«Toda a filosofia da cultura deve acolher a noção de níveis pedagógicos. Toda a cultura é solidária com o plano de estudos, com o ciclo de estudos. A pessoa afeita à cultura científica é um eterno estudante. A escola é o modelo mais elevado da vida social. Continuar a ser estudante deve ser o voto secreto de todo o professor. Devido à própria natureza do pensamento científico na sua prodigiosa diferenciação, e devido à inevitável especialização, a cultura científica coloca incessantemente o verdadeiro cientista na situação de estudante. (...) O verdadeiro educador é aquele que ainda cresce psiquicamente ao fazer crescer, aquele que institui como indução psíquica a correlação do racionalismo docente com o racionalismo ensinado». (Gaston Bachelard) A obra epistemológica de Gaston Bachelard é muito densa e extremamente rica, compreendendo 14 títulos de livros, além de inúmeros artigos especializados. Embora não pretenda apresentar uma chave de leitura integral desta imensa obra, articulando-a com a sua poética, a partir de uma teoria junguiana da alma, tentarei destacar o traço mais constante da epistemologia bachelardiana: o facto de ser polémica. A filosofia da ciência de Bachelard é filha de uma polémica, de uma discussão, de uma luta teórica, constantemente retomada contra a "epistemologia unitária" dos filósofos. Do realismo meyersoniano ao existencialismo de Sartre, passando pela filosofia de Heidegger, nenhuma filosofia escapou ao crivo da sua crítica ou mesmos aos seus sarcasmos. A polémica incessante de Bachelard não tem origem dentro da filosofia, mas fora da filosofia, mais precisamente nas perturbações que a história real das ciências conheceu no princípio do século XX: o desenvolvimento das geometrias não-euclidianas, da teoria da relatividade de Albert Einstein e da mecânica quântica. Consideradas "sem precedente" por Bachelard, as novas disciplinas têm a função de uma ruptura epistemológica na história real das ciências. Sob a designação de "lei dos três estados do espírito científico", Bachelard sistematizou a evolução ternária que conduz do "espírito pré-científico" ao "espírito científico", e depois ao "novo espírito científico", impulsionado e protagonizado pelas novas ciências: as geometrias não-euclidianas, a mecânica não-newtoniana, a química não-lavoisiana, a lógica não-aristotélica, enfim a epistemologia não-cartesiana. Resultantes de verdadeiros actos epistemológicos, isto é, de "impulsos do génio científico que provocam impulsos inesperados no curso do desenvolvimento científico" e a irrupção no saber de novas "problemáticas teóricas", as novas disciplinas constituem "ciências sem antepassados", para a compreensão das quais Bachelard propõe uma categoria filosófica inédita, cuja função é discursiva: a categoria do Não. Constituída pela extensão regular da negação, que tinha sido utilizada para pensar a novidade desconcertante das geometrias não-euclidianas, a categoria do não tem uma dupla-função, descritiva e normativa, visto que tem de dar conta do facto da mutação que se produziu durante duas "pesadas décadas" da história das ciências do século XX, mas que implica ainda a exigência de que a filosofia reforme as suas noções mais fundamentais para pensar esta novidade inaudita. Ao assumir como tarefa a renovação da filosofia da ciência, Bachelard encontrou, para nela embater, a "filosofia dos filósofos", sobretudo a teoria do conhecimento de Émile Meyerson. A filosofia bachelardiana, que não parte de um "princípio", mas de um atraso da filosofia em relação às ciências, atraso desencadeado pela reorganização contemporânea das ciências "exactas", embateu, no próprio reconhecimento do seu objecto, num conjunto de teses filosóficas que constituíam obstáculos epistemológicos, os quais Bachelard pretende superar através da elaboração de uma nova filosofia da ciência. Além disso, outra consequência do encontro com a filosofia de Meyerson é ainda mais decisiva: Bachelard descobriu na filosofia de Meyerson a solidariedade entre uma tese sobre a teoria do conhecimento, o realismo, e uma tese sobre a história das ciências, o continuismo. A continuidade histórica do conhecimento apoia-se aqui na homogeneidade das formas de conhecimento: o conhecimento comum e o conhecimento científico. Censurando a primeira tese, Bachelard arruína a segunda: aqui reside o duplo-sentido, epistemológico e histórico, da noção de ruptura epistemológica, tal como funciona na filosofia bachelardiana. O princípio de continuidade defendido por Meyerson afirma que os progressos científicos são contínuos, porque os começos são lentos. Deste modo, a filosofia de Meyerson priva-se de compreender a evolução do conhecimento científico como evolução do espírito, no decurso da qual "o espírito científico só pode constituir-se destruindo o espírito não científico". De certo modo, a filosofia dos filósofos é uma filosofia de "homens idosos": quer dizer que a sua filosofia tem a "idade dos seus preconceitos". A velhice impede o acesso à ciência, porque "ter acesso à ciência é, espiritualmente, rejuvenescer, é aceitar uma mutação brusca que deve contradizer um passado". Dado não terem reconhecido e abordado as "descontinuidades do saber", os filósofos obstinados continuam a afirmar tranquilamente a "continuidade do saber". O seu espírito tornou-se incapaz de instruir-se e, por conseguinte, de transformar-se: a noção de que "o progresso é a própria dinâmica da cultura científica" é-lhes completamente alheia. A história das ciências que praticam esquece que esta história é a das "derrotas do irracionalismo". A filosofia dos filósofos é, pois, uma filosofia fechada, à qual Bachelard opõe uma "filosofia aberta" e "dialogada" que é "tão móvel quanto a ciência". Doravante, após ter verificado a distância da filosofia em relação à ciência em evolução, o objectivo proposto por Bachelard é "atribuir à ciência a filosofia que merece", a qual vai ser elaborada não só à margem de todas as teorias tradicionais do conhecimento, mas fundamentalmente contra elas. O atraso da filosofia aparece-lhe, portanto, como o deslocamento sistemático de qualquer teoria filosófica do conhecimento em relação ao trabalho efectivo dos cientistas. Bachelard propõe uma "topologia da filosofia", o "teclado com que se toca a maioria das discussões filosóficas referentes à ciência", que assume a forma de um "espectro", onde aparecem, dispersas à volta da realidade do trabalho de produção dos conceitos científicos, todos os tipos de teoria do conhecimento, pelo que esta topologia revela ser uma verdadeira tipologia da filosofia. O eixo é ocupado pelo racionalismo aplicado e pelo materialismo técnico, portanto, pela produção permanente de conceitos científicos, em redor do qual dançam sempre duas "filosofias contrárias": o idealismo e o realismo, nos dois extremos; o convencionalismo e o empirismo, em posição intermédia; e o formalismo e o positivismo, em posição mais próxima do eixo. Pensado unicamente para as ciências físicas e químicas, o espectro revela dois traços bastante notáveis: (1) qualquer filosofia, pelo facto de conter como peça mestra uma teoria do conhecimento, como exige o kantismo, define-se aqui pelo lugar, isto é, pelo seu deslocamento específico, em relação ao conhecimento científico; e (2) o conhecimento científico tem a função de um eixo, donde resulta que, pelo simples retorno à volta deste eixo, podemos fazer coincidir as várias "formas típicas da filosofia". Destes dois traços, Bachelard infere três conclusões: 1) o que se toma pelo conteúdo da "filosofia especulativa" mais não é do que a materialização fantasmagórica da sua distância à ciência; 2) a coincidência, sempre possível, das formas típicas, simétricas e opostas, da filosofia é o índice de uma identidade fundamental, pela qual qualquer forma filosófica não é mais do que a forma invertida mas idêntica de uma forma oposta; e 3) a essência da filosofia só pode ser determinada pela perspectiva do eixo, isto é, pela perspectiva de uma "filosofia científica" que "renuncie ao real imediato e que ajude a ciência na sua luta contra as intuições primeiras", destruindo sistematicamente os "limites" impostos à ciência pelas tradicionais filosofias dos filósofos: "A ciência cria filosofia". A análise espectral mostra como se distribuem as variantes de uma "polifilosofia". Um tal "pluralismo" permite atribuir a cada problema científico o seu respectivo "coeficiente filosófico" e, ao mesmo tempo, possibilita captar o "perfil epistemológico" de cada conceito científico no curso do seu desenvolvimento histórico: "Cada hipótese, cada problema, cada experiência, cada equação" recebe a sua própria filosofia e, sendo assim, podemos fundar uma "filosofia científica diferencial" que esteja em harmonia com a "filosofia integral dos filósofos". Para Bachelard, a ciência só pode ter toda a sua eficácia se o espírito se transformar: "A ciência instrui a razão. A razão deve obedecer à ciência, à ciência mais evoluída, à ciência em evolução. A razão não deve sobrevalorizar uma experiência imediata; deve, pelo contrário, pôr-se em equilíbrio com a experiência mais ricamente estruturada. Em todas as circunstâncias, o imediato deve ceder ao construído". (CONTINUA) J Francisco Saraiva de Sousa
6 comentários:
Bem, em Portugal, a escola não é modelo da vida social: aqui a escola é lixo. :(
Dedico este post à amiga Else que faz anos! Parabéns! :)
Hoje vou estar atento ao debate Prós e Contras sobre os casamentos homossexuais, aliás um tema já abordado diversas vezes neste blogue!
Obrigada, querido Francisco. :)
Também me pus a ver o debate!
Pena não se aprofundar a discussão: perceber o q é e o q significa o casamento, para se perceber o que é que os homossexuais reinvidicam. Do ponto de vista antropológico e filosófico seria mais interessante.
A Fernanda Câncio é a namorada do Sócrates não é?
Tão feinha.
Sim, F. Else, as perspectivas defendidas foram muito emocionais e voluntaristas. Como diz, pouco profundas... Perdi o comentário e hoje tive de o refazer completamente. :(
Enviar um comentário