«A teoria quântica aboliu a noção de objectos fundamentalmente separados, introduziu o conceito de participação em substituição ao de observador, e pode vir a considerar necessário incluir a consciência humana na sua descrição do mundo». (Fritjof Capra)
«A natureza nada sabe sobre imperfeições; a imperfeição é uma percepção humana da natureza. Enquanto parte da natureza, somos também perfeitos; é a nossa humanidade que é imperfeita. E, ironicamente, é devido a essa nossa capacidade para a imperfeição e para o erro que somos livres - uma liberdade que nenhuma pedra nem nenhum animal pode saborear. Sem a possibilidade de erro e sem a real indeterminação que a teoria quântica implica, a liberdade humana não faz sentido. O Deus-que-joga-aos-dados libertou-nos». (Heinz R. Pagels)
«A essência da interpretação de Copenhaga é que o mundo deve ser realmente observado para ser objectivo. A realidade tem existência apenas quando a observamos. Vemos que, de acordo com a interpretação da mecânica quântica segundo a escola de Copenhaga, o universo indeterminado tem outra consequência - a realidade criada pelo observador. A noção de que o mundo existe num estado bem definido independentemente da intervenção humana chegou ao fim. Há qualquer coisa de muito especial no mundo quântico; podemos domesticá-lo com a nossa matemática, mas o certo é que ele é estranho - muito mais estranho do que podemos imaginar visualmente». (Heinz R. Pagels)
Os físicos e os filósofos estão centrados nos problemas de interpretação da teoria quântica, na tentativa de dar uma resposta à pergunta: O que é a realidade quântica? É falso afirmar que, no mundo contemporâneo, os filósofos deixaram de estar preocupados com as questões clássicas que preocupam os físicos. Basta referir dois nomes - Samuel Alexander e Alfred North Whitehead - para desmentir essa afirmação de John D. Barrow. O objectivo deste texto é reafirmar o meu compromisso: contribuir para a clarificação da filosofia da teoria quântica. Noutro dia, assisti a uma conversa entre um engenheiro, um estudante de engenharia e um electricista formado na antiga escola industrial: o que me chocou nessa conversa foi a estupidez arrogante dos dois primeiros intervenientes. Embora não seja especialista em mecanismos eléctricos, compreendi desde o início a armadilha que o electricista prático montou para confrontar os diplomados arrogantes com a sua estupidez: eles desconheciam algumas leis físicas básicas que o electricista utiliza quando conserta os electrodomésticos. Este episódio mostra o estado do ensino superior em Portugal: a produção em série de burros diplomados, não só no campo das letras, o que não é surpreendente, mas também nas áreas das ciências e das engenharias. Nós, os amantes do conhecimento, somos oásis vulneráveis rodeados por um imenso deserto de estupidez diplomada que está a liquidar a cultura superior: a ralé diplomada ao abrigo do processo de Bolonha funciona como uma espécie de formigueiro que invade os oásis de conhecimento para os paralisar ou mesmo destruir. Nas universidade portuguesas, não há lugar para o mérito: o mecanismo que as domina expulsa do seu seio a competência, de modo a garantir a perpetuação da mediocridade instalada. Os burros afastam os competentes para não serem confrontados com a sua burrice visceral: o ensino universitário português é uma terrível mentira. Não adianta tentar descobrir argumentos ou exemplos para atenuar essa verdade essencial: a captura das universidades portuguesas pelo bando organizado dos burros diplomados. A universidade portuguesa - privada e pública - é lixo. Produzir textos sobre mecânica quântica é perder audiência - e esta perda é sintomática: ela indica o vazio cognitivo instalado nos cérebros dos burros diplomados. A arrogância que exibem é uma espécie de mecanismo de compensação: os "génios" portugueses (sic) são génios ocultos; eles nunca se revelam porque não há nada para ser revelado. Neste imenso deserto da estupidez, só temos um caminho a seguir para escapar à malvadez pseudo-diplomada: dialogar com os verdadeiros génios que já morreram há muito tempo. Falar com os mortos é, no fundo, um monólogo que nos livra da nefasta companhia dos vivos que povoam os espaços criativos da sociedade. A indigência cognitiva predominante é avessa à produção de grandes teorias, as quais não têm público. Perdidos nesta imensa mobilização da ignorância, somos obrigados a buscar a nossa própria salvação privada, em vez do compromisso com o projecto da esperança social. Fechamo-nos à sociedade da estupidez para lhe resistir: o nosso desejo é assistir ao seu colapso.
Os meus últimos textos apresentaram o materialismo aleatório como a filosofia mais adequada da mecânica quântica. No entanto, a interpretação de Copenhaga tem sido usada para liquidar o próprio materialismo. Não foi por mero acaso que referi Whitehead. Como se sabe, Whitehead é o autor de duas obras fundamentais, para já não referir Principia Mathematica escrita em colaboração com Russell: Science and the Modern World (1926) e Process and Reality (1929), nenhuma das quais foi traduzida em língua portuguesa. A sua filosofia é muito complexa e difícil: quem não tenha treino filosófico e científico não compreende o seu conteúdo. Aqui vou apenas elucidar brevemente a sua crítica do materialismo, a partir da sua obra de 1926. Na base do materialismo encontra-se a teoria de que existe a matéria ou de que só existe a matéria, sendo a matéria concebida como algo a que lhe é próprio a localização simples (simple location), uma simples localização no espaço e no tempo. Nesta concepção da matéria, o tempo é um acidente da matéria imutável e o instante (instant) carece de duração. Para Whitehead, a matéria tal como a concebe o materialismo é uma dupla-abstracção: o ente é concebido unicamente nas suas relações com outros entes e, destas relações, tomam-se em consideração apenas as relações espaço-temporais. O esquema materialista desenvolveu-se com Galileu e tornou-se em esquema dominante na ciência da natureza. Apesar disso, Whitehead considera-o falso pelo facto de negar a existência objectiva das qualidades secundárias, entrando assim em confronto ou desacordo com a experiência, e a responsabilidade humana. Whitehead vai mais longe quando afirma que o materialismo destrói o seu próprio fundamento, a indução, porque se as partículas materiais se encontram isoladas e apenas entrelaçadas mediante relações espaço-temporais, não é possível, com base no que ocorre num ente, concluir nada sobre o que está a ocorrer noutro ente. A crítica do materialismo realizada por Whitehead é extremamente abstracta: o que foi dito é suficiente para a apreender, mas o seu carácter abstracto exige uma clarificação. A filosofia é, para Whitehead, o esforço de racionalização completa da experiência humana. Aristóteles dizia que só há ciência do geral, o que significa - na linguagem de Whitehead - que não há conhecimento sem abstracções. No entanto, apesar do pensamento ser abstracto por necessidade, Whitehead está consciente de que as abstracções são perigosas quando conduzem à intolerância intelectual, a qual exclui da realidade todos os elementos que não se acomodam no esquema-sistema abstracto. A intolerância intelectual mais não é do que a propensão a considerar os seus princípios como outros tantos dogmas e a tomar as abstracções pela própria realidade. Whitehead deu-lhe o nome de falácia da concreção fora de lugar (fallacy of misplaced concretness), a qual ameaça liquidar a cultura superior. A filosofia tem como tarefa principal criticar as abstracções, examinando as ideias que os cientistas aceitam sem objecção e comparando os diversos esquemas abstractos. Além disso, a filosofia constrói o seu próprio sistema teórico, a partir de intuições mais concretas que as intuições da ciência, tomando-as emprestadas aos artistas e aos génios religiosos e articulando-as com as suas próprias intuições. A necessidade da filosofia num mundo cada vez mais indigente resulta do facto dela submeter os sistemas abstractos fabricados por esses homens à vigilância da razão. A filosofia é racional não só no desempenho desta tarefa de exame crítico dos sistemas abstractos, mas também no seu método: a razão não pode continuar a capitular perante a ditadura dos factos. Ao denunciar esta capitulação da razão perante os factos, Whitehead defendeu o regresso de um verdadeiro racionalismo, o qual se fundamenta na intuição imediata da racionalidade do mundo. Ora, esta ideia de que o mundo se encontra dominado por leis lógicas e pela harmonia estética não pode ser mostrada indutivamente ou demonstrada dedutivamente, porque ela resulta de uma intuição directa, cuja crença (belief) correspondente torna possível a ciência e a filosofia. O racionalismo proposto por Whitehead já não é o racionalismo clássico: o fundamento das coisas deve ser procurado na natureza dos entes reais determinados, porque lá onde não há ente não há fundamento. O regresso do concreto - o contacto com o concreto - é um tema comum às filosofias de Whitehead e de Husserl, para as quais a experiência que nos revela a verdade não se reduz ao conhecimento sensível. A crítica materialista da fenomenologia, em especial da teoria da intuição, foi realizada por Georg Lukács. O carácter empirista da metafísica de Whitehead revela-se no facto de ser descritiva: o filósofo explica o abstracto e descreve o concreto.
Whitehead tem razão quando afirma que o materialismo perdeu actualidade quando surgiram a teoria ondulatória da luz, a teoria atómica, a teoria da conservação da energia e a teoria evolucionista. Todas estas teorias descobriram factos que rompem com os marcos do materialismo. Porém, o golpe fatal que "matou" o materialismo foi-lhe dado pela teoria quântica, que, segundo Whitehead, exige uma concepção orgânica da própria matéria. A filosofia do organismo elaborada por Whitehead que culmina com uma teoria de Deus teve eco em Portugal na filosofia criacionista de Leonardo Coimbra. Ela reconhece os seguintes factos da experiência: a mudança, a duração (endurance), a interpenetração (interfusion), o valor, o organismo e os objectos eternos. E o seu principal argumento contra o materialismo continua a ser mais filosófico do que "quântico": o materialismo é definido como a doutrina que atribui realidade a uma abstracção cómoda e até mesmo fecunda no domínio da ciência, mas o corpo - tal como foi concebido por Galileu e Descartes - não existe. O conceito fundamental da filosofia da natureza de Whitehead é o de acontecer ou acontecimento (event), o qual abarca todos os outros conceitos, tais como os de mudança, persistência, interpenetração, valores, organismos e objectos eternos. (Os matemáticos e os físicos tendem a ser muito platónicos: há um mundo abstracto - o mundo das ideias - que priva Deus da sua liberdade infinita!) O mundo não é composto de coisas isoladas umas das outras, mas de acontecimentos ou daquilo que ocorre ou acontece (happens). Um corte temporal do acontecer é um caso (occasion). Todo acontecer é uma captação e um organismo. Uma captação porque apreende em si o universo inteiro. E um organismo porque as suas partes não se encontram justapostas mas formam um todo e o todo determina as partes. Daqui resulta que cada acontecer é, como a mónada de Leibniz, um espelho do universo. O acontecer é a unidade sintética do universo como captado ou apreendido e o mundo uma comunidade orgânica gigantesca em que tudo é influído por tudo e em que não existe uma única relação externa. (Usei o termo "acontecer" em vez de "acontecimento" para evitar introduzir cristalizações ou imobilidades num universo dinâmico!) As noções de espaço e de tempo usadas por Whitehead para mostrar o erro do materialismo - o espaço como abstracção das relações de interpenetração recíproca dos aconteceres e o tempo como abstracção das durações sucessivas dos aconteceres - aproximam a sua filosofia da filosofia vitalista de Bergson, embora rejeite o seu anti-intelectualismo. O contributo de Whitehead para a clarificação da filosofia da teoria quântica foi reconhecido por David Bohm: «A noção de que a realidade deve ser entendida como processo é muito antiga, remontando pelo menos a Heráclito, segundo o qual tudo flui. Em tempos mais modernos, Whitehead foi o primeiro a dar a essa noção um desenvolvimento sistemático e extensivo». O ponto de partida de Whitehead e de Bohm é o mesmo, a noção de realidade como processo, mas as implicações daí derivadas são diferentes: David Bohm elaborou uma teoria da ordem implicada, segundo a qual qualquer elemento contém, dobrado dentro de si, a totalidade do universo que inclui tanto a matéria como a consciência. Bohm é um físico que se notabilizou graças à teoria das variáveis ocultas. A sua primeira teoria foi elaborada em 1951 com base em ideias expostas em 1926 por Louis de Broglie. Segundo esta teoria, existe no espaço, além dos campos de forças, um potencial quântico, que, ao contrário desses campos de forças, não transporta energia e não pode ser detectado directamente. As partículas sofrem-lhe os efeitos e, de certo modo, servem-se dele para comunicar entre si. Assim, por exemplo, nas experiências sobre o paradoxo EPR, as duas partículas que se afastam uma da outra estão permanentemente ligadas por esse potencial quântico: a medição que efectuamos numa delas modifica instantaneamente o potencial que exerce influência na outra, e daí a correlação que observamos entre os resultados das medições. O potencial quântico é a variável oculta não local da teoria de Bohm, a qual também explica a experiência de Aspect e a experiência das fendas de Young. No entanto, a teoria de Bohm deixa de servir quando as partículas, animadas de uma velocidade próxima da luz, colidem entre si e dão origem a outras. Para explicar este último fenómeno, é necessário fazer intervir a teoria da relatividade de Einstein. A teoria de Bohm não foi conciliada com essa teoria: a explicação deste fenómeno é dada pela teoria quântica relativista de campo. (Bohm abdicou dos gravitões!) Mais tarde, em 1980, Bohm elaborou a sua teoria da ordem implicada, de resto já em gestação no tal potencial quântico: a noção básica é a de que a realidade mais profunda não é o espírito, nem a matéria, mas uma realidade de dimensão superior que lhes serve de base comum e na qual prevalece a ordem implicada, onde deixam de ter validade as noções de espaço e de tempo. Esta teoria tem o mérito de propor um novo modelo de realidade que se opõe à visão do mundo como algo fragmentado: a noção do mundo como totalidade adquire assim um novo estatuto científico. (A teoria estocástica de Edward Nelson permite conciliar a teoria da relatividade e a noção de potencial quântico.) A noção de acontecimento como espelho do universo - de Whitehead - traz consigo a noção de totalidade expressiva, a de Leibniz e a de Hegel, com a qual Marx rompeu. Não admira que a filosofia de Whitehead implique como seu coroamento uma teoria de Deus, isto é, uma teologia, que retém alguma coisa do materialismo da necessidade e da teleologia. Há, porém, uma outra noção de totalidade que rejeita as noções de Origem, Sujeito e Fim: o materialismo aleatório - esboçado por Althusser - convida-nos a pensar o mundo como processo sem sujeito. O materialismo aleatório afirma-se na sua diferença radical conquistando as posições e as linhas de defesa do adversário: o que quer dizer que, para elucidar a realidade quântica, deve confrontar-se com as teorias filosóficas rivais, desalojá-las e tomar posse dos seus territórios. A teoria quântica não pode rejeitar o conceito de potencial quântico por ser a criação arbitrária de uma nova entidade física, ao mesmo tempo que «namora» com um nada ideológico que é Deus (no sentido religioso do termo). Mas o materialismo aleatório também deve abrir-se à estranheza radical do mundo quântico: abertura mental deve ser a atitude dos filósofos e dos cientistas que trabalham nas últimas fronteiras do conhecimento, nas quais não é possível traçar uma linha de demarcação entre filosofia e ciência. Afinal, a última palavra não pertence a ninguém.
J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
A minha mente vacila entre dois caminhos comunicantes:
1. a natureza arcaica dos portugueses enquanto humanos: começo a vislumbrar o carácter português: e
2. o maravilhoso mundo da matemática.
Mas ainda não pensei o post seguinte.
«A ignorância é geralmente a irmã da maldade». (Sófocles)
Se eu pudesse influenciar o autor, não com a autoridade intelectual que não tenho mas com a capacidade vulgar de introduzir ruído no seu pensamento, gostaria de pressioná-lo a optar pelo segundo tema.
Não só por ser "melhor" (se a expressão faz aqui sentido) mas principalmente porque receio ver a sua inteligência e conhecimentos cederem a preconceitos vulgares.
Mas devo admitir que saberá elevar o sentido de "natureza arcaica dos portugueses" bem acima do que a expressão parece anunciar.
E acabo de optar pelo segundo tema: raramente falo de matemática porque o blogger não tem as funcionalidades adequadas. Gosto de trabalhar com o formalismo matemático e aqui sou obrigado a usar a linguagem para o explicitar. A colagem é onerosa.
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