«O escravo é obrigado a suprimir a dominação através de uma supressão não-dialéctica do senhor que se obstina na sua identidade (humana) consigo mesmo, isto é, através da sua aniquilação ou condenação à morte. Esta aniquilação (dos vencedores corruptos) manifesta-se na e pela luta final pelo reconhecimento (universal), o que implica necessariamente o risco de vida por parte do escravo libertado. É esse risco que, aliás, completa a sua libertação iniciada pelo trabalho, introduzindo nele o elemento constitutivo da dominação que lhe faltava. É na e pela luta final, em que o ex-escravo trabalhador age combatendo pelo prestígio, que se cria o cidadão livre do Estado universal e homogéneo, que, sendo ao mesmo tempo senhor e escravo, já não é nem um nem outro, mas o homem único sintético ou total, em quem a tese (da dominação) e a antítese (da sujeição) são suprimidas dialecticamente, isto é, anuladas no que têm de unilateral ou de imperfeito, mas conservadas no que têm de essencial ou de verdadeiramente humano e, por isso, sublimadas na sua essência e no seu ser. (Ou, por outras palavras,) o senhor morreu humanamente na luta: já não age, pois permanece ocioso (e corrupto); vive, portanto, como se estivesse morto; por isso, não evolui mais no decorrer da história e, quando esta termina, é aniquilado: a sua existência é uma simples sobrevivência (limitada no tempo) ou uma morte adiada. O escravo liberta-se progressivamente pelo trabalho que manifesta a sua liberdade; mas deve finalmente retomar a luta e aceitar o risco para realizar essa liberdade, criando, pela vitória, o Estado universal e homogéneo do qual será o cidadão reconhecido. Seria um milagre se uma revolução triunfasse sem que uma geração substituísse outra, quer de forma natural ou (de forma) mais ou menos violenta.» (A. Kojève) «A dialéctica mistificada tornou-se moda na Alemanha, porque parecia sublimar a situação existente. Mas, na sua forma racional, (a dialéctica) causa escândalo e horror à burguesia e aos porta-vozes da sua doutrina (económica burguesa), porque a sua concepção do existente, afirmando-o, encerra, ao mesmo tempo, o reconhecimento da negação e a destruição necessária (do sistema social estabelecido); porque apreende, de acordo com o seu carácter transitório, as formas em que se configura o devir; porque, enfim, não se deixa subjugar por nada e é, na sua essência, crítica e revolucionária» (Karl Marx) Podemos ler a "Fenomenologia do Espírito" de Hegel como uma "ciência filosófica do homem", pelo menos esse será o caminho que iremos explorar. Os fundamentos filosóficos da antropologia dialéctica foram claramente explicitados por Hegel quando critica a frenologia de Gall, portanto, toda a antropologia naturalista que assimila o homem ao animal, não detectando entre eles nenhuma diferença essencial. A crítica hegeliana da frenologia é uma crítica da ciência e da sua experiência (experimentação) do mundo natural: a razão observadora (beobachtende Vernunft), referida à natureza orgânica, ao mundo da individualidade (psicologia) e à fisiognómica, confronta-se consigo mesma como uma existência exterior, na qual se enriquece com uma pletora de significados, incluindo um significado fisiognómico. A crítica da frenologia antecipa a crítica do positivismo predominante nas actuais ciências humanas. Na frenologia, descobrimos o erro da razão observante, a razão que expressa as suas características essenciais como determinações essenciais das coisas. O crânio não é um signo expressivo da individualidade consciente; é pura "coisa morta" e é, neste caput mortuum, que a razão observante pretende descobrir a exterioridade própria do espírito humano, a "visibilidade do invisível". O resultado deste absurdo é a forma do juízo infinito: "o ser do espírito é um osso", assim o enuncia Hegel, ou seja, o espírito é uma coisa. Esta forma de consciência individual move-se numa realidade alienada, numa realidade que lhe é estranha, pela própria actividade humana, sem ter atingido o conhecimento de que a objectividade desta realidade é o produto da exteriorização criada por si mesma. A razão observadora observa o mundo real e descobre as leis a que obedece, mas não conhece a história: a sua visão do mundo empírico é uma visão abstracta do mundo, que, ao querer apreender o ser sensível através das experiências científicas, o perde como puro movimento e como universal abstracto, ou, segundo a filosofia de Schelling, o mundo é apenas natureza, pura identidade consigo mesma, alheia à negatividade e, por isso, à história. À antropologia naturalista, estática e monista, portanto, materialista, Hegel opõe uma concepção dialéctica, isto é, histórica, do homem: "O indivíduo (Individuum) é em si e para si: é para si ou é um agir (acção) livre, mas também é em si ou tem ele mesmo um determinado ser originário, determinidade que é, segundo o conceito, o mesmo que a psicologia queria encontrar fora do indivíduo. Em si mesmo, surge, portanto, a oposição, o duplo carácter de ser o movimento da consciência e o ser fixo de uma realidade que se manifesta (efectividade fenomenal) e que, no indivíduo, é imediatamente a sua. Este ser, o corpo da individualidade determinada, é a sua originariedade, o seu «não ter feito». Mas, porque o indivíduo é somente, ao mesmo tempo, «o que tem feito», o seu corpo é também a expressão de si mesmo por ele produzida; é, ao mesmo tempo, um signo que não permaneceu uma coisa imediata e no qual o indivíduo somente dá a conhecer o que ele é enquanto põe em obra a sua natureza originária". E mais adiante, na "Fenomenologia do Espírito", Hegel clarifica, contra a concepção de Lichtenberg segundo a qual "a realidade do homem é o seu rosto", a sua noção de que o indivíduo humano é apenas o que ele fez (getan hat): "O verdadeiro ser do homem é, pelo contrário, o seu acto (Tat); na acção, a individualidade é objectivamente real (efectiva) (e) apresenta-se (ou manifesta-se) como essência negativa, que só é enquanto supera (dialecticamente/aufhebt) o ser". O homem aparece como ser em si (identidade) e para si (negatividade) e, enquanto tal, é uma totalidade sintética, portanto, dialéctica (unidade de contrários), cuja existência real e fenoménica está em movimento e em devir. Como ser em si, o homem é, pelo seu corpo (Leib) ou pela sua natureza inata em geral (ursprüngliche Natur), um ser natural, dotado de traços fixos e, tal como qualquer outro animal, determinado pelos vínculos que o ligam ao mundo natural ou mesmo social, no que se refere ao facto de ter nascido escravo ou livre. Porém, esta pretensa liberdade natural não tem nada a ver com a verdadeira liberdade humana: o homem livre é aquele que se faz livre, negando o ser dado e negando-se como dado ou inato, isto é, criando o novo e criando-se como homem novo. O homem que deixa de viver em função do futuro, sendo dominado pelo passado ou mesmo pelo presente, não é verdadeiramente um homem, um ser para si, consciente de si e capaz de falar de si mesmo e do que ainda não é, mas um mero animal que age por instinto, por hábito, por tradição, por imitação, enfim por simples inércia. Tal como o animal, este homem vive, mas deixou de agir. O homem verdadeiramente humano é acção criadora e, como tal, é, existe e aparece como negação da identidade, isto é, como diferença: o homem "é para si, ou seja, é uma acção livre" (Hegel), que, pela sua actividade efectiva, manifesta a sua humanidade e aparece como ser verdadeiramente humano. Ao agir, o homem realiza e manifesta a negatividade, mais precisamente a sua diferença em relação ao ser dado natural. A negatividade é a liberdade humana, aquilo que distingue o homem do animal e que só pode ser e existir como negação. A liberdade é negação do dado, quer do dado que o homem é em si mesmo (como animal e como tradição encarnada), quer do dado que não é (o mundo natural e social). Esta dupla negação é uma só negação: negar o mundo natural e social é o mesmo que o transformar, isto é, criar um mundo melhor e um homem novo. (CONTINUA) J Francisco Saraiva de Sousa
44 comentários:
Bem, este post vai demorar a ser concluído, penso, porque optei pelo caminho mais espinhoso. Contudo, penso não haver uma ruptura radical entre Hegel e Marx e Heidegger possibilita mostrar isso contra ele mesmo. O pensamento de Hegel é empírico de ponta a ponta, até mesmo no "pensamento de Deus antes da criação do mundo" = Lógica = Ontologia. Ou, por outras palavras, intramundano, intratemporal e absolutamente imanente. O seu "naturalismo" é "ateísmo consumado". Por isso, a inversão materialista não faz sentido. Porém, pensar a dialéctica como processo não-concluído, aberto ao futuro e ao novo, como faz Bloch, recoloca o problema da verdade, cujo critério em Hegel era a circularidade: a história tinha chegado ao fim e este reconduzia ao começo. Daí que Hegel não visse a dialéctica como método. Eis o problema que se coloca a uma dialéctica que recusa a ideia da história estar acabada: o verdadeiro neste caso é o que ainda não é. Porém, não desejo romper com a lembrança história: a rememoração do passado e da tradição e, por isso, oscilo entre essa memória e a imaginação/consciência antecipadora. Resolver esta oscilação é abrir o caminho a uma nova filosofia para o nosso tempo indigente.
Esta a (re)ler a "ciência da lógica" de Hegel: acho muito difícil fazer melhorias substanciais que não sejam uma retomada daquelas que lhe foram feitas por Marx e pelos marxistas. A tarefa é actualizar a dialéctica num tempo indigente e a dialéctica prevê o modo como pode ser actualizada. A filosofia torna-se novamente abstracta.
Ah, utilizei o termo actualidade no sentido hegeliano..., de resto desenvolvido por Bloch ou mesmo por Benjamin. A indigência do nosso tempo, o da consciência feliz, obriga-nos a destruir esta figura metabolicamente reduzida de consciência e confrontá-la constantemente com a sua possibilidade real: crítica da ordem existente em todas as suas esferas e crítica da ciência positivista. A ciência é, neste momento, inimiga da liberdade. Sem compreender isto não podemos melhorar o mundo.
A crítica da ciência é a crítica do (conhecimento) matemático, da lógica formal, do positivismo, da filosofia analítica, enfim dessa treta toda. O resultado é sempre o mesmo: glorificação do estado de coisas existente. Consciência reduzida! Mediocridade visceral e viscosa! Filosofia murcha da treta interminável! À partida seriamos conduzidos a uma ontologia dualista, contra a qual Hegel ergue a sua voz, em momentos decisivos em que a história é reduzida à ontologia = lógica dialéctica = pensamento de Deus antes da criação do mundo. Hegel nega a existência de um outro mundo transcendente ou além deste mundo em que vivemos: a sua metafísica reconhece apenas a existência da realidade-objectiva. A finitude é radical e assenta na mortalidade. Mas, no plano ontológico, temos a natureza (identidade/espaço) e a história (negatividade/tempo): aqui está a dificuldade devido à ambiguidade de Hegel.
Ou, invertendo Althusser, retomando Hegel: a verdade não é do domínio da ciência "experimental". Um rasgo de génio: a ciência apoderou-se das noções filosóficas, mas sem ter a explicitação do concreto como tarefa. É abstracta!
Nevou no Porto, depois chuveu e está, acima de tudo, muito frio: um gelo total.
Hello,
aqui n neva mas está um frio do caracol! Só se está bem à lareira :)
"Europeana" já está on-line, maior base de dados literários, museológicos, etc. da Europa
http://www.europeana.eu/portal/index.html
http://www.youtube.com/watch?v=cwHVie7GpNw&
Tentativa de cimentar a identidade europeia: o hálito de Atena ou o último suspiro?
Hummm, talvez o último suspito!
Aqui também está muito frio e, com a temperatura a descer, é capaz de vir aí um nevão, não sei, porque o Porto está no Douro litoral.
Olá, Francisco!
Até hoje não me aventurei no amplo universo hegeliano. Hegel sempre me impressionou pela vastidão dos seus projetos. Gostei do tema que vc escolheu. Para mim, será uma boa oportunidade de compreender a antropologia dialética.
Um abraço!
Estou muito triste com este massacre na faixa de Gaza...
Olá André
De facto, Hegel ainda não foi completamente esclarecido: é um filósofo difícil, profundo e anulador do outro. Ele disse praticamente tudo e antecipou-se aos seus críticos, reduzindo-os a comentadores quase marginais.
Aqui está muito muito muito frio.
Bom ano novo!
Triste?
É antes indecente! Obsceno! São uns criminosos! Mas o que se poderia esperar de um estado fundado de forma absolutamente imoral? Eles só conhecem o acto da rapina!
Bom Dia Fraulein Else
Hoje o sol domina o dia.
Estou a aprofundar Hegel, dando muita atenção ais escritos de juventude. Em Portugal, tira-se um curso de filosofia, durante o qual cada professor diz umas palermices sobre um ou dois autores, sem aprofundar nada. Ora, ser filósofo implicar dominar toda a história da filosofia, pelo menos nas suas linhas gerais de desenvolvimento, conhecendo bem os autores significativos de cada epoca, ter uma visão do seu desenvolvimento curricular, conceptual e estrutural, e alinhar por uma problemática. Nada disso acontece em Portugal: tudo tretas. Isto para dizer que Hegel bem lido é um vasto mundo que continua a iluminar o nosso tempo indigente: ele lutou por um tempo racional e reconciliado, acompanhando de perto todos os seus acontecimentos; porém, podemos ver nele o nosso tempo pela negativa ou avesso. A força da filosofia dá-nos ânimo e armas para continuar a lutar por um mundo melhor, contra a "indiferença da segurança". (Ah, Hegel leva-nos a Aristóteles!)
É uma grande verdade! Há filósofos completamente desprezados, passados ao lado, como se n existissem! E no departamento da Nova, um caso flagrante é precisamente o de Hegel! Como tirar uma licenciatura em Filosofia sem conhecer bem, (pelo menos!), os grandes filósofos? Mas um professor denunciava isso nas aulas que é, de resto, uma pessoa bastante corajosa e íntegra. A mim foi-me introduzida a "Estética" e a "Fenomenologia do Espírito" de modo muito ligeiro! Mas penso que haja erros grosseiros, a este nível curricular, por todas as faculdades de Filosofia. Deveriam ser postas a nu, inquiridas e avaliadas, mas nada se faz, porque os professores têm estatuto de semi-deuses.
Exacto, devemos demolir esse estatuto de semi-deuses com pés de barro. Já começámos a quebrá-los. Ao estudar este período da história da filosofia, fico com saudades desse tempo em que havia diálogo entre os grandes. Com professores desse calibre, até um idiota torna-se esperto. Nós, aqui em Portugal, nunca tivémos mestres: os professores não ensinam nada. E, por isso, é difícil iniciar uma investigação genuína, é como partir sozinho para uma lnga caminhada pelo deserto que é este luso-país, triste e ignorante e invejoso e maldoso. Mas, segundo Hegel, se nascemos escravos (ser português é ser escravo por destino positivo), podemos conquistar a nossa libertação, aniquilando os senhores da merde!
Uma dos aspectos que sempre me intrigou, quando andei a estudar Filosofia, foi a falta de contacto com a realidade. Era-nos, primeiro, incutido o método de "morte do autor" à Barthes, (obviamente sem ser assim explícito), focando-nos exclusivamente em close reading dos textos, como se eles valessem independemente do contexto, autor, etc. Em segundo, era-nos incutido que os problemas de ontem, são os de hoje, alienando-nos dos acontecimentos factuais, como se fossem meros "fait-divers" que os outros (os não-iluminados) se ocupariam. Enfim, "vivíamos" nas catacumbas, como eu me lembro de lhes chamar, por termos aulas em caves e estarmos, definitivamente, arredados do mundo.
Gostei da imagem das catacumbas que faz lembrar a caverna de Platão, a qual lida com os olhos de hoje mostra onde estamos. Eu associo isso ao predomínio do neoliberalismo: o pensamento único, a mesma cartilha económica que desvaloriza tudo o que não seja riqueza material e bolsa.
Aqui no Porto o curso de filosofia é mesmo uma Treta inútil e os professores são mesmo burros! É uma vergonha! E um clima de má-língua e de golpes baixos! Um salão de tias do chá com pêlos na venta! Um horror antifilosófico!
Sim, esses autores recentes podem ser esquecidos. Devemos regressar atrás e tentar retomar o verdadeiro pensamento. Os ditos filósofos do nosso tempo (os últimos 30 anos ou mais) produziram um modo desesperado de ser submisso à economia dominante: destruiram todos os conceitos que apontavam para outro princípio de realidade, desarmaram-nos e tornaram-nos submissos e patetas!
Fez-me lembrar a carta aberta dos alunos da Faculdade de Economia de Sorbonne que se revoltaram contra o domínio do neoclassicismo, e da falta de confronto com a realidade dos seus modelos de análise! Chamaram ao seu movimento post-autistic-economics, precisamente, denunciando o instrumento analítico neo-clássico de autista! É precisamente isso que verifiquei qd me licenciei.
E, lamento discordar consigo, mas devemos analisar a realidade tal qual como ela é hoje, ter uma compreensão total dos fenómenos do mundo contemporâneo, e isso n sucede. N significa, necessariamente, estudar filósofos de hoje, mas tomar em conta as idiossincrasias de hoje e saber interpretá-las.
Sim, essa compreensão actual está quase ausente na filosofia de hoje, no sentido desta se alhear do rumo do mundo, numa atitude de vencida. Desconstrói-se, aliena-se em si mesma, fechando-se ao mundo actual. Retomar o pensamento é pensar a nossa actualidade e não desistir de a iluminar. Mesmo a economia precisa de retomar o pensamento anterior para fazer face aos actuais problemas: o optimismo que dominou foi optimismo bolsista que produziu a bolha especulativa que nos vai fazer passar por maus momentos. Tudo foi dado como adquirido e seguro, mas 11 de Setembro e a crise mostram que nada está seguro, nem mesmo a democracia. Pode ser que surja uma consciência inquietante e esta poderá ser uma nova oportunidade. A ligação da filosofia com a política e a história efectiva é fundamental.
Reli o texto de Gadamer sobre Hegel e os gregos e fiquei novamente desiludido: deixou escapar a admiração de Hegel pela bela alma grega, tanto no domínio estético/religioso como no plano político-histórico.
Sim, a Filosofia, como a Arte contemporânea, na sua atitude de se preservar autêntica e incorrupta, remete-se ao silêncio. Mas penso que não seja esta a melhor atitude: nunca apreciei resignação estóica! Sou uma Amazona! :)
Sim, Hegel amava os gregos!
«Quem não conheceu as obras dos Antigos viveu sem conhecer a beleza.»
Tenho esta frase de Hegel sempre comigo, como oração, para nunca me esquecer da verdadeira fonte de beleza e verdade! :)
Se a compreendi bem, a economia é autista no sentido de considerar que tudo é economia: a sociedade e a cultura, bem como o mundo da vida, são absorvidos, isto é, colonizados, pela economia. Porém, este autismo económico decorre da própria natureza do capitalismo e esta é autodestrutiva. Só retomando a crítica da economia política podemos fazer frente a esse autismo. Isto significa reatar a pesquisa económica e política onde ela foi abandonada pelo pensamento único.
Quando digo que o pensamento filosófico contemporâneo é tecnocrata, não é no sentido de ter revelado a essência da tecnocracia e do pensamento único, mas no sentido de ter abamdonado a missão de pensar a realidade concreta no seu devir. No fundo, abandonou a própria filosofia que devemos retomar onde foi abandonada e de modo crítico, porque nesse entretanto aconteceu algo que devemos compreender.
Estive a ler o post do nosso amigo Fernando Dias que fala da reificação do mundo numa perspectiva que anula a crítica: um conceito crítico lido à luz de um pensamento afirmativo. Reificação foi um conceito forjado por Georg Lukács, um marxista de inspiração hegeliana. A reificação, o estranhamento e a alienação são conceitos elaborados por Hegel e Marx para pensar a condição moderna do homem. Porém, há uma alienação individual e subjectiva que é, na sua essência, afirmativa: glorifica o sistema estabelecido. Uma forma ou figura da consciência satisfeita com a sua escravidão! O silêncio de que falou no seu comentário!
Sim, é autista, poque submete a realidade aos seus princípios e equações, sistematiza tudo à sua medida. Portanto, falseia a realidade.
Sim, se calhar, em tempos indigentes, o melhor é mesmo a retirada... não sei :(
Ah, a negatividade é ontológica; no plano fenomenológico corresponde-lhe a liberdade humana que é criação do novo: a liberdade traz mais-valia ontológica ao mundo, criando um mundo da cultura e da técnica, o mundo humano que é criação do homem. Etc, etc... A razão observadora é incapaz de compreender isto porque nega a negatividade e, portanto, a liberdade, a razão prática, a vontade... A lógica dialéctica de Hegel é ontologia e deve ser vista como tal a partir do filósofo que atingiu a sabedoria: Hegel. Kant foi superado por Hegel: a coisa em si foi abolida.
O mundo do entendimento de Kant cedeu ao mundo da razão dialéctica que visa a reconciliação, sob inspiração grega. Como diziamos atrás, é preciso conhecer antes de tentar avançar com novos conhecimentos.
Exacto, o cálculo falseia a realidade. Por isso, Hegel podia dizer que a única ciência da realidade era a filosofia: a entrega total ao objecto de que fala na fenomenologia. :)
Mais outra curiosidade: tanto Hegel como Marx instalam-se no mundo histórico e não tanto no mundo natural: este não foi produzido pelo homem, mas a história é criação do homem e, por isso, podemos compreendê-la. Esta ideia vem de Giambattista Vico, admirado por ambos!
G. Vico escreve na "Ciência Nova":
Parágrafo 331:
"(...) todos os filósofos esforçaram-se seriamente por conseguir a ciência deste mundo natural, do qual, porquanto Deus o fez, só ele possui desse a ciência; e negligenciaram o meditar sobre este mundo das nações, ou seja, mundo civil, do qual, porque o haviam feito os homens, dele podiam os homens conseguir a ciência".
Anúncio do historicismo: o mundo das nações foi feito pelos homens, diz Vico. Hegel procurou conhecê-lo como uma totalidade concluída pela luta de Napoleão e revelada pelo filósofo, ele próprio. Marx deseja transformá-lo de modo a abolir a alienação e a exploração.
Parágrafo 236, onde Vico fundamenta este espanto: o desprezo pela história feita pelos homens:
"A mente humana é naturalmente inclinada com os sentidos a revelar-se fora no corpo, e com muita dificuldade, por meio da reflexão, a compreender-se a si mesma".
Hegel opõe ou completa a ontologia natural dos Gregos com a ontologia histórica: a história feita pelos homens é revelada no e pelo discurso do sábio, após estar concluída. A filosofia é o pássaro de Minerva que levanta voo ao anoitecer, quando o mundo foi concluído pela acção do homem. O fim da história é o fim da filosofia que, ao a revelar, se converte em sabedoria, ciência absoluta.
A propósito da nossa conversa anterior, sobre o contexto, basta comparar as leituras de Hegel feitas por Hyppolite e Lukács: a primeira existencializa Hegel. omitindo o que não lhe interessa; a segunda dá-nos uma visão viva de um pensamento que enfrenta a realidade do seu tempo, mostrando de que modo Hegel introduziu as categorias económicas na sua filosofia, desde o período de Yena. Porém, há espaço para todas as leituras, desde que haja alguma mais viva e concreta para nos orientar na erudição conceptual ou no comentário "violento".
A alienação resulta dessa leitura que Hegel fez da economia clássica (Smith) e a sua concepção do dinheiro antecipa o fetichismo da mercadoria de Marx, a reificação tal como a viu Lukács. Ao destacar a objectividade do dinheiro, a sua coisidade, Hegel viu claramente que a essência última do dinheiro reside numa relação social entre homens. Hegel introduziu a economia no pensamento filosófico e Marx elaborou uma teoria rigorosa da estrutura económica da modernidade, o capitalismo. Ora, o actual pensamento filosófico, salvo raras excepções, abandonou tudo às ciências sociais, entregando-se a jogos de palavras e a auto-alienações: afunda-se em si mesmo.
Aliás, esse conhecimento vivo foi trazido pelo marxismo: os dois volumes de "Teoria Crítica" de Horkheimer integra ensaios filosóficos que tratam a evolução das filosofias sem desprezar o seu diálogo com os problemas reais da epoca a que dão resposta. Mas, no nosso ensino da filosofia ou mesmo da ciência, não se estuda nada: cada um opina até esgotar a hora. Por isso, somos o país mais indigente da Europa: os semideuses são ignorantes que fizeram da Universidade uma fonte garantida de remuneração sem contrapartida e sem esforço. Ou seja, ganham a vida sem desempenhar qualquer trabalho e, quando dizem que trabalham, preferem entregar-se às tarefas de combater os ditos colegas e à má-língua.
Não admira que a pseudo-filosofia do DMurcho traga para o centro da discussão o INSULTO, cuja "arqueologia" ignora: opinião e apenas opinião fora de qualquer teoria ou espaço teórico. Jogo de palavras sem conteúdo, sem determinações de conhecimento. Um vazio de pensamento! :(
Ah ah ah!
Tema interessante o do insulto! Fui espreitar, mas o que é insultuoso é ler de um auto-denominado filósofo, um ensaio que mais parece uma composição de um rapazinho liceal, comedido e sem imaginação. E este meu contra-insulto até nem é muito severo. :)
Sim, ao menos se não criam, que pelo menos traduzam! Se sabem ler grego, latim, italiano, alemão, dinamarquês, chinês e maltês... ao menos que se empenhem em facilitar aos menos poliglotas as grandes obras de filosofia.
Partilho essa ideia: sem a boa tradução das grandes obras, ninguém pode aprender filosofia (ou outra ciência) em língua portuguesa.
Quanto ao outro, é muito medíocre!
Estou com dificuldade em alinhar a estrutura do próximo post sobre dialéctica antropológica, porque não concordo com a própria leitura que Marx faz de Hegel.
Chamar idealista a Hegel, por causa da Ideia Absoluta, não me convence, porque nunca vejo Hegel a "abstrair-se" da empiria, logo ele que só reconhece a existência de um único mundo, aquele em que vivemos. Idealista no sentido de dar o primádo ao espírito sobre a "matéria". Mesmo na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Hegel afirma que a "união da alma e do corpo é um mistério incompreensível". Se fosse um monista idealista, não diria isto. Trata-se de um erro hermenêutico e Marx corrige-o quando, em vez de espírito absoluto, diz homem. A questão religiosa leva a cometer este erro, quando na realidade Hegel afirma "Deus está morto". Com a "religião revelada", Deus fez-se homem, logo o homem é deus, faz-se a si mesmo e cria o seu mundo que a filosofia hegeliana revela. Ver na Reforma luterana o início da modernidade é uma ideia excelente de Hegel, retomada por Max Weber e pelos marxistas, incluíndo Engels. A individualidade, a liberdade interior, é uma conquista cristã colocada na ordem do dia pela Reforma. E a liberdade é fundamental na filosofia de Hegel: o Estado deve garanti-la.
Enfim, vou pensar melhor. :)
É muito "medíocre", mas o F. n resiste em ir espreitar! ;)
Bem, está um frio q n se pode, até tenho de trabalhar com luvas. :(
Até não o espreito muito; os nossos amigos têm o link e á a partir desse link que espreito quando me quero rir. A mediocridade daqueles textos é a ausência de racionalidade e de um fio condutor: fala ou escreve sem dizer nada que mereça atenção.
Bem, continuo a ler os mestres e fui novamente reconduzido a Hobbes: Hegel inicia um caminho que Marx irá concluir ou levar até ao fim, despedindo o idealismo. A questão da teleologia na filosofia moderna é resolvida por Hegel a partir da economia e clarificada por Marx. Porém, somos confrontados com o problema da liberdade e necessidade e, neste ponto, tenho um "ataque".
O meu estudo conduz-me a esta ideia:
O idealismo alemão opõe-se ao empirismo inglés e, nessa luta que trava contra o empirismo, está em causa o destino da Filosofia. E, como diz Hegel, o empirismo implica o materialismo. A filosofia alemã defende-se antecipadamente do positivismo.
Ora, Marx é um herdeiro do idealismo alemão, cujo princípio de realização racional aceita. Logo, a sua inversão materialista não faz sentido: a história do marxismo não foi bem compreendida. O marxismo soviético converteu-o numa epistemologia ou teoria do conhecimento. É de certo modo um kantismo, aquele que foi superado pela dialéctica de Hegel. Isto significa que Marx retoma, desmistificando-a, a dialéctica de Hegel: não há ruptura. O marxismo é uma filosofia negativa, tal como a de Hegel: é crítica da sociedade existente que, neste tempo indigente, deve ser retomada. A ideia de Hegel rejeitada é a do fim da história: esta não está realmente concluída enquanto o capitalismo continuar a produzir pobreza, exploração e corrupção e a devastar a natureza. A noção hegeliana da substância como sujeito conduz à noção de realidade como processo e de autodesenvolvimento consciênte, à noção de realização que implica a existência humana e à noção de liberdade e de história (Geist). O espírito de contradição define a dialéctica. A fenomenologia eleva a consciência individual até ao Espírito: o eu é nós e nós é o eu. o homem "socializado" = universal.
A dialéctica não estará morta quando morrer o último homem ou toda a resistência for abolida. O desafio da nossa epoca é esse: saber se o homem ainda continua a ser humano, isto é, um agente racional e livre. É uma época de regressão cognitiva e de atrofia mental: a destruição da tradição leva ao animal metabolicamente reduzido. Ao contrário de Lukács ou mesmo de Bloch, não vejo no rememorar da tradição uma atitude de adaptação ao existente. A Er-Innerung de Hegel preserva a tradição, ou seja, apropria-se da tradição que é recordada e interiorizada. Humaniza o homem, socializa-o, ao mesmo tempo que o leva a cumprir as promessas traídas. Penso ser possível reconciliar a memória e a esperança desde que se encare o mundo histórico como processo de realização ainda não concluído.
http://www.youtube.com/watch?v=ur5fGSBsfq8&
Oi F.! Estava a rever este sketch, absolutamente genial, e lembrei-me de si, pq no jogo, Marx estava certo! :)
Assim, nesta perspectiva, posso ver a fenomenologia como "hominização", como humanização ou como socialização. Nesse sentido, é antropológica: a atitude de alienação é superada pela autoconsciência reflexiva. O indivíduo torna-se homem humano, isto é, homem histórico: um agente livre e racional que procura impor a racionalidade à ordem do cosmos (natureza + sociedade). É assumir responsabilidade e autodeterminação. É ser um ser pensante capaz de agir racionalmente.
Idealista é o pensamento da identidade, aquele que glorifica a ordem existente como se esta fosse uma realização do conhecimento racional. A dialéctica não é nem idealista nem materialista: é movimento que se movimenta na própria realidade conceptual e conceptualizada. A realidade é aquilo que é moldado pela razão.
Oi Else
Vou ver! O frio não ajuda muito a realização desta tarefa, mas estou a descobrir os erros cometidos. Não vejo Hegel associado à Restauração alemã e estou fascinado com a sua utopia napoleónica: a revolução capaz de por fim ao "absolutismo". A situação reaccionária alemã faz lembrar o actual "Terreiro do Paço" "salpicado de encarnado": "suborno, capricho e corrupção". Ele tinha a Reforma, nós nem isso tivémos: conservação do mesmo. Contudo, é difícil colocar tudo isto em palavras certas e actuais. :)
Quase todos os intelectuais e artistas veneravam a figura de Napoleão. Depois da sua derradeira derrota em 1815, veio o tédio, o "ennui" que retrata Baudelaire. Este desalento é indispensável para perceber o decadentismo do fin-de-siècle e até a apatia pós-moderna de hoje.
Ya, esse período continua a querer dizer-nos alguma coisa: Goethe, Hegel, Balzac... Nós é que estamos mesmo no fim de alguma coisa. Hegel, num escrito de juventude, criticou a cultura do capitalismo: muito interessante. Logo que tenha tempo partilho. :)
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