«A generatio aequivoca, em virtude da qual se entende a produção de um ser organizado através da mecânica da crua matéria, (é algo impossível).» (I. Kant)
Estudei embriologia a partir do clássico tratado de Embriologia Médica de Jan Langman. Hoje, graças aos avanços tecno-científicos da biologia molecular, a embriologia faz parte integrante da biologia do desenvolvimento, um dos ramos mais fantásticos das ciências biomédicas. Devo confessar que a teratologia - o estudo do embrião patológico ou das malformações congénitas do embrião - me fascinava quando comecei a estudar a embriologia, não tanto pelo facto das figuras embrionárias monstruosas satisfazerem a minha curiosidade natural pelo mórbido, mas sobretudo pelo facto do pathos - o anormal, o monstruoso - despertar e condicionar o meu interesse teórico pelo normal, como se a vida só se revelasse à minha consciência através das suas infracções, fracassos dolorosos e inadaptações. Porém, o meu interesse teórico pelo desenvolvimento embriológico só adquiriu forma consistente através da leitura dos artigos, bem como da obra Embryos and Ancestors (1958), de Gavin de Beer que clarificavam o alcance dos factos embriológicos sobre o problema da evolução, a partir da utilização feita por Darwin das leis de von Baer para mostrar a importância da embriologia na determinação das afinidades dos organismos. O estudo do desenvolvimento do embrião humano não é nada fácil, nem para o biólogo ou médico, nem para o filósofo. A história da teoria atómica da matéria encontra-se intimamente ligada à história do pensamento biológico. Dado o seu carácter não teleológico, o atomismo grego constituía um obstáculo para o pensamento biológico, tendo desencadeado uma reacção de desprezo em três grandes nomes da biologia: Aristóteles, Galeno e Harvey. O atomismo de Leucipo e de Demócrito não só ofendia a intuição biológica de Aristóteles, como também era totalmente adverso à metafísica teleológica que discutiu - durante quase duas décadas - na Academia de Platão. Como era possível uma teoria atómica da embriologia? Convencido de que o mundo inteiro era um embrião gigante, Aristóteles defendeu que as explicações do macrocosmos eram suficientes para compreender o desenvolvimento do microcosmos. Aristóteles não fazia nenhuma distinção real entre a física e a biologia: ambas eram aspectos de uma única ciência da natureza e os seus mundos tendem para um fim. O predomínio do paradigma embriológico no pensamento aristotélico manifesta-se desde logo na sua noção de movimento, elaborada a partir do desenvolvimento do organismo: o actual antecede o potencial significa que a galinha é antes do ovo ou que o homem é anterior à criança. Todo o desenvolvimento é desenvolvimento para um fim: a análise embriológica do conceito de causa em Aristóteles mostra claramente a prioridade dada ao adulto sobre o embrião e a idade juvenil. Aristóteles ridicularizava todos aqueles que, como os atomistas, sugeriam que as formas do corpo vivo se desenvolviam por acaso ou coincidência: as especializações corporais não eram obra do acaso, mas resultado de um processo de desenvolvimento activado pela forma (morfologia): a forma adulta desloca e faz mover a forma juvenil, a actualidade arranca a crisália do meramente potencial, originando a implementação do que existe em potência. A biologia aristotélica é uma fabulosa construção teórica que serviu de referência a todo o pensamento biológico posterior. E foi, para a defender do assalto mecanicista, que Maupertius (1756) rejeitou todas as explicações fisicalistas do desenvolvimento embrionário, alegando que a formação de um corpo organizado não pode ser explicada pelas propriedades físicas da matéria. A ideia de um embrião mecânico - o fio condutor deste estudo - chocava não só a sensibilidade de Aristóteles como também a sensibilidade dos seus inúmeros discípulos, de Galeno até Driesch, passando por Harvey e Maupertuis.
Teoria da epigénese de William Harvey. William Harvey descobriu a circulação do sangue e, juntamente com René Descartes, é considerado como um dos fundadores da moderna fisiologia. Mas a sua ligação a Aristóteles não lhe permitiu ir tão longe quanto Descartes na formulação de uma fisiologia mecanicista. No campo da embriologia, Harvey conservou uma perspectiva profundamente aristotélica: a convicção de que o raciocínio teleológico é fundamental para o conhecimento da embriologia atravessa toda a obra que dedicou ao estudo do desenvolvimento - Exercitaciones de Generatione Animalium (1651), onde descreveu o desenvolvimento embrionário não só de mamíferos e de vertebrados, mas também de todo o reino animal. A sua descrição do desenvolvimento do embrião da galinha ainda merece ser revisitada, bem como a sua visão de que todas as formas vivas derivaram inicialmente de ovos, omne vivum ex ovo. De certo modo, com esta visão geral, Harvey antecipou no século XVII a famosa declaração de Virchow no século XIX: omnis cellula e cellula. Para clarificar a sua teoria epigenética do desenvolvimento, vou traduzir livremente um texto de Harvey, onde reconhece a sua dívida em relação a Aristóteles: «Tão-pouco estão menos enganados aqueles que fazem todas as coisas de átomos, como Demócrito, ou de elementos, como Empédocles. Como se a Geração não fosse nada no mundo, mas uma mera separação ou Colecção ou Ordem de Coisas. Em definitivo, não nego que, para a Produção de uma coisa a partir de outra, sejam necessárias essas coisas que mencionei, mas a Geração em si é uma coisa bastante diferente de todas elas. (Aristóteles é desta mesma opinião) e eu próprio procuro elucidá-la a cada instante, que todas e cada uma das partes do pinto, quer se trate de Ossos, Mandíbulas, Carne ou o que quer que seja, são procriadas e alimentadas a partir da mesma Clara de Ovo. Além disso, aqueles que argumentam desta maneira - os atomistas - assinalam somente uma causa material, deduzindo as causas das Coisas Naturais de uma involuntária e causal concorrência dos elementos ou de diversas disposições ou realizações de Átomos; não alcançam o que se encontra fundamentalmente implicado nas operações da Natureza e na Geração e Nutrição dos animais, a saber o Agente Divino e Deus da Natureza, cujas operações são dirigidas pelo Supremo Artífice, Providência e Sabedoria, e todas as obras tendem para um determinado fim e todas são produzidas para algum bem certo.» A abordagem de Harvey dos fenómenos embriológicos é epigenética: os órgãos do galo ou da galinha adultos formam-se progressivamente, surgindo a partir de uma «clara de ovo» inicialmente indiferenciada. Os sucessores de Harvey abandonaram esta perspectiva epigenética e, com a ajuda do microscópio, aplicaram o esquema da fisiologia mecanicista ao estudo do desenvolvimento embrionário.
Teoria da preformação. Durante a segunda metade do século XVII, os embriologistas começaram a utilizar o microscópio para observar os fenómenos embriológicos: as suas observações microscópicas deram início a uma controvérsia científica que durou quase um século. No centro desta controvérsia científica, estava a compreensão do modo como os organismos se reproduzem: Como surge um novo indivíduo da união dos seus progenitores? Era o sémen do macho que dava forma à matéria indiferenciada da fêmea, como defendiam Aristóteles e os seus sucessores escolásticos? Ou a mãe também contribui para a formação da sua descendência, como defendiam Hipócrates, Empédocles e Demócrito? O sistema reprodutivo tinha sido estudado com grande interesse no decurso dos séculos XV e XVI que protagonizaram a ressurreição da anatomia: Leonardo da Vinci realizou brilhantes investigações anatómicas do corpo humano, e Fallopio, além de ter dado o seu nome às trompas de Falópio, forjou, em 1561, os termos "vagina" e "placenta". O mestre de Harvey, Fabricio, investigou o feto e o desenvolvimento dos ovos das aves. Os folículos ováricos foram descritos pela primeira vez por Steno e de Graaf em 1672, e, em 1676, Leeuwenhoek expôs as suas observações de «imensas quantidades de animalzitos vivos» no fluído seminal humano perante o auditório da Royal Society. Em 1862, von Baer forjou o termo "espermatozóide" para designar a estranha população de pequenos animais fecundos observada por Leeuwenhoek. Apesar da observação da fertilização (fecundação) de um ovo (óvulo) pelo espermatozóide só ter sido realizada por Hertwig em 1875, a comunidade científica e filosófica, logo após as comunicações de de Graaf e de Leeuwenhoek, já estava convencida de que um tal acontecimento estava na raiz da reprodução sexual, sendo levada a questionar a pertinência das noções aristotélicas e escolásticas da concepção. Quando e como intervinha a alma para dar forma ao embrião em desenvolvimento? Se o sémen era composto por pequenos animais fecundos, todos eles e cada um deles transportavam a alma? E, se fosse assim, donde tinham obtido tão preciosa carga? Ter-lhes-á sido oferecida no acto inicial da criação, aguardando desde então a sua oportunidade para viver no macrocosmos, ou era antes o ovo que continha o princípio vital? Swammerdam (1669, 1737), um entomologista versado no uso do microscópio, defendeu a ideia de que o insecto perfeito jaz plenamente formado dentro da pele da ninfa e da crisália. Para Swammerdam, a larva não passava primeiro a crisália e, depois, a crisália a animal com asas: o que ele observava era que o próprio animal, mudando a sua pele, se constituía primeiro em ninfa ou crisália e depois em animal adulto com asas, tal como sucedia com os girinos. Todo o processo de desenvolvimento se resumia nos conceitos de preformação, preexistência e emboîtement: o adulto formava-se em virtude da expansão das partes já formadas. Em 1694, Hartsoeker desenhou um homúnculo espermático para ilustrar o conceito de que o homem completo se encontrava em miniatura dentro de um espermatozóide. Porém, nem todos os preformacionistas eram animaliculistas: os ovulistas observavam ao microscópio indivíduos minúsculos no interior dos folículos. Bonnet (1769), Malebranche (1672) e Leibniz (1714) ajudaram a expandir e a difundir a teoria da preformação, seduzindo todos os cientistas com inclinações teológicas que a utilizavam para justificar o pecado original. Aliás, a melhor descrição da articulação entre preformação e emboîtement encontra-se na obra-prima de Malebranche: «Uma só semente de maçã contém todas as maçãs e todas as macieiras de uma infinidade ou quase infinidade de séculos». Para Malebranche, a primeira fêmea de cada espécie continha dentro de si todos os indivíduos subsequentes da sua respectiva espécie.
Quando bem pensados, os conceitos de emboîtement e de preformação continham sérias dificuldades internas, a primeira das quais era de ordem teológica: Se cada animalículo, cada ovo que se observava ao microscópio, continha de facto um homem ou uma mulher perfeitamente acabados, esperando simplesmente o seu crescimento para tomar parte nos assuntos do grande mundo, que seria feito dos incontáveis animalículos e ovos que não conseguiram entrar no mundo? Estariam condenados estes minúsculos homens e mulheres a morrer sem terem nascido? O optimismo do século XVIII recusava um tal destino cruel, preferindo elaborar teorias fantásticas para dar uma nova oportunidade aos inúmeros ovos e espermatozóides que não tinham sido bem-sucedidos. Uma dessas teorias supunha que eles escapavam para a atmosfera, onde hibernavam até voltar a ser chamados para desfrutar da sua oportunidade na competição por um lugar sobre a terra. Além desta dificuldade de fundo que atormentava a teologia, havia outras dificuldades mais mundanas, das quais destacamos três relativas à explicação dos híbridos, da regeneração e dos monstros. Como é que a teoria da preformação poderia explicar os híbridos, a regeneração e os monstros? A comunidade científica sabia que a descendência era semelhante aos dois progenitores. Então como explicar este facto óbvio a partir do conceito de preformação? Perrault invocou a imaginação materna, sugerindo que esta podia afectar de algum modo a abundância de alimentação recebida pelo homúnculo em crescimento. Apesar de ser surpreendentemente exótica, a explicação de Perrault foi aceite até aos finais do século XVII. (E penso que, no campo da medicina veterinária, foram feitas observações invulgares em cadelas que apontam para um fenómeno idêntico à imaginação maternal, que provavelmente terá uma explicação psico-neuro-hormonal.) A comunidade científica sabia que, quando se corta a cauda a um lagarto, ela volta a crescer de novo, e que, quando um caranguejo perde uma pinça, ela regenera-se. Como explicar estas observações à luz da teoria da preformação? Os preformacionistas dispunham de duas explicações: uma delas seria considerar que se formavam nestas partes germes tão pequenos que podiam ser distribuídos sem ser vistos por todo o corpo do animal. Reamur (1741) elaborou a ideia de uma alma divisível em paralelismo com o corpo divisível para explicar a regeneração, mas acabou por reconhecer que o problema não tinha solução à luz do conceito de preformação. Quanto ao nascimento de monstros, fenómeno bem conhecido pela comunidade científica, a teoria da preformação procurou explicá-lo a partir de um acidente do processo de crescimento ou como consequência de uma enfermidade. Porém, a própria ocorrência de nascimentos monstruosos constituía uma afronta à crença da omnipotência de Deus que proporcionava à teoria da preformação - tão próxima das escolas teológicas da predestinação! - grande parte da sua força psicológica. Apesar dos factos biológicos não se submeterem ao seu esquema conceptual e à sua ideia-força de que a estrutura e a organização do adulto estavam já presentes no embrião, a teoria da preformação vigorou durante quase um século, tendo dominado a mente dos embriologistas desde a descoberta dos espermatozóides (1672) até aos anos 60 do século XVIII. O facto de concordar com a teoria teológica da predestinação e com as tendências da filosofia mecanicista da época ajuda a compreender o seu sucesso entre os membros da comunidade científica: o conceito de um embrião mecânico permitia pensar a embriologia em conformidade com os princípios da fisiologia mecanicista predominante. O conceito de desenvolvimento embrionário como escalada de crescimento de uma máquina (inicialmente) em miniatura só foi abandonado quando a filosofia mecanicista começou a declinar em meados do século XVIII, tendo sido substituída pelas filosofias românticas da natureza. A Naturphilosophie que se desenvolveu no início do século XIX contra a visão mecanicista do mundo teve um impacto enorme sobre a embriologia: o conceito de matéria inerte que obedece às leis da mecânica cedeu o seu lugar à ideia de que a matéria continha um princípio elástico, vital ou mesmo divino, em contínuo funcionamento. Como não pretendo analisar os princípios fundamentais das filosofias da natureza, limito-me a chamar a atenção para o importante contributo biológico de Goethe, que, além de ter forjado o termo "morfologia" em 1786, deu início ao estudo da morfogénese - termo que só aparece em 1868, com a publicação da sua obra Sobre a Morfologia, a Formação e a Transformação dos Seres Orgânicos (1817-22).
Controvérsias científicas do século XIX. A teoria da preformação encontrou o seu ultimo paladino em Albrecht von Haller, que, no último volume da sua obra Elementa Physiologiae Corporis Humani (1766) afirma que a epigénese é absolutamente impossível - epigénesis omnino impossibilitis est. Curiosamente, antes de ser preformacionista convicto, Haller tinha sentido uma forte «inclinação pela epigénese», mas o seu trabalho sobre o desenvolvimento do coração dos galináceos (1758) levou-o a abraçar a teoria da preformação, cujos conceitos fundamentais foram destruídos por Gaspar Friedrich Wolff. A partir do estudo microscópico do embrião da galinha, Wolff distanciou-se da filosofia mecanicista do século XVIII para remontar a Aristóteles e a Harvey, de modo a demolir a teoria preformativa do seu contemporâneo Haller que desvalorizava - com a sua autoridade - a obra de Wolff, alegando que a razão pela qual ele não podia observar o galo ou a galinha em miniatura no ovo se devia ao baixo poder de resolução dos microscópios da época. Mas Wolff não se intimidou com a autoridade reconhecida de Haller e avançou com os seus argumentos contra a teoria da preformação: Se o embrião estivesse efectivamente preformado dentro do ovo, sendo invisível por causa do seu pequeníssimo tamanho, então, quando começasse a tornar-se visível, deveria aparecer já plena e perfeitamente formado. Para apoiar a sua hipótese e desmentir a hipótese adversária, Wolff estudou o desenvolvimento dos vasos sanguíneos do embrião da galinha: as suas observações mostraram que os vasos sanguíneos se desenvolveram através da fusão de certo número de «ilhas de sangue» inicialmente independentes umas das outras. Além disso, o intestino da galinha, longe de aparecer plenamente formado, desenvolve-se progressivamente mediante o enrolamento de uma lâmina de tecido sobre a superfície ventral do embrião. Estas e outras observações permitiram a Wolff generalizar as suas ideias para defender que, longe de estarem preformados, todos os órgãos do corpo adulto se desenvolveram através de uma epigénese similar. A teoria da epigénese ridicularizada por Haller lançou as bases da moderna embriologia - na sua versão clássica, claro!, ao mesmo tempo que inspirou a biologia romântica dos filósofos da natureza no início do século XIX: a noção preformista do corpo como uma espécie de máquina concluída no momento da criação, latindo através das gerações até ao juízo final, era demasiado tosca para servir como paradigma explicativo do processo vital.
Com a entrada da embriologia no século XIX, a teoria da preformação sofreu um golpe mortal graças à obra de Karl Ernst von Baer - Ueber Entwicklungsgeschichte der Thier (1828-1837). H. C. Pander, colega de von Baer, tinha realizado uma monografia (1817) sobre o desenvolvimento da galinha (frango doméstico), onde mostrava que um dos primeiros acontecimentos era a diferenciação da blastoderme em três camadas ou estratos de células: a endoderme (pele interna), a mesoderme (pele intermédia) e a ectoderme (pele externa), tal como as designamos hoje em dia (Remak, 1845). Von Baer generalizou a teoria das três camadas germinais de Pander para explicar o desenvolvimento dos vertebrados em geral, mas a sua análise do desenvolvimento embrionário deu um novo passo em frente ao frisar que ele vai do geral ao particular. O pinto começa por ser simplesmente um vertebrado, a seguir converte-se em vertebrado de respiração aérea, depois em ave, mais tarde em ave terrestre, logo a seguir em ave galinácea e, por fim, em frango doméstico. Apesar da proximidade com as ideias evolucionistas de Haeckel, em especial a sua teoria da recapitulação, convém dizer que von Baer nunca aceitou a teoria da evolução: a "lei biogenética" de von Baer - segundo a qual o embrião se diferencia a partir de um começo generalizado - foi elaborada para refutar o conceito de preformação, ou seja, a ideia de que o ovo ou o esperma contém em estado de latência um homúnculo perfeitamente diferenciado que aguarda o estímulo adequado para aumentar de tamanho. Mas, como sucede frequentemente na história das ciências, as vitórias nem sempre são definitivas. Em 1888, Wilhelm Roux, o fundador da embriologia analítica ou, como ele lhe chamou, entwicklungsmechanik, realizou uma experiência em que, após ter dividido uma célula do embrião da rã em duas células, observou que cada uma das células separadas desenvolveu um meio-embrião. Ora, tal como Aristóteles, Roux reduzia todo o conhecimento ao conhecimento das causas, mas, ao contrário do mestre grego, não levava em conta as causas finais, interessando-se unicamente pelas causas eficientes e pelas causas materiais. Por isso, interpretou os resultados da sua experiência à luz da mecânica do desenvolvimento: a anatomia do futuro organismo já estava desenhada na substância do zigoto e, talvez, na substância do ovo, o que dava novamente razão a Haller contra Wolff e von Baer. Porém, este recrudescimento serôdio da teoria da preformação foi efémero, porque, logo a seguir, se demonstrou que, se o blastómero dividido for separado do seu vizinho, este último se desenvolvia dando lugar a um embrião completo, ainda que só tivesse metade do tamanho normal: a ideia de Roux - a divisão do zigoto divide o homúnculo latente - estava completamente errada. Em 1892, Driesch, após ter realizado experiências sofisticadas sobre o embrião do ouriço-do-mar que lhe permitiram obter embriões normais de blastómeros divididos tomados das etapas de 2, 4, 8, 16 ou mesmo de 32 células da blástula deste animal, escreveu que a teoria de Roux das «áreas germinais formadoras de órgãos» deve «ser descartada, pelo menos na sua forma geral», voltando a dar a vitória à teoria da epigénese.
A enteléquia de Driesch e o paradigma psicológico. Jacques Monod criticou severamente os animismos e os vitalismos - o vitalismo metafísico de Bergson e vitalismo cientista de Driesch e de Elsässer, que pressupõem a hipótese inversa à da biologia molecular tal como a interpretou: em vez de encararem a aparição, a evolução e o aperfeiçoamento progressivo das estruturas cada vez mais intensamente teleonómicas como resultado de perturbações ocorridas numa estrutura possuindo já a propriedade de invariância, capaz de conservar o acaso e de submeter os seus efeitos ao jogo da selecção natural, os vitalismos defendem um princípio teleonómico inicial, do qual todos os fenómenos vivos seriam manifestações. Porém, Monod descarta-se do vitalismo de Hans Driesch, alegando que ele trocou a embriologia pela filosofia. Embora seja verdade que abandonou a biologia para ensinar filosofia em Leipzig, Driesch realizou experiências engenhosas sobre o embrião do ouriço-do-mar - alterando as posições relativas dos blastómeros - para elucidar os mecanismos em acção durante o desenvolvimento. No início, procurou proporcionar uma explicação mecanicista para as suas observações, tendo publicado em 1891 a sua obra Mathematico-mechanistic Investigation of the Problem of Morphology in Biology, mas, com o decorrer do tempo, deixou de acreditar que um mecanismo pudesse explicar os resultados do seu trabalho experimental. Quando apresentou as suas Gifford Lectures de 1907-08, publicadas com o título The Science and Philosophy of Organism, Driesch demonstrou que não havia nenhum mecanismo capaz de explicar os fenómenos da morfogénese. Para Driesch, a máquina era «uma configuração típica de constituintes físicos e químicos através de cuja acção se chegava a um efeito típico»: as suas experiências sobre o embrião do ouriço-do-mar destruíam claramente esta configuração maquínica, mostrando que a vida não podia ser vista como «uma disposição especializada de acontecimentos inorgânicos». A física e a química não eram aplicáveis à biologia. Para Driesch, a biologia era uma «ciência independente»: o factor - algo de imaterial que actua sobre os corpos materiais - de que eram dotados os organismos vivos e que nenhum objecto inanimado possuía era a enteléquia. Porém, o conceito de enteléquia não seduziu nenhum embriologista ou biólogo. Permanecendo fiel ao seu impulso cartesiano, a biologia continuava a aguardar a sua redução à química e à física. A embriologia experimental e analítica continuou o seu caminho em direcção a uma teoria mecanicista da epigénese, como testemunham os trabalhos de Hans Spemann e Theodor Boveri. Os embriologistas, em especial Boveri, sonhavam com o dia em que «a análise morfológica fosse levada até ao ponto em que os seus elementos últimos fossem entidades químicas específicas». Ora, esse dia sonhado por Boveri chegou, em plena metade do século XX, quando Watson & Crick (1953) descobriram a solução para a estrutura do ADN (ácido desoxirribonucleico), e Kendrew e Perutz decifraram as estruturas das primeiras proteínas globulares - a mioglobina e a hemoglobina. Em 1976, James D. Watson publicou a sua obra Molecular Biology of the Gene (3ª. Edição), uma das primeiras obras da biologia molecular.
Evolução da teoria da matéria e a embriologia molecular. A biologia molecular - tal como a definiu François Jacob (1966) - procura interpretar os fenómenos que se desenrolam no seio dos organismos vivos em função das estruturas e das interrelações funcionais que se manifestam entre os constituintes macromoleculares da célula. Não se trata tanto de uma nova ciência biológica, marcadamente molecular e celular, mas sobretudo de um novo paradigma científico (Kuhn) que orienta todas as pesquisas dos fenómenos biológicos, incluindo os fenómenos embriológicos, em todos os domínios das ciências biomédicas. Com a emergência da biologia molecular, aparece a embriologia molecular que se propõe dar conta da diferenciação embrionária em função das propriedades químicas e físicas das macromoléculas - ácidos nucleicos e proteínas - constitutivos de cada tipo celular, de modo a elucidar a morfogénese: Como é que um ovo fecundado, que recebeu os seus genes do seu pai e da sua mãe, pode dar origem a todos os órgãos que estão presentes no adulto? Nesta secção final, não pretendo elucidar - pelo menos de modo sistemático e exaustivo - o desenvolvimento embrionário em função deste novo paradigma da genética molecular: o meu objectivo é clarificar os passos fundamentais que possibilitaram o seu aparecimento, em ligação com a evolução da teoria atómica da matéria, sem perder de vista o fio condutor deste estudo - a concepção do embrião mecânico, o alvo do desdém de Aristóteles e de Galeno. A união da morfopoiesis e da química, que se tornou evidente no último terço do século XX, deve-se tanto ao desenvolvimento da química como ao desenvolvimento da biologia. O conhecimento da natureza das ligações químicas que ocorreu durante o século XX não só clarificou o modo como os átomos se unem para formar moléculas, como também destruiu o antigo antagonismo entre a física atómica e a biologia. Em 1897, J. J. Thomson descobriu os electrões e, em 1911, Rutherford demonstrou que eles davam voltas em órbita ao redor de um núcleo atómico central de carga positiva. Em 1913, Bohr publicou o seu modelo da estrutura electrónica dos átomos que só deixou de ser enigmático na década de 1920, quando de Broglie (1923) sugeriu que, tal como a luz, as partículas da matéria deviam exibir propriedades ondulatórias, além das propriedades corpusculares. Em 1926, Schroedinger desenvolveu a ideia de de Broglie numa teoria matemática: a mecânica ondulatória que introduz uma mudança radical na visão fisicalista do mundo, unificando a física das partículas e a física das ondas. Doravante, a matéria exibe tanto propriedades de ondas como propriedades corpusculares. Ao nível subatómico os fenómenos devem ser interpretados nuns casos como devidos a partículas subjacentes, e noutros casos como devidos a ondas subjacentes. Esta dualidade inscrita na própria matéria permite resolver a antiga dicotomia entre os átomos e o vazio: uma partícula pode ser considerada, para muitos propósitos, como algo que se estende no espaço como uma onda.
Ora, esta transformação das bases do pensamento físico alterou completamente a biologia: a mecânica ondulatória permite explicar as ligações entre os átomos para formar moléculas, o caso mais elementar de morfopoiesis, sem recorrer aos velhos modelos de átomos semelhantes a bolas de bilhar em miniatura. A imagem newtoniana de partículas sólidas, maciças, consistentes, impenetráveis e móveis dá lugar à imagem de uma gota de líquido: a noção de que os átomos - as ondas de electrões associadas aos electrões valência, se unem ou se fundem para abraçar o núcleo dos átomos implicados harmoniza-se com a ideia morfológica da forma orgânica. As moléculas da vida - as biomoléculas - podem ser visualizadas, não como um emaranhado de partículas discretas impenetráveis, mas como formas tridimensionais complexas cuja densidade varia de uma parte a outra. A descoberta das estruturas tridimensionais da hemoglobina e da mioglobina (M. F. Perutz, 1962) selou o destino da biologia: a imagem do mundo de Demócrito reformulada pela nova física triunfou em todos os domínios da biologia, não só no domínio da morfologia e da anatomia, onde emergiu a biofísica, e no domínio da fisiologia, capturado pela bioquímica, mas também no domínio da embriologia. O antagonismo exibido por Aristóteles, Galeno, Harvey e Maupertuis em relação ao atomismo de Demócrito foi resolvido a favor deste último: Como é possível um embrião mecânico? A resposta requer - como é evidente! - o mecanismo adicional da evolução darwiniana: as proteínas globulares enrolam-se automaticamente nas suas complexas configurações tridimensionais quando são colocadas no meio físico-químico adequado. Neste caso, a morfopoiesis resulta da interacção de múltiplas forças físicas de curto alcance. Além disso, as moléculas biológicas consistem num determinado número de subunidades que se empurram umas às outras até ligarem entre si as superfícies complementares. Também neste aspecto a morfopoiesis surge unicamente de interacções físicas. A seguir temos a formação de estruturas consistentes em duas espécies de moléculas diferentes, tal como sucede na morfogénese de componentes celulares. Nos ribossomas e nos vírus (elementos genéticos móveis), as espécies moleculares implicadas são proteínas e ácidos nucleicos. O caso do bacteriófago T4 que infecta a E. coli - estudado por Wood & Edgar (1967) - ajuda-nos a compreender esta capacidade de morfogénese espontânea. Este vírus bacteriano - abreviadamente, fago - compreende uma cabeça, uma cauda, um plano de cauda e filamentos de cauda: a cabeça possui uma espiral de ADN contida dentro de uma cápsula de proteínas globulares. Quando parasita uma bactéria, o bacteriófago injecta-lhe o seu ADN que, uma vez dentro da célula hospedeira, começa a programar a maquinaria de síntese de proteína bacteriana de modo a que possam ser sintetizados também os novos componentes do vírus bacteriófago. Dos cem genes que estão presentes na cabeça do bacteriófago, quarenta desses genes parecem estar profundamente envolvidos na morfogénese e são eles que programam a síntese dos componentes bacteriófagos. O facto destes componentes se ligarem de forma espontânea mostra que, mesmo a este nível mais complexo, a morfogénese se deve simplesmente a forças físico-químicas. A biologia molecular abriu uma brecha profunda no sistema aristotélico: investigar o desenho dos componentes morfopoiéticos é investigar os mecanismos da evolução molecular. O curso temporal do processo morfogenético é explicado em termos da rede complexa de circuitos moleculares de controle que se desenvolveram dentro da célula, onde operam a vários níveis, desde o mecanismo de retro-alimentação de Jacob e Monod que controla a expressão da informação genética até ao nível em que essa informação é «traduzida» na estrutura das moléculas de proteína, para já não falar dos controles que governam a quantidade de metabolitos sintetizados. Todo este sistema integrado de controles assegura a organização do processo de morfogénese, ao mesmo tempo que permite à célula adulta operar como um sistema integrado. Deste modo, graças à cibernética e à teoria do controle, o carácter teleológico dos processos vivos que tanto impressionou os biólogos e os filósofos da natureza começa a ser explicado em termos de sistemas integrados de controle, sem recorrer às causas finais de Aristóteles, isto é, a um princípio teleonómico inicial. Jacques Monod resumiu tudo isto nesta feliz expressão: «a invariância precede necessariamente a teleonomia». Ou, como prefere dizer S. E. Luria: «A vida é diferente de todos os outros fenómenos naturais: ela tem um programa», inscrito numa substância única - os genes.
Ora, esta transformação das bases do pensamento físico alterou completamente a biologia: a mecânica ondulatória permite explicar as ligações entre os átomos para formar moléculas, o caso mais elementar de morfopoiesis, sem recorrer aos velhos modelos de átomos semelhantes a bolas de bilhar em miniatura. A imagem newtoniana de partículas sólidas, maciças, consistentes, impenetráveis e móveis dá lugar à imagem de uma gota de líquido: a noção de que os átomos - as ondas de electrões associadas aos electrões valência, se unem ou se fundem para abraçar o núcleo dos átomos implicados harmoniza-se com a ideia morfológica da forma orgânica. As moléculas da vida - as biomoléculas - podem ser visualizadas, não como um emaranhado de partículas discretas impenetráveis, mas como formas tridimensionais complexas cuja densidade varia de uma parte a outra. A descoberta das estruturas tridimensionais da hemoglobina e da mioglobina (M. F. Perutz, 1962) selou o destino da biologia: a imagem do mundo de Demócrito reformulada pela nova física triunfou em todos os domínios da biologia, não só no domínio da morfologia e da anatomia, onde emergiu a biofísica, e no domínio da fisiologia, capturado pela bioquímica, mas também no domínio da embriologia. O antagonismo exibido por Aristóteles, Galeno, Harvey e Maupertuis em relação ao atomismo de Demócrito foi resolvido a favor deste último: Como é possível um embrião mecânico? A resposta requer - como é evidente! - o mecanismo adicional da evolução darwiniana: as proteínas globulares enrolam-se automaticamente nas suas complexas configurações tridimensionais quando são colocadas no meio físico-químico adequado. Neste caso, a morfopoiesis resulta da interacção de múltiplas forças físicas de curto alcance. Além disso, as moléculas biológicas consistem num determinado número de subunidades que se empurram umas às outras até ligarem entre si as superfícies complementares. Também neste aspecto a morfopoiesis surge unicamente de interacções físicas. A seguir temos a formação de estruturas consistentes em duas espécies de moléculas diferentes, tal como sucede na morfogénese de componentes celulares. Nos ribossomas e nos vírus (elementos genéticos móveis), as espécies moleculares implicadas são proteínas e ácidos nucleicos. O caso do bacteriófago T4 que infecta a E. coli - estudado por Wood & Edgar (1967) - ajuda-nos a compreender esta capacidade de morfogénese espontânea. Este vírus bacteriano - abreviadamente, fago - compreende uma cabeça, uma cauda, um plano de cauda e filamentos de cauda: a cabeça possui uma espiral de ADN contida dentro de uma cápsula de proteínas globulares. Quando parasita uma bactéria, o bacteriófago injecta-lhe o seu ADN que, uma vez dentro da célula hospedeira, começa a programar a maquinaria de síntese de proteína bacteriana de modo a que possam ser sintetizados também os novos componentes do vírus bacteriófago. Dos cem genes que estão presentes na cabeça do bacteriófago, quarenta desses genes parecem estar profundamente envolvidos na morfogénese e são eles que programam a síntese dos componentes bacteriófagos. O facto destes componentes se ligarem de forma espontânea mostra que, mesmo a este nível mais complexo, a morfogénese se deve simplesmente a forças físico-químicas. A biologia molecular abriu uma brecha profunda no sistema aristotélico: investigar o desenho dos componentes morfopoiéticos é investigar os mecanismos da evolução molecular. O curso temporal do processo morfogenético é explicado em termos da rede complexa de circuitos moleculares de controle que se desenvolveram dentro da célula, onde operam a vários níveis, desde o mecanismo de retro-alimentação de Jacob e Monod que controla a expressão da informação genética até ao nível em que essa informação é «traduzida» na estrutura das moléculas de proteína, para já não falar dos controles que governam a quantidade de metabolitos sintetizados. Todo este sistema integrado de controles assegura a organização do processo de morfogénese, ao mesmo tempo que permite à célula adulta operar como um sistema integrado. Deste modo, graças à cibernética e à teoria do controle, o carácter teleológico dos processos vivos que tanto impressionou os biólogos e os filósofos da natureza começa a ser explicado em termos de sistemas integrados de controle, sem recorrer às causas finais de Aristóteles, isto é, a um princípio teleonómico inicial. Jacques Monod resumiu tudo isto nesta feliz expressão: «a invariância precede necessariamente a teleonomia». Ou, como prefere dizer S. E. Luria: «A vida é diferente de todos os outros fenómenos naturais: ela tem um programa», inscrito numa substância única - os genes.
Chegámos ao fim deste estudo da evolução das ideias e das teorias da embriologia ao longo dos últimos quatro séculos. Falta-nos dar uma resposta a esta pergunta: o que aconteceu com a controvérsia entre preformacionistas e epigeneticistas depois que surgiu a embriologia molecular? Hoje vemos que os dois campos do debate tinham, cada um deles, alguma razão. É certo que as células germinais não contêm um homúnculo plenamente formado, mas contêm, inscrita no seu ADN, uma representação do plano básico deste homúnculo. O embrião não surge de um protoplasma homogéneo e não-estruturado, mas se diferencia a partir de um material indiferenciado que está sob o controlo de instruções internalizadas nas moléculas de ADN. Os séculos XVIII e XIX careciam de uma apreciação das ciências dos computadores e da informação, que hoje já não nos permitem considerar os processos embriológicos como milagres que escapam ao esquema conceptual da física.
J Francisco Saraiva de Sousa
10 comentários:
Este texto vai demorar a ser concluído - os temas são complexos e vou procurar ser claro.
Bem, agora fiquei assustado - este texto vai ser enorme. Ainda não decidi se o divido em 2 ou não!
Puxa, eu bem disse que a embriologia era difícil. Vou ter trabalho a elaborar as noções nucleares. :)
Depois de concluir o texto, vou submetê-lo a uma revisão de modo a introduzir os conceitos contemporâneos da embriologia. :)
Ah, o título coloca em questão a ideia mecanicista do embrião, e o texto confronta a teoria epigenética e a teoria da performação, confronto superado pela biologia do desenvolvimento.
Ah, já posso ir dormir porque já resolvi as dificuldades que tinham vislumbrado. O texto começa a entrar no cerne da embriologia moderna. :)
Muito bom. Estou à espera :-)
Muito bom. Estou à espera :-)
hugo perpetuo
Obrigado, Hugo!
Já está quase concluído - falta terminar a introdução e o último parágrafo. Hoje avancei mais.
Já só falta concluir o 1º parágrafo. :)
Está concluído! :)
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