Torre Medieval, Cidade do Porto |
«O povoamento dos burgos é devido às mesmas causas que o das cidades, mas operou-se em condições bastante diferentes. Aqui, com efeito, o espaço disponível faltava aos que chegavam. Os burgos eram só fortalezas, cujas muralhas encerravam um perímetro estreitamente limitado. Daqui resulta que, desde o princípio, os mercadores foram obrigados a instalar-se, por falta de lugar, no exterior deste perímetro. Construíram, ao lado do burgo, um burgo exterior, ou seja, um subúrbio (forisburgus, suburbium). Este subúrbio é ainda chamado pelos textos novo burgo (novus burgus), por oposição ao burgo feudal, ou velho burgo (vestus burgus), ao qual está ligado. Encontramos para o designar, especialmente nos Países Baixos e em Inglaterra, uma palavra que responde admiravelmente à natureza: portus». (Henri Pirenne)
A Idade Média encanta-me de tal modo que resolvi sondar o Porto Medieval, mas, ao consultar a bibliografia disponível, fiquei desiludido com as obras portuguesas sobre a Idade Média. A historiografia portuguesa é decepcionante: a História da Cidade do Porto pouco mais diz do aquilo que pode ser lido nesta entrada da Wikipédia. A História da Cidade do Porto remonta até à Pré-História, podendo ser datada desde a Idade do Bronze. O Porto Medieval percorre toda a Idade Média, desde o século V - desintegração do Império Romano do Ocidente em 476 - até ao século XV - fim do Império Romano do Oriente, com a Queda de Constantinopla em 1453. A Cidade Episcopal não esgota, portanto, o Porto Medieval. O crescimento do Porto Medieval confirma, de certo modo, a teoria do renascimento urbano de Henri Pirenne, pelo menos seria esta a minha hipótese de trabalho se tivesse de escrever um tratado histórico sobre a Cidade do Porto na Idade Média. A Cidade dos Bispos tem eclipsado a Cidade Burguesa que o Porto já era no século XII. O Porto - PortusCale - deu o nome a Portugal e a sua história ficou desde então subjugada pela História de Portugal. Ora, para apreender a peculiaridade da Cidade do Porto, torna-se necessário desvincular tanto quanto possível a sua história da História de Portugal. O seu nome originário - PortusCale - refere a sua peculiaridade: «Chama-se portus, na linguagem administrativa do Império Romano, não a um porto do mar, mas a um local fechado que serve de entreposto ou de escala para as mercadorias. A expressão passou, transformando-se, não sem custo, nas épocas merovíngia e carolíngia. É fácil verificar que todos os locais a que se aplica estão situados junto de cursos de água e que um imposto foi estabelecido. /Eram então desembarcadouros, onde se acumulavam, em virtude do jogo da circulação, mercadorias destinadas a serem transportadas para mais longe. Entre um portus e um mercado ou uma feira, a oposição é muito nítida. Ao passo que estes consistem em encontros periódicos de compradores e vendedores, aquele é o lugar permanente de comércio, um centro de contínuo trânsito» (Pirenne). Dos historiadores portugueses Jaime Cortesão foi o único que retomou a tese de Pirenne para reformular a formação de Portugal, dando especial destaque à Cidade do Porto: «Os progressos sociais correm parelhas com os da actividade económica. Onde o comércio e a indústria houveram atingido maior desenvolvimento, aí, em princípio, devemos procurar as classes urbanas, mais diferenciadas. O Porto é, durante a Idade Média, o símbolo perfeito da concordância desses dois fenómenos, em Portugal. Ali, pelas vantagens do porto, juntamente fluvial e marítimo, pela posição geográfica que tornara o burgo o entreposto da região mais populosa e rica do País, o comércio marítimo tomou tão rápido incremento, que em 1361 os representantes do concelho se ufanavam de haver ali mais navios que em todo o restante Reino. E dali, em 1415, saía ainda uma armada que os homens bons da cidade mais tarde proclamavam que doutro qualquer lugar da Espanha não poderia sair tão forte e numerosa. Já então, entre os produtos exportados pela barra do rio e difundidos pelos portos do Norte da Europa e do Levante, sobrelevavam os vinhos de Riba-Douro. Na rude labuta da pesca, da construção naval, do tráfico a distância por mar e terra, se formaram e enriqueceram os burgueses e os mesteirais do Porto, cujo passado constitui a mais bela página de toda a história social e urbana, em Portugal. Burgo episcopal, os seus habitantes, quase todos adventícios, acorridos do interior às novas fainas do mar, desde o meado do século XII, houveram que travar batalha, que durou séculos, para arrancar as suas liberdades e franquias à prepotência senhorial dos bispos. À violência dos senhores mitrados, que os oprimiam sem piedade, e a cada passo do alto do sólio episcopal jogavam os raios da excomunhão sobre os vassalos rebelados, os homens do burgo responderam com violência igual» (Jaime Cortesão).
A burguesia portuense conservará este espírito de iniciativa ao longo dos séculos. Como exemplo daremos o Porto de 1788, tal como foi descrito por Rebelo da Costa e retomado por Piteira Santos para explicar a economia da Revolução de 1820, ou melhor, o descontentamento da burguesia portuense com a fuga da Corte para o Brasil e com a Regência: a concentração do comércio marítimo do Norte de Portugal no Porto foi acompanhada pelo seu desenvolvimento demográfico que fixou na cidade muitas famílias domiciliadas em Lisboa. Segundo Rebelo da Costa, este acréscimo populacional deve-se ao «importante comércio auxiliado com as multiplicadas e grossas embarcações, que da foz do rio Douro envia às quatro partes do mundo com tanta frequência, como nunca viram os passados Portugueses; pois este aumento cresceu desde que se transportou para esta cidade todo o comércio das vilas de Viana, situada na foz do Lima, Vila do Conde, Aveiro e outros portos». Ao comércio com o Brasil e as outras colónias portuguesas dedicavam-se «mais de oitenta navios de muito maior porte que o dos navios mercantis das outras nações comerciantes». Todos estes navios eram construídos nos estaleiros da Cidade do Porto, ou nos estaleiros dos portos vizinhos, ocupando-se na sua construção e reparos um grande número de artífices. Para o Brasil, o Porto exportava pano de linho, estopa, chapéus, tecidos de lá das fábricas da Covilhã, chita, louça, botões, linhas, pregos, ferragens e obras torneadas, e, para o Norte da Europa e, sobretudo, para Inglaterra, exportava vinho, sarro de vinho, folha de loureiro, baga de loureiro, cortiça, laranjas, limões, sal, castanha seca, açúcar e algodão, os dois últimos produtos importados da América do Sul. Os produtos exportados para o Brasil indiciavam uma produção manufactureira ou fabril dispersa: «Aumenta-se notavelmente a riqueza desta província com a multidão das suas fábricas. Não só ela abunda das que acima disse, falando das produções de cânhamo e linho, mas também ocupa milhares de homens e mulheres na construção das melhores sedas, fitas e ligas, das quais se contam multiplicados teares». Além da produção nacional, o linho e o cânhamo também eram importados do mar Báltico dos portos de Riga, Memel e Pernau: «Em nenhuma província do Reino, ou ainda em todas juntas, se fabricam tantas e tão preciosas teias de pano e mais fino e durável que excede na qualidade as finas Holandas; chega a 2 milhões de cruzados o lucro que se extrai anualmente desta louvável fábrica». No entanto, o Porto estava à frente da província de Entre Douro e Minho, no que se refere à produção artesanal e fabril: «As outras fazendas que se exportam são trabalhadas nas fábricas desta cidade, e tais são as seguintes: seda em largo, dita em estreito, meias de linho, lã, algodão e seda; galões de ouro, prata, linho, seda e lã; fio de ouro e prata; botões de casquinha; ditos de fio de ouro, prata, seda e lã; panos de lã fina como os de Inglaterra; baetões e baetinhas de pintas; chitas de muitos feitios; gangas pintadas; atados e sola; toalhas de mesa; fustões; talagages de linho; cola ou grude; breu; chapéus finos e grossos; pipas grandes e pequenas; caldeiras, tachos e bacias de latão e cobre; selas e todos os arreios necessários para cavalgaduras; todo o género de ferragens e cutelarias; louça grossa e fina; desta última há quatro grandes fábricas, bastantes a proverem uma grande parte do Reino e das suas conquistas. Nas vizinhanças da cidade há outras de papel, vidro, grude, baetões, etc». Das fábricas do Porto a maior era a das Cardagens, que tinha 800 operários, entre oficiais, aprendizes, mulheres e raparigas. A Fábrica do Tabaco tinha mais de 100 trabalhadores e abastecia o consumo de 24 comarcas. Havia mais de 184 profissões, incluindo as liberais. E o Porto de 1830? A industrialização portuguesa oitocentista iniciou-se de 1813 a 1814, e, segundo Joel Serrão, o Porto encontrava-se à frente desse movimento de industrialização.
Como estamos distantes das falsificações historiográficas operadas recentemente por António Borges Coelho! A cidade episcopal - aquela que foi retratada por Miguel Torga - e a cidade dos burgueses são praticamente criações simultâneas, podendo a história do Porto Medieval ser vista como uma luta entre ambas. Em 1114, D. Hugo tomou posse da diocese do Porto e, em 1120, D. Teresa doou-lhe o Couto de Portucale. Em 1123, D. Hugo concedeu a carta de foral aos habitantes do burgo. Formou-se assim no decorrer do século XII o burgo episcopal que, organizado em redor da Sé-Catedral, ocupava a plataforma superior da Pena Ventosa, sendo rodeado pela Muralha Sueva - Cerca Velha ou Cerca Românica (século III) - entretanto reconstruída. (No século V, o Porto sofreu a invasão dos suevos, e, durante o reino visigótico, foram emitidas moedas dos reis visigodos, cunhadas com a legenda toponímica de Portucale ou Portocale. Depois, no trânsito do Ano Mil, o Porto - entretanto renascido - sofreu novamente incursões dos normandos e dos sarracenos: o último assalto dos nórdicos - Vikings - ocorreu em 1014, nos arredores do Porto, em Vermoim. Houve, portanto, um Porto Suevo, sediado no Morro da Pena Ventosa e, a seguir, um Porto Visigótico. Porém, a Muralha Sueva foi construída pelos Romanos. O Porto Romano é outra das minhas paixões, cujo conceito já pode ser elaborado, tomando como ponto de partida os belos pavimentos romanos descobertos na Alfândega Velha ou Casa do Infante D. Henrique.) No século XIII, o Porto, sob pressão demográfica, cresceu para fora da Cerca Românica, surgindo assim dois pólos urbanos: o Morro da Pena Ventosa em redor da Sé e a zona da Ribeira na margem do Rio Douro. A instalação dos mosteiros das ordens mendicantes - o de São Francisco em 1233 e o de São Domingos em 1238 - ajudou a urbanizar a Morro do Olival. No século XIV, o Porto, sob pressão da expansão das actividades comerciais e marítimas, cresceu de tal modo que foi necessário construir uma nova cintura de muralhas: a Muralha Fernandina - Cerca Nova ou Muralha Gótica - começou a ser construída no reinado de D. Afonso IV e ficou concluída em 1370 já no reinado de D. Fernando. Em 1386, D. João I criou uma nova Judiaria, transferindo os judeus portuenses para o topo aplanado do Morro do Olival. Logo após a revolução de 1383, em 1387, D. João I casou-se com D. Filipa de Lencastre na Sé-Catedral do Porto, selando a aliança luso-britânica: o Infante D. Henrique nasceu no Porto em 1394. O acordo entre D. João I e o bispo do Porto D. Gil Alma foi ratificado em 1406 pelo papa Inocêncio VII: o senhorio da cidade do Porto passou definitivamente do bispo para a coroa portuguesa e a cidade conquistou assim a sua autonomia administrativa. Em 1496, o decreto de D. Manuel I ordenou a conversão de todos os judeus, sob pena de expulsão: alguns converteram-se ao cristianismo (cristãos-novos), mas outros abandonaram o Porto e o Reino, ditando o fim da Judiaria Nova do Morro do Olival. Em 1509, o Porto abriu-se aos nobres que, até aí, não podiam ter casa na cidade ou residir nela por mais de três dias. Em 1517, o Foral Novo de D. Manuel I concedeu novos privilégios à cidade do Porto, dando início a um período de crescente desenvolvimento económico e urbano. O estudo da história do Porto pode ajudar a esclarecer o velho problema da existência ou não de feudalismo em Portugal, possibilitando a elaboração de uma teoria geral das feudalidades. De certo modo, a luta entre o burgo episcopal e o burgo burguês revela desde logo que, no Porto dos séculos XII, XIII e XIV, se jogou a luta entre o poder senhorial dos bispos e o poder das novas classes urbanas, o que fez do Porto a «metrópole social» de Portugal: «Durante os três últimos quartéis do século XIV pode dizer-se que o Porto, sempre sob o peso das excomunhões, prosperou em grande parte, graças à acérrima firmeza com que soube defender-se da parasitagem das duas classes oligárquicas: o alto clero e a nobreza militar» (Jaime Cortesão). O desenvolvimento social e económico do Porto - que já tinha sido o maior centro urbano do Condado Portucalense, mesmo quando a sede se deslocou para o interior - revela-se desde logo na criação da Bolsa do Porto em 1293, que fez dele das primeiras cidades da Europa dotadas dessa instituição financeira: «Dissemos que o Porto se elevara durante a Idade Média, como outros grandes burgos comerciais da Europa, à categoria duma democracia urbana, dum pequeno Estado dentro do Estado. A cidade mostrou com efeito, através de todo esse período da nossa história, uma forte independência, não só em relação às outras classes, mas ao próprio Estado (Português), sem que aliás tivesse constituído um elemento dissolvente em relação à unidade nacional. Durante as lutas com os seus prelados, e mau grado o apoio real que desde D. Dinis os monarcas lhe prestavam, por mais de uma vez delega os seus embaixadores junto do Papa em Roma ou em Avinhão, a pleitear a sua causa. E mais tarde, quando da revolução que elevou ao trono o Mestre de Avis, manda a Inglaterra contratar à sua própria custa um corpo de archeiros, que mantém largo tempo, em defesa da cidade e da causa que abraçara» (Jaime Cortesão). Ao analisar a Revolução de 1383, António Borges Coelho classificou o Porto como uma Cidade-Estado, que, tal como Génova, Veneza ou Florença, já tinha realizado a sua própria revolução burguesa. Jaime Cortesão dedica mais algumas páginas a descrever os factos sociais que deram ao Porto «o primeiro lugar entre os núcleos urbanos de Portugal», destacando o tratado de comércio (1353) com a Inglaterra celebrado, negociado e firmado por um burguês do Porto, Afonso Martins Alho: O Porto, «pequeno Estado precursor dentro do Estado», levou «às últimas consequências, graças à violenta exclusão das classes parasitárias, a evolução política que o Reino só mais tarde havia de realizar», quando Lisboa assumiu no século XIV os destinos da Nação, cuja «escola política» tinha sido - e será mais tarde noutras conjunturas políticas cruciais - o Porto. Tanto Jaime Cortesão como António Borges Coelho dão muita importância à revolução de 1383: «A revolução (burguesa) de 1383 cortou o cordão umbilical de uma criança que começou a dar os primeiros passos impulsionando vertiginosamente toda a expansão colonial portuguesa» (Borges Coelho). Há a tentação de escolher o acontecimento revolucionário de 1383 como o fim da Idade Média em Portugal, mas o que dizer do crepúsculo da Idade Média na Cidade do Porto? O Porto foi desde o século XII uma Cidade-Estado que realizou a sua própria revolução burguesa num processo de luta permanente entre o poder episcopal e o poder das novas classes urbanas. Para analisar o crepúsculo da Idade Média no Porto, torna-se necessário reescrever a sua história enquanto Cidade-Estado, tendo em conta que a revolução de 1383 foi um fracasso. As Histórias da Cidade do Porto existentes - penso sobretudo na monumental História da Cidade do Porto (3 vols.) dirigida por Damião Peres (1962-65) - são basicamente histórias políticas, isto é, histórias factuais, que quase nada dizem sobre o Porto Social e o Porto Mental. Ora, se conhecemos alguma coisa do Porto Mental Oitocentista, desconhecemos praticamente o Porto Mental da Idade Média, embora alguns dos documentos que permitem a sua elaboração teórica sejam conhecidos. O Crepúsculo da Idade Média no Porto é uma tarefa teórica que ainda não foi realizada: a ideia de cavalaria não deve ter ocupado um lugar de relevo no imaginário medieval do Porto, apesar das lendas bretãs, formadas em torno do rei Artur e dos seus cavaleiros da Távola Redonda, não serem de todo estranhas ao espírito medieval portuense. (A obra de M. Rodrigues Lapa deve ser revisitada e reformulada.) A minha hipótese aponta mais na direcção de uma articulação tensa e, por vezes, conflitual, entre a imaginação religiosa e a mentalidade burguesa, como se o Porto Medieval fosse sempre-já um Porto Renascentista. A escola episcopal começou a funcionar no Porto no século XIII e, quando da instalação das ordens mendicantes na cidade, os burgueses portuenses aliaram-se aos franciscanos na sua luta contra os bispos, pedindo ao papa Gregório IX que permitisse aos franciscanos edificarem um convento, pedido este que lhes foi concedido: a aliança entre as ordens mendicantes e a burguesia portuense contra os bispos, em especial D. Pedro Salvadores, merece ser revisitada, de modo a captar a mentalidade portuense desse tempo.
J Francisco Saraiva de Sousa
A burguesia portuense conservará este espírito de iniciativa ao longo dos séculos. Como exemplo daremos o Porto de 1788, tal como foi descrito por Rebelo da Costa e retomado por Piteira Santos para explicar a economia da Revolução de 1820, ou melhor, o descontentamento da burguesia portuense com a fuga da Corte para o Brasil e com a Regência: a concentração do comércio marítimo do Norte de Portugal no Porto foi acompanhada pelo seu desenvolvimento demográfico que fixou na cidade muitas famílias domiciliadas em Lisboa. Segundo Rebelo da Costa, este acréscimo populacional deve-se ao «importante comércio auxiliado com as multiplicadas e grossas embarcações, que da foz do rio Douro envia às quatro partes do mundo com tanta frequência, como nunca viram os passados Portugueses; pois este aumento cresceu desde que se transportou para esta cidade todo o comércio das vilas de Viana, situada na foz do Lima, Vila do Conde, Aveiro e outros portos». Ao comércio com o Brasil e as outras colónias portuguesas dedicavam-se «mais de oitenta navios de muito maior porte que o dos navios mercantis das outras nações comerciantes». Todos estes navios eram construídos nos estaleiros da Cidade do Porto, ou nos estaleiros dos portos vizinhos, ocupando-se na sua construção e reparos um grande número de artífices. Para o Brasil, o Porto exportava pano de linho, estopa, chapéus, tecidos de lá das fábricas da Covilhã, chita, louça, botões, linhas, pregos, ferragens e obras torneadas, e, para o Norte da Europa e, sobretudo, para Inglaterra, exportava vinho, sarro de vinho, folha de loureiro, baga de loureiro, cortiça, laranjas, limões, sal, castanha seca, açúcar e algodão, os dois últimos produtos importados da América do Sul. Os produtos exportados para o Brasil indiciavam uma produção manufactureira ou fabril dispersa: «Aumenta-se notavelmente a riqueza desta província com a multidão das suas fábricas. Não só ela abunda das que acima disse, falando das produções de cânhamo e linho, mas também ocupa milhares de homens e mulheres na construção das melhores sedas, fitas e ligas, das quais se contam multiplicados teares». Além da produção nacional, o linho e o cânhamo também eram importados do mar Báltico dos portos de Riga, Memel e Pernau: «Em nenhuma província do Reino, ou ainda em todas juntas, se fabricam tantas e tão preciosas teias de pano e mais fino e durável que excede na qualidade as finas Holandas; chega a 2 milhões de cruzados o lucro que se extrai anualmente desta louvável fábrica». No entanto, o Porto estava à frente da província de Entre Douro e Minho, no que se refere à produção artesanal e fabril: «As outras fazendas que se exportam são trabalhadas nas fábricas desta cidade, e tais são as seguintes: seda em largo, dita em estreito, meias de linho, lã, algodão e seda; galões de ouro, prata, linho, seda e lã; fio de ouro e prata; botões de casquinha; ditos de fio de ouro, prata, seda e lã; panos de lã fina como os de Inglaterra; baetões e baetinhas de pintas; chitas de muitos feitios; gangas pintadas; atados e sola; toalhas de mesa; fustões; talagages de linho; cola ou grude; breu; chapéus finos e grossos; pipas grandes e pequenas; caldeiras, tachos e bacias de latão e cobre; selas e todos os arreios necessários para cavalgaduras; todo o género de ferragens e cutelarias; louça grossa e fina; desta última há quatro grandes fábricas, bastantes a proverem uma grande parte do Reino e das suas conquistas. Nas vizinhanças da cidade há outras de papel, vidro, grude, baetões, etc». Das fábricas do Porto a maior era a das Cardagens, que tinha 800 operários, entre oficiais, aprendizes, mulheres e raparigas. A Fábrica do Tabaco tinha mais de 100 trabalhadores e abastecia o consumo de 24 comarcas. Havia mais de 184 profissões, incluindo as liberais. E o Porto de 1830? A industrialização portuguesa oitocentista iniciou-se de 1813 a 1814, e, segundo Joel Serrão, o Porto encontrava-se à frente desse movimento de industrialização.
Como estamos distantes das falsificações historiográficas operadas recentemente por António Borges Coelho! A cidade episcopal - aquela que foi retratada por Miguel Torga - e a cidade dos burgueses são praticamente criações simultâneas, podendo a história do Porto Medieval ser vista como uma luta entre ambas. Em 1114, D. Hugo tomou posse da diocese do Porto e, em 1120, D. Teresa doou-lhe o Couto de Portucale. Em 1123, D. Hugo concedeu a carta de foral aos habitantes do burgo. Formou-se assim no decorrer do século XII o burgo episcopal que, organizado em redor da Sé-Catedral, ocupava a plataforma superior da Pena Ventosa, sendo rodeado pela Muralha Sueva - Cerca Velha ou Cerca Românica (século III) - entretanto reconstruída. (No século V, o Porto sofreu a invasão dos suevos, e, durante o reino visigótico, foram emitidas moedas dos reis visigodos, cunhadas com a legenda toponímica de Portucale ou Portocale. Depois, no trânsito do Ano Mil, o Porto - entretanto renascido - sofreu novamente incursões dos normandos e dos sarracenos: o último assalto dos nórdicos - Vikings - ocorreu em 1014, nos arredores do Porto, em Vermoim. Houve, portanto, um Porto Suevo, sediado no Morro da Pena Ventosa e, a seguir, um Porto Visigótico. Porém, a Muralha Sueva foi construída pelos Romanos. O Porto Romano é outra das minhas paixões, cujo conceito já pode ser elaborado, tomando como ponto de partida os belos pavimentos romanos descobertos na Alfândega Velha ou Casa do Infante D. Henrique.) No século XIII, o Porto, sob pressão demográfica, cresceu para fora da Cerca Românica, surgindo assim dois pólos urbanos: o Morro da Pena Ventosa em redor da Sé e a zona da Ribeira na margem do Rio Douro. A instalação dos mosteiros das ordens mendicantes - o de São Francisco em 1233 e o de São Domingos em 1238 - ajudou a urbanizar a Morro do Olival. No século XIV, o Porto, sob pressão da expansão das actividades comerciais e marítimas, cresceu de tal modo que foi necessário construir uma nova cintura de muralhas: a Muralha Fernandina - Cerca Nova ou Muralha Gótica - começou a ser construída no reinado de D. Afonso IV e ficou concluída em 1370 já no reinado de D. Fernando. Em 1386, D. João I criou uma nova Judiaria, transferindo os judeus portuenses para o topo aplanado do Morro do Olival. Logo após a revolução de 1383, em 1387, D. João I casou-se com D. Filipa de Lencastre na Sé-Catedral do Porto, selando a aliança luso-britânica: o Infante D. Henrique nasceu no Porto em 1394. O acordo entre D. João I e o bispo do Porto D. Gil Alma foi ratificado em 1406 pelo papa Inocêncio VII: o senhorio da cidade do Porto passou definitivamente do bispo para a coroa portuguesa e a cidade conquistou assim a sua autonomia administrativa. Em 1496, o decreto de D. Manuel I ordenou a conversão de todos os judeus, sob pena de expulsão: alguns converteram-se ao cristianismo (cristãos-novos), mas outros abandonaram o Porto e o Reino, ditando o fim da Judiaria Nova do Morro do Olival. Em 1509, o Porto abriu-se aos nobres que, até aí, não podiam ter casa na cidade ou residir nela por mais de três dias. Em 1517, o Foral Novo de D. Manuel I concedeu novos privilégios à cidade do Porto, dando início a um período de crescente desenvolvimento económico e urbano. O estudo da história do Porto pode ajudar a esclarecer o velho problema da existência ou não de feudalismo em Portugal, possibilitando a elaboração de uma teoria geral das feudalidades. De certo modo, a luta entre o burgo episcopal e o burgo burguês revela desde logo que, no Porto dos séculos XII, XIII e XIV, se jogou a luta entre o poder senhorial dos bispos e o poder das novas classes urbanas, o que fez do Porto a «metrópole social» de Portugal: «Durante os três últimos quartéis do século XIV pode dizer-se que o Porto, sempre sob o peso das excomunhões, prosperou em grande parte, graças à acérrima firmeza com que soube defender-se da parasitagem das duas classes oligárquicas: o alto clero e a nobreza militar» (Jaime Cortesão). O desenvolvimento social e económico do Porto - que já tinha sido o maior centro urbano do Condado Portucalense, mesmo quando a sede se deslocou para o interior - revela-se desde logo na criação da Bolsa do Porto em 1293, que fez dele das primeiras cidades da Europa dotadas dessa instituição financeira: «Dissemos que o Porto se elevara durante a Idade Média, como outros grandes burgos comerciais da Europa, à categoria duma democracia urbana, dum pequeno Estado dentro do Estado. A cidade mostrou com efeito, através de todo esse período da nossa história, uma forte independência, não só em relação às outras classes, mas ao próprio Estado (Português), sem que aliás tivesse constituído um elemento dissolvente em relação à unidade nacional. Durante as lutas com os seus prelados, e mau grado o apoio real que desde D. Dinis os monarcas lhe prestavam, por mais de uma vez delega os seus embaixadores junto do Papa em Roma ou em Avinhão, a pleitear a sua causa. E mais tarde, quando da revolução que elevou ao trono o Mestre de Avis, manda a Inglaterra contratar à sua própria custa um corpo de archeiros, que mantém largo tempo, em defesa da cidade e da causa que abraçara» (Jaime Cortesão). Ao analisar a Revolução de 1383, António Borges Coelho classificou o Porto como uma Cidade-Estado, que, tal como Génova, Veneza ou Florença, já tinha realizado a sua própria revolução burguesa. Jaime Cortesão dedica mais algumas páginas a descrever os factos sociais que deram ao Porto «o primeiro lugar entre os núcleos urbanos de Portugal», destacando o tratado de comércio (1353) com a Inglaterra celebrado, negociado e firmado por um burguês do Porto, Afonso Martins Alho: O Porto, «pequeno Estado precursor dentro do Estado», levou «às últimas consequências, graças à violenta exclusão das classes parasitárias, a evolução política que o Reino só mais tarde havia de realizar», quando Lisboa assumiu no século XIV os destinos da Nação, cuja «escola política» tinha sido - e será mais tarde noutras conjunturas políticas cruciais - o Porto. Tanto Jaime Cortesão como António Borges Coelho dão muita importância à revolução de 1383: «A revolução (burguesa) de 1383 cortou o cordão umbilical de uma criança que começou a dar os primeiros passos impulsionando vertiginosamente toda a expansão colonial portuguesa» (Borges Coelho). Há a tentação de escolher o acontecimento revolucionário de 1383 como o fim da Idade Média em Portugal, mas o que dizer do crepúsculo da Idade Média na Cidade do Porto? O Porto foi desde o século XII uma Cidade-Estado que realizou a sua própria revolução burguesa num processo de luta permanente entre o poder episcopal e o poder das novas classes urbanas. Para analisar o crepúsculo da Idade Média no Porto, torna-se necessário reescrever a sua história enquanto Cidade-Estado, tendo em conta que a revolução de 1383 foi um fracasso. As Histórias da Cidade do Porto existentes - penso sobretudo na monumental História da Cidade do Porto (3 vols.) dirigida por Damião Peres (1962-65) - são basicamente histórias políticas, isto é, histórias factuais, que quase nada dizem sobre o Porto Social e o Porto Mental. Ora, se conhecemos alguma coisa do Porto Mental Oitocentista, desconhecemos praticamente o Porto Mental da Idade Média, embora alguns dos documentos que permitem a sua elaboração teórica sejam conhecidos. O Crepúsculo da Idade Média no Porto é uma tarefa teórica que ainda não foi realizada: a ideia de cavalaria não deve ter ocupado um lugar de relevo no imaginário medieval do Porto, apesar das lendas bretãs, formadas em torno do rei Artur e dos seus cavaleiros da Távola Redonda, não serem de todo estranhas ao espírito medieval portuense. (A obra de M. Rodrigues Lapa deve ser revisitada e reformulada.) A minha hipótese aponta mais na direcção de uma articulação tensa e, por vezes, conflitual, entre a imaginação religiosa e a mentalidade burguesa, como se o Porto Medieval fosse sempre-já um Porto Renascentista. A escola episcopal começou a funcionar no Porto no século XIII e, quando da instalação das ordens mendicantes na cidade, os burgueses portuenses aliaram-se aos franciscanos na sua luta contra os bispos, pedindo ao papa Gregório IX que permitisse aos franciscanos edificarem um convento, pedido este que lhes foi concedido: a aliança entre as ordens mendicantes e a burguesia portuense contra os bispos, em especial D. Pedro Salvadores, merece ser revisitada, de modo a captar a mentalidade portuense desse tempo.
J Francisco Saraiva de Sousa
3 comentários:
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Acrescentei informação adicional no último parágrafo.
Cerca do ano de 417, os alanos invadiram os territórios dos Suevos, empurrando estes até à margem direita do rio Douro, onde hoje se situa a cidade do Porto. Os alanos não conseguiram, apesar de muitos esforços, conquistar a cidade, sendo posteriormente expulsos pelo povo suevo, com o apoio dos romanos. Hermerico, o rei suevo, estendeu os muros do castelo, que fundara no morro da Pena Ventosa (onde actualmente se ergue a Sé), edificando à sua volta casas para as tropas. A este burgo foi dado o nome de Cale Castrum Novum (castelo novo de Cale) adquirindo a denominação de civitas. Ao fundo desse morro existia o Portus Cale (porto de Cale, actual Ribeira), que deu origem ao nome Portucale, nome esse dado ao castelo novo, e que ficaria a designar a cidade a partir dos finais do século IV. O castelo antigo ficava do outro lado do rio Douro, no local de Vila Nova de Gaia, posto de defesa avançado de Cale.
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