«Há muito quem julgue que o Porto foi sempre, e é ainda, terreno sáfaro para a cultura do espírito. Cidade conhecida em todo o mundo pela fama do vinho que lhe usa o nome, terra eminentemente ciosa das suas ingénitas e tradicionalíssimas disposições para o balcão e para a oficina, há quem suponha que do Porto só saíram grandes industriais e negociantes - quando não apenas merceeiros e taberneiros boçais - e que, quanto a livros, por exemplo, não se conhecem aqui senão os de Dever-Haver. O Porto sabe que é essa a sua fama e não se dá ao trabalho de tentar destruí-la, de mostrar que não é bem assim. (...) Vou ter a honra de me ocupar hoje dos Portuenses que na época do Renascimento honraram esta terra pelo seu espírito culto e pelo seu talento, e tentarei mostrar que o Porto, nesse período intenso de renovação intelectual, não ficou extático na adoração do Bezerro de Oiro». (Artur de Magalhães Basto)
Magalhães Basto tentou esboçar o quadro da cultura do renascimento no Porto, mas não foi bem-sucedido neste empreendimento por causa da sua miserável visão do Renascimento: «Nos fins do século XV, os descobrimentos geográficos - portugueses e espanhóis - destruindo velhas concepções, demonstrando a inanidade de axiomas assentes e respeitados no transcurso de séculos, revelando horizontes novos à investigação e ao saber humanos, anunciavam uma esplendorosa alvorada. O Humanismo, essa paixão, levada ao fanatismo, das línguas e literaturas clássicas - que desabrochara, como quase não poderia deixar de ser, no país em que viveram Cícero, Virgílio, Ovídio e Horácio, Tácito, Tito Lívio e Suetónio, em que se falava uma língua continuadora directa da que estes falaram, em que se elevavam ainda os arcos triunfais e as ruínas do Coliseu, as esculturas e as inscrições antigas, onde, desde os séculos XIII e XIV, haviam surgido percursores do génio como Dante, Petrarca e Bocácio, em cujos centros de cultura encontraram carinhoso acolhimento os sábios gregos fugidos à invasão otomana - o Humanismo tinha desabrochado e irradiado da Itália. Conjugando-se com as novas verdades descobertas pelos marinheiros de Portugal à custa de anos seguidos de perseverança, de inteligência e de heroicidade em navegações mais ousadas que as do sábio grego ou do troiano, e fundindo-se com as tendências do Cristianismo e das nações ocidentais, como mostrou Burckhardt, o Humanismo produzia, afinal, esse incomparável reflorescimento intelectual, social e científico a que se dá o nome, tão sugestivo como pouco próprio se tomado à letra, de Renascimento. Inauguravam-se os Tempos Modernos...» (Magalhães Basto). Munido com este conceito de renascimento como revolução humanista, Magalhães Basto parte em busca do Porto Humanista, sem ter compreendido que, quando aparelhou quatro frotas de 1415 a 1471, entre elas a famosa armada da expedição de Ceuta, o Porto já era uma grande cidade marítima e comercial que mantinha intensas relações comerciais com Flandres, França, Inglaterra e países do Mediterrâneo e que promovia um conceito dinâmico de humanidade. A abertura ao mundo que define o Porto explica desde logo a facilidade com que muitas doutrinas políticas e filosóficas se aclimataram facilmente no seu solo: a cultura interna do Porto é, nos longos séculos da sua existência, uma cultura aberta ao mundo, não só às crenças alheias mas também às novas ideias, para já não falar das implicações económicas dessa abertura. Ora, a cultura de abertura ao mundo que caracteriza a cultura urbana do Porto, é, por definição, uma cultura da liberdade, intelectual e política. Max Weber estabeleceu uma distinção entre Binnenkultur e Aussenkultur que ajuda a compreender a cultura renascentista do Porto: a cultura urbana portuense é uma cultura indígena que, ao longo da sua história de contactos com o exterior, se abriu às culturas estrangeiras, tornando-se assim cultura cosmopolita. O conceito portuense de homem foi sempre-já um conceito dinâmico, lavrado e adquirido ao longo da sua história de contactos interculturais com outros povos da Europa e do mundo, como testemunham os belos textos renascentistas de Tomé Lopes e de Pero Vaz de Caminha. A maior parte dos historiadores portuenses não foram capazes de definir as linhas gerais da cultura indígena do Porto. Não basta afirmar que os portuenses têm espírito religioso sem fanatismos, aberto, tolerante, liberal, independente e autónomo, com os seus assomos de revolta contra todas as opressões, partissem elas do clero, da nobreza ou da realeza, para identificar a matriz da cultura indígena do Porto, até porque há um lado obscuro da alma portuense responsável pelo bloqueio periódico da própria cidade: a "experiência" ensina-me que os maiores inimigos do Porto são precisamente aqueles portuenses que usam o seu suposto orgulho "bairrista" para fechar as portas do futuro à Cidade Invicta. Há, portanto, um lado sombrio do Porto - o Grande Aldeão, como lhe chamou Almeida Garrett - que se revela à luz do dia nos rostos visíveis das suas personalidades públicas. Assim, por exemplo, Magalhães Basto, o ilustre historiador da cidade do Porto, embora tenha desejado esboçar a imagem do Porto Renascentista, acabou por cair na cilada da lenda da fobia portuense à instrução, devido ao fechamento da sua mente à cultura do espírito: o seu conceito de renascimento é de tal modo paupérrimo que o levou a procurar o Porto Renascentista lá onde ele quase não existia. A precariedade da cultura histórica e filosófica de Magalhães Basto reflecte-se fatalmente nas suas obras: a História do Porto, tal como a narra, é reduzida à mediocridade da sua própria mente, a qual ofusca os fragmentos do mundo portuense sobre os quais se debruça. Em vez de engrandecer o Porto, Magalhães Basto diminui o Porto, roubando-lhe o seu brilho natural: o Porto Renascentista elaborado por Magalhães Basto é uma mera importação do exterior, alcançada graças à acção das suas vereações que não se furtaram a tão grandes despesas para promover a vinda de bons mestres do exterior. Deste modo, o Porto torna-se estranho a si próprio: a sua cultura indígena é apagada pela cultura estrangeira. Magalhães Basto move-se num universo estático, precisamente o universo que foi abolido pelo renascimento, nomeadamente pelo renascimento portuense: «Com o Renascimento surge um conceito dinâmico do homem. O indivíduo passa a ter a sua própria história de desenvolvimento pessoal, tal como a sociedade adquire também a sua história de desenvolvimento. A identidade contraditória do indivíduo e da sociedade surge em todas as categorias fundamentais. A relação entre o indivíduo e a situação torna-se fluída; o passado, o presente e o futuro transformam-se em criações humanas. Esta "humanidade", no entanto, constitui um conceito generalizado, homogéneo. É neste momento que a "liberdade" e a "fraternidade" nascem como categorias ontológicas imanentes. O tempo e o espaço humanizam-se e o infinito transforma-se numa realidade social. Mas por muito dinâmico que o homem possa ser na sua interacção com a história, antropologicamente ainda é eterno, genérico e homogéneo. O homem cria o mundo, mas não recria a humanidade; a história, a "situação", mantém-se externa a ele. O conceito de homem não supera a noção de corsi e ricorsi, o movimento cíclico não se transforma numa espiral. Em certo sentido, através da análise concreta da psique e do comportamento humanos, os séculos XVII e XVIII alargam a investigação do homem, apesar da aparente regressão da concepção histórica da humanidade, tornando possível uma verdadeira antropologia histórica e a noção de autocriação do homem. De Hobbes a Rousseau, o passado da humanidade transforma-se - num plano superior - em história. Depois da Revolução Francesa, o próprio presente - em figuras tão importantes como Hegel e Balzac - se transforma também em história. Finalmente, com Marx e a negação da sociedade burguesa, é o próprio futuro que surge como história» (Agnes Heller). Quando lemos as obras dos historiadores portugueses do renascimento, ficamos com a impressão de que, para eles, ser humanista é saber falar fluentemente grego e, sobretudo, latim. Este é um critério muito dúbio para identificar a cultura renascentista, até porque o latim sempre foi a língua culta da Idade Média. Geralmente, a obra de Jacob Burckhardt é referenciada em quase todos os estudos sobre o renascimento italiano, mas no caso português os historiadores parecem não compreender uma das suas teses fundamentais: «Na Idade Média, as duas faces da consciência, a face objectiva e a face subjectiva, estavam de alguma maneira veladas; a vida intelectual assemelhava-se a um meio sonho. O véu que envolvia os espíritos era tecido de fé e de preconceitos, de ignorância e de ilusões; o mundo e a história apareciam com cores bizarras; quanto ao homem, apenas se conhecia raça, povo, partido, corporação, família ou sob uma outra forma geral e colectiva. Foi a Itália a primeira a rasgar o véu e a dar o sinal para o estudo objectivo do estado e de todas as coisas do mundo; mas, ao lado desta maneira de considerar os objectos, desenvolve-se o aspecto subjectivo; o homem torna-se indivíduo espiritual e tem consciência deste novo estado. Deste modo, se elevara outrora o Grego em face do mundo bárbaro, o Árabe em face de todas as outras raças asiáticas. Não será difícil provar que foi a situação política que teve o maior papel nesta transformação». Infelizmente, os historiadores portugueses comportam-se como se não tivessem lido, pelo menos, o Discurso sobre a Dignidade do Homem de Giovanni Pico Della Mirandola: «O desenvolvimento da personalidade está intimamente ligado à faculdade de conhecimento de si próprio e de conhecimento dos outros. Entre estes dois fenómenos, temos de colocar a influência da literatura antiga porque a maneira de reconhecer e de descrever o indivíduo, como o humano em geral, é determinada principalmente por este intermédio» (Burckhardt). Ora, a cultura portuguesa da Renascença acrescenta ao descobrimento do mundo a descoberta do homem, mostrando-o à luz do dia em corpo inteiro e despido. Magalhães Basto está certo quando diz que o Porto sentiu a gloriosa madrugada dos tempos modernos: o espírito portuense foi subitamente dominado pela ânsia de expansão, de dilatação do mundo, de infinito, e por uma curiosidade sem limites de ver, de saber, de conhecer. Porém, Magalhães Basto esquece que o infinito não é apenas um conceito matemático; ele é também um conceito social que deve ser "extraído" da literatura renascentista do Porto: não basta dizer que um poeta é "humanista", porque fala grego ou latim, para fazer dele um renascentista; a sua obra expressa ou não a concepção renascentista do mundo que urge analisar. De acordo com este critério, a cultura renascentista portuguesa ainda não foi verdadeiramente analisada: há muito trabalho teórico e editorial a fazer. Se os italianos fossem como os portugueses de hoje, nunca teriam despertado a Antiguidade Clássica, deixando-a esquecida nas prateleiras das bibliotecas ou enterrada sob o peso brutal do betão; mas, para nossa felicidade, o povo italiano soube celebrar e ressuscitar o seu passado: «Em Itália, é simultaneamente o mundo culto e o povo que prestam homenagem à Antiguidade e querem fazê-la reviver porque recorda a todos a grandeza passada do seu país» (Burckhardt). Os poetas quinhentistas portugueses ergueram a sua voz contra a febre dos lucros e de aventuras e contra a quimera do ouro, alegando que a epopeia dos mares - cantada por Camões - desviava a atenção do conhecimento de si próprio e dos outros. André Falcão dirigiu estes versos a André de Resende: «Noutro tempo valeu mais que o ouro o engenho, /Agora engenho tem quem tem mais ouro, /E só ter ouro é um geral dissenso. /Esta falsa cobiça de tesouro /Leva cega após si honra e nobreza, /Do Tejo, Ana, Mondego, Minho e Douro/ Não falo já no mais da redondeza, /Cá em nosso Portugal principalmente/ Sangue e saber por vil metal se preza». (Há neste poema uma concepção renascentista do destino articulada com as noções de fado e de fortuna! Simplesmente brilhante!)
No século XV, havia inegavelmente um atraso cultural em Portugal, que nunca foi superado pela Universidade de Coimbra; pelo contrário, a Universidade de Coimbra foi a grande responsável por esse atraso. Por isso, os seus membros carecem de autoridade para falar da fobia portuense pela instrução: os maiores burros da história foram e ainda são os diplomados. Porém, a questão da instrução pública não é relevante para captar a qualidade da cultura nacional de um país. No passado, a maior parte da população era analfabeta, mas havia figuras geniais, enquanto no nosso tempo indigente há um excesso de diplomados e escassez absoluta de génios. Ora, a cultura do renascimento nunca foi uma cultura de massas: «Na constituição dos meios sociais, o Renascimento italiano é a contrapartida da Idade Média. Antes de mais, o princípio já não é o mesmo, pois nas altas relações sociais não há diferenças de casta, mas unicamente uma classe culta no sentido moderno da palavra, uma classe para quem o nascimento e a origem só têm influência quando se juntam à fortuna (propriedade) e aos lazeres que ela proporciona» (Burckhardt). A possibilidade de nivelamento das classes sociais é mais virtual do que real na sociedade capitalista, como demonstrou Marx quando analisa a acumulação primitiva do capital, o pecado original do capitalismo. Magalhães Basto resume o renascimento português neste parágrafo: «Desde o século XV desenhava-se neste recanto do Ocidente europeu, um belo movimento de renovação intelectual, criavam-se as bases da ciência náutica moderna, com um correspondente progresso das matemáticas, e nas primeiras décadas do século XVI, depois da reforma da Escola do Convento de Santa Cruz de Coimbra, e do regresso dos bolseiros que tinham ido estudar para os grandes centros cultos da Europa, começou um período brilhantíssimo, embora curto, em que as letras e as ciências atingiram entre nós um altíssimo nível». O facto de desconhecer os textos de Marx e de Engels sobre o Renascimento - como a aurora do capitalismo - leva Magalhães Basto a descobrir o centro de cultura renascentista em Portugal lá onde ele era precário e artificial, sem suporte na cultura económica do capitalismo: «Não foi o Porto, certamente, um centro de cultura intelectual como Coimbra, que, com a Escola de Santa Cruz, a Universidade e o Colégio das Artes, representou o foco mais intenso do movimento cultural português do Renascimento». A Universidade de Coimbra como pólo cultural de todo o país durante séculos é um mito - e um mito fatal e nefasto para o futuro de Portugal, como já sabia D. Diogo de Sousa, bispo do Porto! - de tal modo evidente que não vale a pena demoli-o aqui: Coimbra não estava económica e culturalmente à altura das grandes cidades renascentistas de Itália. Em Portugal, só havia duas cidades capazes de rivalizar com o esplendor renascentista das cidades "italianas", conforme reconhece o próprio Magalhães Basto, Porto e Lisboa: «Só uma cidade em Portugal pode apresentar uma galeria tão extensa e tão brilhante de literatos como o Porto: a cidade de Lisboa. Esta afirmação, feita pela primeira vez, se não estou em erro, por Costa e Silva, já há muito passou em julgado». Apesar de ter captado a imagem do Porto desperto para o capitalismo, Magalhães Basto tende a repetir os mesmos erros de análise cometidos por Teófilo Braga e Hernâni Cidade quando caracterizaram o renascimento português. No entanto, graças às suas investigações nos arquivos da cidade do Porto, consegue demolir o mito da fobia portuense à instrução. Gutenberg descobriu a tipografia por volta de 1440, pelo menos esta é a data em que Marshall McLuhan situa a origem da Galáxia de Gutenberg. No Porto, a imprensa surgiu já no final do século XV. Em 1497, Rodrigo Álvarez imprimiu as Constituições de D. Diogo de Sousa e os Evangelhos e Epístolas. Em 1540, Vasco Dias Tanco de Frejenal imprimiu o Espelho de Casados de João de Barros e, um ano mais tarde, as Constituições de D. Baltasar Limpo. Em 1555, Francisco Correia imprimiu a Arte da Aritmética de Bento Fernandes. A partir deste momento os impressores começam a ser cada vez mais numerosos, o que mostra que o Porto despertou atempadamente para a imprensa, sem desfasamentos temporais significativos em relação aos restantes países europeus. Com a descoberta da tipografia veio o mundo dos livros, para o qual o Porto despertou em meados do século XVI: Giraldo Montez, Bento Fernandes, Giraldo Mendes (1575), Francisco Nunes (1594) e Tomé Correia (1597) são alguns dos livreiros estabelecidos no Porto Quinhentista. É muito difícil articular a imprensa e o mundo dos livros com o ensino no decorrer deste período: o ensino quinhentista é talvez o capítulo mais obscuro da História da Cidade do Porto. Sabemos que o clero detinha o monopólio do saber neste período, bem como nos períodos anteriores: os ignorantes ou leigos eram todos aqueles que não tinham recebido formação eclesiástica. Apesar dos judeus rivalizarem com o clero no que se refere à posse do saber, não houve ensino não-eclesiástico no Porto até à última década do século XV. A insinuação maldosa de Fortunato d'Almeida desencadeia em nós uma estridente gargalhada de desprezo: o Porto não só acompanhou os progressos da instrução pública em Portugal, como também tomou a sua dianteira, ao produzir uma imensa galeria de humanistas ilustres. Na última década do século XV, já havia no Porto alguns mestres de primeiras letras, tais como por exemplo Fernando Alvarez, mestre de ensinar moços, morador à Porta Nova, Miragaia, em 1499, Gonçalo Teixeira, ensinador de moços, em 1499, Jerónimo Afonso, mestre de ensinar moços, em 1492-1524, e Aires Preto, mestre de ensinar moços, à Rua do Souto, em 1492. Além do ensino das primeiras letras confiado aos mestres de ensinar moços, o Porto já tinha aulas públicas de matérias mais sofisticadas: as chamadas escolas de gramática. Assim, por exemplo, em 1491, o Convento dos Lóios fornecia aulas públicas de gramática e moral: o estudo da gramática consistia na aprendizagem do latim, a base de toda a cultura humanista. Depois de terem aprendido a ler e a escrever a língua portuguesa, as crianças eram iniciadas na aprendizagem do latim, cujo ensino era ainda eclesiástico. (A longa domesticação escolar das crianças - e da infância - descoberta pelo Ocidente!) Porém, em meados do século XVI, começaram a surgir os mestres seculares, que eram pagos a preço de ouro pela Câmara Municipal do Porto: «A burguesia despojou da sua sagrada auréola todas as actividades que até então eram tidas por veneráveis e que eram consideradas com um piedoso respeito. O médico, o jurista, o padre, o poeta, o sábio foram transformados, por ela, em assalariados ao seu serviço» (Marx & Engels). Um acórdão da Câmara Municipal do Porto (1539) ajuda-nos a compreender o seu papel pioneiro no estabelecimento da instrução pública portuense: a Câmara Municipal do Porto não permitia a abertura de novas escolas de gramática, sem que os mestres mostrassem em provas públicas as suas habilitações e competências. Até mesmos os mestres que já exerciam a arte de ensinar foram submetidos a exames públicos. Interpreto este acórdão como uma exigência de excelência no ensino, através da limitação da concorrência privada desleal. O mais famoso mestre secular foi o flamengo Vicente do Prado, que, em 1544, habitava na Rua do Redemoinho, atrás da Sé-Catedral do Porto, recebendo 4 000 reais por ano. Marcial de Gouveia, irmão do famoso André de Gouveia, tão enaltecido por Montaigne, foi outro dos mais sábios mestres de gramática do Porto, que, tal como o seu colega Nicolau Clenardo, de Braga, dominava plenamente a língua de Cícero, recebendo 10 000 reais por ano. A Câmara Municipal do Porto também promoveu a vinda de bons mestres do estrangeiro, ao mesmo tempo que fundou um Monte-Pio das Alças, do qual saíram subsídios de estudo a cidadãos portuenses pobres. Alguns destes cidadãos pobres foram enviados para as melhores Universidades estrangeiras, onde recebiam instrução superior. Os alunos de gramática faziam já em 1539 - e por ordem da Câmara Municipal do Porto! - uma festa a S. Nicolau, na Igreja de S. Nicolau, em honra da ciência. Manuel Pereira de Novais conta-nos, na sua obra Anacrisis Historial, que o bispo do Porto, D. Diogo de Sousa, fundou em 1518 os Estudos, que passaram mais tarde a ser regidos pela Companhia de Jesus. Quando D. João III o convidou a contribuir para o sustento dos bolseiros no estrangeiro, D. Diogo de Sousa respondeu-lhe o seguinte, em 1527: «Não cureis de mandar a Paris 60 escolares a aprender teologia, mas mandei vir dela 60 lentes (a modo de falar, porque até dez bastariam para tudo) e então fazei um colégio mui comprido e mui grande e de poucas pinturas e lavores, onde se leia teologia e todas as artes e ciências que para ela são necessárias, e faça-se em lugar conveniente para isso, o que me a mim parece que seja esta cidade de Braga ou o Porto, pela qualidade de ares e temperança da terra». Já em 1527 D. Diogo de Sousa defendia a instalação de uma grande Escola Superior - ou Universidade - no Porto: a Universidade de Coimbra, a única que existia em Portugal, não merecia a confiança nem do cultíssimo prelado nem do rei, até porque os portugueses eram mandados para as Universidades estrangeiras para receber a instrução superior que não obtinham em Coimbra. Em Portugal, alguns sabem aquilo que deve ser feito para conquistar o futuro, mas os decisores políticos adiam por tempo indeterminado a efectivação dos planos adequados de desenvolvimento e, quando os realizam, já é tarde demais: a corrupção política instalada nos aparelhos de Estado bloqueia a sociedade portuguesa, condenando-a a um atraso estrutural jamais superado em qualquer período histórico. Não pretendo narrar a história da instalação da Companhia de Jesus no Porto: o Colégio Jesuítico de S. Lourenço só se tornou uma realidade efectiva em 1560, após 14 anos de resistência portuense à entrada dos jesuítas na cidade do Porto. Na sua Crónica da Companhia, o padre Baltasar Teles justifica este atraso - o lapso de tempo entre 1546 e 1560 - dizendo que os burgueses do Porto temiam que, atrás dos Estudos, viesse a Universidade. A existência de uma Universidade Jesuítica é melhor do que a não existência dessa instituição de ensino superior que emergiu no século XIII: o problema do renascimento português prende-se ao facto de não ter havido Reforma em Portugal. Lá onde houve Reforma as instituições foram secularizadas, cá onde a Igreja nunca foi questionada criavam-se instituições sob a sua tutela: a cultura genuinamente renascentista não podia fortificar e aprofundar-se em tais circunstâncias de secularização insuficiente. Receando o deslocamento da atenção do problema das subsistências - o eterno problema malicioso das elites portuguesas! - para a problemática da antipatia portuense pela instrução, Magalhães Basto prefere uma outra explicação: o Porto não simpatizava com a Companhia de Jesus, porque o seu espírito liberal não compreendia a obediência cega, a renúncia absoluta, a subordinação completa que ela impunha aos seus membros, e, por isso mesmo, não queria ter tão perto de si uma escola que havia de exercer sobre a educação da juventude uma acção não desejada pelos burgueses portuenses. Mas esses mesmos burgueses portuenses nada fizeram para criar uma Universidade Secular no Porto, preferindo enviar os seus filhos para as Universidades estrangeiras, muitas das quais já plenamente autónomas, onde adquiriam o saber que fez deles grandes humanistas, cá dentro e lá fora. A história do renascimento portuense é, de certo modo, a história das grandes fortunas burguesas do Porto. Sem o conhecimento rigoroso das fortunas portuenses, não podemos avançar muito mais: a burguesia portuense que lutou contra o poder episcopal, aliando-se - ou não - ao rei, conseguiu triunfar, ao quebrar todas as relações feudais, mas depressa se aglutinou, fundindo-se com a nobreza, contra a mobilidade social típica de uma sociedade de classes. A burguesia portuguesa, incluindo os burgueses do Porto, nunca foi a burguesia revolucionária descrita por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista: o renascimento foi abolido pela Inquisição Portuguesa, que, é certo!, encontrou no Porto forte resistência e oposição, até porque não queria ser cerceado dos seus privilégios municipais pelo crescente absolutismo da coroa portuguesa. Os Juízes de Fora ainda hoje não são desejados no Porto, tal é a força do seu espírito de autonomia!
Como é evidente para quem saiba distinguir entre crítica subjectiva e crítica objectiva, a crítica da visão do renascimento de Magalhães Basto, em nome da perspectiva aberta por Marx e Engels e retomada por Ernst Bloch e Agnes Heller, para já não falar de Ernst Cassirer, não implica o desprezo pelos resultados brilhantes das suas investigações nos arquivos do Porto: Magalhães Basto deu um contributo fabuloso para a elaboração da História da Cidade do Porto. Graças aos seus estudos, podemos apresentar a galeria de alguns portuenses ilustres do mundo de quinhentos, da qual foram excluídos muitos escritores, humanistas, professores espalhados por Paris (Belchior Belleago, professor no Colégio de Santa Bárbara em Paris), Roma (Pero da Cunha, professor no Colégio da Sapiência em Roma) e Salamanca (Henrique Henriques, professor nas Universidades de Salamanca, Granada e Córdova), homens de Estado e missionários que, apesar de serem portuenses, não residiram e não produziram na sua terra natal. Eis os nomes mais significativos da galeria portuense de ilustres humanistas:
Tomé Lopes. António Cruz reabilitou o nome e a obra de Tomé Lopes, o magnífico cronista portuense da viagem à Índia: «O escrivão Tomé Lopes embarcou, viveu, sentiu, e bem marcados no corpo e na alma, os sucessos da segunda viagem de Vasco da Gama à Índia, pelo espaço de dois anos: sendo o primeiro a descrevê-los de forma nova e não obediente à visão ou perspectiva dos grandes cronistas dos tempos próximos, também ele foi, e agora como cronista, o primeiro a afirmar-se possuído de nova mentalidade, no restrito campo da Historiografia. Também a partir de Tomé Lopes se pode concluir, e à semelhança do que sucedeu com Pero Vaz de Caminha, como já observou Jaime Cortesão, que o Porto "não era sáfaro de gente letrada e culta, ao romper a era de Quinhentos". Segura informação, uma vez que nada a contradiz, tem de ser aceite, se pretende saber da naturalidade do escrivão Tomé Lopes e logo se vem a admitir que ele nasceu no Porto. Sobejam motivos de ufania a esta cidade ribeirinha, que deu o nome a uma Nação e ao Império em que ela se volveu: mas não há-de, nem quer, nem deve a cidade enjeitar a glória de ter sido também um filho seu o primeiro cronista da Rota da Índia». A 8 de Julho de 1497, Álvaro de Braga partiu com Vasco da Gama, como escrivão de bordo da primeira viagem à Índia: o prémio do bom serviço por ele prestado no descobrimento da Índia foi ser nomeado escrivão da alfândega e almoxarifado do Porto, logo após ter regressado do Oriente. Em 1502, Tomé Lopes, escrivão de bordo de uma das naus do comando de Estevão da Gama, cinco ao todo, participou na segunda viagem de Vasco da Gama à Índia: as cinco naus do comando de Estevão da Gama partiram pouco depois das vinte naus comandadas por Vasco da Gama, para virem todas elas a formar, já no Oriente, a armada da segunda viagem à Índia. Tomé Lopes é o célebre autor de uma Relação ou crónica abreviada que é mais do que roteiro ou diário de bordo: trata-se efectivamente da primeira crónica da rota da Índia. Infelizmente, a historiografia portuguesa, lavrada em terras inimigas, tentou apagar o nome de Tomé Lopes, de modo a omitir a participação portuense nos descobrimentos ultramarinos. Porém, o valor da crónica de Tomé Lopes não passou despercebido no estrangeiro: traduzida para italiano, a Relação de Tomé Lopes teve, pelo menos, quatro impressões, a primeira devida a Montalboddo (Vicenza, 1507), e as outras a Ramusio (Veneza, 1550, 1554 e 1563), bem como uma em latim (J. Florian, 1550) e três em francês (Jean Temporal, 1556 e 1830; Charles Schefer, 1898). Só em 1867 é que a Academia Real das Ciências resolveu inseri-la na sua Collecção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, na língua de que se servira, ao redigi-la, o seu autor portuense. Não admira que, tanto no passado como no presente, a marca Porto tenha mais prestígio mundial do que a marca Portugal.
Pero Vaz de Caminha. Nasceu no Porto em 1450 e morreu na Índia em 1501, após ter escrito a Carta do Achamento do Brasil (1 de Maio de 1500). Filho do mestre da Balança da Moeda da cidade do Porto, sucedeu ao pai nesse cargo, em 1476, sendo cavaleiro da Casa de D. João II e de D. Manuel. Em 1497, foi encarregado pela Câmara do Porto da redacção dos capítulos a serem apresentados nas cortes de 1498, em Lisboa. Talvez tenha viajado até à Guiné antes de 1500, quando acompanhou Pedro Álvares de Cabral, porque fora nomeado feitor na Índia, onde morreu em 1501 num ataque dos mouros à feitoria portuguesa. Pero Vaz de Caminha conta-nos na sua Carta o que foi o primeiro convívio português com gentes e terras do Novo Mundo, e, dessa narrativa repassada, toda ela, de humanidade, recordo aqui um parágrafo: «E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito».
João Rodrigues de Sá de Meneses. Fidalgo e alcaide-mor do Porto, descendente do famoso Sá das Galés, do tempo de D. João I, João Rodrigues de Sá (1465-1576) - sobrinho de D. João de Meneses! - estudou em Itália em 1486, tendo sido discípulo de Ângelo Policiano. Autor de um poema sobre os brasões das famílias nobres de Portugal, traduziu do latim em trovas três longas cartas, cujo tom de saudade seduzia a alma portuguesa: Penélope e Ulisses, Laodêmia e Protesilau e Dido e Eneias. Estudou também o grego e foi venerado pela geração nova, que o saudou como "antigo pai das musas desta terra" (António Ferreira). O Porto de João Rodrigues de Sá tem algum do esplendor da Florença dos Médicis. Além de ser um homem atlético que praticava equitação, e culto que comentava Homero, Píndaro e Anacreonte, o alcaide-mor do Porto viveu no Paço da Marquesa, na velha rua das Eiras, a mais sumptuosa moradia portuense do seu tempo, um verdadeiro palácio luxuoso do renascimento, cujo interior ricamente adornado encontra paralelo no luxo da sacristia da Sé-Catedral do Porto. João Rodrigues de Sá convenceu Sá de Miranda a estudar a poesia de Petrarca.
Diogo Brandão. Diogo Brandão (morreu em 1530) é o autor do Fingimento de Amores (vinte e sete oitavas em redondilha), «a melhor jóia do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende» (Magalhães Basto): o poeta enamorado desce a região de Proserpina, aos domínios de Plutão, e vê os tormentos que sofrem os amorosos. Escreveu também um poema à morte de D. João II (em oitavas) e um vilancete à Virgem, composto no mesmo metro octossilábico, mas com a diferença de que as estrofes têm apenas sete versos (abbaacc). Teófilo Braga considerou-o como um dos precursores do Poema da Nacionalidade. O seu irmão, Fernão Brandão, também foi poeta, que, apesar de não ter morrido no Porto, quis ser sepultado na Igreja de S. Francisco, junto de outros membros da sua família.
Luís Pereira Brandão. Pertencente à família dos Brandões, Luís Brandão é o autor da Elegíada, uma obra estranhamente esquecida pelos portugueses. Nas suas Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, Hernâni Cidade diz que «não vale a pena determo-nos na Elegíada, de Brandão», porque, tendo sido publicada oito anos após a entronização do primeiro Filipe, e dedicada ao Cardeal Alberto, arquiduque de Áustria e governador dos Reinos de Portugal, se contenta em «rimar, sem relevo poético, a história da vida e derrota de D. Sebastião em Alcácer-Quibir».
Francisco de Sá de Meneses. Pertencente à família dos Sás, Francisco de Sá de Meneses (1515-1584) é o autor de Malaca Conquistada, poema que, segundo Costa e Silva, lhe garante o primeiro lugar entre os poetas épicos portugueses depois de Luís de Camões. Encostando-se à história, o poema de Sá de Meneses mais não é do que uma paráfrase em verso da narrativa histórica de João de Barros, enriquecida pela sua tendência mística do futuro. Sá de Meneses, Conde de Matosinhos, que imortalizou o seu rio no poema Oh rio Leça, sucedeu ao Conde de Vimioso como camareiro-mor do príncipe D. João, tendo exercido o mesmo cargo nos primeiros anos do reinado de D. Sebastião e depois no de el-Rei D. Henrique, pelo qual foi elevado à dignidade condal, em recompensa dos serviços prestados como Governador do Reino durante a ausência de D. Sebastião. Depois da morte do Rei, Sá de Meneses retirou-se para o Porto, onde viveu até ao final dos seus dias, perto do ameno rio que tinha imortalizado.
João de Barros. João de Barros, o homónimo do grande historiador português da Ásia, é o autor da Geografia de Entre-Douro e Minho. Mas a obra que mais revela o seu talento literário é o Espelho de Casados, onde tece uma série de considerações filosóficas sobre o matrimónio: o que seduz nesta última obra é a crítica mordaz da fabulosa história dos Amadises, das patranhas do Santo Graal e das sensaborias do Palmeirim, literatura insípida que, segundo o autor, nada ensina à juventude. O seu desprezo pela Idade Média leva-o a ridicularizar os romances de cavalaria, o que fez dele um verdadeiro homem do renascimento. Joaquim de Carvalho atribui-lhe o mérito de ter introduzido no léxico português o termo humanista. Embora não seja uma obra genial, ela tem o mérito de esboçar uma nova cultura humanista, permitindo compreender o pensamento renascentista do Porto. Como é evidente, não podemos exigir-lhe um quadro fiel da filosofia renascentista: cabe ao leitor inteligente emprestar-lhe esse quadro e, ao mesmo tempo, tentar apreender a sua peculiaridade no contexto europeu da cultura do renascimento. Há nela uma ética que ainda não foi pensada: «Os êxtases sagrados e os fervores piedosos, o entusiasmo cavalheiresco, o sentimentalismo rústico, tudo isso, foi, (pela burguesia), lançado às águas geladas do cálculo egoístico. Ela fez da dignidade pessoal um simples valor de troca. As numerosas liberdades reconhecidas e garantidas nos forais, foram eliminadas por ela e substituídas por uma liberdade única e sem vergonha: a liberdade de troca. Numa palavra, no lugar da exploração, camuflada pelas ilusões religiosas e políticas, ela colocou uma exploração aberta, desavergonhada, directa, brutal» (Marx & Engels). Para compreender a moral proposta por João de Barros, é preciso antes reler Marx.
D. Rodrigo Pinheiro. D. Rodrigo Pinheiro governou a Diocese do Porto entre 1552 e 1572. Doutor em Filosofia e Direito Canónico e Civil, o bispo do Porto falava e escrevia a língua latina com notável elegância e perfeição, e, como era grande conhecedor de Arqueologia e de História, forneceu ao beneditino Bernardo de Brito informações importantes para a Monarquia Lusitana. Sendo um homem rico, possuía a famosa Quinta de Santa Cruz da Maia (Quinta de Santa Cruz do Bispo), onde viveu bucolicamente, rodeado pela beleza do extenso bosque de frondosas ramarias, graciosas fontes de pedra, cascatas e capelas ou ermidas, fazendo dela uma espécie de "república das letras". O bispo do Porto acolhia na sua Quinta poetas e homens de saber, como se fosse um mecenas da cultura humanista portuense e galega: o poeta galego Cadaval Grávio e João Rodrigues de Sá dedicaram-lhe poemas em latim.
Bento Fernandes. Bento Fernandes, mercador e cidadão do Porto, foi o primeiro portuense a escrever um tratado de aritmética, o célebre Tratado da Arte da Aritmética. Ricardo Jorge deu-nos uma descrição maravilhosa deste tratado que merece ser revisitada. Em 1519, tinha sido editado em Lisboa o Tratado de Aritmética de Gaspar Nicolas, do qual existe um exemplar na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto: as analogias entre os dois tratados são evidentes, com ambos a aplicar as regras de somar, diminuir, multiplicar e repartir ao mundo da troca de mercadorias. O estudo atento destes dois tratados, um portuense, o outro lisboeta, dirigidos aos negociantes que compravam ou vendiam mercadorias, tanto nas feiras portuguesas como nos mercados estrangeiros, revela a função ideológica da aritmética num mundo que estava a despertar para a produção contínua de mercadorias. Com efeito, o renascimento constitui o alvorecer do capitalismo, cuja lógica imanente requer o cálculo: capitalismo e matematização do mundo implicam-se reciprocamente.
Bento Toscano. Sendo talvez o mais douto dos portuenses de quinhentos, Bento Toscano formou-se em Leis na Universidade de Coimbra, onde os alunos o procuravam como mestre e os mestres como sábio. No entanto, uma peripécia com a sua candidatura a lente catedrático da Universidade Conimbricense levou-o a afastar-se da vida académica e a fazer-se jesuíta, tendo morrido como tal: a religião deu-lhe a serenidade de alma que tanto procurava. Infelizmente, tanto quanto sei, a adesão aos jesuítas impediu que Bento Toscano tivesse tentado elaborar uma filosofia política renascentista. Há, no entanto, outros nomes portugueses que se destacaram no domínio da filosofia política: Jerónimo Osório (1506-1580), natural de Lisboa, Frei Gregório Nunes Coronel, natural de Lisboa, Pedro Barbosa Homem, natural do Porto, Lourenço de Cáceres, natural de Lagos, Pedro Afonso de Vasconcelos, natural de Leiria, e Martim Carvalho de Villasboas, natural de Guimarães, que, apesar de serem humanistas, opuseram à concepção da soberania total de Maquiavel, correspondente à total autonomia e auto-gerência da política, a concepção cristã de Estado. Em três obras fundamentais, De nobilitate christiana (1527), De gloria (1549) e De regis institutione et disciplina (1572), Osório discute as ideias de Maquiavel, insurgindo-se - em nome da maneira cristã de pensar, tal como se revela na doutrina tomista do Estado - contra todas as inovações políticas do renascimento, sobretudo a ânsia de completa secularização do Estado e a nova moral política. A defesa do cristianismo contra a deturpação de Maquiavel faz de Osório um pensador reaccionário, levando-o a rejeitar a moral política em que os meios de actuar são apreciados e justificados, em função da sua eficácia relativamente ao fim proposto, sem atender à sua intrínseca moralidade: à tese do cinismo político de Maquiavel opõe Osório a tese da honra, que considera o melhor princípio informador e configurador da política, e, sobretudo, as leis absolutas e divinas da ética cristã, fonte e modelo de qualquer ordenamento jurídico positivo. Na sua obra Discursos da Jurídica e Verdadeira Razão de Estado (...), publicada em 1627, o portuense Pedro Barbosa Homem dirige a sua crítica às doutrinas políticas de Maquiavel e de Bodin: o pensamento político do renascimento não era, portanto, estranho aos portugueses, que, em vez de o aprofundar, o combateram e o rejeitaram, em nome do velho humanismo cristão. Porém, no seio deste cenário nacional retrógrado, surgiu um nome que ousou pensar a política em termos renascentistas, Francisco de Olanda (1517-1589), natural de Lisboa: o seu sistema de pan-estética apresenta a política como "pintura", isto é, como actividade artística criadora e planeada, dirigida à efectivação da ordem harmoniosa sob o domínio do Império Português. Deste modo estético, um português divulgou em Portugal as ideias do seu mestre, Miguel Ângelo, alargando-as à esfera da política.
Uriel da Costa. Magalhães Basto tem toda a razão quando lembra que os portuenses trataram sempre bem os judeus. Na cidade do Porto, a colónia israelita era muito numerosa, influente e, como seria de esperar, riquíssima. Graças à sua abertura ao mundo, nunca se registaram nas terras portucalenses, as da cidade do Porto, nem nos tempos do mais aceso fanatismo, as perseguições e os morticínios que ocorreram em Lisboa e noutras terras de Portugal. Durante a sua permanência no Porto, os judeus rivalizavam em saber com o clero, abrindo novos horizontes intelectuais ao ensino administrado aos portuenses. O Porto deve orgulhar-se de ter produzido, no século XVI, um pensador profundo que, segundo Duff & Pierre Kaan, «viveu profundamente e com grande paixão as duas maneiras por que a Humanidade tem interpretado o seu destino, uma pela qual ela tenta colocar-se com toda a lucidez em frente de si mesma, a outra em que ela ousa julgar o seu nada pela presença infinita, esmagadora, de Deus». Filho de pais cristãos, embora de ascendência israelita, Uriel da Costa - nome de baptismo: Gabriel da Costa - nasceu no Porto em 1585. Tinha 22 anos de idade quando sentiu a sua primeira e grande inquietação mental: Não será possível que tudo quanto se diz da outra vida careça de fundamento? Com a dúvida entranhada bem fundo no seu espírito, Uriel da Costa começou a estudar a Antigo Testamento, Moisés e os Profetas: a religião judaica estava mais próxima da Verdade do que o catolicismo. Para preservar a liberdade do seu espírito ameaçada pela Inquisição Portuguesa, fugiu do Porto com a sua mãe já viúva e quatro irmãos mais novos do que ele, tendo sido acolhidos na Holanda, onde fizeram a sua profissão de fé mosaica. Porém, inquieto como era, Uriel da Costa depressa detectou que as práticas dos judeus e a organização da comunidade não concordavam com os mandamentos da lei de Moisés. Da sua revolta contra os rabinos resultou a publicação, em Hamburgo, da sua obra Teses contra a Tradição (1616). Ora, esta obra escandalizou de tal modo os judeus que os rabinos de Veneza excomungaram-no, obrigando-o a regressar a Amesterdão, onde a comunidade hebraica o expulsou do seu seio. Lavrado em 15 de Maio de 1623, o termo da excomunhão diz «que Uriel seja maldito da lei de Deus, que lhe não fale pessoa alguma de nenhuma qualidade, nem homem nem mulher, nem parente nem estranho... A seus irmãos... se concede termo de oito dias para se apartarem dele». Abandonado pelos irmãos e pelos restantes judeus, Uriel da Costa não desistiu e escreveu uma nova obra, Exame de Tradições Farisaicas conferidas com a Lei Escrita contra a Imortalidade da Alma (1640), onde negou, dentro do averroísmo latino, a imortalidade da alma, alegando que a Lei de Moisés a este respeito era violada pelas instituições e tradições judaicas dos rabinos. Como seria de esperar, Uriel da Costa sofreu novas perseguições, sendo levado a abandonar a própria lei mosaica e a abraçar a Lei Natural, a única lei que leva o homem a viver segundo a razão e a lutar pela verdade e, sobretudo, pela liberdade inata aos homens. Deste modo, Uriel antecipa a problemática teórica do Tratado Teológico-Político de Baruch de Espinosa (1670). Passados alguns anos, a solidão levou-o a tentar reconciliar-se com a comunidade judaica, fazendo-se "macaco entre macacos", mas esta aproximação durou pouco tempo: Uriel foi denunciado por certas faltas graves contra o judaísmo e, na presença dos juízes, foi-lhe apresentado um dilema: cumprir uma pena humilhante ou ser excomungado de novo. Uriel preferiu a excomunhão, vivendo nos sete anos seguintes uma vida heróica de torturas, até que um dia, não podendo mais, resolveu submeter-se ao castigo. Dentro da sinagoga, despido o seu corpo até à cintura, com um lenço amarrado na testa, as mãos ligadas a uma coluna, descalço, Uriel recebeu diante de todos 39 açoites, no fim do que lhe foi levantada a excomunhão e depois de ter sido pisado por todos à entrada da sinagoga. O calvário de humilhações que foi a vida de Uriel levou-o por fim a encontrar na morte a serenidade da sua alma. Mas, antes de se suicidar em Abril de 1640, Uriel ainda escreveu uma carta dirigida à humanidade, Exemplar Humanae Vitae, na qual descreve a tragédia exemplar da sua consciência. O nome de Uriel da Costa, o mais ilustre filósofo portuense, precursor de Espinosa, é digno de figurar ao lado do nome de Francisco Sanches, outro grande filósofo do renascimento português, precursor de Descartes.
J Francisco Saraiva de Sousa
3 comentários:
Está quase concluído! Já estou cansado do texto! Termino amanhã!
Afinal, precipitei a conclusão do texto! Estou livre! :)
Escusado será dizer que o Paço da Marquesa foi demolido e hoje há lá um edifício tb antigo forrado a azulejos azuis. Tb é giro.
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