George Soros elaborou uma nova teoria para explicar a actual crise financeira: a teoria da reflexividade que opõe ao paradigma económico predominante. O fundamentalismo de mercado não só não pode explicar o que está a acontecer, como também é o seu principal responsável: a sua "convicção de que os mercados tendem a equilibrar-se é directamente responsável pela actual desordem; encorajou os reguladores a abandonar a sua responsabilidade, e a confiar no mecanismo de mercado para corrigir os seus próprios excessos". Todos os conceitos nucleares desta nova teoria, tais como falibilidade radical, reflexividade, princípio da incerteza humana ou indeterminação, são conceitos claramente epistemológicos, e, como tais, constituem mais uma crítica da economia levada a cabo de um ponto de vista epistemológico do que a formulação de um paradigma económico alternativo, embora essa não seja a intenção explícita de Soros que a define como uma "teoria da história". Aquilo que é almejado por Soros não coincide com aquilo que apresenta: a crítica do modelo do equilíbrio não constitui, em si mesma, uma nova teoria económica capaz de "competir" com o paradigma predominante. É esta diferença entre o que é prometido e o que é oferecido que explica as dificuldades teóricas sentidas por Soros quando procurou, ao longo dos anos, expor, de forma elaborada, rigorosa e unificada, a sua teoria da reflexividade. A dificuldade maior revela-se quando, após reconhecer ter sido discípulo de Karl Popper, procura corrigi-lo, radicalizando-o, de um modo que mostra efectivamente "falta de conhecimentos filosóficos", explicitando a oposição entre liberalismo e comunismo em termos de inversão: o liberalismo defende o inverso do comunismo, ou seja, o liberalismo defende que os regulamentos devem ser abolidos devido à sua falibilidade, enquanto o comunismo defende, inversamente, que os mercados devem ser abolidos devido à sua falibilidade. Se Karl Popper e Friedrich Hayek "demonstraram os perigos da ideologia comunista", George Soros pretende progredir na "nossa percepção da realidade" ao reconhecer o carácter ideológico do fundamentalismo de mercado, como se tivesse descoberto uma terceira alternativa que, na verdade, não descobriu, dado ela já existir. Segundo Soros, "ambas as ideologias se disfarçam com uma aparência científica para se tornarem aceitáveis, mas as teorias que invocam não enfrentam, corajosamente, o teste da realidade. Usam o método científico para manipular a realidade, não para a compreender". Soros identifica erradamente marxismo e comunismo, esquecendo que Marx já tinha procurado explicar as crises periódicas do capitalismo, a partir da razão teórica (cognitiva) e não da razão prática (manipuladora). A pesada dívida em relação à filosofia da ciência de Popper impediu Soros de compreender o apuro interno da sua teoria, mesmo após ter abandonado a doutrina da unidade do método, rompendo com o naturalismo, que Popper opõe ao historicismo oracular de Hegel e Marx, ao mesmo tempo que o incapacitou de compreender correctamente a filosofia e de situar-se justamente no seu campo de luta teórica. A terceira alternativa, sobretudo quando identificada com o papel regulador do Estado, abolido pela liberalização e pela globalização dos mercados financeiros, sempre existiu, tanto na teoria como na prática: Soros não a viu, porque interiorizou os capitais tóxicos inerentes à filosofia de Popper, entre os quais a ideia de sociedade aberta despida das suas determinações histórico-concretas, precisamente aquelas que Marx apreendeu na passagem do feudalismo para o capitalismo. Soros tenta desesperamente superar Popper com a ajuda do próprio Popper e, como não o consegue, condena-se a criar um anexo, mera hipótese ad hoc, ao paradigma económico predominante, o padrão dos ciclos económicos de expansão-retracção, incapaz de orientar a política: tal como os mercados financeiros, as entidades reguladoras são processos reflexivos que contêm um elemento de incerteza e de indeterminação. A sua revisão da forma como os economistas interpretam o mundo não atinge verdadeiramente a essência do capitalismo. A sua economia converte-se em história post festum: "A hipótese da superbolha poderia ser usada para criar uma história financeira abrangente, do período do pós-Segunda Guerra culminando na crise actual". Porém, como consegue, apesar disso, fazer uma crítica pertinente e justa ao estatuto epistemológico da economia, acentuando a especificidade peculiar das ciências sociais e humanas, vale a pena submeter a sua teoria da reflexividade a uma crítica imanente, de modo a reavaliar a sua hipótese da superbolha. Com este primeiro post, inicio uma série de posts sobre "Crise Financeira e Teoria do Conhecimento", procurando articulá-la com temas anteriores, em particular o pensamento de Hegel. Esta articulação é pertinente, porque Hegel superou a teoria do conhecimento de Kant e os seus dualismos intrínsecos. A dialéctica histórica (reflexiva) veio ocupar, no seio da filosofia, o lugar que o idealismo alemão atribuía à teoria do conhecimento. Liberta da ideologia comunista, a herança Hegel/Marx permite encarar de outro modo a relação entre modelo (pensamento) e realidade, uma relação duplamente reflexiva, com a qual se confronta a ciência económica. A economia carece de uma filosofia crítica completa e esta não pode ser procurada no lugar errado, como fez Popper. A sua filosofia, o racionalismo crítico, enganou-se completamente no que se refere à dialéctica. Na medida em que procurou legitimar a grande narrativa do mercado, através da re-elaboração do conceito de sociedade aberta, a filosofia de Popper (epistemologia + filosofia social e política) ruiu com esta crise financeira. Ou, dito de um modo mais radical, a crise financeira pode ser vista como "resultado" de uma determinada narrativa do mundo, o fundamentalismo de mercado, legitimada pela filosofia anglo-saxónica e pela filosofia pós-moderna. (A administração Bush foi claramente uma administração pós-moderna, o que mostra que o discurso pós-moderno é profundamente perigoso e reaccionário.) A crise financeira coloca na ordem do dia o confronto entre filosofia continental e filosofia anglo-saxónica. Enquanto apologética do mercado, a filosofia anglo-saxónica foi refutada pela própria crise que ajudou a criar e a noção de sociedade aberta de Popper deve ser substancialmente reavaliada. (Esta luta intrafilosófica implica um esclarecimento da teoria de Darwin, a qual foi mal entendida por Marx e Engels.) O liberalismo económico é péssima filosofia e Popper prestou um mau serviço à humanidade, distorcendo a dialéctica, embora retendo-a na sua teoria do conhecimento a-histórica. Ora, a lógica dialéctica é lógica histórica: a dialéctica não é, portanto, uma mera teoria do conhecimento. Nesta redução a-histórica da tríade dialéctica à teoria do conhecimento, o liberalismo e o comunismo coincidem na defesa de um sistema de dominação estabelecido. Ambos são meras versões do Iluminismo ou, como diz Soros, da falácia iluminista. Esta é, portanto, a hora da Filosofia Continental, muito mais prudente que a filosofia anglo-saxónica. (CONTINUA) J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
Ah, este post é um mero anúncio. Depois será abolido e irá aparecer com o desenvolvimento da minha perspectiva.
O primeiro post da série está concluído: constitui uma espécie de introdução que já revela as tensões de um pensamento prisioneiro de si mesmo. :)
Bem, amigos, até 2ª Feira: vou estar ausente estes dias. Bom fim-de-semana. Bye
Bem, Soros retratou-se como um "filósofo falhado". De certo modo, é mesmo um filósofo falhado, porque ficou preso nas teias artificiais da filosofia de Popper. A partir do momento em que quebra com a doutrina da unidade do método de Popper, Soros toma posição, sem disso ter plena consciência, a favor dos "inimigos da sociedade aberta" (segundo Popper). Porém, não os estudou em primeira mão, e, por isso, é alvo da "filantropia", isto é, da narrativa auto-biográfica, a sua perspectiva pessoal da história. É possível restituir-lhe uma filosofia que revele os seus apuros. Penso que esta será a via que vou seguir: a sua filosofia é a ruptura com o liberalismo de Popper; a sua "falha" reside no período em que foi sufocado por Popper e suas inverdades.
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