domingo, 27 de janeiro de 2008

Cosmologia Asteca e Filosofia

Com este post pretendo partilhar a minha paixão pelas civilizações pré-colombianas (Alberto Ruz Lhuillier, Nigel Davies), em especial pela asteca, maia e inca (Henri Favre, Alfred Métraux), e, sobretudo, abrir um novo território para a pesquisa filosófica.
A ideia não é completamente original, porquanto muitos antropólogos (J. G. Frazer, Evans-Pritchard, M. Griaule, Lévi-Strauss, G. Lienhardt, B. Malinowski, E. Durkheim, R. Needhand, P. Radin, V. Turner, B. L. Whorf, E. Sapir, C. R. Hallpike) e filósofos (Lévy-Bruhl, Jean-Pierre Vernant, J. Burnet, G. Thomson, L. Gernet, E. R. Dobbs, Bruno Snell, W. Jaeger, Cornford, M. Eliade) já dedicaram muito do seu tempo a falar sobre o "pensamento primitivo" ou mesmo sobre a "filosofia primitiva". Contudo, estas análises foram levadas a cabo quase sempre no âmbito da antropologia religiosa ou mesmo cognitiva, mas sem fazer uma análise conceptual sofisticada capaz de fornecer uma determinada visão do mundo, com a qual a filosofia possa estabelecer um diálogo produtivo. Não se trata de apreender a "filosofia" de um determinado povo não-ocidental, mas de recuperar a sua imagem do mundo e pensá-la filosoficamente nos nossos próprios termos ou conceitos abstractos: a filosofia pode emprestar ou elaborar uma "filosofia" a partir dessas concepções primitivas ou não-ocidentais do mundo, sejam elas religiosas, mitológicas, políticas ou simplesmente sociais. Portanto, podemos conceber uma "filosofia comparada dos conhecimentos" ou mesmo uma "arqueologia dos saberes" (Hannah Arendt, Michel Foucault).
Com a ajuda dos estudos de Jacques Soustelle, podemos resumir, de forma simplificada, a cosmologia dos astecas (Walter Krickeberg, Lewis Spence, Laurette Séjouné, M. Simoni-Abbat), dizendo que acreditavam que o nosso mundo foi precedido por quatro outros universos, os "Quatro Sóis".
1º. O primeiro Sol, naui-ocelotl ("quatro-jaguar"), desapareceu num gigantesco massacre, no qual os homens foram devorados por jaguares. O jaguar simboliza as forças telúricas e, para os astecas, correspondia a Tezcatlipoca, o deus das trevas e do céu nocturno pontilhado de estrelas, qual pelagem do felino.
2º. O segundo universo chamava-se naui-eecatl ("quatro-vento"). Quetzalcoatl, a Serpente de Plumas, o deus do vento e o rival mítico de Tezcatlipoca, fez soprar sobre este segundo mundo uma tempestade mágica, transformando os homens em macacos. Laurette Séjourné realizou um belo estudo sobre "o universo de Quetzalcoatl", prefaciado por Mircea Eliade.
3º. O terceiro universo, chamado naui-quiauitl ("quatro-chuva"), foi destruído por Tlaloc, a divindade benfeitora da chuva e o terrível deus do raio, submergindo-o numa chuva de fogo.
4º. Finalmente, o quarto Sol, chamado naui-atl ("quatro-água"), situado sob o signo de Chalchiuhtlicue, o deus da água, terminou num dilúvio que durou 52 anos. Salvaram-se apenas um homem e uma mulher que se agarraram a um tronco de cipreste. Mas, por terem desobedecido às ordens de Tezcatlipoca, foram transformados em cães.
A humanidade actual não descende desses seres salvos da quarta catástrofe: a sua existência deve-se a Quetzalcoatl, que, sob a forma de um deus com cabeça de cão, Xolotl, resgatou dos infernos os ossos descarnados dos mortos e, regando-os com o seu próprio sangue, lhes restituiu a vida.
O nosso mundo foi designado pelo signo naui-ollin ("quarto tremor de terra") e está fadado a ser destruído por fortes sismos. Os Tzitzimime, os monstros esqueléticos que vagueiam na orla ocidental do universo, surgirão das trevas para aniquilar a humanidade. Esta catástrofe final podia acontecer a qualquer momento, porque, segundo os astecas, o retorno do Sol e a sucessão das estações não estavam garantidos. Daqui podemos concluir que a alma asteca era dominada pela angústia perante a possibilidade do mundo ser aniquilado a qualquer momento. Por isso, ao fim de cada ciclo de 52 anos, os astecas temiam que a "liga dos anos" não pudesse completar-se e que o Fogo Novo não se acendesse, mergulhando o mundo no caos.
Neste mundo fatalmente ameaçado de destruição, a tarefa do homem, em especial do povo do Sol, era conjurar o assalto do nada, e, para levar a cabo essa tarefa, devia fornecer a "água preciosa", o próprio sangue humano, ao Sol, à Terra e a todas as outras divindades que garantiam o funcionamento da engrenagem do mundo. As guerras sagradas e a prática de sacrifícios humanos iniciaram-se, segundo os mitos (Walter Krickeberg, Laurette Séjourné), com a criação do mundo, tendo por finalidade abastecer os deuses com o "alimento" que exigiam: o sangue humano (Jacques Soustelle, Christiam Duverger). O único deus que não o exigia era Quetzalcoatl que foi vencido por Tezcatlipoca (Laurette Séjourné).
Além dos benefícios positivos para o Estado asteca, como a conquista de territórios, a imposição e cobrança de tributos e o direito de livre-passagem para os seus comerciantes, a guerra devia fundamentalmente fornecer prisioneiros para os sacrifícios (Jacques Soustelle, Marvin Harris). Por isso, as batalhas eram travadas não para ferir ou matar os inimigos mas para capturar o maior número possível de prisioneiros. Nos períodos de paz, os soberanos inventaram a "guerra florida" (Christian Duverger) que eram torneios destinados a fornecer vítimas para serem sacrificadas aos deuses sedentos de sangue. Estas guerras sagradas não eram somente praticadas pelos astecas, mas também por povos vizinhos, como por exemplo os Maias de Yucatán e os Tarascos de Michoacán (J. Eric S. Thompson), entre outros, que, além dos prisioneiros de guerra, sacrificavam aos deuses escravos, voluntários e mulheres.
O processo mais comum de sacrifício consistia em deitar a vítima sobre a pedra, abrir-lhe o peito com um golpe violento do machado de sílex, arrancar-lhe o coração e oferecê-lo ao Sol. Seguidamente, a vítima era decapitada e o seu crânio era posto numa estaca especial, o tzompentli. Apesar da diversidade dos rituais praticados e dos tratamentos dados, em seguida, às vítimas, estas cerimónias macabras eram encerradas com o canibalismo ritual. Contudo, nem todos os autores aceitam esta explicação religiosa das guerras sagradas e do canibalismo bélico, mas trataremos desse assunto da antropofagia noutros posts.
Neste "mito" asteca da criação do mundo, o tempo que surge em cena não é o tempo primordial ou ontológico, mas o tempo histórico submetido ao princípio de desgaste, mais precisamente ao princípio de desperdício. Como não existe um modelo de representação da totalidade, os tempos originais participam do tempo actual, donde resulta a impossibilidade de pensar a eternidade e a perenidade.
O devir catastrófico do mundo está inscrito no próprio nome de cada um dos "sóis" (ou eras): a água, o fogo, o ar e a terra. O "quinto sol" aparece como a combinação sintética dos quatro elementos já destruídos separadamente. Isto significa que o "quinto sol" está condenado à destruição desde a sua origem, porque "carrega" e transporta em si os princípios da sua própria aniquilação. Para os astecas, toda a destruição já está contida na geração: as forças colocadas em jogo na criação são precisamente aquelas que conduzem todo o organismo à ruína. O nome naui-ollin dado ao "quinto sol" revela que os astecas sabiam que o "movimento" (ollin) é inexoravelmente entrópico. O fim não é contingente, mas consequência lógica de uma existência totalmente submetida às leis da física e da perda de energia. Apesar disso, os astecas não cruzaram os braços, aguardando o fim do mundo, mas colocaram em acção uma política económica destinada a conservar os equilíbrios existentes e a consolidar o poder da sua sociedade, de resto também ela condenada ao esgotamento.
J Francisco Saraiva de Sousa

16 comentários:

Manuel Rocha disse...

Antes de mais tenho que lhe dizer que aprecio as suas qualidades de divulgador. Fizessem todos os homens do conhecimento o esforço que o Francisco faz para descer à terra e estou certo que outra música tocaria ( por sinal ontem comecei a escrever sobre isso...::))

Sobre o texto.

Tenho um fascinio antigo pelas questões que associam guerra, religião e poder. Mas também sempre tive a sensação de que a antropologia cultural, desde Levi-Strauss a Durkhein, se perde com frequência por caminhos de explicações sofisticadas de ritualizações que talvez mais não fossem que formas institucionalizadas de uma percepção ecológica, virtude de uma interacção intima com o ambiente e suas limitações objectivas, que se foi perdendo á medida que foi sendo intermediada .

Curiosa a obcessão dos Astecas pelos prisioneiros. Os Hurom dos territórios da América do Norte tinham exactamente a mesma lógica. Toda a razão da guerra era fazer prisioneiros, diz-se ! Mas seria mesmo?!É que subjacente aos discursos e justificações formais, há sempre outras motivações. Óbviamente o Ocidente não foi fazer guerra ao Iraque por causa do Sr Hussein....::)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Acrescentei os dois últimos parágrafos para clarificar o sentido da cosmologia asteca!
No caso dos astecas, o canibalismo bélico tem sido explicado pela procura de proteínas animais. Os animais domésticos e a caça não eram suficientes para fornecer essas proteínas, além da sua criação ser um mau investimento. Daí a guerra sagrada para capturar prisioneiros. Contudo, a sua visão do mundo justifica a antropofagia... :)

Manuel Rocha disse...

Francisco,

Essa das proteinas "brada aos céus"...:)) Os nossos antropologos e etnologos precisariam de uma reciclagem em botânica e nutrição..:)) quem tinha por alimentação base milho e soja não pode ter carências de proteina alimentar!

Manuel Rocha disse...

Os parágrafo que acrescentou estão interessantissimos.

Quanto ao primeiro deles, tenho dificuldade em entender que uma civilização que não conceptualize a perenidade ( escala e natureza diversas de eternidade ) se dedique à agricultura e a materialize com a sofisticação de que os ditos deixaram rasto...:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Foi Michael Harner (1977) que propos essa hipótese: dada a escassez de herbívoros domésticos, os astecas não podiam reprimir o canibalismo bélico. E Marvin Harris apoia essa hipótese com uma análise de custos/benefícios. Mas se tem outra hipótese partilhe... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É uma cosmologia muito rica e deveras intrigante: merece estudo conceptual. O calendário, o mundo, as pinturas, a poesia, as construções... tudo fabuloso! :)

Manuel Rocha disse...

Ainda sobre a "hipótese"...

Penso que o que hoje se sabe sobre nutrição e metabolismo desmonta essas teses com facilidade...

O que me parece substimado é que uma população que prospera pela agricultura na época pré-industrial o faz incorporando no território como património inalienável ( solo arável )o trabalho de gerações. Se para o defender tiver que criar um clima de "terror" em relação aos seus vizinhos, onde está a dúvida ? E porque é que se deve pensar que a "guerra preventiva" foi uma ivenção de G Bush ?

Esses mecanismos não incorporam também eles o conceito de perenidade ?

:)))

PS : dê uma espreitadela ao DRNatura e observe como a ciência tem dias em que se "põe a jeito" para "levar nas orelhas" com o ultimo post sobre a evolução do crânio no HS...::))

E. A. disse...

Muito obrigada por ter partilhado a sua "paixão", a qual n perfilho, mas me espanto! :)
Interessante a cosmogonia azteca ao não considerar um ponto imaginário atemporal... mas um contra-relógio!


Talvez o paraíso dos mortos seja o coração dos vivos

in "A Serpente Emplumada"
do grande D.H. Lawrence

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Desconhecimento de certos conceitos: texto muito primário que não leva em conta a complexidade intrínseca dos sistema nervoso. Como dizia Bolk no inicio do século passado, somos prematuros. Tratei disso noutros posts que discutimos. Incongruência: evolução, cérebro e moral e o "prematuro"! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tenho outras paixões que vou partilhar aos poucos...
Viu o Calypso? Tratava disso... as guerras floridas... a morte florida. :)
A Serpente Emplumada é um universo: muito bela!
Mas é um bom tema para ser abordado pela filosofia. :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

Quetzalcoatl é o deus, homem, mago, que permite os "nascimentos interiores", que aproxima e reconcilia os opostos, enfim que converte a morte em vida. Um universo noológico muito rico que faz pensar. :))

Fernando Dias disse...

Interessante mergulho nas profundezas da arqueologia antropológica do mundo Asteca, do qual eu sou um completo ignorante.

Mas depois desta devassidão vagabunda, permito-me pensar e dizer algumas coisas:
- A geografia é condicionante.
- O tipo de animais é condicionante. Nem todos se deixam domesticar.
- No combate corpo-a-corpo um caçador leva a melhor a um agricultor.
- Mas a agricultura produziu 10 agricultores contra 1 caçador.
Os caçadores foram assimilados pelos agricultores, mas focou a saudade da carne.
- Quando a relação agricultor esfomeado/plantas disponíveis desiquilibrou, nos sítios onde havia animais domesticáveis o agricultor sobreviveu, nos outros sítios passou à história.
- Na geografia dos Astecas não havia hipótese à criação de gado.
- O canibalismo e o sacrifício – nos astecas (arrancar o coração in vivo e aspergir o sangue; ou na missa cristã (comer o corpo de cristo e beber-lhe o sangue) – é ritualização do sagrado.

Manuel Rocha: concordo que a ciência “mainstream” está muito datada e requentada, e por isso está a precisar de uma refrescadela. Mas isto faz-me lembrar uma pessoa conhecida do tempo da minha avó que dizia que a terra não dava nada. E a minha avó falou em plantar. E o fulano foi peremptório:
“.. ah.. prantando dá?!”

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado pelo seu comentário.
(Mas confesso que o canibalismo asteca deve ter sido motivado por algo mais interno. Não consegui reunir todas as plantas e tubérculos usados, alguns ainda não analisados, talvez com outros fins.)
As cidades eram enormes e densamente povoadas: a guerra abastecia-as. A Serpente Emplumada foi rei sábio que deu aos homens ordens espirituais, cujo sentido foi traído posteriormente, com o deus da querra florida.

Manuel Rocha disse...

Ahahah !

O F Dias acaba de ser responsável pela gargalhada da tarde!..::))

Pois, pois..."prantando dá!"

E nós vamos tentando, não é ? Pode ser que chova e alguma coisa vingue...

::)))

Fael Háj disse...

Estive lendo Saint Seiya Lsot Canvas Gaiden, e no livro de Kardia, de Escorpião, há cavaleiros relacionados a essa filosofia asteca, fiquei curioso e comecei a procurar, joguei no google algumas coisas mas nada importante, e quando coloquei "filosofia asteca" foi o que me trouxe até o seu artigo.
Muito informativo e gostei bastante de ver uma relacionamento com oa quatro elementos e um processo ciclico etc e tal.
Eu sempre tive questões a resolver e entender com os astecas mas nada até o presente momento que mudou.
Agora, ao menos um pouco, tenho algo muito bom em mãos com relação a eles.
Obrigado pelo artigo, faz muito bema internet =D

Fael Háj disse...

rafaelmtc@yahoo.com.br
(11) 98780-6013 [tim]
Rafael =D