sábado, 9 de julho de 2011

Sherwood L. Washburn: a Questão da Hominização

«Na savana há muito pouca fruta. A vida é mais perigosa. Um bípede capaz de usar instrumentos adaptou-se aos problemas da savana caçando e comendo carne.» (Sherwood L. Washburn)


«A história fala-nos de inúmeros retrocessos (...), mas nada nos diz que não existe a possibilidade de retrocessos muito mais básicos do que qualquer outro até hoje conhecido, incluindo o mais básico de todos eles: o total desaparecimento do homem como homem e o seu silencioso retorno à escala animal». (José Ortega y Gasset)


«Sem homens certamente não haveria cultura; mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens». (Clifford Geertz)

Os meus heróis da ciência são mortos, com os quais continuo a dialogar através da leitura assídua das obras que legaram à humanidade. O facto de preferir dialogar com os mortos, em vez de dialogar com os vivos, meus contemporâneos, diz muito sobre aquilo que penso da ciência que se faz no nosso tempo indigente: a organização social da ciência padronizou e uniformizou de tal modo a sua prática que a fechou ao pensamento e à inovação. A ciência que se pratica hoje em dia é tão indigente quanto o espírito do nosso tempo. A indigência da ciência contemporânea reforça a minha necessidade de olhar para o seu passado em busca daquele espírito genial que alimenta o meu próprio pensamento. Ontem, num momento de profunda angústia, lembrei-me da obra de paleontologia humana de Sherwood L. Washburn, um dos meus heróis da ciência no tempo em que preparava a minha tese sobre o Homem Fóssil. O meu interesse pela hominização é tão antigo quanto o meu interesse pela biologia: ambos recuam até à minha idade escolar. Escrevi a minha tese sobre o Homem Fóssil para satisfazer este meu interesse antigo. Quando a conclui, abandonei o tema da hominização para me dedicar ao estudo da determinação sexual e da diferenciação sexual do cérebro e do comportamento. Porém, nunca desisti de actualizar os estudos sobre a hominização e, ontem, como me lembrei do velho mestre, fui ler e reler alguns desses estudos actuais. Fui assaltado literalmente pela dúvida que passo a partilhar de um modo ainda vago.


Quando escrevi a minha tese sobre o Homem Fóssil, apresentei um modelo interdisciplinar da antropogénese, marcadamente neurobiológico, que pretendia elucidar as linhas gerais da antropologia fundamental. Hoje reconheço a existência de duas falhas teóricas: o modelo neurobiológico da antropogénese é mais científico do que filosófico, o que contraria a intenção de elaborar uma antropologia fundamental ou de constituir a sua base, e, talvez por isso, cai no mesmo erro cometido por Leroi-Gourhan ou mesmo por Yves Coppens quando atribui a capacidade da linguagem aos hominídeos com um cérebro igual ou pouco maior do que o dos antropóides, perdendo assim de vista as lições de S. L. Washburn, David Pilbeam e W. E. Le Gros Clark. A inclinação para aceitar uma hipótese que carece de evidência empírica justifica-se pelo facto da hominização nunca ter sido levada em conta pelas antropologias filosóficas (Max Scheler, Arnold Gehlen, Helmuth Plessner, Ernst Cassirer, M. Landmann, M. Buber, E. Rothacker, Ph. Lersch), com a brilhante excepção da bioantropologia de A. Portmann: ao aceitar uma hipótese facilmente desmentida pela evidência neurobiológica, procurei dar à antropologia fundamental uma teoria da hominização, ao mesmo tempo que só me libertava do horizonte estreito das antropologias filosóficas à custa de sacrificar o seu carácter filosófico no altar da revolução da biologia molecular. A tradição da ciência e da filosofia alemãs é muito diferente da tradição da ciência e da filosofia anglo-saxónicas, por um lado, e francófonas, por outro. A biologia alemã - Europa Central e Rússia - resistiu durante muito tempo ao poder da evolução darwiniana, e é fácil detectar sinais dessa resistência até mesmo nos biólogos darwinistas, como por exemplo Konrad Lorenz. É talvez por isso que as antropologias filosóficas - todas elas oriundas da Alemanha - nunca foram sensíveis ao tema da hominização. A polémica entre Karl Rahner (teólogo) e Paul Overhage (biólogo) a propósito do problema da hominização lança luz sobre a dificuldade de elaborar uma antropologia filosófica que tenha em conta a evolução biológica do homem. Quando afirma que «onde há transcendência há homem; onde não há transcendência, só encontramos um animal», Rahner mais não faz do que definir uma teoria da natureza humana que se fecha à evolução e à história: o lugar peculiar do homem no mundo tem sido definido sem ter em conta a sua própria evolução biológica, ou seja, duas das três dimensões - a espiritual e a divina - que Rahner atribui ao homem não podem ser atribuídas aos seus antepassados fósseis. Os esquemas antropo-filosóficos só se aplicam ao resultado da própria evolução biológica do homem e não ao processo de aparição do homem como ser psicossomático a partir de formas animais anteriores. É certo que tentei colmatar esta lacuna da antropologia filosófica, mas a verdade é que, para o fazer, fui obrigado a atribuir funções mentais superiores a antepassados fósseis do homem com cérebros demasiado pequenos. Este erro estrutural atravessa todas as teorias da hominização. (A arqueologia está a seguir uma via filosófica mais radical: aplicar a filosofia de Heidegger aos artefactos arqueológicos pode ser interessante desde que esses objectos tenham pertencido ao homem moderno; mas o seu recuo no tempo é puro delírio. A noção de rosto não se aplica a todos os homens fósseis: a redução da face é um processo lento. Porém, o uso desta terminologia conceptual é da competência do paleoantropólogo.) Segundo W. von Humboldt, homem e linguagem estão tão indissociavelmente ligados entre si que podemos dizer que - sem linguagem não há homem, sem homem não há linguagem. Alguém que seja humano consegue penetrar no interior de uma mente privada de lingua(gem)? A paleontologia humana obriga-nos a imaginar o universo mental dos hominídeos fósseis, muitos dos quais não eram dotados da capacidade de falar. (Já agora uma provocação: Se nos deparássemos com alguns exemplares do Australopithecus ou do Homo habilis, o que faríamos? Tenho a certeza que os colocávamos num Jardim Zoológico, pensando levá-los a seguir para um laboratório. De certo modo, é esta uma das lições do filme de ficção científica - O Planeta dos Macacos.)


Vejamos brevemente o esquema evolutivo de S. L. Washburn: ele defende - e com razão - que o bipedismo, o fabrico de instrumentos e a caça são anteriores ao aumento da capacidade cerebral. E, pelo menos num artigo de 1978, reconhece que, durante grande parte do último milhão de anos, a evolução humana, tanto biológica como tecnológica, foi muito lenta: a sua aceleração começou há cerca de 40 000 anos quando desapareceram todas as formas humanas primitivas para dar lugar a seres humanos de anatomia totalmente moderna - Homo sapiens sapiens -, com maior capacidade para a comunicação verbal. Washburn não afirma que o homem fóssil fosse mudo durante grande parte da sua evolução; o que defende é que a extraordinária expansão do homem moderno se deve, provavelmente, à sua maior capacidade para a comunicação verbal: «É provável que a linguagem, que combina a emissão de sons com a capacidade cognitiva, tenha sido a base biológica da nossa aceleração histórica. Tal como a bipedismo e o fabrico de instrumentos caracterizam as primeiras fases da evolução humana, a capacidade fisiológica para a comunicação verbal constitui a base biológica das suas últimas fases. Sem esta forma de comunicação, de suma eficácia, o nosso progresso teria sido muito mais lento e limitado». Temos assim duas evoluções e duas humanidades: uma evolução lenta, caracterizada pelo bipedismo, fabrico de instrumentos e caça, e uma evolução acelerada pela aquisição da capacidade da linguagem. Se a última é a nossa própria evolução - a evolução do Homo sapiens sapiens, a outra é a evolução das formas primitivas de humanidade que desapareceram quando surgimos. O esquema bioantropológico de Washburn opõe duas naturezas humanas, uma primitiva, a outra moderna: o seu conceito de humanidade plena - a nossa - não se aplica às formas fósseis extintas na Europa há 30 000 anos - o Homo neandertalensis - ou no decorrer do próprio processo evolutivo dos hominídeos e dos primatas em geral (70 milhões de anos). De certo modo, o reconhecimento de duas humanidades e de duas antropologias ajuda a superar a dificuldade que tentei especificar, mas fá-lo a partir da noção que o homem moderno tem de si próprio. Ou dizendo de outra forma mais provocante: os homens fósseis, os hominídeos fósseis, incluindo o Australopithecus, o primeiro a assumir a marcha bípede, fazem parte da nossa genealogia distante, mas ainda não são figuras humanas propriamente ditas. Esta maneira de encarar a evolução biológica do homem não colide com os esquemas das antropologias filosóficas. Mas, quando se apropria da hipótese da caça (Washburn & Lancaster, 1968; R. B. Lee & I. DeVore, ed., 1968) para afirmar que o que nos tornou seres humanos únicos foi a carne, isto é, o desejo da carne, de comer, de caçar e de partilhar essa mesma carne, Craig B. Stanford reduz o homem moderno ao homem primitivo fóssil, como se o traço específico da humanidade plena fosse um traço arcaico que o homem partilha com os chimpanzés, os babuínos e os capuchinhos. A menos que a teoria do homem-caçador de Stanford pretenda dar conta de um fenómeno regressivo que está em curso nas nossas sociedades, o que não é o caso, não podemos aceitar de ânimo leve este seu pressuposto: «as raízes do conhecimento humano devem ser procuradas no nosso passado mais remoto, quando os nossos antepassados primatas não humanos tinham de responder a muitos dos mesmos contextos sociais». Há aqui conceitos de fundo que raramente são tematizados, tal é a força da moderna dogmática laica. Para os explicitar - e resolver a dificuldade teórica que referi, preciso refazer a própria teoria da hominização, mas esta é uma tarefa para levar a cabo em diversos textos.

J Francisco Saraiva de Sousa

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O texto parece mas não é confuso. Ainda não tive tempo para assimilar os novos artigos e tratados sobre o assunto.

O meu modelo de antropogénese é forte e só eu o posso corrigir.