Torre Medieval do Porto |
Notas para uma pesquisa
«A língua e a religião são as duas cadeias de bronze que unem, no correr dos tempos, as gerações passadas às presentes, e estes laços, que se prolongam através das eras, são a Pátria. A Pátria não é a terra; não é o bosque, o rio, o vale, a montanha, a árvore, a bonina: são-no os afectos que esses objectos nos recordam na história da vida: é a oração ensinada a balbuciar por nossa mãe, a língua em que pela primeira vez ela nos disse: "Meu filho!"» (Alexandre Herculano)
Em 1955, Georg Lukács publicou a sua grande obra O Romance Histórico, onde coloca a ficção histórica sob uma abordagem apropriada que identifica as suas virtudes e a sua tradição nobre. O romance histórico - um género literário desprezado pela crítica ocidental - surgiu de uma crise da sensibilidade europeia que Hegel identificou na sua Fenomenologia do Espírito (1807): Hegel começou a escrever a Fenomenologia do Espírito em 1806, quando os exércitos de Napoleão se aproximavam de Jena, e terminou-a quando a batalha de Jena selava o destino da Prússia, entronizando o herdeiro da Revolução Francesa sobre as ruínas imponentes do velho Reich alemão. A Fenomenologia do Espírito está impregnada pelo sentimento de que um novo período da história do mundo começava a emergir, do qual é o primeiro julgamento filosófico e histórico. Hegel fez da filosofia um factor histórico concreto e trouxe a história à filosofia: a Revolução Francesa surge no seu julgamento filosófico sobre a história como o ponto crucial dos caminhos comunicantes das verdades histórica e filosófica. A Revolução Francesa e a época napoleónica introduziram na consciência dos homens um sentido da história, que Hegel definiu como «progresso na consciência da liberdade»: os exércitos napoleónicos que marchavam através da Europa, dando nova forma ao mundo, mostraram aos homens comuns que a história não era uma questão de arquivos e príncipes, mas sim a textura da própria vida diária. O romance Waverley (1814) de Scott soube dar uma resposta adequada a esta mudança de perspectiva. De facto, o sentido da história actua em todos os romances históricos de Walter Scott e penetra-os de um modo profundo. A análise de Lukács examina a seguir o desenvolvimento do romance histórico na arte de Manzoni, Pushkin e Victor Hugo, dando especial destaque a Thackeray, porque nos elementos arcaicos da sua obra se descobre a crítica feroz às condições sociais e políticas do seu tempo, sobretudo quando arranca a peruca do século XVIII para satirizar a falsidade das convenções vitorianas. Para Lukács, o uso da fala arcaica no romance histórico, ainda que trabalhada com grande destreza, não traz o passado para mais perto da nossa imaginação: os grandes romancistas clássicos da ficção histórica escrevem a narrativa e o diálogo na linguagem do seu próprio tempo. Deste modo, criam a ilusão do presente histórico por força da imaginação produtiva: eles sentem que as afinidades entre a história passada e a sua própria época traduzem uma continuidade viva. Mas, quando se perde este sentido de continuidade e quando o escritor sente que as forças da história escapam à sua compreensão racional, o romance histórico entra em declínio acelerado: o escritor tende a voltar-se para um passado cada vez mais remoto ou exótico, na tentativa desesperada de protestar contra a sua época presente. Ao usar e abusar da linguagem arcaica, o escritor - por exemplo, Flaubert de Salammbô (1862) - procura tornar autêntica a sua visão do passado, escrevendo artificialmente os diálogos na sintaxe e no estilo da época histórica passada em questão. Ora, para Lukács, o declínio da concepção clássica do romance histórico coincide com a passagem do realismo para o naturalismo. Lukács não aprecia o naturalismo, acusando-o de estar mais preocupado com questões de técnica do que com o conteúdo. Nas obras naturalistas, a artista aliena-se do mundo e do assunto e a sua visão perde espontaneidade. Entre os romances históricos de Scott e o Salammbô de Flaubert há um abismo a separá-los: Scott acreditava no desenrolar racional e progressivo da história inglesa, vendo nos acontecimentos do seu próprio tempo uma consequência das energias libertadas durante os séculos XVII e XVIII, ao passo que Flaubert se volta para a antiga Cartago ou para a antiga Alexandria para fugir à sua própria época. Flaubert perdeu o contacto com o presente, considerando a Comuna como uma espécie de espasmo retardado da Idade Média, sem conseguir atingir uma compreensão imaginativa do passado: a sua imagem de Cartago não é a de uma antiguidade restaurada e restituída, mas sim a de uma sumptuosa concha vazia em torno de uma acção autónoma, em que as motivações psicológicas das personagens não se reconciliam com o cenário histórico. Infelizmente, Lukács não leu os romances históricos de Almeida Garrett e, sobretudo, de Alexandre Herculano, os quais evocam imagens do passado medieval português para, a pretexto da história, criticarem os acontecimentos do seu próprio tempo.
J Francisco Saraiva de Sousa
Alexandre Herculano reclamou o privilégio de ter introduzido o romance histórico na literatura portuguesa: «(...) Quis apenas preservar do esquecimento, a que por via de regra são condenados, mais cedo ou mais tarde, os escritos inseridos nas colunas das publicações periódicas, as primeiras tentativas do romance histórico que se fizeram em língua portuguesa. Monumentos dos esforços do autor para introduzir na literatura nacional um género amplamente cultivado nestes nossos tempos em todos os países da Europa, é este o principal ou, talvez, o único merecimento deles; o título de que podem valer-se para não serem entregues de todo ao esquecimento. A singeleza da invenção, a pouca firmeza nos contornos de alguns caracteres, o menos bem travado do diálogo, imperfeições que nem sempre foi possível remediar nesta nova edição, revelam a mão inexperiente. Na história dos progressos literários de Portugal, desde que a liberdade política trouxe a liberdade de pensamento, e que o engenho pôde aparecer à luz do dia sem os anjinhos de uma censura tão absurda na sua índole, como estúpida na sua aplicação e esterilizadora nos seus efeitos; nessa história, dizemos, esta nova edição deve ser julgada principalmente com atenção ao seu motivo; à prioridade das composições nela insertas e à precisão em que, ao escrevê-las, o autor se via de criar a substância e a forma; porque para o seu trabalho faltavam absolutamente os modelos domésticos». Nesta Advertência da 1ª. Edição de Lendas e Narrativas (1851), Herculano refere outras iniciativas nacionais dos «émulos de Walter Scott» em Portugal, entre os quais se destacam Almeida Garrett e Oliveira Marreca, Mendes Leal e Andrade Corvo, Mateus Ribeiro e Teodoro de Almeida, Camilo Castelo Branco e Rebelo da Silva, e - omitidos por Herculano - Arnaldo Gama, cujas obras tratam episódios da invasão francesa de 1809 (O Sargento Mor de Vilar e O Segredo do Abade) e cenas do Porto no século XV (A Última Dona de S. Nicolau) e no século XVIII (Um Motim de Há Cem Anos), Augusto de Barros e Pereira Pinheiro, mas isso não o impede de reivindicar a prioridade histórica na introdução da ficção histórica na literatura portuguesa, de resto uma prioridade que volta a ser afirmada na Advertência da 2º. Edição (1858). António José Saraiva e Óscar Lopes aceitaram esta reivindicação: «Herculano introduziu em Portugal o novo género do romance consagrado por Walter Scott, o romance histórico. Garrett seguiu-lhe as pisadas, porque o Arco de Sant'Ana, embora começado no Porto, durante o cerco, só foi publicado depois das tentativas de Herculano no Panorama, onde se iniciou a publicação de O Bobo (1848), do Eurico (1848), de O Monge de Cister (1841), e onde saíram primeiramente alguns dos contos e novelas depois compiladas em Lendas e Narrativas (A Abóbada, 1839, O Bispo Negro, 1839)». Porém, sem contestar a prioridade de Herculano, convém lembrar que Almeida Garrett já tinha publicado, em 1824, o drama O Alfageme de Santarém, baseado na Crónica de D. João I de Fernão Lopes. Mas mais importante do que uma data situada na cronologia linear é o facto de Garrett ter iniciado O Arco de Sant'Ana (1845) durante o Cerco do Porto. Este facto leva-me a atribuir-lhe o privilégio de ter introduzido na consciência dos portugueses comuns um sentido da história: o cerco do Porto, ocorrido alguns anos após as invasões francesas, durante o qual as tropas liberais de D. Pedro estiveram sitiadas na cidade portucalense pelas forças absolutistas fiéis a D. Miguel, faz lembrar a entrada triunfante dos exércitos de Napoleão na Prússia e a batalha de Jena que selou esse triunfo, quando Hegel estava a concluir a Fenomenologia do Espírito. Tanto Hegel em 1806, como Garrett entre Julho de 1832 e Agosto de 1833, sentiram que algo estava a mudar no mundo: o sentimento de que a história mais não é do que o progresso na consciência da liberdade. Tanto quanto sei, ainda ninguém confrontou o pensamento político e histórico de Garrett com a concepção da história de Hegel. A afinidade entre Garrett e Hegel evidencia-se no texto O 24 de Agosto, onde Garrett celebra o triunfo da revolução liberal de 1820, vendo nela a passagem do Portugal Velho para o Portugal Novo: «Já temos uma Pátria, que nos havia roubado o despotismo: a timidez, a cobardia, a ignorância, que o tinha criado, que se prostrava com vil idolatria ante a obra das suas mãos, acabou. A última hora da tirania soou; o fanatismo, que ocupava a face da Terra, desapareceu; o sol da liberdade brilhou no nosso horizonte, e as derradeiras trevas do despotismo foram, dissipadas por seus raios, sepultar-se no Inferno. Qual era dentre vós, que se não pudesse chamar oprimido? Qual há dentre vós, que se não possa chamar libertado? Qual foi o português, que não gemeu, que não chorou ao som dos ferros? Qual é o português que não folgará com a liberdade? (...) Escravos ontem, hoje livres; ontem autómatos da tirania, hoje homens; ontem miseráveis colonos, hoje cidadãos, qual será o vil (não digo bem), qual será o infeliz que não louve, que não bendiga o braço heróico que nos quebrou os ferros, os lábios denodados que ousaram primeiro entoar o doce nome - Liberdade?» O cerco do Porto permitiu a Garrett compreender que o triunfo do liberalismo português resultou de uma guerra civil que dividiu muitas famílias, incluindo a sua própria família. Esta situação dramática atravessa toda a sua obra, a novela como o teatro. A obra de ficção de Garrett está toda ligada a crises da vida nacional. Assim, por exemplo, O Alfageme de Santarém é a lembrança do momento em que a autonomia de Portugal esteve em maior perigo, e O Arco de Sant'Ana é a lembrança da luta interna entre o poder eclesiástico e o poder civil, num cenário medieval que Garrett, soldado do Batalhão Académico, tinha diante dos olhos, transposto para o caso vivo do conflito entre D. Pedro e o Bispo do Porto. O Arco de Sant'Ana, o seu romance histórico, evoca o Porto Feudal para narrar uma revolta popular germinada nos mesteirais da cidade portucalense contra o senhorio feudal do Bispo. O seu ponto de partida é, como no Alfageme de Santarém, um relato histórico de Fernão Lopes. A pretexto da história, as duas obras estão endereçadas à actualidade, ao tempo presente de Garrett. No Prefácio de O Arco de Sant'Ana, Garrett reconhece esta preocupação com as lutas do seu próprio tempo quando afirma que o seu propósito é combater a reacção cabralista, particularmente sob o aspecto clerical. Os elementos arcaicos da obra permitem-lhe criticar a sociedade do seu tempo e, ao mesmo tempo, clarificar a sua posição face ao historicismo romântico. Almeida Garrett critica severamente o carácter reaccionário do historicismo romântico que, na sua versão ultra-romântica, passou a admirar o feudalismo e a louvar o monaquismo. O Arco de Sant'Ana contrapõe a esta evocação "passadista" do passado uma inovação polémica democrática, isto é, uma crítica aos diversos grupos e instituições políticas do seu próprio tempo. Assim, a oligarquia política então dominante está representada no Bispo do Porto e seus acólitos, em especial em Pêro Cão, cobrador dos impostos senhoriais; o Parlamento, acobardado, que atraiçoa os seus mandatários, é personificado nos atarantados juízes da cidade portucalense; e o povo, justamente revoltado, mas disperso e manobrável pelos pescadores de águas turvas, encarna nos mesteirais do Porto. O líder da insurreição popular é um nobre que se ignora como tal: Vasco, o nome do herói, é, sem o saber, filho ilegítimo do Bispo do Porto que lhe desgraçara a mãe. Os acontecimentos decorrem de maneira que o pai, senhor feudal do Porto, e o filho, chefe da revolta popular, venham a encontrar-se frente a frente, a combater em partidos opostos. Vasco só reconhece o pai quando está prestes a matá-lo. (Curiosamente, Carlos, o herói da novela inserida nas Viagens na Minha Terra, também é, sem o saber, filho de um frade que fez a desgraça de sua mãe e de sua família: o mesmo antagonismo político e social separa o filho, combatente liberal, e o pai, monge, dando-se em circunstâncias semelhantes o reconhecimento final.) Como já vimos, Garrett começou a escrever O Arco de Sant'Ana durante o cerco do Porto: D. Pedro vem do Brasil - via Açores - para reconquistar a nação portuguesa para a sua filha D. Maria da Glória e para a Carta Constitucional. Almeida Garrett, cidadão portuense, incorpora-se então no Batalhão Académico, cuja missão era bater-se pelas liberdades cívicas e políticas e derrubar o absolutismo miguelista que dominava o país. Aquartelado no Convento dos Grilos, no Porto sitiado pelas forças militares miguelistas, Garrett tinha em frente os vestígios da cidade medieval, entre os quais se destacava o Arco da Rua de Sant'Ana. Quando Palmela o enviou a Paris, em missão diplomática, Garrett teve a oportunidade de ler o romance em voga em França, Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, que o inspirou a criar O Arco de Sant'Ana, o romance histórico da paisagem da sua urbe natal e da sua antipatia pela oligarquia eclesiástica, o suporte do absolutismo miguelista odiado pelos liberais portuenses. O enredo da narrativa é simples e bem ao gosto de Garrett: O povo portuense revolta-se contra a tirania do Bispo do Porto, seu senhor feudal, mas nessa revolta mistura aos impulsos generosos que o levam à luta, as torpezas inspiradas pelos baixos instintos. No final, o prelado sensual e prepotente, em face do filho Vasco, que, ignorando tal paternidade, contra ele chefiava a revolta, quebra sua nobre majestade senhorial, sob o domínio humanizador da piedade paterna, e o romance acaba burguesmente bem, com as antipatias e as simpatias a neutralizarem-se reciprocamente. Para fazer face ao problema da reconciliação do cenário medieval portuense com a acção da narrativa, Garrett dota as suas personagens de uma psicologia elementar: os sentimentos são leves e superficiais, sem dar lugar a intensos conflitos interiores, a não ser no Bispo do Porto, e o amor aparece como alegre preparação para o matrimónio. De certo modo, como já tivemos a oportunidade de destacar, as personagens garrettianas são dimensionadas de modo quase intemporal, encarnando colectivos típicos em permanente confronto ao longo dos tempos, de modo a poder transpor para a sua própria época os conflitos sociais e políticos descritos num ambiente medieval, um recurso utilizado abundantemente por Herculano. Esta concepção "intemporal" das personagens é reforçada pelo estilo verbal: o estilo de Garrett aproxima-se da língua falada, com o propósito de libertar a língua literária dos padrões normativos da prosa clerical e cortês, sem ceder à tentação de utilizar a língua falada na época histórica passada em questão.
O Porto é a cidade-capital do Romantismo, bastando pensar nos caminhos românticos que conduzem à Quinta da Macieirinha, onde está instalado o Museu Romântico. (Artur de Magalhães Basto (1932) escreveu uma obra ímpar, O Porto do Romantismo, que ainda não consegui adquirir e, portanto, ler.) Valéry disse ser preciso ter perdido toda a noção de rigor para tentar definir o romantismo. Por isso, em vez de tentar definir tal movimento, prefiro apontar os seus traços essenciais e vinculá-los à cidade do Porto, o berço da nacionalidade portuguesa. A anterior digressão pela ficção histórica de Almeida Garrett permite desde logo identificar dois desses traços fundamentais: a emancipação do indivíduo em relação à sociedade e o anseio de liberdade. A Revolução Francesa e, em especial, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão quebraram os quadros sociais que prendiam e subordinavam o indivíduo à sociedade: o nascimento obrigava-o, no decurso da Idade Média e do Antigo Regime, a constranger-se para caber nos quadros prefixos da sociedade, impossibilitando a sua mobilidade social. Todos os românticos admiraram a "personalidade cósmica, sem limites" de Napoleão, pelo menos durante o período inicial das suas carreiras, a qual deu alento à luta pela autonomia do indivíduo e, sobretudo, à luta de libertação nacional, como sucedeu no caso de Foscolo: não só os indivíduos e as classes sociais mas também as nações aspiravam à libertação e à quebra da tirania opressiva que os privava a todos da liberdade. O movimento que levou cada povo de volta ao seu passado e à sua natureza específica, encabeçado em Portugal por Alexandre Herculano, inspirou todos os movimentos de libertação das nações oprimidas e subjugadas por potências estrangeiras. A libertação nacional é, pois, uma ideia profundamente romântica. As manifestações do movimento romântico ocidental diferem de país para país ou mesmo de região para região, em função do nível de desenvolvimento histórico do capitalismo alcançado por cada um dos países ou por cada uma das regiões. Grosso modo, podemos distinguir três grandes manifestações: o romantismo da Europa Ocidental, onde se insere o romantismo portuense, e o romantismo da Europa Oriental, entre os quais está o romantismo alemão. Marx analisou o romantismo em termos de consciência da pequena-burguesia, vendo nele um «reflexo» complexo e completo das contradições da sociedade capitalista em desenvolvimento, contradições estas que se cristalizavam na posição ocupada pela pequena-burguesia no processo de produção. A abordagem original de Marx permite compreender a vacilação da pequena-burguesia entre o passado idealizado, arrancado do seu contexto social originário, e o futuro ansiado e, ao mesmo tempo, temido: a pequena-burguesia alimentava a esperança de tomar o seu pedaço no enriquecimento geral, ao mesmo tempo que temia ser esmagada pelo processo de desenvolvimento capitalista; sonhava com novas possibilidades e novos horizontes, ao mesmo tempo que lamentava a perda da velha segurança e o sacrifício da ordem; enfim, olhava para a frente, na direcção dos "novos tempos", ao mesmo tempo que voltava frequentemente o olhar nostálgico para trás, isto é, para os idos "bons tempos". Não admira, portanto, que o romantismo tenha sido uma revolta da pequena-burguesia não só contra o classicismo da nobreza (Goethe, Novalis, Shelley, Stendhal, Garrett e Mérimée, por exemplo), contra as normas e os padrões, contra a forma aristocrática e contra um conteúdo que excluía todas as soluções "comuns", como também contra o iluminismo (Chateaubriand, Burke, Coleridge e Schlegel, por exemplo), sobretudo contra as suas ideias mecanicistas e as suas simplificações optimistas, embora Shelley, Byron, Stendhal e Heine tenham dado prosseguimento ao trabalho do iluminismo. Goethe, Novalis e Shelley rejeitam os temas privilegiados do classicismo, bem como os seus aprazíveis jardins, alegando que todos os temas podem ser abordados pela arte: o universo romântico amplia-se até se identificar com todo o mundo bravio excluído pelo classicismo: «O mundo precisa ser romantizado. Deste modo, o significado original é redescoberto (...) pela doação de uma elevada importância àquilo que é comum, de uma aparência misteriosa ao que é corriqueiro, a dignidade do desconhecido ao que é familiar, os traços do infinito ao que é finito (...). O facto de não podermos ver bem num mundo feérico é devido apenas à fraqueza dos nossos órgãos físicos e à deficiência da nossa percepção» (Novalis). Ou, nas palavras de Almeida Garrett: «A literatura é filha da terra, como os Titãs da fábula, e à sua terra se deve deitar para ganhar forças novas, quando se sente exausta». Ora, para nos aproximarmos do mundo feérico existente, precisamos de exilar a consciência, de modo a ceder o seu lugar aos sonhos: a nova teoria da arte sugerida por Novalis aponta na direcção da evasão da realidade, através do jogo de associações sem sentido ou de conexões de diversos fragmentos que permite apreender uma realidade mística. Como iremos ver mais adiante, Novalis protesta contra o mundo dilacerado e fragmentado pelo capitalismo através de uma fuga - quase onírica - para o passado idealizado, mas nessa fuga exprime-se o anseio do homem que procura ser senhor do seu próprio destino, ou seja, o anseio do homem que procura ser igual a Deus, através do aperfeiçoamento e da ampliação das suas faculdades e das suas actividades. A noção de comunidade plural como essência do humano adquire uma feição democrática em Almeida Garrett: «Este é um século democrático, tudo o que se fizer há-de ser pelo povo... ou não se faz (...). Dai-lhe a verdade do passado no romance e no drama histórico; no drama e na novela da actualidade oferecei o espelho em que se mire, a si e ao seu tempo, a sociedade que lhe está por cima, abaixo, ao nível - e o povo há-de aplaudir, porque entende; é preciso entender para apreciar e gostar». Na Europa Oriental, sobretudo na Rússia, na Hungria e na Polónia, devido à não realização da revolução democrático-burguesa, o romantismo manifestou-se como uma rebelião contra o feudalismo, o absolutismo e a exploração estrangeira. Sob a inspiração tempestuosa de Byron, os românticos "orientais" incitam o povo a lutar contra os opressores internos e externos. Este apelo à consciência nacional é reforçado pela idealização da arte popular e do Folklore: o objectivo desta idealização da cultura popular é levar o povo a lutar contra as condições degradantes de vida. O individualismo tematizado pelo romantismo "oriental" é uma arma usada pelos seus poetas para libertar a personalidade humana do cativeiro medieval. A Alemanha ocupa uma posição central entre o capitalismo ocidental e o feudalismo oriental. Devido ao seu desenvolvimento histórico desastroso, responsável pela miséria alemã (die deutsche Misere), bem analisada por Marx, o romantismo alemão foi o mais contraditório de todos os movimentos românticos. A desilusão nas artes antecipou a eclosão da revolução democrático-burguesa: os artistas e poetas alemães perderam as ilusões antes delas terem sido adoptadas. Ora, quando eclodiram os movimentos revolucionários, os artistas alemães voltaram-se contra eles e rejeitaram os seus postulados e as suas ideias. O protesto anti-capitalista que os unia levou-os - como reconheceu Heine - a buscar no passado um "refúgio do presente" e a clamar um "retorno à Idade Média". O desagrado com o "culto do dinheiro" e o desgosto sentido diante da "feia face do egoísmo" burguês obrigaram-nos a dizer "não" ao desenvolvimento da realidade social do seu tempo, mas, em vez de dizerem "sim" à classe social que corporificava o futuro, a classe operária que, na Europa Ocidental, começava a lutar contra a burguesia, procuraram escapar à tarefa de construir o futuro, através de um passado feudal idealizado e fetichizado. Esta fuga para o passado idealizado, forjado a partir dos seus aspectos positivos por oposição aos horrores do capitalismo, aproximou o romantismo alemão, precedido pelo Sturm und Drang (Goethe e Schiller), cujo paradigma é Rousseau, dos acólitos de Metternich e da Santa Aliança, fazendo dos seus expoentes mais retrógrados (Novalis, Schlegel) membros do "partido das mentiras" e da loucura do passado (Heine). Mas o carácter reaccionário deste historicismo romântico, como lhe chamou Almeida Garrett, não pode eclipsar o seu contributo para os grandes temas da modernidade. Novalis, o mais brilhante dos românticos alemães, estava consciente dos aspectos positivos do capitalismo: «O espírito do comércio é o espírito do mundo», porque é ele que cria cidades, países, nações e obras de arte, possibilitando assim o «aperfeiçoamento da humanidade». Não é este "espírito da cultura" que provoca o seu pânico, mas sim a mecanização e a fragmentação da vida impostas pela divisão social e técnica do trabalho: o pavor da máquina em todas as suas formas leva-o a atacar o Estado, a "máquina artificial", o "brinquedo predilecto do nosso tempo", que, transformada em autómato, pretende solucionar todos os problemas da humanidade. Aparece aqui, nesta concepção crítica do Estado, a grande oposição entre o orgânico e o mecânico usada pelos românticos para denunciar os horrores da civilização capitalista, em nome de um princípio da vida que rompe violentamente com o mecanicismo. Coube a Hoffmann a tarefa de intensificar esta antítese e fazer dela um duelo fantástico entre o homem e o autómato. Esta idealização romântica do orgânico transforma-se em protesto contra a revolução democrática-burguesa, considerada como algo mecânico que dissolvia o carácter orgânico das velhas relações sociais. Para Novalis, o "sono do mundo" - o período da Idade Média idealizado - não devia ser perturbado pelos novos movimentos revolucionários, ou seja, a "noite" não devia ceder o lugar ao "dia", cuja "indústria profana" ameaçava consumir o "celeste manto da noite". Schlegel chega mesmo a aceitar a comparação da Idade Média à noite, entendida não como a "época sombria" dos seus adversários, mas como a "noite estrelada", cuja luz empalidece e apaga-se com a chegada dos "novos tempos". Ao tema das ilusões perdidas, os românticos acrescentaram os temas do frio, do sentido da solidão, da inospitabilidade do mundo, do anseio de um retorno à segurança e ao calor humano e do anseio voluptuoso pela morte. A tríade dialéctica está no próprio âmago do romantismo, em qualquer uma das suas manifestações: a tese é a unidade original, a antítese corresponde à alienação, ao isolamento, à fragmentação e à cisão dessa unidade, e a síntese é definida como remoção das contradições, reconciliação com o mundo real, identidade sujeito-objecto, restituição do paraíso perdido. (A dialéctica negativa só reconhece os dois primeiros momentos da tríade dialéctica na forma de negação determinada que opõe resistência à tentação da síntese!) Todos os artistas românticos sonharam com a unidade perdida e com uma comunidade ideal, projectada pela imaginação, ora no passado, ora no futuro. A unidade sonhada por Novalis, a totalidade orgânica da vida que tudo abarca, identifica-se com a morte, quando tudo for "um só corpo". O romantismo, sobretudo o mais conservador, ocupa uma posição peculiar na dialéctica do moderno e do anti-moderno: o seu elemento anti-moderno que anseia pela restituição da unidade perdida só pode ser afirmado e reivindicado a partir da ideia moderna de produtividade do sujeito. O romantismo é a experiência de uma cisão fundamental: o Eu romântico é o indivíduo que emerge, sozinho e incompleto, da divisão capitalista do trabalho e da consequente fragmentação da vida. No mundo capitalista, o indivíduo defronta-se sozinho com a sociedade, sem intermediários, como um estranho entre estranhos, como um Eu isolado frente ao imenso e todo-poderoso "não-Eu". Os românticos valorizaram o subjectivismo exacerbado estimulado por esta situação, sem no entanto deixar de referir o seu reverso: o sentimento de fragilidade, perda e abandono produzido pela mesma situação. O individualismo romântico vacila e oscila entre o "Eu napoleónico", disposto a conquistar o mundo, e o "Eu choroso", tomado pelo terror da solidão. A tipologia do romance de Lukács - e o romantismo alemão elucidou a estreita relação entre o romance e o romantismo - dá conta das peripécias do herói polémico e problemático dos romances na sua relação com o mundo degradado e abandonado pelos deuses. A subjectividade do escritor, isolado, voltado sobre si mesmo e irónico, luta pela vida e pelos valores autênticos, mas, lá onde enfrenta o mundo burguês e as suas convenções sociais com "génio", acaba por se vender no mercado. O escritor livre surgiu pela primeira vez com o romantismo: ele opõe-se ao mundo burguês e afirma a sua independência, mas faz do seu trabalho uma mercadoria: a celebração do carácter único do indivíduo pelo subjectivismo ilimitado de Byron revela-se demasiado frágil quando confrontada com as forças do mercado. O sentimento de desconforto espiritual num mundo fragmentado conduz ao sentimento de insegurança e de solidão, a partir do qual nasce o anseio de uma nova unidade social e a preocupação com o povo e as suas tradições. O romantismo é - dos Discursos de Rousseau até o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels - a atitude dominante na arte e na literatura europeias, que, no nosso tempo indigente ameaçado pela catástrofe ecológica, social e civilizacional, adquire actualidade e, o que é mais importante, significação prática, podendo vir a inspirar o aparecimento de uma nova esquerda, a Esquerda Romântica. Este interesse legítimo e justo pelo romantismo justifica-se pelo facto brutal de vivermos sob a ameaça real de uma catástrofe ecológica, social e civilizacional: a crítica romântica do modelo de domínio racional da natureza reconhece a conexão entre a dinâmica fatal do progresso e a destruição radical da natureza, responsável pelo actual recrudescimento da miséria e da pobreza. A dimensão prática do pensamento do primeiro romantismo - estou a pensar no romantismo alemão e também no romantismo portuense! - reclama a salvação da natureza, através de um trato quase comunicativo com o mundo natural, tal como é sugerido pelos estudos de Goethe sobre as ciências da natureza, pela ética de Sampaio Bruno e pela filosofia romântica da natureza, recuperada em grande medida por Ernst Bloch. O que define verdadeiramente o romantismo não é tanto a crítica da ilustração e do "frio pensamento" - as oposições do entendimento -, mas sobretudo o protesto contra o capitalismo, contra o mundo das ilusões perdidas e contra a prosa inóspita dos negócios e dos lucros. Ser romântico significa ser anti-capitalista, tanto ontem como hoje, quando o capitalismo ameaça mergulhar de novo o mundo numa miséria mais horrível do que a constatada por Engels no século XIX e por Raul Brandão no Porto. A esquerda dominante, sobretudo a esquerda social-democrata, responsável pela crise do pensamento revolucionário, perdeu esse espírito anti-capitalista que uniu os românticos de todos os tempos, defendendo precisamente aquilo que mais lhes repugnava: o Estado coactivo e intrusivo que trata os homens como cifras ou como "engrenagens mecânicas" (Jovem-Hegel), privando-os da liberdade, do pensamento independente e da autonomia. Quando escreveu o Primeiro Programa de um Sistema do Idealismo Alemão (Inverno de 1796-97?) em Frankfurt, Hegel - ainda marcado pelo diálogo produtivo que mantinha com Schelling, tendo em vista a destruição do idealismo subjectivo de Fichte - pretendia «superar» a filosofia através de uma "nova mitologia": um novo projecto de filosofia e, ao mesmo tempo, um programa político que, em nome de uma concepção enfática da liberdade, exigia o fim do Estado. Para compreender este programa de sistema do idealismo alemão, é necessário retomar algumas ideias de Schelling, cuja filosofia procurava dar uma resposta à experiência moderna de cisão, resultante da diferenciação de disciplinas organizadas e de domínios de actividade, a qual (a diferenciação) impedia a experiência individual da totalidade social. Schelling recorre ao esquema triádico para reconstruir esta experiência da época moderna, a época do iluminismo: ao estado de natureza em que o homem estava unido consigo mesmo e com o mundo exterior, seguiu-se a cisão, através da qual o homem entra em contradição consigo mesmo e com o mundo exterior. Com esta cisão começa a reflexão que, primeiramente, separa o que a natureza tinha unido para sempre, depois o objecto da intuição e o conceito da imagem, e, finalmente, ao convertê-lo em objecto, o sujeito de si próprio. Schelling viu nesta reflexão sobre a cisão - protagonizada pela filosofia de Kant - uma "enfermidade do espírito do homem", que a "verdadeira filosofia" deve superar, partindo da cisão originária - a reflexão - para logo a seguir reunir mediante a liberdade o que estava originária e necessariamente unido no espírito humano. Hegel concorda com Schelling, ao considerar a cisão como a "fonte da necessidade filosófica", mas afasta-se dele quando conserva a cisão como um momento do processo dialéctico que não pode ser aniquilado para sempre: as oposições não podem ser aniquiladas, como queria Schelling, a menos que se assuma o risco da regressão. Hegel radicaliza a crítica do Estado do absolutismo ilustrado, corrente no último terço do século XVIII, que tratava os homens livres como engrenagens mecânicas, para reivindicar a sua abolição através de uma nova unidade ideológica: a "mitologia da razão". Ao contrário dos projectos utópicos dos românticos retrógrados, o projecto de Hegel conserva a intenção iluminista e desdobra as suas metas: «Enquanto não transformarmos as ideias em ideias estéticas, isto é, em ideias mitológicas, (elas) carecerão de interesse para o povo e, vice-versa, enquanto a mitologia não for racional, a filosofia tem de se envergonhar de si mesma. Assim, por fim, os (homens) ilustrados e os não ilustrados têm que dar as mãos uns aos outros, a mitologia tem que se converter em filosofia e o povo tem que se tornar racional, e a filosofia tem que ser filosofia mitológica para transformar os filósofos em filósofos sensíveis. Então reinará a unidade perpétua entre nós. Já não veremos olhares desdenhosos, nem o temor cego do povo diante dos seus sábios e sacerdotes. Só então nos espera a formação igual de todas as forças, tanto das forças do indivíduo como das (forças) de todos os indivíduos. Não se reprimirá já força alguma, reinará a liberdade e a igualdade universal de todos os espíritos. Um espírito superior enviado do céu tem que instaurar esta nova religião entre nós; ela será a última, a maior obra da humanidade» (Hegel). O projecto político de Hegel - «Monoteísmo da razão e do coração, politeísmo da imaginação e da arte: isto é tudo o que precisamos!» (Hegel) - distingue-se do projecto do iluminismo no sentido em que a realização do seu objectivo prático - a liberdade e a igualdade universal dos espíritos - não resulta da ampliação da capacidade racional autónoma, mas de uma nova mitologia, que deve funcionar como centro real de referência dos domínios diferenciados de acção, ligando-os numa imagem unitária do mundo e desempenhando o papel correspondente à religião cristã na Idade Média: «(...) a ideia que unifica todas as outras, a ideia da beleza, tomando a palavra num sentido platónico superior. Estou agora convencido de que o acto supremo da razão, ao abarcar todas as ideias, é um acto estético, e que a verdade e a bondade estão irmanadas apenas na beleza. O filósofo tem de possuir tanta força estética como o poeta. Os homens sem sentido estético são os nossos filósofos ortodoxos. A filosofia do espírito é uma filosofia estética. Não se pode ser engenhoso, inclusive é impossível pensar engenhosamente a história, sem sentido estético» (Hegel). Os projectos utópicos dos românticos alemães também depositaram a sua esperança na renovação da religião. Dois desses projectos românticos utópicos são os de Novalis e de F. Schlegel. Ambos procuram renovar a religião, mas por vias diferentes: Schlegel não escolhe como modelo de pensamento unificador a religião cristã, como fizeram Novalis e Schleiermacher, mas a antiga mitologia, reatando assim os laços com o passado "classicista" e, sobretudo, com a tradição de Winckelmann e Herder, que tinha feito da unidade do indivíduo e da sociedade na antiga polis o instrumento de luta contra a sociedade feudal e absolutista do seu tempo. (Lukács abordou este problema na sua magnífica obra Goethe e a sua Época. A chave de leitura encontra-se nas críticas que Marx e Engels fizeram de Franz von Sickingen de Lassalle.) Apesar desta ligação à tradição de Herder, Schlegel rompe com a dimensão política do seu projecto: a dimensão política da crítica da cultura de Herder perde-se no projecto de Schlegel, o qual, apesar da perda de vigência da ideologia religiosa tradicional na sociedade moderna, exige a colaboração activa dos intelectuais na configuração da "nova mitologia" ou da "revolução espiritual". Ora, como já vimos, os projectos românticos tendem a defender "os direitos da individualidade" (Schlegel), o seu aspecto moderno, ao mesmo tempo que buscam a unidade numa nova mitologia. São, portanto, projectos burgueses que conservam o individualismo moderno, ao mesmo tempo que procuram na mitologia e na religião o ponto de referência que funda a unidade desejada, como se quisessem reencantar o mundo.
Um confronto entre A Cristandade ou Europa de Novalis ou o Discurso sobre Mitologia de Schlegel e a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal ou a História de Portugal de Alexandre Herculano permitiria clarificar o sentido do romantismo português, as suas contradições internas e a sua peculiaridade no seio do romantismo ocidental. O conto O Pároco da Aldeia (1825), onde a evocação da aldeia da infância de Herculano leva-o a tecer considerações sobre a necessidade afectiva da religião e a superioridade do catolicismo sobre o protestantismo, introduz alguma inquietação neste confronto a realizar: «Com Kant, o universo é uma dúvida: com Locke, é dúvida o nosso espírito: e num desses abismos vêm precipitar-se todas as antologias. Como a filosofia é triste e árida! A árvore da ciência, transplantada do Éden, trouxe consigo a dor, a condenação e a morte; mas a sua pior peçonha guardou-se para o presente: foi o cepticismo.» (Herculano esquece David Hume! José van den Besselaar tem alguma razão quando acusa Herculano de desprezar a Filosofia, em especial a filosofia da história. De facto, Herculano nem sempre teve a consciência filosófica adequada da sua obra, embora nesta frase citada se aproxime dela de um modo estranho. Garrett, sendo dotado de uma intuição superior, conforme demonstrou Moniz Barreto, ajuda a elucidar melhor a natureza específica do romantismo português na sua ligação à filosofia.) Herculano foi um portuense de coração (no sentido aristotélico do termo) que, por ordem de D. Pedro, organizou a Biblioteca Pública do Porto com fundos retirados das bibliotecas monásticas ou miguelistas, incluindo a de um irmão de Almeida Garrett. Durante a sua estadia na cidade portucalense, onde os vestígios de outros tempos e a ânsia de liberdade alimentavam o seu imaginário romântico, Herculano colaborou no Repositório Literário, do Porto, onde escrevia sobre os novos temas literários e pedagógicos do seu tempo. Herculano disse ter sido poeta até aos vinte e cinco anos, mas o seu último poema, A Cruz Mutilada, data de 1849. Deste seu período poético destaca-se A Harpa do Crente (1838), onde Herculano reflecte sobre a morte, sobre Deus, sobre a liberdade e sobre o contraste entre a brevidade da vida humana e o infinito que a transcende. O poema Semana Santa, o primeiro desta colectânea, tendo como epígrafe uma frase de Schiller, reflecte explicitamente sobre o sentimento da eternidade em contraste com o efémero das vidas humanas, um tema que é retomado pelas narrativas históricas de Herculano, em especial O Alcaide de Santarém, O Castelo de Faria e Eurico, o Presbítero. Além das Lendas e Narrativas, compilação de contos e novelas, Herculano escreveu três grandes romances históricos, sob a influência de Walter Scott e Vítor Hugo: O Bobo (1848), Eurico, o Presbítero (1848) e O Monge de Cister (1841), os quais já assinalam o seu interesse pelos estudos históricos e a sua concepção da história de Portugal, entendida não como uma "biografia dos indivíduos eminentes", mas como uma história institucional da classe média portuguesa, à maneira da Histoire du Tiers État de Thierry. A ficção histórica de Herculano abarca o conjunto da Idade Média portuguesa. Assim, por exemplo, O Bobo trata da formação da nacionalidade, a época de D. Afonso Henriques, evocando o mundo dos guerreiros e dos trovadores; o Eurico abarca a conquista e o domínio árabe da Península Ibérica, o longo período das trevas; e O Monge de Cister aborda a crise ligada ao advento da centralização régia (reinados de D. Fernando e de D. João I), período bem-documentado por Fernão Lopes que exprime, segundo Herculano, a índole nacional, graças ao carácter democrático da ascensão ao trono do mestre de Avis e à influência política conquistada pelos burgueses e mesteirais na revolução de 1383. Esta evocação da Idade Média insere-se, como vimos, no programa romântico - sobretudo de cunho alemão - do regresso às "raízes nacionais", fazendo tábua rasa da época clássica do absolutismo e da decadência nacional. Herculano, um liberal conservador e pouco democrata, explica as razões da sua preferência pela Idade Média: «O princípio de liberdade pertence incontestavelmente à Idade Média, porque, se não me engano, a liberdade não é mais do que a facilidade da variedade nos actos humanos, e a variedade é, como temos repetido, o carácter essencial dessa época. O que são as revoluções políticas do nosso tempo? São um protesto contra o Renascimento, uma rejeição da sociedade, uma renovação das tentativas para organizar a sociedade. O século XIX é o undécimo do que exclusivamente se pode chamar o socialismo moderno. Os três que o precederam foram uma espécie de hibernação em que o progresso humano esteve, não suspenso, mas latente e concentrado nas inteligências que iam acumulando forças para o traduzir em realidades sociais. Eis donde procedem as analogias dos séculos bárbaros com a época em que vivemos». Uma explicação absolutamente desconcertante que revela um Herculano incapaz de compreender o seu próprio tempo e que contrasta, pela sua mediocridade, com a vivacidade da inteligência de Garrett. A questão da liberdade reduzida à escolha da vida celibatária no Eurico, o alter ego de Herculano! Na Idade Média, uns eram celibatários, outros eram "casados" ou talvez promíscuos. Esta variedade "medieval" nos actos sócio-sexuais constitui, para Herculano, a prova de que a Idade Média foi uma era da liberdade. Não admira que, depois do seu regresso a Lisboa, Herculano tenha optado pelo sacho na sua quinta em Vale de Lobos que adquiriu em 1859, onde terminou a sua vida «entre quatro serras, com algumas jeiras de terra, umas botas grossas e um chapéu de Braga», como confessa numa carta dirigida a Garrett (1851). Com estas notas críticas não pretendo eclipsar a obra literária e histórica de Herculano: o que desejo é contribuir para o resgate dessa obra da consciência filosófica inadequada de Alexandre Herculano. Libertar a obra de Herculano da sua própria consciência "filosófica": eis a missão da crítica. A Marquesa de Alorna tinha chamado a atenção de Herculano para a literatura alemã, mas da estética de Schiller não há vestígios na sua obra: a literatura portuguesa ressente-se da aversão nacional ao pensamento filosófico. Ao acusar Kant de fazer do mundo uma dúvida, Herculano fica impedido de compreender a estética de Schiller que foi desenvolvida sob o impacto da Crítica do Juízo de Kant, onde a função estética se converte em tema fundamental da filosofia da cultura: o empreendimento estético-político de Schiller visa reconstruir a civilização em virtude da força libertadora da função estética. Herder e Schiller, Novalis e Hegel, desenvolveram o conceito de alienação para mostrar que a civilização moderna abriu uma ferida no interior da existência humana quando antagonizou as suas duas dimensões básicas. Schiller descreve este antagonismo numa série de pares de conceitos opostos: sensibilidade e razão, matéria e forma (espírito), natureza e liberdade, particular e universal. Cada uma das duas dimensões da existência humana é governada por um impulso básico: o "impulso sensual", passivo e receptivo, que governa a sensibilidade; e o "impulso formal", activo e dominador, que governa o entendimento. Para Schiller, a cultura mais não é do que um produto da combinação e da interacção destes dois impulsos básicos, que a civilização moderna transformou numa relação antagónica, em que a sensualidade é submetida à tirania da razão. Ora, este conflito só pode ser resolvido através de um terceiro impulso, um impulso mediador e reconciliador: o impulso lúdico ou impulso de jogo que tem por objectivo a beleza e por finalidade a liberdade. A estética de Schiller procura resolver um problema político: a libertação do homem das condições existenciais inumanas e degradantes. A solução deste problema político passa pela estética, porque a beleza constitui o único caminho que conduz à liberdade, tendo como veículo o impulso de jogo. Este impulso não joga «com» algo, na medida em que é o próprio jogo da vida, para além da esfera das carências materiais e das compulsões externas, a manifestação de uma existência sem medo e sem angústia, enfim a manifestação da própria liberdade. Ao contrário do que pensa Alexandre Herculano, a liberdade não é "a facilidade da variedade nos actos humanos": o homem não é livre quando pode exibir uma variedade de actos numa realidade repressiva, mas só é livre quando se liberta das coacções, externas e internas, físicas e morais, isto é, quando não é reprimido pela lei e pela necessidade. Ora, sendo a coacção a própria realidade, a liberdade só pode ser entendida como emancipação do homem de uma ordem estabelecida que impede que a razão seja sensual e a sensibilidade racional. Segundo Schiller, o homem só é livre quando a sua existência joga, em vez de labutar com esforço, e vive exibindo-se, em vez de permanecer vergada ao reino da necessidade. Esta liberdade na realidade só poderá ser alcançada quando as carências e as necessidades puderem ser satisfeitas sem trabalho alienado (Marx), de modo a libertar o homem para a tarefa de jogar tanto com as suas próprias faculdades e potencialidades, como com as da natureza. O mundo será então exibição (Schein), a sua ordem será regida pelas leis da beleza, e o homem recuperará a "liberdade de ser o que deve ser": a liberdade de jogar. A faculdade mental correspondente à liberdade de jogar é a imaginação: o livre jogo da imaginação traça e projecta as potencialidades do ser total, libertando o homem da sua escravidão à matéria coercitiva. As potencialidades revelam-se como "formas puras" e, como tal, constituem uma nova ordem, um novo princípio de realidade, cujas leis são as da beleza. A função estética concebida como princípio que governa a existência humana exige a libertação universal do homem. A revolução cultural é revolução política, e a revolução política é revolução mundial. O homem só será livre quando todos os homens forem livres.
Anexo: Passos Coelho devia ler atentamente Schiller para aperfeiçoar o seu conceito de humanidade: a sua política de empobrecimento - sadicamente pensada até ao pormenor pelo "vitinho" - priva os portugueses da liberdade e do livre jogo da imaginação. Onde há fome não há liberdade. Passos Coelho é o coveiro da liberdade e da democracia. Passos Coelho personifica o ocaso de Portugal. E o (In)Seguro - sem a Europa-fetiche - não é alternativa.
8 comentários:
Já repararam que no nosso tempo diplomado não há verdadeiros poetas e romancistas???? Decadência cultural do Ocidente: os burros diplomados não produzem nada, absolutamente nada de jeito!
KKKKKKK... há por aí na praça uns que dizem ser poetas e que me dão os livros para ler! Sinceramente, quando passo os olhos por esses poemas, fico envergonhado: a vergonha que devia ser a deles passa para mim que não tenho nada a ver com a esta miséria poética.
O Prémio Nobel da Literatura devia ser abolido, porque não há obra digna de ser premiada! Bem, pensando melhor, a abolição de todos os prémios Nobel justifica-se. É tudo uma merda! :(
Eu já não vejo pessoas; vejo gado a ruminar! Uma tristeza infinita! Estou só no mundo!
Já agora, se for ao Museu Romântico do Porto, vá até ao bar, sente-se confortavelmente, coma uma fatia de bolo de chocolate e beba um cálice de vinho do Porto. E não se esqueça de desfrutar a paisagem e o rio Douro.
Até umas notas para pesquisa são complicadas quando o tema é tão rico como o romantismo.
Amigos da Europa do Norte!
Não posso fazer parte de todos os sites, porque não tenho tempo para participar nas discussões. Adoro cinema mas não sou bem um especialista em tal matéria. Também adoro futebol mas só participo para defender o Futebol Clube do Porto! Mas vou pensar melhor... porque tenho lido os sites em questão, aos quais agradeço as referências. :)
Está concluído! :)
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