CID-10 define o transexualismo como "um desejo de viver e ser aceite como um membro do sexo oposto, geralmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade do seu próprio sexo anatómico e um desejo de se submeter a tratamento hormonal e a cirurgia para tornar o seu corpo tão congruente quanto possível com o sexo preferido". Esta perturbação da identidade sexual é distinta do transvestismo de duplo papel: "O uso de roupas do sexo oposto durante parte da existência para desfrutar a experiência temporária de ser membro do sexo oposto, mas sem qualquer desejo de uma mudança de sexo mais permanente ou de redesignação sexual cirúrgica associada". Como nenhuma excitação sexual acompanha a troca de roupas, esta perturbação é distinta da perturbação (heterossexual) do fetichismo trasvestido. O transexualismo é, pois, caracterizado pelo desconforto persistente acerca do sexo atribuído e por uma forte identificação com o sexo oposto, isto é, pela identificação de género cruzada intensa e persistente. Os transexuais são pessoas cuja identidade de género está em conflito com o seu sexo genético e com a sua aparência física. Eles sentem-se prisioneiros num corpo de "sexo errado" e, por isso, procuram mudar a sua aparência física para adquirir a semelhança corporal do sexo oposto. Em Portugal e, de um modo geral, nos países latinos (Itália, Espanha, Brasil), o transexualismo está exclusivamente associado à homossexualidade, no sentido dos transexuais macho-para-fêmea ou fêmea-para-macho serem atraídos por parceiros do seu próprio "sexo genético". Contudo, nem todos os indivíduos transexuais são homossexuais. Blanchard (1985, 1988, 1989) propôs que existem dois tipos fundamentamentalmente diferentes de transexualismo: o homossexual e o não-homossexual. Em contraste com os transexuais homossexuais, os transexuais não-homossexuais tendem a ficar sexualmente excitados com o pensamento ou a imagem deles próprios como mulheres. Blanchard (1989) chamou a esta característica disforia de género autoginefílica. A categoria de transexuais macho-para-fêmea homossexuais inclui indivíduos que foram abertamente efeminados durante a infância (infância sexualmente atípica), que são verdadeiramente femininos na vida adulta e que são exclusivamente atraídos sexualmente por homens. A outra categoria de transexuais masculinos não-homossexuais inclui indivíduos que não foram abertamente femininos durante a infância, que não são marcadamente femininos na vida adulta e que não são exclusivamente atraídos por homens (Cohen-Kettenis & Gooren, 1999). Neste grupo, as atracções sexuais variam: atracção sexual por homens, atracção sexual por mulheres, atracção sexual por ambos e atracção sexual por nenhum (assexual). Além disso, os indivíduos da segunda categoria relatam uma história de fetichismo trasvestido ou excitação sexual com cross-dressing (Blanchard, 1985; Blanchard, Clemmensen & Steiner, 1987). Estes dois tipos de transexualismo masculino têm etiologias diferentes. Os estudos sobre a ordem de nascimento e a "sibling sex ratio" (Blanchard, 2001) mostraram que, nos homens, a orientação sexual e o número de irmãos mais velhos estão correlacionadas, embora o número de irmãs mais velhas não esteja associada à orientação sexual. Os transexuais homossexuais têm um excesso de irmãos mais velhos, ao passo que os transexuais não-homossexuais não manifestam nenhum excesso de irmãos mais velhos. Blanchard (1997, 2001) atribuiu este efeito à progressiva imunização das mães em relação aos "Y-linked minor histocompatibility antigens": os anticorpos das mães atravessam a barreira placental, entram no cérebro fetal e impedem a diferenciação sexual do cérebro numa direcção tipicamente masculina. Como a imunização maternal aumenta com a sucessão de gravidezes masculinas, a probabilidade de homossexualidade aumenta nos filhos nascidos mais tarde. Mais recentemente, Henningsson et al. (2005) descobriram três polimorfismos genéticos associados ao transexualismo que envolvem, numa combinação determinada, o gene receptor de androgénios (AR gene), o gene da aromatase (a aromatase aromatiza a testosterona, convertendo-a em estradiol) e o gene receptor beta de estrogénios (ERbeta), cujo alelo longo parece aumentar a susceptibilidade ao transexualismo, desde que o gene AR tenha um nível menor de actividade, sobretudo no núcleo do leito da stria terminalis, responsável pela identidade de género (Zhou et al., 1995; Kruijver et al., 2000). Os estudos com animais, em especial carneiros, demonstraram a importância da aromatização da testosterona em estradiol na motivação sexual e na preferência de parceiro sexual: os carneiros homossexuais exibem baixos níveis de actividade da aromatase na área preóptica medial quando comparados com os carneiros heterossexuais (Roselli et al., 2002) e os ratinhos "aromatase knockout" exibem comportamento sexual alterado (Bakker et al., 2004). Existem paralelos ou similitudes entre o tipo não-homossexual de transexualismo macho-para-fêmea e o desejo de amputação de um membro saudável (Lawrence, 2006; First, 2004), mas vamos procurar levar em conta as três condições: os dois tipos de transexualismo e o desejo de amputação, comparando-os em função de oito características. As duas primeiras características são partilhadas pelas pessoas que exibem as três condições e as restantes aproximam apenas o transexualismo macho-para-fêmea não-homossexual e o desejo de ser amputado. 1. Desconforto Corporal. Os indivíduos pertencentes às três condições sentem uma profunda insatisfação com os seus corpos que desejam modificar cirurgicamente para adquirir uma configuração corporal mais congruente com o sexo desejado ou a imagem corporal preferida. 2. Simulação. Os transexuais de ambos os tipos e as pessoas que desejam a amputação envolvem-se quase sempre na simulação do seu status ou corpo desejado, usando roupas, próteses e outros apetrechos. No caso dos transexuais, esta simulação é denominada trasvestismo ou "cross-dressing", e, no caso dos indivíduos que desejam ser amputados, "pretending". 3. Cirurgia. Os transexuais homossexuais são muito efeminados na sua aparência e comportamento e, por isso, tendem a assemelhar-se naturalmente com as pessoas com corpos ou status desejados (Whitam, 1987, 1997). Esta semelhança natural leva-os a procurar muito cedo, pelo menos logo no início da idade adulta, cirurgia de mudança de sexo. Os transexuais não-homossexuais e os indivíduos que desejam a amputação do membro não se assemelham com as condições ou status desejados. Os membros destes dois grupos tendem a procurar muito mais tarde, no caso dos transexuais após terem sido casados e criado os filhos (Blanchard, 1989), a cirurgia capaz de lhes dar a forma corporal desejada. 4. Condições Parafílicas Específicas. As similaridades entre os transexuais não-homossexuais e as pessoas que desejam a amputação envolvem a presença de características parafílicas específicas que estão praticamente ausentes nos transexuais homossexuais. Cada uma destas condições constituem desenvolvimentos dessas parafilias: os transexuais não-homossexuais exibem um interesse sexual parafílico chamado autoginefilia que Blanchard (1989) definiu como "a propensão de um homem ficar sexualmente excitado com o pensamento ou imagem de si próprio como uma fêmea". As pessoas que desejam ser amputadas desenvolvem também um interesse sexual parafílico chamado acrotomofilia: excitam-se sexualmente com a ideia de ser um amputado. Estas parafilias podem estar na origem do desejo de se submeterem posteriormente a cirurgia. 5. Excitação Sexual. Os transexuais não-homossexuais excitam-se sexualmente com a simulação do corpo ou status desejados através do cross-dressing, mas o mesmo não acontece com os transexuais homossexuais que não se excitam com o cross-dressing. As pessoas que desejam ser amputadas relatam frequentemente que ficam sexualmente excitadas quando pretendem ou simulam ser um amputado ("pretending"). 6. Atracção Sexual. As pessoas com estas duas condições são sexualmente atraídas por indivíduos com o mesmo tipo de corpo que querem adquirir, o que não sucede no caso dos transexuais homossexuais. Os transexuais masculinos homossexuais são andrófilos, os transexuais masculinos não-homossexuais são autoginéfilos e os pretenders são acrotomófilos. 7. Interesses Parafílicos. As condições do transexualismo macho-para-fêmea não-homossexual e o desejo pela amputação estão associadas a uma elevada prevalência de outros interesses parafílicos. Os transexuais não-homossexuais têm invariavelmente uma história de fetichismo travestista (Blanchard, 1985) e alguns exibem comportamentos e fantasias sadomasoquistas (Bolin, 1988). O estudo de First (2005) revelou que as pessoas que desejam ser amputadas usam frequentemente a metáfora do "corpo errado" para justificar o seu desejo de ser amputadas: elas acreditam que querem a amputação porque vivem numa "forma corporal errada" (Furth & Smith, 2000). 8. Recusa da Explicação Parafílica. Os transexuais macho-para-fêmea não-homossexuais e os indivíduos que desejam a amputação do membro consideram que as explicações baseadas na parafilia não descrevem adequada e completamente as suas experiências. Os transexuais insistem que os seus desejos de mudança de sexo expressam primariamente as suas "verdadeiras identidades" (Lawrence, 2005) e as pessoas que desejam a amputação do membro afirmam que a motivação primária que as leva a procurar a amputação é a aquisição de congruência entre os seus corpos e as identidades preferidas (First, 2005). Nas três condições, quase todos os indivíduos afectados experienciam uma profunda insatisfação com os seus corpos, o que os leva a desejar modificá-los cirurgicamente para construir corpos mais aceitáveis e congruentes com as suas "verdadeiras identidades". A modificação cirúrgica do corpo implica necessariamente uma amputação que, no caso dos transexuais, é a remoção dos órgãos genitais masculinos (castração cirúrgica) e a sua transformação numa neovagina construída cirurgicamente (vaginoplastia): o uso frequente de vibradores é recomentado para manter a nova passagem vaginal limpa e aberta e evitar o seu colapso. Nas três condições, a cirurgia parece ser uma solução efectiva para estes indivíduos que experienciam um desejo inusitado para transformar os seus corpos. Porém, este desejo de modificar a sua actual identidade corporal e de adquirir um outro corpo mais congruente com a "identidade verdadeira" pode ser visto como uma consequência da sexualidade parafílica. (CONTINUA) J Francisco Saraiva de Sousa
25 comentários:
Oi Else
Estou a vislumbrar um sério problema nesta tentativa de agrupar as condições: a própria orientação sexual. Os pretenders sentem-se atraídos por alvos eróticos amputados, conservando a sua orientação sexual. Os transexuais podem ser homo, hetero, bi ou assexuais. Também posso estar a pensar mal. Vou ver...
Todos desejam corpos ou orgãos protésicos. A simulação é fulcral. Mesmo quando os transexuais efectivam a sua mudança de sexo, comportam-se sempre como uma "paródia" do género novo que assumem. O objecto sexual (homem, mulher ou amputado) talvez possa ser subsidiário deste desejo.
Qual é a relação entre a comunidade de "wannabees" e "devotees"? Pode ver amantes de amputados que não queiram eles próprios ser amputados? Sendo assim, um homem que tenha desejo por mulheres transexuais é um devotee?
*pode haver
E se o desejo de amputação é desejo pelo disforme, poderia ser paralelo ao desejo sexual por mulheres obesas? (Aliás, como se chama esta parafilia?)
É muito difícil traçar coincidências nestes temas.
Oi Else
Os indivíduos que desejam amputação são geralmente atraídos por amputados e eles próprios excitam-se quando simulam ser amputados. Pelo menos, esta é a predição do modelo, de resto já confirmada por algunns estudos referidos. Porém, existem algumas aberrações na orientação sexual e nas parafilias adicionais. Infelizmente, as amostras são muito pequenas.
Vou desenvolver agora as diferentes etiologias.
Sim, alguns homens gostam de "mulheres transexuais" e apresentam-se como heterossexuais. É muito complicado explicar essa preferência.
Sugere uma atracção pelo disforme?
Se atracção por amputados é atracção pelo disforme, atracção por mulheres transexuais também pode ser vista nesse sentido. As mamas são protésicas, a vagina é protésica, além, muitas das vezes, de outras operações que exacerbam (como eu tinha dito, parodiam) características de género. Pode ser atracção por alguém que é "inferior" a mim, porque é bizarro ou mesmo monstruoso - não sei se é possível.
Alguém que tenha prazer em ter poder sobre o outro. Isso é claro nos homens que se atraem por mulheres muito obesas.
E em última instância, chegaríamos aos homens que têm "relações intensas" com bonecas em formato humano. A prótese total, o simulacro total.
Sim, essas parafilias estão presentes em muitos dos indivíduos que compõem as amostras. Precisamos de uma teoria mais unificadas das parafilias ou, como prefere Stoller, das perversões sexuais. A atracção pelo disforme é muito mais "feia", mas infelizmente os casos são raros: poucos estudos e os que há têm escasso valor.
Infelizmente, eu não tenho dados sobre o transexualismo masculino não-homossexual e sobre amputações e, por isso, tenho dificuldade em estabelecer associações ou padrões. Paradoxalmente, os dados que tenho revelam que uns poucos transexuais manifestam fetichismo trasvestista, foram casados e tiveram filhos e são actualmente "homossexuais", aliás sempre foram. Não conheço nenhum transexual ginefílico, bissexual ou assexual. :(
Ou, como diz Bailey, eles são "mentirosos".
Mas estou a rever os estudos: há outras alternativas.
Quem são "mentirosos"?
Essa ideia de transexual assexual é delirante!
As amostras holandesas mostraram a sua existência. Geralmente, essa situação pode ocorrer após a cirurgia de redesignação sexual. As coisas começam a complicar despois da cirurgia: assexual não significa falta de interesse sexual; significa não ter contactos sexuais com outros.
Ah, ok. Pensava que havia desinteresse sexual já na vontade de mudar de sexo, por isso estava a achar muito estranho! :)
E pensava que assexual fosse desinteresse sexual. Nós podemos não ter contacto sexual com outros e ter vida sexual. Exemplo: masturbação e masturbação assistida (sexo virtual, sexo com bonecas)
Exacto: há um estudo feito com 15 mil assexuais, salvo erro: as pessoas existem mas o estudo tem dificuldade em explicar a assexualidade, recorrendo a factores culturais, entre os quais religiosos.
O blogue não permite o uso de letras gregas e outras funções, o que dificulta a exposição destes assuntos.
Sim, mas atenção que partem de uma assunção: que toda a gente deve ter desejo sexual e por isso não o conseguem explicar, senão recorrendo a formas, por vezes, abstractas, de repressão desse desejo.
Ora, é minha crença que há realmente pessoas que não têm desejo sexual ou que o têm em muito pouca intensidade e isto não constitui qualquer problema para essas pessoas. Acho que existe na nossa sociedade uma grande pressão para que sejamos sexuais e o exprimamos inequivocamente. Daquilo que me é permitido observar há pessoas com mais ou menos desejo e a questão é aprender a lidar com isso de forma natural. :)
E arranjarmos parceiros com libido compatível! ahah :)
Sim, existem diversos subtipos de assexualidade: aquela que refere é definida mais por critérios funcionais, uma espécie de hiposexualidade.
Sim, os casais ou pares devem ser concordantes, não só ao nível do sex drive, mas também a outros níveis. Mas deve ser difícil encontrar a alma gémea porque, durante o período de formação/sedução, se mente muito ou se simula muitos traços que não são reais. Mais tarde descobre-se isso.
A preferência por pessoas gordas pode ser justificada...
Ok, obrigada pelo esclarecimento. :)
Sim, encontrar a "alma gémea" é difícil, se a entendermos como uma compatibilidade absoluta! Mas penso que a compatibilidade sexual é realmente determinante. Senão, um dos elementos do casal pode ficar progressivamente mais "triste"... :(
Está frio, a temperatura vai descer e chove muito. :(
Mas o sexo não é suficiente: sexo é bom e pode ser melhor com alguém com quem se tenham maiores afinidades. Sexo e afectividade, evidentemente... Por exemplo, podemos ter bom sexo ou assim pensar com alguém que não gostamos. Muitas vezes esse sentimento é afogado pelo sexo, mas quando acorda o sexo deixa de ter importância.
Bom, isso é evidente. Não me referia a "one night stand" porque isso não é "ser casal". O que eu queria dizer é que numa relação afectivo-sexual, a satisfação sexual de ambos os elementos é determinante para o sucesso dessa mesma relação. Mesmo que seja sexo com afectividade pode não ser suficiente (em quantidade e qualidade) para um deles.
Sim, sexo deve ser feito todos os dias com muito beijos prolongados e... etc. :)
Tb está um tempo terrível aqui em baixo! Um frio que tolhe os membros! :(
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