|
Peter Higgs no CERN (4 de Julho de 2012) |
Reproduzo aqui a entrevista que Carlos Fiolhais concedeu ontem ao Jornal de Notícias. Eis a entrevista:
JN: Que importância tem esta descoberta para a Ciência?
Carlos Fiolhais: A descoberta da partícula de Higgs, anunciado hoje no CERN com algumas cautelas ("uma nova partícula compatível com a partícula de Higgs") é o coroar dos esforços de muitos físicos de todo o mundo. Hoje é um grande dia para a ciência, já que foi dado mais um passo no grande esforço humano de descobrir o mundo. O acelerador do CERN, a maior máquina jamais construída pelo ser humano para realizar uma experiência científica, revelou aparentemente a partícula que se procurava e que é necessária para compreender a física das partículas. Não é a primeira vez que no CERN se descobrem novas partículas confirmando previsões teóricas, mas, no caso presente, a busca tem sido particularmente difícil, dada a enormidade e a complexidade da tarefa. A física teórica avança, de forma imaginativa (em ciência, já Einstein dizia, a imaginação é mais importante do que o conhecimento), descrições do mundo, mas só a experiência pode confirmar essas descrições. A descoberta mostra o poder da física teórica, quer dizer do cérebro humano, para compreender o mundo. Ao contrário de outros casos, desta vez a teoria não previa a massa da nova partícula, pelo que houve que a procurar num grande domínio de energia (equivalente a massa, segundo a célebre fórmula de Einstein), como quem procura uma agulha num palheiro.
Em colisões a altas energias forma-se o Higgs mas este decai logo a seguir decai. Observam-se em grandes detectores os resultados desse decaimento, que são uma espécie de assinatura do Higgs. Tudo leva a crer que a partícula está lá a 125 Gigaelectrõesvolt, uma massa muito grande para uma partícula elementar, equivalente a um átomo de bário que tem 56 protões e 81 neutrões (ambos feitos de quarks), para já não falar dos 56 electrões, que são muito leves em comparação com os protões e neutrões. Porque é que o Higgs é importante? Essa partícula é afinal a responsável pelas diferentes massas de todas as partículas elementares. Sem ela não existiriam os quarks, os electrões e os neutrinos, tal como os vemos, partículas elementares de diferente massa, que formam os átomos e, portanto, toda a matéria conhecida.
JN: Se esta era a última peça para explicar a origem do Universo, o que sabemos agora sobre a génese do Cosmos?
CF: Não era a última peça, há mais peças que faltam. A física tem muitas peças por encaixar (felizmente, significa trabalho para os físicos, que assim não ficam desempregados!). Aliás em ciência quando se responde a uma pergunta (neste caso: existe o Higgs, responsável pela massa de todas as partículas?) surgem logo várias outras perguntas. Falta agora provar inequivocamente que é o Higgs determinando as suas propriedades. Mal comparado, é como se tivéssemos um suspeito e tivéssemos agora que o interrogar: "Quem é o senhor? O que faz? O senhor é o responsável pela massa das partículas"? Se for mesmo o que se procura, isso será bom para o chamado modelo padrão das partículas, mas não mata a nossa curiosidade. A verdade é que muitos físicos acham esse modelo largamente insatisfatório. Como o conceito de simetria está por trás do modelo e há alguns problemas conceptuais, muitos físicos estão desejosos por ver esse modelo falhar, para se lançarem em alternativas "mais elegantes". Sobre a génese do Cosmos: sim, o nosso conhecimento das partículas elementares e das forças fundamentais exercidas entre elas ilumina o nosso conhecimento do cosmos, pois, segundo a teoria do Big Bang, no início era a energia e só depois apareceram as partículas - quarks, electrões e neutrinos, e só mais tarde estas se agruparam (os quarks em protões e neutrões, os protões e neutrões em núcleos atómicos e os núcleos com os electrões para formar átomos). Mas persistem grandes interrogações a respeito do início do mundo. Sabemos que houve um início e sabemos que houve uma expansão com organização progressiva da matéria. Mas não sabemos, por exemplo, o que há além da matéria e energia que conhecemos: há fortes indícios de haver matéria escura e energia escura no Cosmos, que, como o próprio nome indica, nos são, por enquanto desconhecidas. E essa matéria e energia escuras devem formar a maior parte do Cosmos. Talvez o Higgs nos forneça uma pista...
JN: O que existia antes dela? Quem criou a partícula de Higgs?
CF: Energia é equivalente a matéria. Nos instantes primordiais, há cerca de 13 700 milhões de anos, só havia energia no espaço e no tempo. Energia significa forças. Os físicos acreditam, tal como Einstein, na unificação total das forças. Mesmo no início, só devia haver uma força, que se desdobrou noutras. Só depois apareceram as partículas elementares, criadas à custa da energia e dotadas de massa. Não faz sentido dizer o que existia antes do Big Bang, pois ele é o início do espaço e do tempo. Antes do tempo não há tempo. Para sermos rigorosos: a pergunta do "antes do Big Bang" não pode ser respondida pelos físicos ou, se responderem, só podem, para serem honestos, dizer que não sabem. Dizer que "Alguém" criou as partículas é uma visão religiosa, que não tem lugar em ciência.
JN: A designação partícula de Deus faz sentido?
CF: Não faz. O nome foi avançado por um físico laureado com o Nobel norte-americano, Leon Lederman, que deu esse título a um dos seus livros. Ele próprio brincou com o título... Esse nome pode ter muito poder mediático, mas não faz qualquer sentido do ponto de vista científico. Os físicos são humanos e, como conhecem bem os humanos, recorrem a esse tipo de truques para chamar a atenção. É, por assim dizer, invocar o "santo nome de Deus" em vão!
JN: Esta descoberta é uma aproximação entre a Física e a Metafísica, entre a Ciência e Religião? Ou esta dicotomia não faz sentido?
CF: Não é uma aproximação entre Física e Metafísica e muito menos entre ciência e religião. Essas dicotomias fazem sentido. Uma coisa é a física, outra é a metafísica. Uma coisa é a ciência e outra é a religião. Pode-se ser cientista e ter fé em Deus. Ou pode-se ser cientista e não ter. A ciência nem aproxima nem afasta de Deus, conforme tentei recentemente explicar num diálogo com o Bispo de Coimbra na Biblioteca Joanina. As duas actividades humanas podem coexistir pacificamente. É curioso que um dos autores da teoria do Big Bang tenha sido um sacerdote católico, o belga Georges Lemaître. Foi ele que declarou: "Num certo sentido, o cientista prescinde da sua fé no seu trabalho, não porque essa fé pudesse entorpecer a sua investigação, mas sim porque não tem a ver directamente com a sua actividade científica."
Anexo: Hoje estou demasiado preguiçoso para me entregar a uma reflexão filosófica em torno do bosão de Higgs. Steven Weinberg defendeu a tese de que a filosofia não tem utilidade para a física, excepto os trabalhos de alguns filósofos que ajudam os físicos a evitar os erros de outros filósofos. Esta tese não merece grande credibilidade, até porque os exemplos dados para lhe dar forma apontam na direcção contrária à pretendida: a importância da filosofia para a elaboração das teorias da física. No entanto, a sua formulação só é possível porque tem havido um divórcio entre filosofia e ciência, pelo menos fora do mundo anglo-saxónico. O distanciamento dos filósofos em relação à revolução científica ainda-não-concluída protagonizada pela física empobrece a própria filosofia. A filosofia não pode abdicar da Filosofia da Natureza: a comunidade dos físicos tem produzido muitas obras sobre as suas descobertas, nas quais fazem filosofia espontânea de cientistas. Cabe aos filósofos criticar essa filosofia espontânea e elaborar a filosofia adequada à física unificada. A filosofia não é um género literário: os cientistas precisam da filosofia para se orientarem no mundo social. Devemos expulsar os literatos do campo filosófico e reactivar a grande tradição ocidental. Nesta entrevista, Carlos Fiolhais faz filosofia, sobretudo quando refere as "dicotomias" ciência-metafísica - oriunda do neopositivismo lógico que marcou Heisenberg, por exemplo - e ciência-religião. Estas dicotomias implicam uma determinada visão da evolução das ideias: o conhecimento científico deveria já ter eliminado o conhecimento teológico e o conhecimento metafísico. Mas a verdade - como ele próprio o reconhece - é que estas formas mais antigas de conhecimento persistem. O facto do bosão de Higgs ter sido chamado de partícula de Deus mostra que a física ainda não superou o modelo teológico da criação: ainda há teologia no seio das grandes teorias da física. A revolução científica só estará concluída quando for completada por uma revolução filosófica: a colaboração entre físicos e filósofos é fundamental para consumar a revolução em curso. Até lá devemos ser cautelosos com aquilo que dizemos: a matéria escura do universo ainda nos é estranha.
1 comentário:
A partícula de Higgs foi descrita em 1964... por P Higgs, claro.
Enviar um comentário