terça-feira, 26 de julho de 2011

Henri Bergson: Matéria e Memória

«Essa relação do espírito com o corpo, embora constantemente tratada ao longo da história da filosofia, foi na realidade muito pouco estudada. Se deixarmos de lado as teorias que se limitam a constatar a "união da alma e do corpo" como um facto irredutível e inexplicável, e aquelas que falam vagamente do corpo como um instrumento da alma, não restarão outras concepções da relação psicofisiológica que a hipótese "epifenomenista" ou a hipótese "paralelista", tanto uma como outra conduzindo na prática - quero dizer, na interpretação dos factos particulares - às mesmas conclusões. Quer se considere, com efeito, o pensamento como uma simples função do cérebro e o estado de consciência como um epifenómeno do estado cerebral, quer se tome os estados do pensamento e os estados do cérebro por duas traduções, em línguas diferentes, de um mesmo estado original, tanto num caso como no outro coloca-se em princípio que, se pudéssemos penetrar no interior de um cérebro que trabalha e assiste ao fogo cruzado dos átomos que formam o córtex cerebral, e se, por outro lado, possuíssemos a chave da psicofisiologia, saberíamos em detalhe tudo o que se passa na consciência correspondente.» (Henri Bergson)

Passei quase toda a noite a sonhar com um estudo extenso que se intitulava Ontologia Social e Fenomenologia da Consciência. Nos meus sonhos, os estudos que realizo estão já escritos: eu leio e volto a ler para reter os conceitos e as ideias fundamentais. Quando acordo, decido se devo registar materialmente essas ideias ou se as deixo fluir na minha consciência até que finalmente o tempo se encarrega do seu arquivamento automático. Porém, o sonho desta noite foi demasiado consciente e eu próprio alterei diversas vezes o texto para o articular com o pensamento de alguns filósofos que deixaram marca na minha matriz teórica, pura consciência-memória que não sossega nem sequer durante o sono. Henri Bergson que me tem ocupado nos dois últimos dias não esteve presente neste sonho, pelo menos não foi convocado quando reescrevi o texto onírico. Os filósofos convocados estiveram presentes no meu espírito, mas não os referi no texto: a primeira versão do texto onírico nomeava figuras nacionais medíocres que eu apaguei para as eliminar de vez. Apagar um nome no texto onírico tem efeitos reais na vida das figuras interpeladas por esse nome: o meu desejo-acto foi matá-las e aguardo o momento em que a sua morte será anunciada. Poucos são os mortais que têm acesso à memória infinita. Mas mais difícil do que o acesso é a alteração do "texto infinito": apagar um nome é condená-lo ao esquecimento, mais precisamente ao nada. O facto de ter alterado substancialmente o texto onírico, isto é, o texto da própria memória infinita, libertou-me da tarefa de voltar a registá-lo num texto escrito dirigido a mortais. Geralmente, quando, nos meus sonhos, a percepção que envolve o meu corpo como centro de acção se "mistura" teimosamente - contra a minha vontade-desejo - com as imagens da memória, como se estivesse acordado, sei que posso introduzir alterações no texto onírico. Desta vez, não me limitei a apagar nomes: o meu desejo-poder reescreveu um novo texto, onde o destino da humanidade está em jogo: apagar nomes e substituí-los por outros reconfigura o campo efectivo das forças políticas. Os nomes que convoquei representam forças que se movem contra as forças reais que operam neste momento na realidade material. Não consigo antecipar cenários reais de confronto e muito menos desfechos finais: o que sei é que a memória infinita está neste momento muito "fluída" - ou lábil, para homenagear a teoria da plasticidade neural de Ramón y Cajal! - e isto só acontece quando se operam mudanças reais na vida dos mortais. A utilização desta linguagem enigmática que parasitou a teoria da memória pura de Bergson visa ofuscar ainda mais a indigência mental e cognitiva dos mortais, meus contemporâneos: o seu apego mórbido à vida não lhes permite prestar a suficiente atenção à vida, de modo a merecer constar no texto infinito. Aquilo que os mortais mais temem será o seu destino final: um breve instante esquecido pela memória infinita.


Quando li pela primeira vez Bergson (1859-1941), Prémio Nobel da Literatura de 1927, era demasiado jovem, materialista e marxista para lhe dar o valor que ele merece: a leitura de A Evolução Criadora deixou-me completamente frustrado, não só por causa do uso exagerado de metáforas, mas sobretudo pelo facto de defender um vitalismo absolutamente contrário ao espírito da biologia molecular. A única obra de Bergson que nessa altura me seduziu foi O Riso: a teoria social do riso e do cómico de Bergson articulava-se facilmente com a filosofia de Marx. Porém, as críticas que lhe eram dirigidas pelos meus mestres - Horkheimer, Adorno, Althusser ou Lukács, por exemplo - fizeram com que eu adiasse a leitura integral de Matéria e Memória, de As Duas Fontes da Moral e da Religião, de Duração e Simultaneidade e do Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência. A leitura das colectâneas de textos de Bergson - A Energia Espiritual e O Pensamento e o Movente - foi suficiente para me colocar a par das suas teorias fundamentais, sem exigir a leitura de todas as suas obras. O seu debate com Einstein fascinou-me e, de certo modo, foi ele que manteve Bergson na minha proximidade. Um filósofo que contestou a teoria da relatividade de Einstein - e Ilya Prigogine recuperou mais tarde aspectos cruciais da sua noção de duração! - merece o meu respeito e a minha simpatia, até porque não aprecio "vacas da ciência" consagradas pelos mass media. Mas o acontecimento que despertou o meu interesse renovado pela obra de Bergson foi a leitura da tese de doutoramento do meu orientador sobre a memória: Bergson era o alvo preferencial da sua crítica materialista. O meu neuro-reducionismo era e é favorável ao espírito que move essa crítica neuro-redutora. Porém, depois de ter lido e relido a obra de Bergson, aprendi a dar-lhe o valor que merece: as críticas que lhe dirigem não acertam no alvo, esquecendo o conteúdo social das suas teorias, precisamente o aspecto que cativou a minha mente teórica. O eu social de Bergson é um conceito demasiado precioso para ser descartado em nome de um materialismo a-social, profundamente individualista, como se o indivíduo fosse anterior à sociedade. Quase todas as teorias propostas para solucionar o problema mente-cérebro, com excepção das teorias marxistas ou influenciadas pelo marxismo, as de Vygotsky ou de Mead, por exemplo, negligenciam a natureza social da mente e do próprio cérebro: o próprio Bergson esqueceu-se dela quando escreveu Matéria e Memória, onde aborda a união entre o corpo e o espírito, mediante a formulação da sua teoria da consciência-memória: «a lembrança representa precisamente o ponto de intersecção entre o espírito e a matéria» (Bergson). As neurociências acusam a teoria da memória pura de Bergson de ser anti-localizacionista: a "memória das palavras" - mas não a memória motora, a memória-hábito - não pode ser localizada no cérebro. Ao fazer esta afirmação, Bergson não está a negar a existência de "solidariedade entre o estado de consciência e o cérebro": o que Bergson rejeita é a equivalência entre o estado psicológico e o estado cerebral, afirmando que o estado psicológico ultrapassa enormemente o estado cerebral. Matéria e Memória é uma obra demasiado difícil, complexa e rica para poder ser resumida em poucas palavras: toda a obra procura distinguir a verdadeira memória - a realidade concreta de um espírito que vive e que dura - dos mecanismo cérebro-espaciais de conservação e de repetição, com os quais os neurocientistas a confundem. Para Bergson, o estudo das afasias mostra que estas perdas da recordação das palavras - apesar de serem condicionadas por lesões orgânicas - não implicam o paralelismo estrito entre o orgânico e o mental: os pacientes afásicos não perdem a recordação das palavras; o que perdem é a possibilidade de exprimir ou de traduzir em palavras as imagens do seu passado. Assim, o cérebro não é o lugar onde se conservam ou se guardam as recordações, mas o instrumento da sua actualização e da sua tradução material. É certo que Bergson rejeitou a localização cerebral da memória para salvaguardar a teoria unitarista da mente, mais o seu suplemento espiritualista, mas a sua crítica ajudou a aperfeiçoar a noção de localização e a dar mais atenção à complexidade da organização cerebral: a localização cerebral constitui o instrumento privilegiado usado pelo programa materialista de investigação para anular e liquidar a teoria unitarista da mente. Karl Lashley que estudou, na primeira metade do século XX, a localização da memória em ratos, retirando diferentes regiões do córtex cerebral, não conseguiu refutar a teoria de Bergson: esse "mérito" coube a Brenda Milner que estudou o paciente amnésico H.M., cujo interior do lobo temporal de ambos os lados do cérebro, incluindo o hipocampo, foi removido - em 1953 - pelo cirurgião William Scoville, numa tentativa desesperada de tratar a sua epilepsia. H.M. livrou-se da epilepsia, mas ao preço de uma perda de memória devastadora, que o tornou incapaz de converter uma nova memória de curto prazo numa memória permanente de longo prazo. (Esta distinção entre memória de curto prazo e memória de longo prazo deve-se a William James.) Mas não é sobre isso que pretendo falar, nem sequer especular sobre a reacção de Bergson perante um doente de Alzheimer: o meu neuro-reducionismo é, tal como o de Sperry, moderado, e, enquanto homem que vive a sua existência num mundo medularmente hostil, prefiro escutar a voz humana dos filósofos-sábios, em vez da voz rouca dos cientistas que procuram anular a diferença humana - a posição especial do homem - no reino animal. Teixeira de Pascoaes, o poeta-filósofo portuense, acusou o clericalismo científico de ser tão intolerante quanto o clericalismo religioso, mas foi ainda mais longe quando acusou o darwinismo de fazer do homem um "mero macaco" (orango): Henri Bergson teve o mérito inegável de não permitir tratar o homem como um zombie, porque tratar o homem como um zombie é fazer dele efectivamente um zombie: «Assim, quer a consideremos no tempo ou no espaço, a liberdade parece sempre lançar na necessidade raízes profundas e organizar-se intimamente com ela. O espírito retira da matéria as percepções que serão o seu alimento, e devolve-as à matéria na forma de movimento, onde imprimiu a sua liberdade» (Bergson). Foi preciso que os homens começassem a agir como os cães de Pavlov para vermos o perigo real das teorias que lhes recusam a sua humanidade e a sua liberdade: a função da Filosofia é, neste mundo de zombies, salvar o "pedaço" de humanidade que ainda resta nestas criaturas anestesiadas e/ou alucinadas. 

J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Os portugueses não são inteligentes! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Introduzi algumas alterações no texto. :)

antónio m p disse...

Não se preocupe. Que importância tem a memória se dela não recuperamos senão uma reconstrução criativa dos factos? Pelo menos é essa a experiência de quem pesquisa factos históricos - seja no jornalismo, seja na ciência histórica. Digo eu que, como tenho dado a entender, falo como espectador e não como actor no domínio científico.

Para minha própria justificação tomo a tese de que a intuição sobreleva a ciência. Ou então a razão é que, como diria o Raúl Solnado, gosto de dizer coisas.

"Pr'exemplo": para aqueles que dissociam cérebro e pensamento, porque é que eu não posso ter a memória de outra pessoa? Ou isso acontece apenas porque... sou português (invocação do seu comentário, para fecho da "narrativa").

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O primeiro comentário deriva de uma pesquisa que estou a fazer num site interactivo: a acumulação de provas não abona a favor da inteligência dos portugueses ou do seu grau real de cultura.

Sem memória não há propriamente vida mental superior, isto é, humana. A memória é um processo activo: os défices de memória são diversos e, no caso de alzheimer, implica a perda da própria identidade. Isso é terrível - sem memória a pessoa converte-se em zombie - literalmente. Muito degradante!

Quanto à memória histórica, ela é apenas aflorada aqui: os zombies também perderam essa memória, como demonstrei noutros textos. Trata-se da perda da identidade colectiva. De certo modo, só preservam a memória-hábito que fascina certos sociólogos. Mas essa é uma memória muito avessa à mudança. A intuição não abordei directamente: citar os mestres é reconduzir à crítica da intuição como forma privilegiada de acesso à consciência.