor, na medida em que explica a cultura em termos meramente psicológicos: a relação mãe-criança. E não é só a cultura: é também a história, como se verifica nos seus estudos empíricos sobre sociedades arcaicas.
Boa! logo q n tenha sono leio :)
Ai, estes geniais antropólogos e psicanalistas da Europa Central, tal como os filósofos e os biólogos da mesma região, andam a desafiar a minha cabeça, mas não tenho todas as obras necessárias para fazer face ao desafio que me colocam. De certo modo, a teoria do retardamento colide com o darwinismo, como se torna evidente em Gehlen, mas essa colisão não chega a ser pensada até ao fim. Apesar disso, a teoria seduz-me, mesmo quando é apresentada numa versão muito psicológica, como acontece em Róheim. Porém, ele esquece que o prolongamento da infância do qual resulta a cultura = humanização = socialização se deve à escassez de instintos - compensada por um cérebro grande que estrutura a acção humana. :)
Ah, Sr... Róheim tem uma teoria fascinante da magia e do animismo que, talvez um dia, resolva partilhar. Os trabalhos de campo dele são empolgantes e profundos: ele mergulha nas profundezas da psique humana que é universal. À unidade boasiana da cultura ele opõe a unidade do psiquismo! :)
Cool, tenho vindo a axar extremamente interessante recuperar estas coisas e repensa-las à luz de outras contribuiçoes de filosofos mais heterodoxos. Outro q nc li foi http://pt.wikipedia.org/wiki/Peter_Sloterdijk
lol, tive aqui a ler algo sobre a teoria das esferas e sobre a telecracia e, ou este comentador é meio basico e pouco fiel, ou entao o sloterdijk parece um tolinho esoterico.
http://www.observacionesfilosoficas.net/asinfluencias.html
Depois procuro livros a serio..
O Sloterdijk não é tão tolo quanto parece ser, até porque recupera algumas noções interessantes de Arendt. Porém, acho que não consegue fazer a síntese e esta dificuldade em pensar está presente nos nossos filósofos contemporâneos. É por isso que os deixei de frequentar e esta experiência blogosférica permite-me viajar e pensar os destinos dessas viagens, de modo livre e independente.
Enfim, Sloterdijk é pensamento redondo, como uma bola! :)
A nossa sociedade não incentiva as funções mentais superiores; pelo contrário, atrofia-as completamente. Além disso, a democratização do pensamento é avessa ao pensamento livre e aqui reside o momento de verdade de Nietzsche: o pensamento de rebanho - as pessoas pastam e ruminam como vacas. :(
axo q ja percebi o q se passa ahah
Como o gajo quer chocar a bancada racionalista e entao faz uso de figuras como a virgem maria, cristo etc, parece-me q mt ppl do lado das faculdades e confissoes cristãs o está tb a usar em proveito proprio e daí surgirem analises como a do link q postei atrás ;))
Aqui, por ex, já ta bem mais interessante http://recantodasletras.uol.com.br/ensaios/599682
Bem, hj ja n tenho pachorra e tou ensonado. amanhã exploro melhor isto e leio o seu post \0/
Sobre os rebanhos passei tb por este dele
O Desprezo das Massas - Ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna
Peter Sloterdijk
Editora Estação Liberdade
Tradução: Claudia Cavalcanti
117 pgs
O Desprezo das Massas é um brilhante ataque que o filósofo alemão Peter Sloterdijk desfere contra o senso comum "ilustrado", dada a asfixia do pensamento em exercícios diletantes das formas, amante de uma álgebra inútil.
Partindo de um diálogo com Elias Canetti e seu diagnóstico acerca da agressividade da massa (essa heroína apressada de uma modernidade iludida) contra o talento e a diferença antropológica vertical, e estendendo esse diálogo a Heidegger, Nietzsche, Foucault, Rorty (criticando nesse sua aposta em uma estupidez democrática anti-filosófica), entre outros, Sloterdjik chega mesmo a buscar luzes em alguns momentos da teologia da graça, mais uma vez revelando sua qualidade de não dizer o que não é normalmente considerado como de "bom tom" para as "posturas inteligentes modernas".
Aliás, essa tem sido sua tônica: dizer aquilo que a militância das "massas inteligentes" despreza: "Por essa razão em todo mundo crescem como erva daninha aquelas comissões de ética que, como institutos da destroçada filosofia, querem substituir os sábios". Luiz Felipe Pondé (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(la tá, uma univ catolica ;))
0/
Ya, não conheço essa obra, mas o tema das lutas culturais é pertinente, bem como a crítica das comissões de ética: um certo elitismo sempre foi aliado da filosofia. Vou ver se leio... :)
Só agora vi no Trio de Ataque que a Académica marcou dois golos com a mão ao FCPorto, aliás o segundo tinha visto logo durante o jogo.
Enfim, o benfica simula penalties e a académica é macaca, porque joga com as mãos. E os árbitros não fazem nada para penalizar estes jogadores da merda. E o que dizer dos jornalistas que comentam os jogos? São abortos benfiquistas!
Portugal é mesmo um país de bananas ridículas e estragadas - um país da merda, sem futuro por causa desta malta histérica e descerebralizada! O futuro de Portugal depende da liquidação encarnada, uma reminiscência fascista. O Sporting está cada vez mais frágil: os jogadores querem sair da equipa!
O sporting é o psd da 1ª Liga :)
Depois veja estas 56 fotos, todas valem a pena ^^
http://www.scribd.com/doc/6002539/Tribus-de-LOMO-Hans-Silvester
Sobre o Róheim, teria q ler mais coisas, mas, apesar de simpatica, n concordo nada com a sua tese central da cultura como projecção da infancia.
Axo q o q atravessa universalmente a mentalidade e psiquismo do homem das sociedades mais primitivas é sim o sagrado e tudo se pauta nessa relação.
Claro q qd falo aqui em sagrado n tem q ser o de caracter mais metafisico e poderá ser mais uma coisa no ambito da experiencia de unidade e ordem do cosmos q esse homem sente como transcendente*
Cheguei finalmente ao Porto e deixei de fumar. :)
Ah, vou concluir o Róheim. :)
Ah, já acrescentei novos parágrafos mas falta articular com o texto anterior. Agora vou desfrutar o Porto. :)
Ah, o SR devia já ter lido Freud, mas ok, depois de concluir Róheim, vou postar sobre Freud! :)
Além disso, percebeu mal a infância prolongada que exige a cultura para a proteger do escuro da noite! Se fossemos como os gansos, não precisávamos de cultura. :)
Ah, e já integro aqui g. devereux e a etnopsiquiatria.
O homófobo fez um post sobre Lévi-Strauss verdadeiramente vergonhoso, não compreende a distinção entre natureza e cultura, usando a primeira para justificar a sua homofobia. Homem tonto! :(
Eu tb ja tenho saudades de Lisboa..... minha Lisboa! Aiiii, que canto um faduncho! Snif... snif... ;(
Por falar em homofobia e sexualidade... tive uma proposta sexual por parte de um grego, muito excêntrica (e interessante). Depois hei-de partilhar consigo, porque gostaria de saber a sua opinião. Entretanto, quando retoma a publicar sobre sexo? Miss Luxuria - eu - , tem saudades do seus escritos científicos sobre sexualidade. :)
Estou a pensar retomar a sexualidade, talvez com um post sobre luxuria! :)
Mas primeiro vou concluir o Róheim e depois o Freud. (Sinto a falta do tabaco!) :(
O post sobre Róheim está finalmente concluído! :)))
saraiva de sousa, grato pela ligação!
continuo atento ao que por aqui se passa.
logicamente, as complexidades aqui publicadas não estão ao meu (baixo) nível de entendimento... por isso me abstenho de comentar.
mas é com prazer que leio as dissertações publicadas.
aliás, há já algum tempo que tenho este blog apontado, quer no deixis, quer no fractura (r.i.p).
uma vez mais, grato,
cjt
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