Porto: Funicular dos Guindais |
Não sabia que Prós e Contras ia debater hoje (9 de Julho) a descoberta da partícula de Higgs: vi muito rapidamente o debate, no qual participaram três "filósofos" e três físicos. A surpresa surgiu quando vi que dois dos três supostos filósofos eram homens da Igreja Católica, um (Alfredo Dinis) mais inquisitorial do que o outro (Bruno Nobre). Restou apenas uma professora de "filosofia da ciência" que dá por nome Olga Pombo, a qual não soube estar à altura da filosofia, até porque muitas das questões que colocou já têm uma explicação consensual. Com estes falsos representantes, a filosofia ficou sem direito à palavra neste debate moderado por Fátima Campos Ferreira, embora Alfredo Dinis tenha exibido a arrogância de falar em nome da filosofia que identifica com a metafísica. Por momentos, voltámos à Idade Média, como se os homens religiosos tivessem o direito de ditar as regras do jogo científico. Alfredo Dinis exibiu um livro de um físico americano que dispensa Deus para explicar a ordem do mundo. Pelo que disse sobre o livro, vi logo que ele não o tinha lido ou, se o leu, não o compreendeu: Alfredo Dinis é daquele tipo de homens anti-democráticos e maldosos que resolvem tudo dizendo que foi Deus que criou o mundo a partir do nada. E o que é pior: sem corar de vergonha. (Defendeu uma noção de nada que atribuiu à filosofia, como se todas as filosofias partilhassem essa mesma identidade nada = vazio. O falso filósofo desconhece as noções de nada em Heidegger, Sartre e Althusser. O nada em física tem um sentido muito peculiar: o nada de Deus criador, por exemplo. Vazio é uma outra noção. Pascal, filósofo cristão, sabia distinguir entre estas duas noções.) A questão de Deus já não constitui nenhum enigma, sobretudo depois da descoberta científica da electricidade que, ao iluminar a noite, dissipou o medo: o Deus dos monoteísmos não corresponde a nada, ou melhor, é um nada ideológico usado para garantir a dominação do homem pelo homem. A ciência tem uma vantagem em relação à religião: ela pode explicar os comportamentos e as crenças religiosas, sem ser por sua vez explicada pela religião. A religião não explica nada: a teologia é aquela forma bizarra de conhecimento que tem por objecto o nada, ou seja, não tem objecto. Se no imenso universo, incluindo a matéria e a energia escuras, há alguma coisa que mereça o nome de Deus, essa coisa não tem nada a ver com a concepção que estes homens obscuros têm de Deus. Explicar algum acontecimento através de Deus equivale a não explicar absolutamente nada: o Deus dos monoteísmos não explica nada. É por isso que as Igrejas Cristãs foram obrigadas - após longos períodos de lutas e de guerras sangrentas - a capitular perante a filosofia e a ciência, refugiando-se na esfera do simbólico, a esfera do nada de conhecimento. Se Olga Pombo conhecesse a obra de Max Weber, pelo menos, teria evitado improvisar - de forma extremamente leviana e voluntarista-opinativa - sobre a relação entre a religião e a ciência. É deveras estranho que uma "filósofa" (sic) desconheça o nascimento da filosofia na cidade-Estado grega e a luta que travou contra a tradição dogmática. Respeitar as crenças religiosas de pessoas que precisam de ter fé para viver é uma coisa, aceitá-las como parceiros de diálogo em matéria de ciência e de filosofia é outra: a sua fé não traz mais-valia ontológica ao nosso mundo; pelo contrário, privam-no da diferença e da liberdade. Não há à face da Terra nenhum país religioso que tenha avançado para formas mais democráticas de convívio humano ou mesmo de bem-estar material: o monoteísmo é, por essência, totalitário. Ele só permite a diferença lá onde o Estado se afastou da Igreja ou da religião, fazendo delas assuntos privados: o catolicismo entregue a si mesmo é tão talibã quanto o islão. Não há diferença qualitativa entre os três monoteísmos que, ao longo da história, têm levado os homens a derramar sangue, em nome de um nada ideológico que, afinal, é o bezerro de ouro das classes dominantes.
Compreendo a cautela exibida pelos três físicos - João Varela (CERN), Gaspar Barreiro e Carlos Fiolhais - quando falaram sobre o possível impacto da descoberta da partícula de Higgs sobre a física, mas o respeito pelas práticas e crenças religiosas tem limites: a hegemonia das trevas é uma ameaça presente no mundo contemporâneo. A comunidade científica deve estar sempre atenta e pronta a lutar contra os nadas ideológicos das religiões. (Gaspar Barreiro e Carlos Fiolhais lembraram a terrível hegemonia da religião durante a Idade Média!) Não há diálogo possível com a religião. No passado, temendo pela sua vida, os filósofos foram obrigados a "dialogar" com os "queimadores de corpos", mas esse diálogo visava minar por dentro a própria estrutura do pensamento cristão. Ao abraçar a filosofia grega, o cristianismo preparou a sua própria morte: a filosofia nunca foi escrava da teologia. As controvérsias teológicas referidas por Alfredo Dinis tinham um sentido: liquidar subtilmente os nadas teológicos. Ernst Bloch escreveu uma história do materialismo que lança luz sobre o processo de metamorfose subversiva das noções teológicas operado pelos grandes filósofos no seio da própria teologia: o Deus dos filósofos não é susceptível de ser adorado; ele é um conceito-limite que permite pensar a finitude radical do homem. No ocidente, o vector que orientou o pensamento filosófico foi o da expulsão de Deus, desse nada ideológico que não explica absolutamente nada. É com essa grande tradição materialista que a ciência se identifica: a função "política" do materialismo aleatório é impedir a exploração ideológica da ciência, em termos que não são os seus. O fosso entre ciência e religião é intransponível: um cientista que professe uma crença religiosa é uma consciência dilacerada e, profundamente, infeliz, porque lá no fundo da sua consciência ele sabe que o Deus dos monoteísmos é um nada ideológico. A luta contra a religião foi filosófica muito antes de ser também científica. Se a filosofia herdou alguma coisa do cristianismo, essa coisa é a exclusividade: a aliança filosofia-ciência não tolera a presença de um possível rival. Em Portugal, sabemos que esse rival adiou o desenvolvimento do país: o catolicismo predomina lá onde não houve verdadeiro desenvolvimento cultural e económico. Os três físicos presentes no debate mostraram saber isso e muito mais, embora pudessem ter ido mais longe e defender aquilo a que chamo a indiferença teológica como procedimento da ciência. Depois da filosofia e de outras ciências - incluindo a sociobiologia - terem elaborado uma teoria da religião, perspectivada no contexto da estrutura global da sociedade e da sua história, não há mais nada a dizer sobre Deus. Deus evaporou-se no seu próprio nada: a filosofia e a ciência não precisam dele para explicar a ordem do mundo. A presença religiosa distorceu sistematicamente o debate e a "filósofa" nem sequer foi capaz de colocar as perguntas correctas: a descoberta do bosão de Higgs, o qual dá massa às partículas, valida os modelos teóricos existentes das partículas, em especial o modelo-padrão que previu em 1964 a sua existência. A questão que este debate deixou em suspenso é a de saber se esta descoberta poderá vir a desencadear uma mudança de paradigmas. Desconhecemos 96% da matéria que constitui o universo: a matéria escura e a energia escura. O bosão-campo de Higgs poderá abrir uma janela para desvendar esse universo escuro.
Anexo: Alguns amigos têm criticado a escassez de informação sobre a partícula de Higgs. É verdade que não tem sido dada a informação suficiente sobre essa partícula, mas não me cabe a mim realizar o seu historial, pelo menos neste comentário. Apesar do seu formalismo matemático, a mecânica quântica é, com algum esforço, acessível. Há obras de divulgação científica que clarificam, em termos simples, a sua estrutura teórica. Steven Weinberg dedicou algumas páginas da sua obra a "descrever" a partícula de Higgs. A minha preocupação - aqui e nos textos anteriores - é outra... e confesso que não tenho paciência para as ordinarices portuguesas. Estou cada vez mais convencido de que os portugueses são efectivamente burros malvados: a nova ideologia nacional dos diplomados e dos génios que não se revelam é uma praga que conduz o país ao colapso total. A teoria do nada ideológico que esbocei aqui não foi compreendida por alguns destes "génios" com cérebro do tamanho de uma pevide. Mas ela não foi elaborada para ser compreendida por cérebros deprimidos: o meu público-alvo é outro. O reconhecimento ocorre entre pares e não entre pessoas afastadas umas das outras pelo abismo intransponível. Há apenas uma ideia que, embora implícita, requer um esclarecimento: os nadas ideológicos produzem efeitos reais - isto é, materiais - nas práticas sociais e nas instituições em que se inscrevem. Afinal, o que adianta dialogar com um burreco que, mesmo na presença da filosofia, não a reconhece? Um burreco deste calibre devia ter vergonha na cara e lançar-se ao rio Tejo! Imagine-se este cenário catastrófico: um estranho vírus elimina toda a humanidade, poupando apenas a vida de um desses génios ocultos portugueses. Um génio cósmico isola-o da civilização material, algures numa nave espacial, e atribui-lhe a missão de refazer a cultura científica e filosófica da humanidade, a partir daquilo que assimilou enquanto teve acesso aos seus arquivos. Conseguem imaginar as patetices que esse génio ultra-diplomado na escola portuguesa da mentira iria dizer e escrever? Furioso com a estupidez brutal do português, o génio cósmico condenou-o ao suplício eterno.
J Francisco Saraiva de Sousa
13 comentários:
Achei particularmente triste e desconcertante a forma como a "moderadora" poluia o diálogo ao injectar o seu ponto de vista e a reduzir-se ao "isto é muito bonito, mas afinal que electrodoméstico novo é que isto traz lá para casa?"
Não haverá alguém que veja para lá dos próprios pés para a substituir?
Sim, de facto os jornalistas portugueses carecem de cultura científica e filosófica! Reduzem tudo a electrodomésticos! :(
E mais: em Portugal é sempre necessário fingir um consenso. Um padre fala e temos de fingir que não há diferentes perspectivas em colisão. Predomina a ditadura do consenso e do respeito. No entanto, nos compartimentos onde se tomam decisões, os que pensam diferente são afastados.
A rede que domina Portugal bloqueia a mudança qualitativa!!!
Como é que pode haver filosofia quando os padres ocupam os lugares filosóficos - directa ou indirectamente por intermédio dos seus afilhados??? Isto é um beatério do pecado!
Meus caros, vejo que foi mesmo uma vista de olhos que deu pela tv... A verdade é que um dos Filósofos, que é padre jesuita é também um jovem que fez tese de doutoramento em partículas e é prof. de física - Bruno Nobre. Quando não vemos bem as coisas não as devemos comentar, muito menos tentar ser opinio maker... tente arranjar um tempinho para ver a intervenção deste Sr. que terá certamente mais conhecimento do que você nas duas áreas (física e filosofia)...
Conhecimento que não se revela não existe. Ele falou e não revelou absolutamente nada! Um projecto adiado???
Além disso, a treta do doutoramento não vale nada: os diplomas não fazem os cientistas ou os filósofos! Sabemos como eles podem ser obtidos... Não há génios ocultos!
Ele teve a oportunidade de falar e falou sem no entanto dizer nada de substancial. Até podia ter mostrado o diploma: que significado teria uma tal exibição? Nenhum... porque o que conta é a pessoa a mostrar que sabe... Conhecimento reservado não é conhecimento público e a reserva pode ser uma fraude!
De resto, não quero ver mais a figura! Que horror desperdiçar o tempo a escutar a voz da ausência!
Além disso, a rapidez que referi é uma figura de estilo que remete para a ironia! :)
No entanto, agradeço a informação que deu, embora eu a tenha escutado logo no início da minha rápida visita. Acrescentou informação nova: fiquei a saber que uma das mãos é doutorada em física das partículas. Falta saber qual delas: a direita ou a esquerda?? Disso depende o resto...
Quando vi a figura uma estranha voz sussurrou algumas palavras ao meu ouvido. Na altura não lhe dei atenção, mas agora - depois do seu comentário - elas tornaram-se claras. Raramente me engano!
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