terça-feira, 6 de setembro de 2011

O Fracasso da Historiografia Portuguesa

Vímara Peres (820-873),
Primeiro Conde de Portucale, Porto
«Dir-nos-ão que essa comunidade, a da Pátria Portuguesa, é extremamente reduzida, quando comparada com a comunidade humana, universal. É certo. Mas o estudo da história portuguesa liga-se, mais intimamente que nenhuma outra, à história da Humanidade. O grande feito e glória dos Portugueses foi ter dado o primeiro grande passo para a unificação da Humanidade; haver estreitado entre os homens e os povos, de bom ou mau grado, um primeiro laço de compreensão e amor. A história de Portugal entranha um sentido ecuménico; e em cada historiador português, digno desse nome, deveria existir um cidadão do mundo e um apóstolo da fraternidade universal.» (Jaime Cortesão)

«O Porto tornou-se, durante aqueles séculos, a grande escola de educação política do povo português, como defensora, a ferro e fogo, das liberdades individuais e da supremacia do poder civil. Ali se formou o modelo mais perfeito da cidadania em Portugal, o cidadão do Porto, cujos direitos foram mais tarde reclamados pelas maiores cidades do Brasil e estão na base sucessiva das suas autonomias provinciais e independência de nação. (Jaime Cortesão)

Hoje, depois de me terem alugado os ouvidos, resolvi desencaixotar algumas obras sobre a História de Portugal. A ideia de repensar a História de Portugal não é nova: ela surgiu quando comecei a estudar a História de Portugal na escola, tendo regressado novamente quando, noutro dia, constatei que não temos uma História Económica de Portugal, a não ser Épocas de Portugal Económico de Lúcio de Azevedo (1929) e A Evolução Económica de Portugal dos Séculos XII a XV de Armando Castro. Lúcio de Azevedo colocou o dedo bem dentro da chaga nacional: «Poucos países há, certamente, em cuja história seja tão sensível, de ponta a ponta, o influxo do factor económico, como este nosso; poucos há, também, cuja história económica fosse tão desprezada; e será acaso dos maiores obstáculos ao ressurgimento da nossa Pátria a falta geral de conhecimentos sólidos das condições económicas em que evolucionou». Pensar o Portugal Económico é elucidar o atraso estrutural e histórico do nosso triste país: a interpretação económica da História de Portugal foi esboçada - ou desejada? - por Sampaio Bruno na sua recepção da concepção marxista da história, mas os seus conhecimentos do materialismo histórico e da economia marxista eram escassos e em segunda mão. Lúcio de Azevedo também não tinha sólidos conhecimentos de economia política: a fragilidade da sua obra deve-se a esta ausência de conhecimentos económicos e filosóficos actualizados. Lúcio de Azevedo serviu-se da ideia de ciclo para periodizar a história económica de Portugal do Antigo Regime. Ele delimitou e definiu seis ciclos ou períodos económicos, a saber: a Monarquia Agrária ou Medieva (1), a Jornada de África ou Ciclo dos Escravos (2), o Ciclo da Pimenta ligado à Índia (3), o Primeiro Ciclo do Ouro ligado à Guiné, Mina e Monomotapa (4), a Idade do Açúcar (5) e a Idade do Ouro e Diamantes ligada ao Brasil (6). (Uma História de Moçambique da Frelimo caracteriza o Império de Monomotapa como um Estado Feudal - ??? - que, no decorrer dos séculos, foi derrotado pelos portugueses que começaram por afastar logo no tempo de Vasco da Gama os árabes das rotas do comércio. Curiosamente, os autores esquecem que Moçambique é uma criação colonial portuguesa: o povo moçambicano - essa abstracção ideológica! - não existia antes da entrada em cena dos portugueses.) Há ainda um outro quadro económico que se desenrola Sob o Signo de Methuen (7). A periodização da história económica por ciclos proposta por Lúcio de Azevedo não tem nada a ver com a concepção cíclica da história de Vico: os ciclos económicos delimitados e definidos por Lúcio de Azevedo são épocas sucessivas da história económica de Portugal, cada uma das quais gira à volta de um produto dominante que arrasta consigo todas as outras actividades económicas e que imprime um tom dominante à economia durante um determinado período de tempo. Cada um dos ciclos económicos é um processo em que o factor dominante aparece, se fortalece e, depois de ter alcançado o seu apogeu, decai e desaparece: o carácter cíclico da história não implica as ideias de eterno retorno e de eterno recomeço, como sucede na concepção de Vico, mas apenas a recorrência de tal processo de aparecimento, fortalecimento e decadência de um produto dominante na estruturação da actividade económica. Afonso Arinos (1938), um historiador brasileiro, utilizou este quadro teórico de Lúcio de Azevedo para dividir a história económica do Brasil em quatro ciclos: o Ciclo do pau-brasil, com os comércios ancilares de animais e algodão, pré-colonial, até cerca de 1530 (1); o Ciclo do açúcar, dominante na segunda metade do século XVI e no século XVII, tendo como actividades ancilares o tabaco e a criação de gado, a última das quais foi responsável pela penetração no sertão e pela integração da unidade nacional brasileira (2); o Ciclo da mineração - do ouro e diamantes - que imprime o tom a todo o século XVIII (3); e o Ciclo do café, dominante nos séculos XIX e XX, tendo cedido mais tarde o seu lugar à civilização industrial (4). (Armando Castro - 1946 - estudou A Revolução Industrial em Portugal no Século XIX numa perspectiva marxista.) É certo que esta teoria dos ciclos de actividades económicas só se aplica com sucesso analítico a economias coloniais caracterizadas pela monocultura para exportação, como era o caso do Brasil na época colonial, mas tanto Lúcio de Azevedo como Afonso Arinos sabiam que os ciclos podem coexistir durante um determinado período de tempo, como sucedeu em Portugal durante o século XVI (escravos, pimenta, ouro e açúcar) e durante o século XVIII (ouro e diamantes). Mas o facto da teoria dos ciclos de actividades económicas poder ser aplicada à história económica de Portugal revela o fracasso das nossas políticas de desenvolvimento económico durante e depois dos Descobrimentos. Portugal teve muitas oportunidades para proceder à acumulação primitiva do capital tão necessária ao arranque industrial: todos os ciclos de produtos dominantes analisados por Lúcio de Azevedo possibilitavam essa acumulação do capital; no entanto, cada um dos ciclos acabou por falir, como se o retorno da falência fosse uma constante da história económica de Portugal. A teoria dos ciclos de Lúcio de Azevedo pode ser integrada numa outra periodização da História de Portugal - Portugal Medieval (economia agrária ou feudal, o primeiro ciclo da monarquia medieval, com o qual a Revolução de 1383 rompe, com a nova monarquia a organizar-se em Estado de direito público) e Portugal Moderno (as aventuras e desventuras do capitalismo português), já que a falência fatal de cada ciclo permite captar essa história como uma sucessão de fracassos económicos e financeiros no sentido de consolidar o modo de produção capitalista. A História de Portugal como um fracasso total torna-se assim inteligível. Lúcio de Azevedo não foi mais longe na sua tentativa de compreender a evolução económica de Portugal porque desconhecia as obras de Marx e Weber ou de Werner Sombart, Maurice Dobb e Gaëtan Pirou. Ter-lhe-ia bastado ler Der moderne Kapitalismus de Werner Sombart (1924) para apreender o espírito que configura uma história económica nacional ou mundial.

Ortega y Gasset (1928) distinguiu entre Filosofia da História (Hegel, Rickert), Historiografia (a prática dos historiadores) e Historiologia: a historiologia tal como a formulou Ortega y Gasset não é uma filosofia da história, nem no sentido de Hegel (a construção do conteúdo da história mediante categorias sensu stricto filosóficas, portanto uma metafísica da história), nem no sentido de Rickert (a reflexão sobre a forma intelectual que a historiografia pratica, portanto uma lógica ou teoria do conhecimento histórico), mas uma ontologia da realidade histórica entendida como o estudo a priori da sua estrutura essencial, estudo este que não é indiferente à forma dos próprios objectos históricos. Neste estudo, o nosso objectivo aproxima-se mais da perspectiva neokantiana de reduzir a filosofia da história, pelo menos de modo provisório, a uma lógica da historiografia portuguesa que não perde o contacto com a própria realidade histórica portuguesa efectiva: o nosso objectivo é articular e explicitar três grandes dificuldades teóricas da historiografia portuguesa: 1) a dificuldade de periodizar a História de Portugal, 2) a dificuldade de interpretar a História de Portugal, e 3) a dificuldade de actualizar os conhecimentos científicos e filosóficos necessários para repensar e aprofundar a própria História de Portugal. As duas primeiras dificuldades estão intimamente ligadas entre si, porque uma periodização da história é, em última análise, uma interpretação: o que significa que, sem uma interpretação prévia da História de Portugal, condicionada pelo prisma da situação do historiador ou do filósofo no tempo, não pode haver periodização adequada, a menos que se recorra à divisão clássica - Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Tempos Contemporâneos. Porém, estas duas dificuldades assim articuladas derivam da terceira dificuldade: a incapacidade revelada pelos historiadores e filósofos portugueses para pensar e repensar a História de Portugal à luz das novas teorias e dos novos paradigmas teóricos. Um historiador com pretensões teóricas tão elevadas como Vitorino Magalhães Godinho foi incapaz de utilizar com sucesso as novas teorias para repensar a História de Portugal: a sua noção de complexo histórico-geográfico é simplesmente miserável. Magalhães Godinho dedicou diversos ensaios ao problema da periodização da História de Portugal e António Sérgio sonhou com a sua nova interpretação, mas ambos fracassaram quando tentaram utilizar novas teorias, cujas malhas conceptuais nunca compreenderam, para dar eco e corpo às suas ambições teóricas. Vitorino Magalhães Godinho elogiou Alexandre Herculano (1842) por ter criticado severamente a divisão da História de Portugal por dinastias e, dentro destas, por reinados, substituindo o critério individualista pelo critério de periodização com base estrutural e colectiva, o qual lhe permitiu «distribuir as épocas cronológicas pelas transformações essenciais da sociedade»: «É por isso que, além de ser absurdo em tese geral resumir e representar a sociedade nos indivíduos, tal absurdo se torna monstruoso, quando o tomamos como medida das fases da sociedade» (Herculano). No entanto, apesar de Alexandre Herculano e de Oliveira Martins terem adoptado o critério correcto de periodização da História de Portugal, tanto eles como os seus discípulos foram incapazes de elaborar uma periodização histórica adequada, continuando a ser prisioneiros da divisão por dinastias e do seu critério biográfico-familiar tão criticado por Guerra Junqueiro: a única excepção foi a obra de Lúcio de Azevedo que se debruçou sobre as épocas económicas de Portugal. A periodização da História de Portugal proposta por Vitorino Magalhães Godinho é, de certo modo, tributária da de Lúcio de Azevedo: o conceito de complexo histórico-geográfico de Magalhães Godinho parece aproximá-lo da teoria marxista dos modos de produção e da formação económica da sociedade, mas, em vez da noção de uma economia inscrita no espaço geográfico, vislumbramos em acção uma economia perdida na sua configuração geográfica. Se excluirmos o primeiro período medieval, anterior à Revolução de 1383-85 e à Conquista de Ceuta, todos os outros complexos histórico-geográficos - 3 ou 4? - são delimitados e definidos como se não pertencessem e não correspondessem às diversas fases históricas da evolução do capitalismo. Vitorino Magalhães Godinho retoma conceitos estruturais, sistémicos e conjunturais do marxismo - sobretudo do marxismo estrutural - sem no entanto ter compreendido a sua essência e o seu movimento. Werner Sombart que não conhecia bem a História de Portugal, foi muito mais longe, na direcção certa, do que os historiadores portugueses: as viagens de exploração marítima que culminaram nos Grandes Descobrimentos Geográficos - protagonizados primeiro pelos portugueses e depois por outros povos europeus - indicam que o "espírito capitalista" já tinha irrompido no mundo dos negócios no século XIV (Der Bourgeois). Deste modo, a História de Portugal é integrada na história do capitalismo ocidental e do seu processo de racionalização, sem ser necessário recorrer ao romantismo serôdio dos historiadores nacionais. Porém, apesar de terem dado o grande passo para a "unificação da humanidade" (Jaime Cortesão), os portugueses - ou melhor, os povos peninsulares - perderam terreno a favor dos países do Norte da Europa e atrasaram-se no seu processo de desenvolvimento capitalista. As teorias de Marx, de Weber, de Sombart e de R. H. Tawney explicam este atraso dos povos peninsulares que, em Portugal, foi vislumbrado por Antero de Quental: o "espírito capitalista" - o herói mistificado de Sombart! - só podia medrar em todo o seu esplendor nos países protestantes que souberam acolher os judeus expulsos da Península Ibérica. O conceito de geo-história deve-se a Jaime Cortesão (1930) e não a António Sérgio (1941), cuja visão da história portuguesa é mais metropolitana do que ultramarina: Joel Serrão considera que a Introdução Geográfica à História de Portugal é um dos melhores estudos históricos de António Sérgio (1941), onde ele tentou combinar geografia e história à escala nacional, sem esquecer a integração da parcela portuguesa no todo ibérico. A simbiose que António Sérgio operou entre facto históricoquadro geográfico pretendia revelar as interacções entre geografia e história, como se esta última estivesse submetida fatalmente ao condicionalismo geográfico ou, como dizemos hoje, graças à Escola Ecológica Americana, ao determinismo ecológico: o que António Sérgio desconhece é que, graças à descoberta da agricultura e à domesticação das plantas e dos animais em tempos remotos, a economia deixou de estar dependente, pelo menos de modo rígido e fatalista, das variações das condições exteriores, isto é, do contexto ecológico. Quanto mais forte o nível das técnicas, tanto mais a economia se liberta dos constrangimentos ecológicos: a agricultura neolítica operou desde logo uma profunda transformação da natureza pelo homem. Só quem desconheça o sentido da evolução humana nas suas relações dialécticas com a natureza pode continuar a falar de condicionalismo geográfico, como se a natureza e a sociedade humana fossem duas realidades exteriores uma à outra. A distinção entre factor geográfico de posiçãoindividualidade geográfica de Portugal realizada por António Sérgio ajudou-o a combater a noção fatalista da periferia de Portugal, mas não foi suficiente para o levar a compreender que, quando se lançaram à conquista do mundo, os portugueses estavam a produzir um novo espaço mundial: a noção de geografia como quadro invariável que determina de fora as realizações históricas dos portugueses é, portanto, desmentida pelo próprio facto das Descobertas. O fetiche da geografia não só impediu o aprofundamento da compreensão da História de Portugal, como também bloqueou o entendimento correcto do papel determinante da economia. Os homens fazem a sua história (tempo) e a sua geografia (espaço): eis um dos ensinamentos de Marx - a nova imaginação geográfica - recuperado recentemente por David Harvey quando elucida a relação entre lugar e espaço, tendo em vista relançar a noção de espacialização da vida social: «O século XX conduziu à descoberta do espaço profundo ou, pelo menos, à sua construção social, e, no entanto, só agora que o século chega ao seu término é que esta descoberta fundamental está a tornar-se palpável... O espaço pleno é a quintessência do espaço social; é espaço físico instilado de propósito social» (Neil Smith, 1990). Os historiadores portugueses nunca viram as Descobertas na perspectiva da movimentação global do Capital: não é a geografia que molda o Capital; pelo contrário, é o Capital que molda a geografia-mundo (I. Wallerstein, 1979, 1984, 1991). O fetichismo do espaço e da posição geográfica de Portugal bloqueou a historiografia portuguesa.


Anexo: Não vale a pena criticar-me pelo facto de omitir os historiadores da nova geração. Como já disse diversas vezes, considero que a ciência, a filosofia e a arte regrediram nas últimas décadas. Os historiadores da nova geração são fruto da nossa época indigente: a sua preferência é pela história política que interpretam em função dos esquemas da cueca e da intriga social e sexual. Hoje não há história, mas coscuvilhice. A degradação da qualidade do ensino e da educação que se instalou gradualmente depois do 25 de Abril de 1974 explica, em parte, a falta de competência destes brutos diplomados. Thomas Malthus disse uma coisa certa desde que interpretada à luz de uma teoria democrática: «Se a ideia de Locke é justa - a ideia de que a necessidade é a mãe da invenção! -, e existem motivos para pensar que sim, o mal parece necessário para criar o esforço, e este, evidentemente, indispensável para criar a mente». O facilitismo reinante - aliado ao sistema nacional da cunha e da corrupção - devolveu o homem à sua condição animal: a atrofia dos órgão mentais e da cognição é hoje um facto consumado.

J Francisco Saraiva de Sousa

10 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, agora tenho 2 textos por concluir, mas precisava de mudar de assunto para pensar melhor.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, vou ser forçado a ser sintético e abstracto. Os assuntos exigem muito espaço e tempo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este governo português é irracional, arbitrário e irresponsável: agora querem subir o preço do pão. Ora, isto não é governar; é roubar e empobrecer. Esta factura vai sair cara!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Um dia destes escrevo sobre o Império de Monomotapa e os Portugueses! A sede da império ficava na Rodésia! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Aliás, todo o sul de África devia ser português, mas o acordo com Inglaterra deu esta configuração!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hi Argentina! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Puxa, os portugueses são mal-tratados pela tal História de Moçambique. Logo que conclua os 2 posts vou passar a pente fino essa história. Infelizmente, Jaime Cortesão escreveu uma História do Brasil mas esqueceu Moçambique e Angola. De certo modo, os portugueses apostaram tudo primeiro na Índia e depois no Brasil. Praticamente só no século XX coloniza em força Angola e Moçambique.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Finalmente, está concluído. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hi Japão!

Miguel disse...

Apesar de apresentar uma leitura muito interessante e em muitos pontos verdadeira, algumas das lacunas que identifica na historiografia portuguesa já foram de facto ultrapassadas, ainda que tenuamente. Entre outros, talvez ler Luís Filipe Thomaz, que aliás procura directamente desconstruir a historiografia portuguesa com base marxista. Pode ser interessante, nem que seja para a rebater.
Cumprimentos