Ontem (1 de Maio), no programa Plano Inclinado da SicNotícias - debate moderado por Mário Crespo, Guilherme Valente defendeu uma ideia monstruosa e extremamente perigosa: responsabilizou Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) pela destruição da escola, como se a sua filosofia da educação tivesse promovido aquilo a que chama o eduquês. Uma tal afirmação não só revela desconhecimento do pensamento de Rousseau e da articulação adequada das suas obras, como também enfraquece a crítica radical do actual sistema de ensino e da pedagogia administrativa que o molda: Guilherme Valente desautoriza-se a si mesmo e à sua causa quando afirma um tal disparate. Embora não tenha elaborado esta tese monstruosa, torna-se evidente que Guilherme Valente interpreta de modo errado o Emílio de Rousseau: ele deve ter lido esta obra como um convite a imitar a espontaneidade sensitiva da criança, em vez de uma reflexão racional do preceptor que dirige a espontaneidade da criança. Rousseau não faz o louvor do sentimento irreflectido, mas expõe uma «ciência pedagógica» que reconhece a necessidade da mediação, pelo menos durante um determinado momento do crescimento humano. O que está aqui em causa não é a crítica justa do eduquês, mas sim o alinhamento político de certas figuras que lhe dão voz: Guilherme Valente diz ser "democrata" - sim, entre aspas, como se isso fosse suficiente para garantir a validade incondicional da seu projecto educativo alternativo. A herança revolucionária de Rousseau, viva ainda hoje, é a sua concepção democrática da pessoa humana: a sua humanidade democrática confere sentido à máxima liberal de Montesquieu, segundo a qual não devemos «abater ou aviltar a natureza humana». Ora, ao condenar a visão da infância de Rousseau, Guilherme Valente parece optar por um sistema repressivo de educação tout court: a educação como castração da espontaneidade da criança. À noção eduquesa de que "a criança não pode ser reprimida", Guilherme Valente opõe a noção autoritária de que "a criança pode e deve ser reprimida": a autoridade do professor que reclama é, afinal, o poder de repressão, tal como era exercido no tempo do fascismo. De facto, Guilherme Valente acerta quando escolhe Rousseau como seu próprio adversário e não como a força matricial do eduquês: o professor que rouba a liberdade do aluno é a figura encarnada da própria dominação. Guilherme Valente confunde o papel desempenhado pela escola na reprodução do actual sistema social com a própria pedagogia: o currículo oculto é um conceito crítico estranho ao pensamento pedagógico de Guilherme Valente. A crítica do actual sistema de ensino não pode ser desvinculada da crítica da sociedade estabelecida sem correr o risco de se converter naquilo que é efectivamente: a apologia da repressão, a nostalgia do fascismo. A filosofia política de Rousseau é uma filosofia da liberdade. A doutrina do contrato social de Rousseau é completamente distinta da teoria de Hobbes: a unidade autêntica e verdadeira dos homens não é alcançada mediante a coacção, mas deve fundar-se na liberdade. Para Rousseau, a liberdade não exclui a submissão, que não é a submissão de uma vontade particular ou de uma pessoa individual aos caprichos de outras vontades particulares, mas sim o cancelamento da mera vontade individual enquanto tal: a vontade já não exige por si mesma, mas persiste e quer no âmbito da vontade geral. A partir deste tipo de contrato social fundado na liberdade, Rousseau estabelece uma conexão entre os conceitos autênticos de liberdade e de lei: a liberdade autêntica exige a vinculação a uma lei rigorosa e inviolável, que cada indivíduo estabelece sobre si mesmo, de modo a contribuir para a construção de uma forma de comunidade que proteja cada um dos seus membros com toda a força reunida e unificada da associação estatal. Assim, ao unir-se com os outros indivíduos, o indivíduo descobre que nessa união obedece tão-somente a si mesmo, porque a vinculação à vontade geral constitui a personalidade autónoma. A ética e a política de Kant e de Fichte recuperam este entusiasmo de Rousseau pela força e pela dignidade da lei. Romper com a herança revolucionária de Rousseau é romper com a democracia radical: Guilherme Valente deseja - mesmo que não tenha consciência disso - um regresso à pré-modernidade. A sua vacilação entre a modernidade e a pós-modernidade revela a sua nostalgia pelo passado autoritário, sobretudo quando rejeita, num gesto primário de estupidez mecânica, toda a herança iluminista: o pensamento pedagógico de Guilherme Valente é avesso a todo o universo democrático. Medina Carreira colocou sobre a mesa a questão pertinente de saber como podemos mudar os rumos da educação em Portugal se todo o sistema de ensino está dominado pelo eduquês: conferir autoridade a professores eduqueses - isto é, "burros", na terminologia campestre de Medina Carreira -, não altera qualitativamente o sistema educativo. Guilherme Valente parece apostar nos alunos que queiram ser transformados em joguetes dos desígnios ocultos dos sequazes da reflexão pedagógica, que, na sua óptica, visa "intencionalmente" destruir a escola. O eduquês e o valentismo partilham a mesma visão da dominação: a relação entre professor e aluno é vista, nos dois casos, como uma relação de subordinação, a dominação do aluno sobre o professor (eduquês) ou a dominação do professor sobre o aluno (valentismo). A politização da escola é fatal: o modelo da governação transposto para a escola conduz à sua destruição. E foi isto que Rousseau condenou na sua linguagem paradoxal e, nas obras pedagógicas, autobiográfica: «a educação não só introduz diferença entre espíritos cultos e aqueles que não o são, mas também aumenta a que existe entre os primeiros em proporção da cultura, pois, quando um gigante e um anão caminham na mesma estrada, cada passo que um e outro derem propiciará uma vantagem ao gigante» (Rousseau). A desigualdade natural entre os homens é aumentada e agravada pela desigualdade de instituição - instituída pelo primeiro homem que, cercando um terreno, se atreveu a dizer "Isto é meu": Rousseau não defende a desigualdade social entre os homens, a começar pela desigualdade entre os espíritos promovida por um sistema de educação público que não transmite conhecimentos e instrumentos conceptuais e técnicos aos alunos mais desfavorecidos. A escola não deve enterrar os alunos ou mesmo os professores entre os vivos, erguendo entre eles muros de trevas impenetráveis aos seus olhares, e enlaçando-os de «tantas maneiras que, no meio dessa liberdade simulada, não possam dizer uma palavra, nem dar um passo, nem mover um dedo» sem que a vigilância malévola o saiba e o queira. O pensamento de Rousseau não está fechado, como o demonstra a diversidade de leituras existentes. Porém, a partir do momento em que a via da educação - preconizada por Kant e Cassirer - fracassou totalmente depois do 25 de Abril, resta-nos a via da revolução preconizada por Engels - o leitor atento de Rousseau: os homens escravizados e submetidos à violência do despotismo escolar estabelecido - os homens privados de conhecimentos efectivos e de futuro - devem recorrer à violência para se libertarem e para derrubarem os tiranos eduqueses. A via revolucionária - alargada a todas as esferas da sociedade portuguesa - é a única que pode garantir resultados positivos quase imediatos, sem comprometer e adiar o futuro por mais três ou quatro gerações. (Guilherme Valente é proprietário de uma Editora - Gradiva, cujos livros publicados não ajudam a melhorar a qualidade da cultura científica portuguesa: a divulgação científica é contrária ao verdadeiro espírito científico, fomentando nos seus consumido-res/leitores a ilusão de que sabem aquilo que não sabem.) Anexo: Carlos Fiolhais publicou hoje (3 de Maio) um post sobre os comentários que foram realizados na Internet a propósito da intervenção de Guilherme Valente no debate "Plano Inclinado": veja aqui e aproveite para ler a entrevista de Guilherme Valente. Eu concordo plenamente com a crítica do eduquês, tal como tem sido praticada por Carlos Fiolhais, Nuno Crato ou Guilherme Valente, entre outros. Porém, repudio completamente a fundamentação do eduquês no pensamento pedagógico de Rousseau esboçada por Guilherme Valente, e penso que, nesse debate, Nuno Crato não foi explicitamente receptivo à desconstrução da modernidade. O eduquês é mais do que o nivelamento por baixo: o eduquês é a barbárie cultural consumada que elimina o conhecimento, a cultura do mérito e os seus portadores. Ou dito de forma mais radical: o eduquês é terrorismo anticultural. O "bom selvagem" de Rousseau - aliás uma noção extremamente complexa que ainda não foi bem compreendida - não é um terrorista. De modo provocante, prefiro ver nele o homem livre que rejeita a reflexão pedagógica do eduquês: o homem bom que diz não à colonização civilizacional e à maldade que produz na história. O pensamento conservador não suporta Rousseau - o republicano revolucionário que desejou derrubar a monarquia francesa, porque culpa o homem essencial pelo mal radical, em vez de culpar a sociedade e a história pelas quais o mal vem ao mundo. Rousseau soube reconciliar o enunciado - «o homem é naturalmente bom» - e o enunciado - «tudo degenera entre as mãos dos homens», culpando a sociedade - o homem-em-relação - pelo mal que se produz na história: o problema da teodiceia é assim resolvido sem imputar a origem do mal à natureza humana, a Deus ou ao homem pecador. A Direita não suporta a liberdade de um tal pensamento humanista: o seu desejo terrorista é condenar a natureza humana ao pecado, à degradação e à corrupção. J Francisco Saraiva de Sousa
12 comentários:
Bam, evitei entrar nas questões técnicas da leitura de Rousseau, embora tenha levado tudo isso em conta. Educação ou revolução? Até podemos tentar uma conciliação, encarando a educação verdadeira como condição necessária para a mudança qualitativa. Mas esta via da educação falhou e, sem alterar todo o paradigma social, não podemos repor a educação: os analfabetos funcionais não podem ensinar nada às gerações novas. Portugal sofre analfabetismo total: a solução deve ser rápida e radical.
O tal Valente não capta a noção de infância de Rousseau que identifica com o selvagem bárbaro e cruel. Enfim, não conhece Rousseau... e não está preparado para pensar a mudança. :(
Dizem por aí que o SIS anda a investigar os blogues portistas: devo ter sido investigado, embora não tenha falado do jogo de hoje. Porém, como sou transparente = não-corrupto, acho que o benfica mereceu ser apedrejado.
Sou espero que façam hoje controle anti-dopping, porque não tem sido feito, quando na verdade os jogadores parecem jogar sob o efeito de drogas... Para mim, benfica é basura... lixo lisboeta.
Enfim, o campeonato está tão corrompido que até os serviços secretos dão a sua ajuda ao benfica corrupto e fascista: pidescos fascistas.
A porcaria do benfica nem com a ajuda do árbitro consegue vencer: o FCPorto derrotou e humilhou o fascista com três golos superiores. Este campeonato devia ser impugnado: o benfica venceu na secretaria da liga e talvez com ajuda dos tunéis - esta é segura - e de drogas. O benfica não tem vergonha - honra e mérito: é a vergonha nacional-fascista.
A maior parte dos jornalistas comentadores mentem e distorcem sistematicamente aquilo que os treinadores dizem e a objectividade dos jogos: tal é a doença benfiquista que Jorge Jesus parece não querer sofrer.
A mentira é campeã em Portugal??? A mentira enterra o país no fracasso e na ilusão - completamente falido e sem dignidade.
Queriam festejar na Cidade Invicta? Ganhem juízo: nós não suportamos a corrupção e a mentira encarnadas. O povo do Norte está cada vez mais unido: sonha com a autodeterminação e a independência. Não temos orgulho fazer parte de um país sacana e mentiroso e corrupto e muito feio.
Ah, e é mentira quando dizem que Jesualdo Ferreira não tem o apoio dos portistas, porque tem todo o apoio e confiança dos adeptos do Porto.
Agora os comentadores querem punir os adeptos do Porto e mandar na nossa cidade, e esquecem que os nossos autocarros incendiados em Lisboa pelos diabos encarnados ainda não foram alvo de apuramento.
Também querem manchar a honra da polícia portuense! Querem escravizar-nos - tadinhos são mesmo saloios e agressivos - pessoas malvadas. :((
Vou contar uma coisa: os iluministas - entre os quais Rousseau - nunca questionaram a escola como o lugar onde os professores iniciam os alunos no conhecimento: a autoridade do professor não foi questionada, nem sequer pelos teóricos críticos. Maio de 68 apanhou-os desprevenidos: Adorno ficou chocado com as reacções rebeldes dos seus estudantes universitários - exibidas na sala de aula. 68: uma data a reter, uma mudança que nos levou ao caos presente. Eu fui educado no eduquês e sempre detestei o sistema que tudo fez para me domesticar, mas sem sucesso porque sou atomicamente rebelde. :)
É muito difícil resistir à beleza de Rousseau e às suas transformações do eu, em busca da liberdade perdida, isto é, da reconciliação. Sendo a sociedade contrária à natureza, Rousseau opõe-se enquanto eu à sociedade - à mentira universal: o eu assume a pesada tarefa de recusar uma sociedade que é a negação da natureza. É preciso ser muito seguro de si para compreender esta solidão guerreira: ela é bela e corajosa. É rebelde... :)
Abdicar de Rousseau é abdicar da nossa alma azul-ocidental. :)
Não percebo como se pode dizer que Rousseau elimina o papel da docência na educação, alegando a natureza racional universal que se move a si mesma. Leram as obras de Rousseau? Se não fosse a minha natureza rebelde, o actual sistema de ensino tinha conseguido eliminar-me... O próprio Rousseau não resolveu todos os problemas que colocou... Viva a liberdade recuperada!
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