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«"Assim", diz Marx, ao falar de economia burguesa, "houve história, mas deixou de haver". (...) Essa essência não-histórica, anti-histórica do pensamento burguês aparece-nos com a maior clareza se considerarmos o problema do presente como problema histórico. (...) A total incapacidade de todos os pensadores e historiadores burgueses para apreenderem os acontecimentos presentes da história mundial como acontecimentos históricos e mundiais, depois da guerra mundial e da revolução mundial, deverá ser uma recordação terrível para qualquer homem de juízo são.» (Georg Lukács)
Estou cada vez mais convencido de que não há verdadeiramente projecto político de Esquerda fora da órbita do pensamento filosófico de Karl Marx: o afastamento da social-democracia europeia da sua matriz marxista fez dela cúmplice do triunfo do neoliberalismo. A crítica radical da social-democracia, de resto já esboçada por Walter Benjamin, é a única via que temos não só para renovar substancialmente o marxismo, como também para ousar pensar um novo projecto político para a Esquerda. Chegou a hora de enterrar a social-democracia, cuja agenda económica coincide sempre com a do neoliberalismo. Há mundo para além da falsa alternativa entre a agenda comunista e a agenda social-democrata, embora se aprenda mais com o marxismo soviético do que com a social-democracia. Toda a história da social-democracia é uma história de traições e de corrupção. "O socialismo é merda": Com esta declaração Althusser reconheceu que o marxismo, pelo menos no nosso tempo, carece de política. Não há efectivamente uma política marxista e a praxis corrupta da social-democracia europeia, cuja preocupação social fortaleceu o capitalismo monopolista, os monopólios do mercado da electricidade e da banca, por exemplo, como o demonstra a governação do PSD e do PS em Portugal, é responsável por esta lacuna. Se hoje em Portugal a EDP controla o poder político, o PS não pode descartar-se da sua própria responsabilidade nessa captura do poder político pelo poder económico. A social-democracia fortaleceu de tal modo o Estado que acabou por fazer dele, de lés a lés, um Estado da classe dos administradores dos monopólios e oligopólios, que invade abusivamente toda a nossa vida privada e que bloqueia o crescimento económico. Ao denunciar o Estado social-democrata, o marxismo descobre a sua própria raiz liberal. A social-democracia tem tido uma ligação estranha com o capitalismo monopolista que não lhe permite diferenciar-se do neoliberalismo. Ora, esta ligação fatal é profundamente estranha ao marxismo que está mais próximo do verdadeiro liberalismo do que da social-democracia: a defesa da individualidade e da liberdade numa situação de justiça social garantida. Reinventar uma nova política para o marxismo implica uma reformulação substancial da sua concepção da história e da economia: a ideia de progresso tornou-se claramente inimiga da continuidade da aventura biológica e antropológica na Terra. O capitalismo monopolista é darwinista, tal como a social democracia: a demolição do neodarwinismo constitui uma tarefa prioritária do pensamento de Esquerda que deseja o regresso da Grande Política. A caducidade do mundo e a mortalidade do homem chocam frontalmente com as ideias irracionais de crescimento infinito e de progresso constante. Quanto mais avançamos na senda do progresso tecnológico, mais próximos estamos do colapso total: a grande esperança do século XX é a nossa desgraça de hoje e das gerações que não chegarão a nascer. O mundo que entregou o passado ao esquecimento foi brutalmente privado de futuro: vivemos a eterna agonia do presente sem sabermos se haverá um novo dia. Estou convencido de que a preocupação social deve ceder lugar à grande política que tem como missão preparar-nos para fazer face a situações de catástrofe natural, social e civilizacional. Estamos cansados da pequena política feita a partir dos meios de comunicação social e toda ela centrada em pequenos problemas relativos à troca metabólica do homem com a natureza, como se estes homens de hoje fossem os últimos homens. As micro-lógicas das libertações periféricas inspiradas no macro-modelo marxista da libertação social empobrecem o pensamento de Esquerda, ao mesmo tempo que invertem completamente as prioridades políticas, precipitando a irracionalidade e a catástrofe. O marxismo não é uma filosofia para animais, para mulheres que imitam os homens nas suas piores características, para indivíduos sexualmente promíscuos ou para outras minorias loucas: o homem que ousa falar em direitos dos animais já não é digno de viver na cidade dos homens, onde cada um tem direito à palavra e ao uso público da razão. Toda a grande filosofia é antropocêntrica e o marxismo retoma essa tradição ocidental, desafiando o homem a superar a sua animalidade. A grande política só é possível a partir do pressuposto de que o homem é capaz de superar a sua animalidade, mesmo que a filosofia já tenha perdido a confiança no homem. Ora, esta perda de confiança no homem traduz-me imediatamente na definição da grande política como luta sem tréguas contra o animal que há em cada homem. O marxismo não tem qualquer dificuldade em incorporar no seu seio a simplicidade da quadratura (Heidegger) em que os mortais habitam: a terra e o céu, os mortais e os deuses: «Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os mortais, é assim que acontece propriamente um habitar. Acontece enquanto um resguardo de quatro faces da quadratura. Resguardar diz: abrigar a quadratura em seu vigor de essência. O que se toma para abrigar deve ser velado. Onde, porém, o habitar guarda a sua essência quando resguarda a quadratura? Como os mortais trazem à plenitude o habitar no sentido desse resguardar? Os mortais jamais o conseguiriam se habitar fosse tão-só uma de-mora sobre a terra, sob o céu, diante dos deuses, como os mortais. Habitar é bem mais um demorar-se junto às coisas. Enquanto resguardo, o habitar preserva a quadratura naquilo junto a que os mortais se demoram: nas coisas» (Heidegger). Cada uma das quatro faces da quadratura constitui uma preocupação política e todas juntas definem um projecto político que visa garantir o resguardo da quadratura em seu vigor de essência, salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses e conduzindo os homens. A exclusão dos animais da quadratura é sintomática: a filosofia escolheu como alvo de abate o animal que ameaça a humanidade do homem, não o animal da selva, mas o animal-homem, sem no entanto romper com uma perspectiva biófila da natureza.
Como é evidente, a minha grande preocupação neste momento é renovar a economia marxista, cujo crescimento científico foi bloqueado tanto pelos comunistas e anarquistas libertários como pelos sociais-democratas. A actual crise financeira e económica sela o fracasso total da economia burguesa, em qualquer uma das suas versões. É por isso que ela constitui a grande oportunidade de retomar a economia marxista e de lhe imprimir um novo rumo mais em sintonia com os grandes desafios do nosso tempo indigente e sombrio. O facto da EDP desfrutar de um poder total que lhe permite demitir um secretário de Estado levou-me a reler uma obra de Joan Robinson sobre a concorrência imperfeita - The Economics of Imperfect Competition (1933), onde questiona o pressuposto da concorrência perfeita, o ideal cínico da economia neoliberal dos nossos dias, possibilitando o conhecimento crítico do sistema monopolista de preço e da concorrência monopolista. Ora, a substituição do sistema competitivo tradicional pelo sistema de preço monopolista e a análise das suas implicações para a totalidade da economia foram devastadoras para as pretensões do capitalismo de ser considerado como uma ordem social racional que serve para promover o bem-estar e a felicidade de todos os seus membros. A mão invisível de Adam Smith deixa que a miséria seja gerada «em tão grande abundância como a riqueza» (Marx): os homens ditos de Esquerda que hoje reclamam a herança de Adam Smith e de Ricardo, em vez da de Marx, fazem o jogo do seu inimigo declarado, o neoliberalismo, esquecendo que o que importa nessa herança da economia clássica - o seu método histórico e descritivo - pode ser usado para denunciar a indigência mental e cognitiva dos actuais economistas da praça pública portuguesa. A superioridade da economia marxista em relação à economia burguesa reside, antes de tudo, no carácter histórico do seu método, que lhe permite reivindicar justamente os títulos da cientificidade. Na sua obra Miséria da Filosofia, Marx é peremptório a este respeito: «Os economistas têm uma singular maneira de proceder. Para eles só há duas espécies de instituições, as da arte e as da natureza. As instituições do feudalismo são instituições artificiais, as da burguesia são instituições naturais. Assemelham-se nisto aos teólogos, que, também eles, estabelecem duas espécies de religiões. Toda a religião que não é a sua é uma invenção dos homens, ao passo que a sua própria religião é uma emanação de Deus. Quando dizem que as relações actuais - as relações de produção burguesa - são naturais, os economistas querem dizer com isso que se trata de relações nas quais se cria a riqueza e se desenvolvem as forças produtivas em conformidade com as leis da natureza. Portanto estas relações são elas próprias leis naturais independentes da influência do tempo. São leis eternas que devem reger sempre a sociedade. Assim, houve história, mas já não há. Houve história, visto que houve instituições de feudalismo, e nestas instituições de feudalismo se encontram relações de produção totalmente diferentes das da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por naturais e portanto eternas». Paul Samuelson estabeleceu - ainda recentemente - a data da publicação da obra de Adam Smith (A Riqueza das Nações) como a da fundação da economia moderna, lembrando que 1776 foi também marcado pela Declaração da Independências dos EUA: «Não é uma coincidência que ambas as ideias tenham surgido ao mesmo tempo. Do mesmo modo que os revolucionários norte-americanos proclamavam a liberdade contra a tirania, Adam Smith pregava uma doutrina revolucionária para emancipar o comércio e a indústria das grilhetas da aristocracia feudal». (E os trabalhadores não terão o direito e o dever de lutar contra as grilhetas da burguesia?) A economia moderna nasceu "natural" e não histórica: as suas leis, formuladas mais tarde com a ajuda de instrumentos matemáticos, são leis naturais e eternas que regem sempre a sociedade. Com a fundação da economia burguesa, deixou de haver história: os economistas burgueses fogem da história como o Diabo da cruz, porque, lá no fundo, eles sabem que o capitalismo não é uma ordem natural regida por leis eternas. O carácter anti-histórico da economia burguesa priva-a da problemática da crítica, fazendo dela mera apologia ideológica do status quo. É por isso que Paul Samuelson e William Nordhaus não referem, em Economia, uma única vez os nomes dos economistas marxistas, tais como Paul Sweezy, Paul Baran ou Ernest Mandel, e, quando discutem as ideias de Marx e de Lenine, fazem-no de um modo que envergonha os seus leitores inteligentes: a omissão dos nomes dos economistas marxistas é reforçada pela formulação do princípio marginalista, segundo o qual se «deve olhar para os custos e proveitos marginais das decisões e ignorar os custos do passado ou irrecuperáveis»: «Águas passadas não movem moinhos. Não olhe para o passado. Não chore sobre leite derramado nem lamente as perdas do passado. Faça um cálculo inteligente dos custos adicionais, em que incorrerá por qualquer decisão e pondere-os com as vantagens adicionais. Tome uma decisão baseada nos custos e nos proveitos marginais». A regra de obtenção do lucro máximo pelas empresas que deriva deste princípio, desvaloriza a história e liquida o passado, o que, em termos práticos, significa que a lição central da economia burguesa sacrifica tudo, incluindo o tempo histórico, e todos à maximização dos rendimentos, dos lucros ou das utilidades, ao curto prazo, como se vivêssemos fora da história e, portanto, bem longe do tempo. A crítica da economia política, tal como Marx a realizou, deve ser retomada, com o objectivo de livrar a economia do véu ideológico que a cobre. A utilização de um instrumental matemático e estatístico não garante a "cientificidade" da economia burguesa, na medida em que ele é orientado pelo interesse de domínio e utilizado para glorificar e perpetuar uma ordem social profundamente injusta. Basta confrontar as obras económicas dos actuais economistas burgueses com as obras clássicas do marxismo ou mesmo da Escola Clássica para vermos o abismo que as separa: a indigência cognitiva e a pobreza de experiência dos economistas neoliberais evidenciam-se de tal modo que lá onde escrevem a palavra "ciência" devemos ler "ideologia". Faz parte integrante da rotina da actividade científica, filosoficamente orientada, sobretudo no domínio da história, o domínio das ciências sociais, elaborar modelos alternativos: encarar a realidade social existente como uma fatalidade não é uma atitude digna de uma mente científica. Os economistas burgueses não são verdadeiramente cientistas sociais, mas sim representantes da classe dominante. A crítica da ideologia é fundamental para mostrar os limites de classe das categorias económicas, mas não é suficiente para elaborar uma ciência económica objectiva e formular novas políticas económicas: a nova economia marxista já não pode opor-se à economia burguesa como "economia do proletariado". Os interesses e as aspirações da classe trabalhadora são salvaguardados na definição, não do corpo teórico da economia, mas das políticas económicas. O marxismo deve falar hoje a linguagem da humanidade universal em sofrimento e da natureza devastada. Há, portanto, muito trabalho teórico e político a realizar...
J Francisco Saraiva de Sousa
3 comentários:
Bah, estou furioso com o uso que fazem da minha terminologia conceptual. Oh, amigos da distância, sou "marxista" mas não defende qualquer causa libertária: a maior parte das vossas causas não são as minhas causas. Detesto irracionalidade libertária!
Ai, agora envolvi-me numa longa discussão com uma equipa americana: o que vale é estarmos de acordo no fundamental. E, graciosamente, movo-me bem entre republicanos e democratas.
Tenho muita vergonha de ter o meu destino ligado a Portugal: não me identifico como português e, de facto, não tenho afinidades com as caras parolas e provincianas dos portugueses. Enfim, o melhor é ir para o estrangeiro e deixar os velhinhos morrer de fome.
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