domingo, 18 de março de 2012

Sobre os vampiros do Porto

Fotografia artística de Herb Ritts 
Nesta nossa triste peregrinação pela terra somos actores que desempenhamos papéis que nem sempre resultam da nossa escolha. Por detrás desse emaranhado de papéis, há um eu que não se atreve a revelar-se a si próprio, nem sequer nas páginas mais íntimas de um diário: tudo o que diz ou escreve sobre si próprio não é ele próprio. O eu não se revela a si próprio: mostra-se e oculta-se ao mesmo tempo. A gratuitidade da vida revela-se em cada um dos momentos vividos por esse estranho hóspede da casa do cérebro. Se a vida não fosse gratuita, o cérebro não seria a máquina de fabricar ilusões que de facto é, para suportar esse pesadelo que é a vida. A angústia fundamental que se apodera da nossa alma resulta do carácter gratuito da vida, fazendo dela uma tragédia, da qual nem sequer o dramaturgo mais exímio consegue escapar: a solidão acompanha-o eternamente. Quando saí de uma discoteca do Porto, já na rua, fui interceptado por um vampiro, o vampiro A., que durante vários anos procurou destruir a minha vida. Escrevo estas palavras sob o efeito da febre, provavelmente resultante de uma dentada de vampiro infectado por sangue corrompido. Estou sozinho e tenho toda a madrugada por minha conta, o que nem sempre sucede. Desde que fiquei órfão deixei de ter alguém em quem confiar. E, quando se perde a confiança nas pessoas que nos rodeiam, somos frequentemente assaltados por um pensamento demasiado íntimo: alguns caracterizam-no como o medo de estar completamente só, num mundo que nos é estranho e no qual não podemos intervir, mas não é tanto a solidão que assusta, mas sim a maldade que nos cerca nas silhuetas espectrais dos outros e que, aos poucos, nos estrangula quando menos esperamos: a maldade que nos rouba o sossego e que nos afasta dos caminhos de uma vida não-danificada. Só tomamos consciência da solidão quando perdemos a confiança naquelas silhuetas nocturnas que nos rodeiam por todos os lados. Nesse momento, receamos que nos roubem todos os vestígios da nossa vida. E um único pensamento nos consola quando tememos pela nossa vida: o pensamento da morte, a encenação quase onírica da nossa morte própria e a invocação dos mortos queridos. Com efeito, é deste pensamento ritualmente convocado dia após dia que renascemos novamente para a vida, na esperança de que um dia o carrasco se encarregue da sua própria morte. Adormecemos e, ao amanhecer, começa um novo dia que não sabemos se será melhor do que o dia anterior que findou com o pensamento da morte própria. Não o sabemos de antemão e não adianta consultar o horóscopo ou lançar as cartas do Tarot, para sondar o futuro próximo ou distante: estamos vivos e preparados para lutar contra a adversidade anónima de outrem. Herdei da minha mãe a coragem de ser e do meu pai, a percepção da beleza da natureza. Talvez um dia venha a ter a oportunidade para unificar a minha dupla-herança numa única peça do meu destino. De facto, se há uma lição a tirar do princípio do egoísmo genético, é a de que não podemos viver sem os nossos congéneres numa sociedade, num tempo e num espaço que não escolhemos: a sexualidade condena-nos a essa fatalidade, a fatalidade de viver com quem não queremos viver, a partir do momento em que suspeitamos que a vida não tem sentido. Se a sociedade é forjada por rivalidades, a começar desde logo pelas rivalidades entre irmãos, como pressupõe o princípio do egoísmo genético, então estas rivalidades só podem existir na ambiência do amor e da conexão. Ódio e amor são as duas palavras fundamentais inscritas no genoma humano, donde resulta ser este um permanente campo de batalha. O gene egoísta precisa de outro gene egoísta para atingir o seu propósito básico: fazer uma cópia de si próprio. E nós que somos prisioneiros da genética, desejamos no entanto o impossível: o predomínio da vida e a permanência do amor. Quando penso na minha mãe, já defunta, vejo o mundo com mais confiança, tal é a força do seu espírito. Começo a ficar com sono. Devo ter adormecido, porque acordei com novo ânimo: persistir na minha luta contra a maldade humana, sem me deixar encantar pelas vozes sedutoras dos vampiros que cativam os mortais neste tempo tão carente de experiência. Quando uma pessoa, num determinado momento da sua trajectória vital, olha para trás e diz "foi em vão", não é apenas uma avaliação que faz do seu passado, é sobretudo o pensamento horrível de desperdício vital e de perda de tempo que lamenta. Vida danificada: eis a expressão usada por Adorno para designar este pensamento avassalador. Mas, dada a irreversibilidade do tempo, essa flecha acelerada que nos leva até aos braços da morte, o mais grave é o facto de não podermos recuperar de algum modo o tempo perdido, à maneira de Proust, porque o tempo desperdiçado na companhia das silhuetas nocturnas está irremediavelmente perdido para a alegria: aquilo que poderia ter sido já não pode ser. O tempo e a morte são parceiros íntimos no jogo que preside à vida. Guerra Junqueiro disse num dos seus poemas que o tempo era um coveiro. De facto, o fluir do tempo encarrega-se de enterrar tudo, mas, quando enterra uma parte significativa e substancial da nossa vida, a parte do sonho, da esperança e da promessa, enterra-nos a nós próprios, sem nos dar uma segunda oportunidade, a oportunidade de escolher um novo projecto de vida, um novo começo. A vida transforma-se, nesse momento em que é problematizada pelo balanço feito pelo pensamento livre de ilusões, em angústia profunda: o projecto que poderíamos ter sido já não é viável. Matámos todas as nossas possibilidade e, quando as queremos despertar, já é demasiado tarde. Da angústia que captura a nossa alma não nos podemos livrar, nem sequer através da memória criadora, a menos que sejamos demasiado fracos. A vida que se torna estranha a si própria confronta o seu suporte com a sua verdade, à luz da qual o interroga sobre a sua responsabilidade pelo desperdício do seu tempo com pessoas e coisas que não mereciam a sua atenção vital. Ninguém no seu perfeito juízo escolhe uma vida danificada que o afunda na morte precoce. É talvez a genética que nos obriga a correr riscos desnecessários na vida, numa oscilação permanente entre a aliança e a rivalidade. O homem sonha com o amor-dádiva, o único que a seu ver o pode libertar da prisão das conexões perigosas. Rivalidade e aliança são dois conceitos nucleares da genética moderna. Hoje, quando acordei, fui logo tomar três cafés, e, neste preciso momento, acabo de tomar o meu quarto café do dia. Preciso de cafeína para pensar. O vampiro S. que me serviu este último café na esplanada tem um hábito terrível. Quando lhe dou uma nota de 20 euros para pagar o café, ele faz-me o troco como se lhe tivesse dado uma nota de 5 euros. Uma voz sepulcral diz-me aos ouvidos: "É a crise que se instalou na restauração!". Engana-se, porque é o velho espírito de pilhagem e de trapaça dos portugueses que faz o vampiro S. agir deste modo tão previsível. Mas este não é o pior tipo de vampiro que habita a cidade do Porto. Quase todos os vampiros que tentam apoderar-se do meu sangue têm nomes começados pela letra A. Estranha coincidência: a primeira letra do alfabeto dá o nome ao vampiro A., igual a tantos outros vampiros. A vida do homem decorre sob o signo da guerra, a mãe de todas as coisas. A guerra, a luta de todos contra todos, é a matriz desse enredo tecido de alianças e de rivalidades. Afinal, a aliança não é mais do que a formação de um grupo para lutar contra outro grupo rival. Cada um de nós pertence a uma tribo, urdida por mil e uma artimanhas e por rivalidades internas confessas, que só alcançam um estado de paz quando o nosso grupo se une contra outro grupo estranho. O princípio do egoísmo genético não nos oferece outra alternativa, a não ser a do nós unidos contra os outros estranhos, porque não pertencem ao nosso grupo. O homem está condenado a lutar para viver e, por isso, não adianta tentar limar as arestas deste imperativo vital, ao qual a própria individualidade não é alheia. Com efeito, a nossa individualidade forma-se, como já Hegel sabia, na luta que travamos contra os outros: cada um dos seus traços distintivos traz a marca de uma vitória contra os outros que tudo fizeram para bloquear o nosso processo de diferenciação e de individualização. Lembro-me que, quando fui lançado no Liceu de Alexandre Herculano no Porto, vindo do estrangeiro e de um colégio particular, me senti cercado por um bando primitivo de vampiros que odiavam a nobreza da minha personalidade. Mas não podia queixar-me, porque essa tinha sido a minha decisão: terminar o curso complementar numa escola pública do Porto. A mediocridade geral dos professores não me surpreendeu: eu sou o autor do projecto em andamento que se faz a si próprio. Mas tomei consciência daquilo que sempre soube: os vampiros perdem a sua individualidade quando vivem em bandos. Ou talvez fosse melhor dizer: os vampiros carecem de individualidade. O meu excesso de individualidade repele e atrai, ao mesmo tempo, os vampiros, porque sou tudo aquilo que eles não são e que procuram ser, mediante um acto de apropriação ilícita. Nada mais assusta aquele que se abriga no azul anímico da noite estrelada do que ser sugado pelos vampiros que o rodeiam por todos os lados. O imaginário lendário dos povos associa a figura do vampiro à figura de um morto-vivo perverso que, à noite, sai da sua tumba para ir caçar vítimas humanas vivas, com o objectivo de lhes sugar o sangue vermelho, símbolo de vitalidade, a vitalidade de que necessitam para continuar a viver nas trevas. O vampirismo, mesmo nesta forma lendária e cinematográfica, é uma espécie de parasitismo. Porém, nem sequer Drácula era tão cruel como os novos vampiros arregimentados e massificados que circulam nos lugares públicos da moderna sociedade urbana. Talvez devido a uma mudança de perspectiva e a uma degenerescência genética, os vampiros urbanos desejam mais do que a apropriação da energia vital dos mortais: eles desejam absorver o eu do indivíduo que resiste à massificação e apropriar-se literalmente da sua vida, da sua acção, da sua obra, das suas emoções, dos seus sentimentos, das suas ideias, do seu estatuto social, dos seus bens, do seu pensamento, dos seus desejos, enfim dos seus amigos, conhecidos e familiares. Outrora o vampiro sugava o sangue dos vivos para dar vida ao seu corpo morto; hoje tudo faz para absorver a alma daqueles que ousaram traçar a sua trajectória de vida no mapa social. Vampirar é tornar "seu" aquilo que pertence ao outro, apropriando-se ilicitamente até mesmo da sua identidade e da sua intimidade. Este novo tipo de vampirismo egológico está intimamente ligado à sociedade de consumo: consumir pessoas, o seu eu localizado no mapa social, tornou-se uma forma de vida para todos aqueles que não possuem um eu forte. Ora, este consumo de identidades alheias é parente próximo do canibalismo: os novos vampiros que sofrem de fragilização do eu, desenterram práticas arcaicas que deixaram de ser visíveis há muito tempo. O vampiro A. é um consumidor nato daquilo que não lhe pertence. Julgo que a arte de copy paste foi uma invenção do vampiro A., porque ele não só toma emprestada a vida dos outros, como também lhes saca as suas obras de pensamento: tudo o que exibe como se fosse "seu" pertence a alguém, cujo nome é sistematicamente omitido para não ensombrar a sua pseudo-criatividade e a sua pseudo-originalidade. Mas há mais: Julgo que todos os portugueses são meros clones do vampiro A., o pai ancestral de todos aqueles que tomam emprestada a vida dos estranhos sobre-individualizados que habitam o mesmo território com eles. O exílio a que os vampiros A. condenam os portadores de eu forte torna-se preocupante quando os leva a perder a confiança nos outros, mas nada está perdido: a vida partilhada encarrega-se, mais tarde ou mais cedo, de arrancar o véu que cobre as nossas ilusões e adições sociais. Até mesmo aqueles que comem, dormem, trabalham ou vivem connosco acabam por perder a auréola, tornando-se aquilo que sempre foram: meros vampiros de tipo A., a que estávamos ligados pelo hábito e pela inércia. O tempo das promessas apaga-se subitamente, e, no seu lugar, emerge repentinamente o tempo vazio que nos prepara para a morte, da qual não há regresso. Tal como Prometeu roubou o fogo a Zeus para o dar aos homens, eu roubei o segredo aos portugueses, para o expor ao julgamento mundial. Os clones do vampiro A. são Ninguém, essa terrível figura corporal da escassez de existência que invade a nossa vida em todas as suas dimensões espessas, não para a fortalecer, acrescentando-lhe valência ontológica, mas para a enfraquecer, procurando anular o projecto que cada um de nós é. O Ninguém - o anti-herói deste conto! - não tem espírito: esta é a sua doença mortal que, pelo seu comportamento promíscuo, se alastra a toda a sociedade. Não sei até que ponto a figura vicentina do Parvo se coaduna com o Ninguém que estou a elaborar, em função do perfil do vampiro A. Mas suspeito que o Parvo afirma ser "ninguém" para se demarcar e se distanciar daquele "alguém" que é pelo facto de exibir publicamente uma máscara colectiva, adornada ou não com pedras preciosas, igual a tantas outras, por detrás da qual não há um hóspede genuíno. Se esta leitura estiver correcta, e eu julgo que está, então o "ninguém" vicentino prenuncia de algum modo a máscara anónima e impessoal do Ninguém, cujo perfil domina o nosso tempo indigente. Privado de espírito, o Ninguém procura afirmar-se no mundo comum pela apropriação ilícita do espírito subjectivo e objectivo do outro e pelo consumo conspícuo de objectos, fetiches, maquilhagens, próteses, tecnologias, comportamentos estereotipados, ideias e identidades, para a construção dos quais não deu nenhum contributo significativo, embora procure convencer-se a si próprio e convencer os outros de que tudo isso é sua criação. A alma de Georg Lukács acabou de me sussurrar aos ouvidos: "Converteste a tua angústia numa concepção do mundo!" Mal ela sabe que, com a ajuda do meu feiticeiro invisível, nesta luta constante contra os vampiros que tem sido a minha vida, me transformei num vampiro milenar, o mais antigo da estirpe dos vampiros nobres, aquele que nasceu para os matar. Ninguém que tenha ousado desafiar-me conseguiu viver muito tempo depois disso. Georg Trakl farta-se de rir, dizendo em voz alta: "Tu és o Sebastian, o Helian, o Elis que anunciei para matar a estirpe maldita". Já não sei bem quem sou: Serei ainda humano ou serei antes a nobre figura azul que habita a eterna noite, tendo por companheiras as almas brilhantes do outro mundo? De uma coisa estou certo: neste mundo despovoado de almas brilhantes, sou mais lúcido e sábio quando estou a dormir e, sobretudo, a sonhar do que quando estou acordado, lançado entre os vampiros. Acordei do sonho nocturno depois de ter assassinado o vampiro A., sem lhe espetar uma estaca de madeira no coração. Descobri que os vampiros podem ser privados da sua aparente imortalidade clonal quando lhes damos a beber sangue contaminado. No meu sonho redentor, o vampiro A. morreu de doença contraída enquanto andava à caça de sangue fresco, para os lados de Leça, Gaia e Águas Santas. O que fiz para o matar? Transformei um sapo numa figura afrodisíaca, com olhos de cão abandonado, cujo sangue foi contaminado pelo velho feiticeiro africano. A doença consumiu-o até ao seu último suspiro vital. Enterremo-lo, porque já cheira a carne putrefacta. Depois deste acontecimento redentor, já posso mergulhar de novo no regaço sereno da noite azul. Matei com astúcia o vampiro que ousou tentar roubar-me a alma.

J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mais um conto! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, trata-se de um estranho conto que exige muita atenção por parte do leitor. É provável que as categorias tradicionais não funcionem na leitura deste conto. Há um novo mundo por descobrir.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, evitei a divisão em parágrafos para não quebrar o ritmo do próprio conto: o leitor atento descobre facilmente as mudanças; elas estão lá - bem evidentes. Se as descobrirem, terão uma perspectiva mais profunda do conto.

Chove Notícia disse...

boa analise psicossocial, eu estava procurando por outra coisa, mas foi uma boa reflexão a respeito do tempo e do vazio cultural da sociedade consumista. eu me sinto a deriva nesse complexo jogo de vampirismo social, meus pensamentos e individualidade não encaixam na vida prática da sociedade consumista, tento me adaptar para não morrer a deriva mas negligencio o tempo e as oportunidades como algo que não faz parte de mim...