quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Ecologia Profunda e Política

O racionalismo cartesiano é alvo da animosidade do discurso ecológico contemporâneo, em particular da Ecologia Profunda elaborada por E. Goldsmith.
A ecologia profunda considera que o paradigma económico e o paradigma científico reflectem a mesma concepção do mundo: a concepção modernista do mundo (Heidegger), tematizada, pela primeira vez, de um modo explícito e teoricamente elaborado, por Descartes (Veja DESCARTES: Dominação e Revolta da Natureza e Fisiologia Cartesiana).
A metafísica cartesiana estabelece uma «distinção totalmente artificial» entre duas substâncias – a res cogitans e a res extensa, com o propósito de «proporcionar à ciência uma esfera de influência» crescente, liberta «dos grilhões com que a teologia a mantinha aprisionada». Reconhecer a substancialidade do corpo significa, em primeiro lugar, para Descartes, tornar possível a consideração e o estudo do corpo como tal, sem qualquer referência à alma ou aos seus atributos. A substância corpórea, quer seja o corpo humano, quer seja o corpo natural, tem um único atributo fundamental – a extensão em comprimento, largura e profundidade. Este é o resultado da abstracção pela qual se eliminam da natureza todas as suas qualidades e propriedades, reduzindo-as à extensão, o único atributo susceptível de ser inteiramente quantificado.
Muito antes de Descartes, Galileu tinha estabelecido como princípio que «só era real o que era quantificável, sendo assim o não quantificável excluído do domínio da ciência. A nova filosofia da natureza concebida por Descartes e por Galileu anunciava a ideia newtoniana segundo a qual a natureza consiste em átomos de matéria em movimento no tempo e no espaço. Isolar as características da matéria em movimento, que podem ser medidas e ligadas entre si por leis matemáticas, era compreender o funcionamento da natureza. O próprio Descartes dizia que se lhe dessem a extensão e o tempo, poderia construir o universo». A redução da natureza à extensão permitiu que Descartes pudesse «ver o mundo como uma imensa máquina – tese mecanicista que ainda hoje justifica a ciência moderna e que constitui a base racionalizadora do desenvolvimento económico e da industrialização».
A ecologia profunda capta um aspecto fundamental da teoria crítica da natureza: a crítica da racionalidade instrumental (Horkheimer & Adorno; Gadamer) é inseparável da crítica da economia de mercado generalizada, do seu sistema burocrático e da sua ideologia do crescimento económico infinito ou, como se diz no momento presente, da sua «ideologia de mercado» (Ricoeur). O programa racionalista é denunciado, a partir deste princípio, como uma legitimação ideológica do sistema económico capitalista, responsável pela degradação e destruição da natureza, levadas a efeito em nome do progresso e do bem-estar do homem. A concepção modernista do mundo que corporifica assenta em duas crenças fundamentais:
1) a crença «de que todos os benefícios e, por conseguinte, os nossos bem-estar e riqueza verdadeira são antropogénicos; por outras palavras: produtos das ciências, da técnica e da indústria e, por isso, também do desenvolvimento económico que as alimenta: os benefícios inestimáveis proporcionados em tempo normal pela ecosfera – um clima estável e clemente, solos férteis e água pura, coisas sem as quais não há vida possível – são totalmente silenciados ou considerados como sem valor»;
2) a crença de que, «para a maximização de qualquer benefício, e portanto dos nossos bem-estar e riqueza, é preciso maximizarmos o desenvolvimento económico».
Ao impedir a compreensão das nossas relações com a natureza e a nossa adaptação a ela de maneira a aumentarmos ao máximo o nosso bem-estar e as nossas verdadeiras riquezas, a concepção modernista serve para «legitimar o desenvolvimento económico ou “progresso” – comportamento que, precisamente, nos leva à destruição do mundo natural, com as conhecidas consequências: pobreza, desnutrição, infelicidade humana generalizada».
A Ecologia Profunda de E. Goldsmith é, em última análise, uma crítica da economia de mercado globalizada e da sua racionalidade funcional, que, rejeitando a abordagem mecanicista e tecnomorfa dos diversos ecossistemas que constituem a ecoesfera, procura libertar a natureza da exploração técnica e económica a que tem sido submetida, de modo a conservar a sua ordem específica e a sua estabilidade. Para isso, propõe uma visão ecológica do mundo, assente em dois princípios fundamentais:
1) «O primeiro afirma que o mundo vivo, ou ecosfera, é a fonte original de todos os benefícios e de toda a riqueza, mas que só nos dispensará os seus benefícios na condição de preservarmos a sua ordem específica».
2) O segundo princípio diz que «o alvo supremo do comportamento numa sociedade ecológica deve ser a preservação da ordem do mundo natural ou do cosmos», tal como este surge aos olhos dos povos vernaculares.
A hipótese Gaia – elaborada por James Lovelock, com a preciosa colaboração de Lynn Margulis – é essencial para a construção desta nova visão ecológica do mundo, na medida em que, ao desmentir cabalmente o mecanicismo cartesiano, recupera uma velha noção de natureza incompatível com a sua dominação. De acordo com esta hipótese, «toda a variedade de matéria viva na Terra, das baleias aos vírus, dos carvalhos às algas, poderia ser encarada como constituindo uma única entidade viva, capaz de levar a atmosfera da Terra a adequar-se às necessidades gerais e dotada de faculdades e poderes superiores aos das suas partes constituintes»
. Assim, Lovelock define «Gaia como uma entidade complexa que abrange a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo da Terra; na sua totalidade, constituem um sistema cibernético ou de realimentação que procura um meio físico e químico óptimo para a vida neste planeta». A concepção da natureza como um organismo vivo é assim a negação do mecanicismo e da sua lógica da dominação (Marcuse).
Condenando o crescimento económico e a ideia de progresso infinito que lhe é subjacente, E. Goldsmith profetiza um Novo Caminho ou, se quisermos, uma nova política do ambiente: o regresso à natureza, à harmonia e à co-adaptação entre homem e natureza, tal como se verifica nas sociedades vernaculares. O Caminho é o contrário do Progresso: segui-lo é conservar e manter a ordem específica e a estabilidade da ecosfera. O Progresso é, pelo contrário, o falso Caminho, na medida em que perturba a ordem específica e reduz a estabilidade dos diversos sistemas naturais que compõem a ecosfera. O progresso é inegavelmente destruição, mas, como observa M. Horkheimer, o regresso à natureza seria ainda mais terrível:
«Somos os herdeiros, para melhor ou para pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se aos mesmos por um regresso a estágios mais primitivos não alivia a crise permanente que deles resultou. Pelo contrário, tais expedientes conduzem-nos do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social. O único meio de auxiliar a natureza é libertar o seu pretenso opositor, o pensamento independente»
.
A visão ecológica do mundo não se conforma «com o paradigma das ciências»
. Ao conhecimento científico opõe uma nova ecologia, definida, de modo provocante, como uma ecologia holística, una, qualitativa, subjectiva, teleológica, inata, inefável, enfim, como uma fé – «uma fé na sabedoria das forças que criaram o mundo natural e o cosmos de que fazemos parte; uma fé na sua capacidade de nos proporcionar benefícios […] vitais para a satisfação das nossas necessidades decisivas; uma fé na nossa capacidade para desenvolvermos esquemas culturais que nos permitam preservar o que resta da integridade e da estabilidade do mundo natural».
Minar a fé no programa racionalista (Ernest Gellner) e substituí-la por uma fé no projecto ecológico é uma tarefa eminentemente prática, portanto, política, só possível mediante a sedução de indivíduos rebeldes que desejam alternar entre sistemas de significado lógica e cognitivamente contraditórios. Ciente desta dificuldade, J. Lovelock define, desde logo, o perfil psicológico e cognitivo dos seus «destinatários»:
«A hipótese de Gaia destina-se a quem gostar de caminhar ou simplesmente ficar a observar, a magicar sobre as consequências da nossa experiência nela. É como um alternativa àquela perspectiva pessimista que vê a natureza como uma força primitiva a subjugar e a conquistar. É também uma alternativa àquela imagem igualmente deprimente no nosso planeta como uma nave espacial demente em viagem contínua, sem condutor nem objectivo, em torno de um círculo interior do Sol»
.
De um modo mais radical e desesperado, a aceitação da ecologia profunda de E. Goldsmith exige «o abandono do próprio paradigma científico e da concepção modernista do mundo que é o seu fiel reflexo: ambos devem ser substituídos pela concepção ecológica do mundo»
. Esta substituição implica uma conversão, de cariz religioso, na medida em que «acarreta uma profunda reorganização do saber que forma a nossa visão do mundo». Diante da catástrofe ecológica que se adivinha, o homem terá que escolher, sob pena de morrer juntamente com o planeta, entre a utopia ou a morte, para usar os termos de R. Dumont.
Em face desta revolta da natureza contra a sua instrumentalização, as ciências biomédicas e a eco-filosofia respondem com uma nova concepção da natureza, da ciência e do homem, fundada em novos pressupostos metafísicos, éticos e estéticos (Herbert Marcuse). Mergulhada num horizonte instrumental que a usa como instrumento para garantir o crescimento económico e o controle social, a ciência moderna tem sido até hoje um saber de dominação (Max Scheler). De acordo com o «procedimento normal» instituído pelas grandes empresas capitalistas, conhecemos algo na medida em que podemos dominá-lo e compreendemos algo quando o «apreendemos» (Heidegger). Definimos os objectos mediante conceitos científicos e, com o recurso às definições operacionais, determinamos objectos e fazemo-los identificáveis, em função dos imperativos das grandes empresas económicas que subsidiam os projectos de investigação científica. Tendo como objectivo reconciliar o homem com a natureza, a síntese ecológica moderna não quer conhecer para dominar; em vez disso, deseja conhecer para participar na conservação da natureza maltratada pelo agir instrumental (Habermas). O conhecimento ecológico cria comunhão, cooperação e convivencialidade (Ivan Illich). A designação mais adequada a dar-lhe seria, talvez, por oposição ao saber de domínio, saber de comunhão (Max Scheler).
A biologia conservacionista, tal como a estabelece E. Wilson, aliando-se à nova consciência ecológica que emerge por todas as partes do planeta e querendo reforçá-la, não se inibe em propor uma ética do ambiente, na qual a natureza, além de ser amada como se ama a uma Mãe (biofilia), passa a ser perspectivada como Sujeito: «Uma ética ambiental duradoura almejará preservar não apenas a saúde, o bem-estar e a liberdade da nossa espécie, mas também o acesso ao mundo em que o espírito humano nasceu»
. Se a comunhão ecológica planetária conseguir inverter o crescimento económico capitalista, então a natureza estará aí, não para ser dominada, mas sim para ser conservada, amada e glorificada como a Terra sem a qual não seríamos nada.
No início do século XX, Edward Münch escreveu:
«Eu ia pela estrada fora com dois amigos. Era o pôr do Sol. Invadia-me a melancolia. De súbito o Sol ficou vermelho de sangue. Parei e encostei-me à sebe, morto de cansaço, e olhei para as nuvens chamejantes que pendiam como sangue e uma espada sobre o fiorde azul escuro e sobre a cidade. Os meus amigos continuavam a caminhar. Eu fiquei ali tremendo de medo. E ouvi um grito alto e prolongado que atravessava a natureza»
.
Tal como Edward Münch, também nós devemos estar a interrogar-nos: De quem seria aquele grito que ainda hoje se ouve? É o grito de uma parturiente que está a ser devorada por dentro pelos seus próprios filhos. Gaia não é um mecanismo: Gaia é a matriz da biodiversidade e da vida, cujo sofrimento é colocado em linguagem pela teoria crítica da natureza.
J Francisco Saraiva de Sousa

Prostituição Masculina em Portugal

A prostituição é a entrega sexual a estranhos ou conhecidos contra pagamento e, como tal, tem sido apresentada como «a mais velha profissão do mundo» (Roberts, 1996). Este etnoconceito de prostituição não especifica o sexo dos indivíduos que se prostituem, na medida em que supõe que esses indivíduos sejam necessariamente mulheres. A prostituição é considerada uma profissão exclusivamente feminina e os indivíduos que a praticam são designados por «mulheres da má vida».
Actualmente, o conteúdo deste conceito alargou-se até incluir a prostituição masculina, cuja figura mais emblemática na nossa cultura ocidental é Timarcos, severamente criticado por negociar os seus sentimentos de um modo infame, à maneira de um vil prostituto (Dover, 1978; Mazel, 1984). Isto significa que já havia prostituição masculina na Grécia Antiga (Buffière, 1957; Flaceliére, 1971) ou mesmo em Roma (Grimal, 1988). Apesar da forte associação evolutiva entre prostituição e sexo feminino, convém não usar este termo sem especificar o sexo dos indivíduos que se prostituem ou mesmo o tipo de prostituição que praticam. O conceito de prostituição diferencia-se em si mesmo: não podemos falar de prostituição no singular, mas devemos falar de prostituições no plural. Existe a prostituição feminina e a prostituição masculina e cada uma delas pode ser organizada ou não e envolver prostitutos ou prostitutas adultos ou «menores».

As relações dos homens homossexuais portugueses com a prostituição masculina são muitíssimo ambíguas e diversificadas. De um modo geral, os homens homossexuais condenam a prostituição masculina. Contudo, alguns deles prostituem-se regular ou ocasionalmente, enquanto outros recorrem regular ou ocasionalmente aos serviços prestados pelos prostitutos masculinos (adultos ou adolescentes).
O léxico erótico gay português que elaborámos compreende 219 lexemas relativos à prostituição masculina, representando 32,83% do total da dimensão das "sexualidades alternativas". O seu campo lexical é conceptualmente rico e diversificado, abrangendo designações gerais, classificação dos intervenientes, acto de se prostituir, serviço prestado pelo prostituto, preços, pagamentos ao prostituto e ao proxeneta, locais de encontros com os prostitutos, classificação dos prostitutos em função do seu sucesso, recurso ao prostituto, distinção entre «sexo comprado» e «sexo grátis» e perigos da prostituição. Estas diferenciações e classificações internas mostram que o recurso à prostituição ou aos serviços dos prostitutos são práticas frequentes entre os homens homossexuais portugueses. Ou melhor, a riqueza interna deste campo cognitivo mostra que a prostituição masculina não é um estilo de vida exterior à comunidade gay portuguesa. Contudo, neste post, iremos apresentar um resumo de um estudo de caso realizado em Lisboa, usando materiais linguísticos e cognitivos adicionais, nomeadamente o léxico erótico gay português e textos publicados em revistas gay portuguesas. O uso destas metodologias adicionais num estudo triangular justifica-se quando se pretende apresentar uma visão interna dos grupos envolvidos nesse comportamento ou acontecimento.

Os homens homossexuais preferem usar mais o termo «chulo» do que o termo «prostituto» para designar aquele indivíduo que «oferece os seus serviços sexuais em troca de dinheiro e de outros favores», acentuando que o «chulo» não é o das «mulheres de má-vida», mas o dos maridos das mulheres heterossexuais, que lhe pagam para este lhes «ir ao cu».
Os «prostitutos homossexuais» distinguem-se por uma grande variedade de géneros e caracteres e muitos homens recorrem assiduamente, quase que diariamente, aos seus serviços. Os homens homossexuais que recorrem aos prostitutos ou aos belos «muchachos» não são apenas os mais «velhotes» que, devido às vissicitudes da vida, só decidiram assumir uma «existência gay», geralmente clandestina, muito tarde, mas também os mais novos, que, não sendo particularmente «bonitos» e/ou estando «fartos» do «enconanço» das beldades dos bares, andam às voltinhas no Parque Eduardo VII ou em Belém, de resto lugares públicos policiados.
Em Lisboa, os lugares da prostituição masculina revelam muito o carácter dos prostitutos. Em Belém, os prostitutos são geralmente rapazes da vizinhança, dos bairros operários localizados em redor do jardim ou soldados do Quartel da Calçada da Ajuda, e são geralmente do tipo «machão», pouco profissionais, ansiosos por acabar e receber o «papel». No Parque Eduardo VII, encontra-se de tudo, desde os prostitutos preocupados com o prazer dos clientes que, segundo alguns testemunhos homossexuais, podem até tornar-se «bons amigos», até aos prostitutos mais profissionais e menos dignos de crédito e de confiança. No Terminal, existem prostitutos de todos os géneros ou gostos, incluindo toxicodependentes dispostos a tudo para arranjar dinheiro para o «chuto», marginais cadastrados e perigosos, e «criancinhas vagabundas», geralmente expulsas de casa pelos pais, que vagueiam em bandos pelas ruas.
Os chamados «utilizadores dos chulos» não são somente os homens casados heterossexualmente e os homossexuais cansados da vida dos bares, mas também «homens (publicamente) conhecidos», tais como «políticos, empresários e intelectuais da nossa praça», que procuram alguns «momentos de prazer». Além disso, muitos «casais homossexuais», que, por definição (oficial) gay, «orientam as suas vidas para um amor saudável e gratificante, porque entre iguais», podem ir e vão os dois à «aventura», portanto, à «procura de um bom chulo».

Contudo, todos os frequentadores de prostitutos correm imensos riscos, desde «acabar com uma faca no pescoço» até «entrar em casa e descobrir que foram assaltados».

Geralmente, os «utilizadores de chulos» preferem «engatar de carro», embora também haja quem o faça de modo pedonal, correndo riscos acrescidos, nomeadamente ir para o «lugar ali escondido», onde «não vai lá ninguém» e, por isso, «podemos estar à vontade» («cair na treta do lugar escondido»), mas, quando o cliente «já está com ele (o pénis) na boca», pode ser surpreendido e «encurralado» por 2, 3 ou 4 «matulões». Porém, também aquele cliente que faça o «engate» de carro e vá para um «lugar escondido» para praticar a actividade sexual previamente (ou não) «combinada», pode ser surpreendido pela «visita dos matulões» e ser assaltado, despido, amarrado e, nalguns casos, ver o próprio carro roubado. E não são somente os «engates de rua» que originam estes riscos, também os «engates» realizados em bares ou discotecas podem ter essas consequências.

Quando o contacto é estabelecido, os chulos contam imensas «histórias», o chamado «choradinho dos coitados» ou «tretas dos chulos»: uns não têm casa, emprego ou dinheiro; outros falam das suas «passagens pela prisão»; outros ainda recorrem à «velha história das multas para pagar». Os chamados «otários», ou seja, aqueles que «caem no choradinho dos coitados», levam-nos para casa, com o objectivo de aí concretizar o encontro sexual. Mas, como se sabe, levar o chulo para casa e sobretudo deixá-lo a dormir em casa de manhã, sozinho, enquanto o «cliente» vai trabalhar, não é uma «boa decisão», porque acarreta riscos de diversos tipos: «Quando voltares, no mínimo, a aparelhagem e o vídeo já voaram». Alguns, provavelmente os mais solitários e carentes, dizem impensadamente para o prostituto: «se quiseres podes vir para cá até arranjares trabalho», «antecipando as longas noites de amor». Muitos prostitutos, sobretudo os toxicodependentes, «não nos largam mais a porta», além de terem «fortes possibilidades de estarem seropositivos».
Os «utilizadores de chulos» mais «escaldados», isto é, que já «entraram numa fria», segundo expressão brasileira, dizem fazer uma «avaliação cuidada do chulo antes de o trazer para casa», procurando «conversar demoradamente com ele», tentando «perceber o seu verdadeiro carácter por detrás da máscara», evitando «aqueles que se mostram muito intrusivos, com demasiado "à vontade" e intimidade, que insistem muito para serem levados para casa», não se deixando «cegar pela beleza e sensualidade ou pelo sorriso», preferindo «os que trabalham e manifestam claramente que estão ali não só por dinheiro mas também por prazer», não se deixando «comover pelas suas histórias e levar por bons sentimentos humanistas», ou não os considerando «como iguais» e, por conseguinte, não os colocando «no mesmo plano».
Os «chulos», dizem os homens homossexuais «sabidos», «simplesmente não são iguais a nós. Pertencemos a outro estatuto social, com diferentes backgrounds, diversas origens, valores sociais. Não podes esperar que alguém com educação e valores morais completamente diferentes dos teus, se comporte da mesma maneira. Isto não é elitismo, mas bom senso!» Por isso, em vez de optarem pela «treta do lugar escondido» do «chulo», são eles que escolhem os lugares: levam-nos ou para casa, ou para uma pensão, ou ainda para uma sauna, de resto uma oportunidade para dar um «banho aos chulos», já que higiene não costuma ser propriamente o seu forte. Outros «utilizadores» preferem levar «mais do que um chulo» e, nalguns casos, é o próprio «chulo» que, insistindo que não se pode separar do «amigo», procura convencer o cliente a levar ambos para casa. Como dizem os homens homossexuais: «O chuto do "corte" é, por natureza, cobarde sozinho, mas corajoso em grupo». Outros ainda, para garantir a sua segurança, combinam previamente com o «chulo» que, quando se levantarem bem cedo de manhã, ele deve ir embora ou então que é melhor ir logo para casa depois do «servicinho».

Na altura em que a nossa pesquisa de terreno foi realizada, os preços médios do mercado eram dois mil escudos por «foda». Os chamados «cámones», designação dada pelos portugueses aos «utilizadores» estrangeiros, pagam acima dos preços nacionais, o que leva os prostitutos a preferi-los e/ou a subir os preços. Como os preços variam em função da actividade sexual, o «utilizador» e o «chulo» tendem a combinar claramente «tudo o que se vai fazer depois na cama», o que não acontece geralmente nos «engates normais». Se essa conversa não ocorrer, corre-se o risco de «haver mal entendidos», com o «chulo» a exigir mais do que lhe é devido.

De todos os tipos de «chulos», os mais temidos pelos seus «utilizadores» são os toxicodependentes de drogas endovenosas. Os «meninos da pica» podem ser efectivamente perigosos, porque querem sempre mais dinheiro do que o combinado antes e são uns «chatos» que «não largam mais a porta», além de terem fortes possibilidades de estarem seropositivos, dado terem relações com pessoas diferentes todos os dias. Contudo, nem todos os «utilizadores» fazem questão em usar o preservativo, a chamada «camisinha», praticando actividades de risco, tais como penetração anal, receptiva ou activa, «ejaculação na boca» ou troca de «beijos molhados», em vez das recomendadas «carícias e massagens». Eles consideram essas buscas constantes por chulos como «brincadeiras» e, por vezes, essas brincadeiras podem valer a vida. Como diz o ditado: «Uma brincadeira não vale a tua vida!»
Como dizem os homens homossexuais, «os nossos "putos" são o equivalente das "putas" dos heterossexuais». Dado que a prostituição masculina, como todos os prazeres, «pode viciar», os «utilizadores dos chulos» vão «atrás dessa vozinha interior» que, sempre que tenham algum tempo livre, lhes segreda: «Vai dar uma volta». O resultado é verem a rubrica «chulos» cada vez mais pesada nos respectivos «orçamento mensais». Alguns homossexuais dizem ter «encontrado, nessas caçadas, o homem da sua vida», mas escusado será dizer que essa ligação durou muito pouco tempo ou, pelo menos, se tornou um «pesadelo». Estes homossexuais tendem a elaborar uma imagem idílica dos «chulos» ou, pelo menos, daqueles que insistem no dinheiro «apenas para se justificarem aos outros e também perante si próprios» de que «andam na vida apenas por causa do dinheiro», quando na verdade são homossexuais.

Com o advento da Internet e a sua comercialização, os sites e chat rooms gay, como GayDar (Elford et al., 2004), têm geralmente uma secção, a dos perfis, onde os prostitutos colocam o seu perfil, juntamente com o acompanhante, oferecendo os seus serviços de «massagens». Contudo, se tende a substituir os bares como nova arena erótica (Brown, Maycock & Burns, 2005; Ross, 2005), a Internet ainda não mostrou todo o seu potencial no domínio da prostituição masculina, pelo menos em Portugal, e até mesmo na Holanda esse negócio online é mais lucrativo no âmbito da prostituição feminina. Os clientes de prostitutos masculinos parecem não ficar satisfeitos com o erotismo e o nudismo online, exigindo encontros offline, realizados geralmente em hotéis.

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Internet e Pornografia

A pornografia é geralmente definida como a descrição ou a imagem de corpos nus ou quase nus em contacto sexual, usada para entretenimento, excitação e estimulação sexuais e também como fonte de informação sobre a sexualidade, particularmente para as pessoas mais jovens (Trostle, 2003; Zillmann & Bryant, 1982).
A acessibilidade da pornografia nos mass media (jornais, revistas, filmes, televisão ou Internet) aumentou ao mesmo ritmo que o desenvolvimento tecnológico favorecia a sua produção e distribuição (Lewin, 1997). Os livros e as revistas foram o meio mais popular usado pelos indivíduos antes de 1970 e os filmes de 8-mm foram o meio preferencial dos anos 70 do século passado. Os filmes pornográficos tornaram-se mais acessíveis nos anos 80 do século XX e o VCR tornou-se frequente nas casas particulares. A TV a cabo e via satélite levaram a pornografia até às salas das pessoas. A Internet já era o meio dos anos 90 do século XX e continua a ser (Lewin, 1997).
Traeen & Nilsen (2006) estudaram recentemente o uso da pornografia na Noruega e os resultados mostraram que a maioria dos noruegueses, com idades compreendidas entre os 18 e os 49 anos, foi exposta à pornografia: 82% dizem ter lido revistas pornográficas, 84% viram filmes pornográficos, e 34% examinaram pornografia na Internet, dos quais 14% tinham participado em chatting eróticos no último ano.
Neste estudo, o género foi a variável mais significativa para predizer o uso da pornografia: os homens relataram maior uso da pornografia que as mulheres. O uso da pornografia por parte das mulheres parece estar muito conectada ao uso que os seus parceiros fazem da pornografia. Isto significa que as mulheres tendem a partilhar o uso da pornografia com os seus parceiros, talvez devido ao desejo manifestado por estes últimos. Comparadas com os homens, a maioria das mulheres que tinha visto pornografia na Internet durante os últimos 12 meses participou também em chatting eróticos.
Além disso, o uso da pornografia varia muito em função da orientação sexual: os homens gay/bissexuais e as mulheres lésbicas/bissexuais disseram ter feito um maior uso da pornografia do que os homens e as mulheres heterossexuais. O nível de educação predizia a exposição à pornografia na Internet, nas revistas e nos filmes. E os indivíduos mais jovens eram mais propensos a utilizar a Internet para ver materiais pornográficos e para a prática de chatting erótico. Finalmente, o número de parceiros sexuais estava associado com o uso da pornografia em todos os mass media e a idade em que começaram a fazer sexo estava associada com o uso da pornografia em revistas e em filmes.
Estes resultados são muito similares com outros resultados obtidos por estudos da pornografia por parte de suecos (Lewin, 1997), finlandeses (Haavio-Mannila & Kontula, 2003) e noruegueses (Traeen et al., 2004). Todos estes estudos mostraram que o uso da pornografia decresce com o aumento da idade e que uma elevada percentagem de utilizadores da Internet parece ver regularmente pornografia. Além disso, a Internet é o medium dos segmentos mais jovens da população, que a utilizam como um meio ou arena sexual.
Segundo Cooper (1998), os factores que facilitam este maior uso da Internet são a acessibilidade, a disponibilidade e o anonimato, geralmente referidos como the triple A-engine, aos quais King (1999) acrescentou a aceitabilidade. Contudo, quanto às diferenças, verifica-se que os homens e as mulheres fazem um uso diferente da Internet como arena sexual: as mulheres parecem preferir as actividades interactivas (chatting e e-mail), enquanto os homens parecem preferir as actividades individuais (Cooper et al., 2000; Podlas, 2000). O facto dos homens gay fazerem um maior uso da pornografia da Internet pode ser explicada pelo facto desta garantir maior anonimato (Benotsch et al., 2002; Rhodes et al., 2002; Tikkanen & Ross, 2003). Para estes indivíduos marginalizados, a Internet constitui um meio seguro que lhes permite revelar o seu "self verdadeiro" (Rogers), sem temerem represálias.
Num outro estudo norueguês, Träeen et al., (2002) tinham mostrado que 90% dos noruegueses dizem ter sido expostos a materiais pornográficos, embora muitos poucos usassem a pornografia muito frequentemente. Quanto à escolha do meio, os homens e as mulheres exibiam padrões diferenciados: os homens e os indivíduos mais jovens expressaram atitudes mais positivas em relação à pornografia do que as mulheres e as pessoas mais idosas. Os homens solteiros usavam solitariamente mais a pornografia, talvez para se excitarem e se estimularem sexualmente, e as mulheres usavam-na na companhia dos seus parceiros. Os homens novos usavam mais a Internet, tanto para observar sites pornográficos como para participarem em chatting eróticos. Apesar da especificidade e da permissividade da cultura sexual nórdica, existem algumas diferenças de género quanto às atitudes e ao uso da pornografia: os homens eram mais porno-orientados do que as mulheres, o que parece sugerir que a sua sex drive é mais elevada do que a das mulheres.
Os nossos resultados obtidos do estudo de campo, reforçado por uma ciberpesquisa do uso da pornografia em Portugal, cujo delineamento experimental se assemelha muito ao de Allen (2005), embora mais ousado em termos de procedimentos e de estratagemas, mostraram resultados semelhantes aqueles apresentados pelos estudos referidos, embora se suponha (erroneamente) que a nossa cultura seja menos permissiva que a cultura nórdica. Entre os homens gay e bissexuais observados, aqueles que fazem um uso compulsivo da Internet, com a finalidade de procurar parceiros sexuais, investem muito mais tempo, dinheiro e energia a perseguir experiências de cibersexo, com consequências negativas em termos de depressão, ansiedade e problemas relacionados com os parceiros reais (ciúmes, divórcios/separações, violência doméstica), além de serem mais propensos em desenvolver uma adição às ciber-relações sexuais online, sobretudo quando fazem uso diário ou quase diário, via Web-cam, da Internet, com uma multiplicidade de "amigos online".
Além disso, detectámos um outro comportamento: os indivíduos auto-intitulados bissexuais do sexo masculino, muitos dos quais casados heterossexualmente e com filhos, frequentam muitíssimo os chatting eróticos, em busca de parceiros sexuais, com os quais preferem fazer sexo ao fim da tarde, após saírem dos empregos, ou no período do almoço. E, quando não são bem sucedidos por meio da Internet, fazem as suas rondas em certas zonas de "frequência gay" ou dirigem-se às Estações de Serviços, onde facilmente têm encontros sexuais, antes de regressarem a casa, para junto da família. Por conseguinte, os homens gay e bissexuais possuem o seu lovemap preferido: um esquema cognitivo e emotivo que lhes fornece as trajectórias para as suas ideações e acções sexuais predilectas (Money, 1986). Finalmente, devemos referir dois outros resultados: os adolescentes ou mesmo alguns pré-adolescentes participam muito regularmente na prática de chatting erótico, procurando seduzir indivíduos mais velhos, com os quais desejam fazer sexo. Isto sugere que estes indivíduos muito jovens, que já descobriram a sua verdadeira orientação sexual, desejam ser iniciados nas práticas homossexuais por indivíduos mais velhos, pelos quais sentem uma forte preferência sexual, pelo menos durante a adolescência, independentemente do seu papel sexual preferido. Alguns homens heterossexuais, após contactarem regularmente com outros utentes homossexuais, revelam um forte desejo de experimentar relações sexuais: umas de cibersexo, com ou sem recurso à Web-cam, outras telefónicas e outras ainda offline. Curiosamente, a fluxo de contactos privilegiados observados saturadamente na pesquisa de terreno dos comportamentos homossexuais em lugares públicos foi observada igualmente na ciberpesquisa: os contactos gay entre indivíduos das cidades de Lisboa e do Porto são claramente preferidos, em detrimento dos contactos com indivíduos de outras cidades ou distritos portugueses, e, tal como se verifica nos estudos estrangeiros referidos, os homens usam muito mais a Internet com fins sexuais e uso da pornografia do que as mulheres, incluindo as lésbicas.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Sociologia Radical ou Sociologia em Crise?

A sociologia radical (Colfax & Roach, orgs., 1971) não é um movimento homogéneo, mas, apesar disso, podemos resumir as suas características básicas transversais a todas as suas formulações, das mais extremas às mais moderadas:
1) A sociologia radical tem um compromisso com os valores humanistas, nomeadamente com a ideia de auto-realização. Os teóricos radicais afirmam que o mundo social é produzido pelos homens através da praxis e, neste aspecto, aproximam-se da fenomenologia. O agente humano mantém uma relação dialéctica (não fixa) com a sociedade e com os outros homens.
2) A sociologia radical opõe-se à suposta concepção marxista da base ou infraestrutura e da superstrutura, criticando-a, bem como ao funcionalismo, por ver a consciência como um epifenómeno da base material.
3) A sociologia radical nega a erudição isenta de valores e a noção de objectividade que, muitas vezes, rejeita a própria objectividade.
4) A sociologia radical rejeita a predição e as leis da sociedade, em favor de um cepticismo que contesta tudo.
5) A sociologia radical estabelece um firme compromisso "moral" com determinados valores políticos não-reformistas: contestam as estruturas que estão na origem da sociedade burguesa.
Na sua obra The Coming Crisis of Western Sociology, Alvin Gouldner (1971) procura realizar uma síntese entre o marxismo e o funcionalismo, aceitando a necessidade de compromissos e de acção defendida pelas formulações mais moderadas da sociologia radical. Gouldner desenvolve a sua tese em torno de três pontos básicos:
1) A existência de duas sociologias no século XIX, ambas provenientes das ideias de Saint-Simon. Uma, o positivismo derivado a partir do pensamento de August Comte, apelava para uma camada privilegiada de cientistas e da burguesia. A outra, o marxismo, baseava-se no proletariado alienado e sem propriedade. A sociologia proveniente de Saint-Simon sofreu assim uma "fissão binária", donde resultou o desenvolvimento bifurcado da sociologia posterior.
2) Dentro de cada um destes tipos de sociologia desenvolveu-se um "dualismo metodológico", no qual o observador era visto como sendo "superior" aos agentes sociais que estavam a ser estudados. A sociologia reflexiva é tematizada como uma tentativa para unir o sujeito e o objecto e transcender as condições impostas pelo positivismo à sociologia. Como praxis autoconsciente que aceita o mundo como ele é e como devia ser, a sociologia reflexiva não é isenta de valores.
3) A sociologia académica contém um elemento crítico, embora esteja ligada à ordem estabelecida. Este componente potencialmente radical enterrado numa "estrutura conservadora abrangente" deve ser libertado e uma fonte dessa libertação reside no marxismo expurgado do seu carácter determinista e messiânico.
Para Gouldner, a "sociologia burguesa" não é ideológica ou, como afirmam alguns sociólogos radicais, «um instrumento do capitalismo das empresas americanas». A sociologia não constitui um todo unificado, mas uma multiplicidade de pontos de vista diferentes e contraditórios que precisam ser libertados. Tomando como referência a crítica de Marx ao hegelianismo, Gouldner escreve: «Assim como Marx desemaranhou as potencialidades libertadoras de um hegelianismo que estava completamente dominado pelos seus aspectos conservadores, assim também é possível transcender a Sociologia Académica e libertar do seu seio uma Sociologia Radical ou Neo-Sociologia». Contudo, ao contrário de Marx que criou uma teoria social construída em torno de uma epistemologia diferente da de Hegel, a sociologia radical de Gouldner carece de uma epistemologia, o que a torna débil perante a teoria marxista. E esta fragilidade é agravada pelo facto de Gouldner tratar o marxismo como um todo unificado que tende a subestimar os elos entre Lenine, Trotsky, Rosa Luxemburgo e Gramsci, como se a sua obra estivesse em discrepância com a teoria da maturidade de Marx. Além disso, acusa o marxismo e o positivismo de serem irreflexivos, portanto dominados pelo dualismo metodológico. Ora, se a objectivo do positivismo era reduzir a sociologia ao conhecimento de informação, o da teoria de Marx é claramente reflexivo, porquanto pressupõe que o teórico social pode ser modificado pelo seu próprio trabalho intelectual que está no centro da sua existência.
Quando afirma que a principal fraqueza do positivismo e de grande parte da sociologia moderna reside no facto de anunciar «o fracasso do homem em possuir o mundo social que criou», donde resulta o seu carácter conservador de «acomodação à alienação dos homens», Gouldner, sem disso se aperceber, nada mais faz do que repetir a análise da alienação e da coisificação de Marx, que, ao contrário do que pensa Althusser ou Della Volpe, atravessa todo o seu pensamento.
A teoria social é moldada por aquilo que Gouldner chama «pressuposições de domínio», as quais são diferentes no marxismo e na sociologia académica e, por isso, estas duas sociologias apelam para ordens sociais diferentes e, por conseguinte, para domínios diferentes. A solução, segundo Gouldner, é a sociologia reflexiva, na qual o funcionalismo e o marxismo se sintetizam e, deste modo, transcendem as pressuposições de domínio. Gouldner não nega os propósitos de mudar o mundo, mas atribui-os ao intelectual honesto e socialmente comprometido. Deste modo, a sociologia reflexiva converte-se num "negócio privado": a sua "missão histórica" é simplesmente transformar o sociólogo, penetrar na sua vida e no seu trabalho quotidiano, e enriquecê-los com "novas sensibilidades", levando o seu conhecimento de si mesmo para um novo nível histórico.
Na peugada de Weber ou de Mannheim, Gouldner propõe que o sociólogo, após ter expurgado a sua mente de tudo o que é sagrado e que está estabelecido, deve começar à maneira de Descartes: uma orientação céptica e individualista. Ao libertar-se a si mesmo da opressão, o sociólogo pode ajudar a libertar os outros, através da teoria e da prática, construindo uma nova sociedade mais humana. O seu radicalismo que consiste em praticar a descoisificação foi precisamente o que Marx rejeitou na maturidade. A teoria de Marx é inteiramente revolucionária e, como tal, visa a abolição de toda a miséria produzida pelo capitalismo, abolição levada a cabo por uma classe revolucionária.
Contudo, tal como os teóricos da Escola de Frankfurt, Gouldner (1979), aliás na peugada de Jan Waclae Machajski (1904), elaborou uma teoria segundo a qual a "nova classe" de intelectuais humanistas e da intelligentsia técnica, detentora do conhecimento, está a caminho do domínio social. Os seus membros são proprietários de "capital cultural", que existe basicamente na forma de educação mais elevada. Esta intelligentsia técnica começou a substituir a "velha classe endinheirada" no processo de desenvolvimento social, bem como no funcionamento do sistema da sociedade pós-industrial. Assim, segundo Gouldner, o futuro pertence aos seus membros de colarinho-branco, e não ao proletariado, como acreditava Marx. Eles defendem os seus próprios interesses materiais e não-materiais (maior rendimento e prestígio para os que detêm conhecimento técnico e burocrático), embora possam representar e promover melhor os interesses da sociedade como um todo. A nova classe subverte a hierarquia do tipo antigo e promove (aparentemente) a cultura do espírito crítico, mas ao mesmo tempo introduz uma nova hierarquia social do conhecimento.
Porém, como tem mostrado a história das últimas décadas, esta classe está longe de promover a democracia que está cada vez mais débil, correndo o sério risco de ser substituída camufladamente por uma oligarquia corrupta. Daí a necessidade urgente de reler Marx e recuperar o seu pensamento, não já para levar a cabo uma revolução social revolucionária, mas para defender a democracia real e participativa, na qual os governantes devem ser vigiados, controlados e responsabilizados pelos seus erros e, se necessário for, punidos. E esta releitura implica necessariamente o regresso da Filosofia à teoria social e política e, portanto, a despedida da sociologia e das ciências sociais e humanas que têm servido para o triunfo desta nova classe dirigente que, fingindo promover a democracia, procura eliminar toda a oposição.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Prática Teórica e Discurso Teórico

«Só há ciência do geral» (Aristóteles)
O objectivo deste texto é reler a resposta que Louis Althusser (1918-1990) elaborou, durante o período que se seguiu à publicação dos Elementos de Autocrítica (1972), para solucionar esta questão: o que se entende por discurso teórico?
A «solução» desta questão encontramo-la numa pequena obra de Louis Althusser (1978), intitulada Sobre o Trabalho Teórico. Althusser (1978) definiu o discurso teórico, na sua significação mais geral, como sendo «um discurso que tem por efeito o conhecimento de um objecto». No sentido exacto do termo, só existem objectos reais, concretos e singulares. Todo o discurso teórico procura realizar, em última análise, o conhecimento «concreto» desses objectos, quer na sua individualidade, quer nos modos desta individualidade. Mas este conhecimento é sempre o resultado de todo um processo de produção teórica, o qual visa a «síntese de uma multiplicidade de determinações» (Marx). Esta síntese mais não é do que o conhecimento concreto de um objecto concreto.
A síntese de conhecimento de que nos fala Althusser, na peugada de Marx lido inicialmente à luz das obras de Bachelard (1884-1962) e de Cavaillès (1903-1944), consiste na combinação-conjunção de dois tipos de elementos ou determinações de conhecimentos: elementos teóricos em sentido estrito ou conceitos teóricos (em sentido estrito) e elementos empíricos ou conceitos empíricos. Qualquer discurso, seja ele científico e/ou filosófico, utiliza palavras da linguagem quotidiana, ou expressões compostas construídas com palavras da linguagem quotidiana, mas que funcionam sempre de maneira diferente que na linguagem quotidiana.
No discurso teórico, as palavras e expressões compostas funcionam como conceitos teóricos: quer dizer que o sentido das palavras está nele fixado, não pelo seu uso corrente, mas sim pelas relações existentes entre os conceitos teóricos no interior do seu sistema teórico. «São estas relações — escreve Althusser (1978) — que atribuem às palavras, que designam conceitos, o seu significado teórico». O discurso teórico exige, na sua existência, a produção de expressões específicas, que designam conceitos teóricos. Eles podem ser, como vimos, conceitos teóricos em sentido estrito ou conceitos empíricos. Os conceitos teóricos dizem respeito às determinações ou objectos abstractos-formais, enquanto os conceitos empíricos dizem respeito às determinações da singularidade dos objectos concretos.
Os conceitos teóricos referem-se, portanto, a objectos abstractos-formais, que não existem em parte alguma a não ser no e pelo pensamento. Contudo, são indispensáveis para a produção do conhecimento concreto dos objectos concretos e reais. Sem eles não seria possível o conhecimento das determinações da singularidade dos objectos concretos, os quais são qualificados como existentes pelos conceitos empíricos. Quer dizer que os conceitos empíricos acrescentam aos conceitos estritamente teóricos as determinações da existência dos objectos concretos. A relação dos conceitos teóricos com os conceitos empíricos é assim «uma relação de realização»: os conceitos empíricos realizam os conceitos teóricos no conhecimento concreto dos objectos concretos. Assim, o conhecimento concreto dos objectos concretos mais não é do que a síntese dos conceitos teóricos necessários, combinados com os conceitos empíricos elaborados.
Qualquer discurso teórico pode, consoante o seu nível de abstracção, referir-se quer a objectos abstractos e formais, quer a objectos concretos e reais. Assim, os discursos teóricos referentes a objectos reais-concretos ou a objectos formais-abstractos pertencem a níveis teóricos diferentes: os primeiros constituem a teoria em sentido lato ou teoria empírica, enquanto os segundos poderão ser chamados discursos teóricos ou teoria em sentido estrito. Mas os discursos concretos supõem sempre a existência dos discursos abstractos, cujo alcance ultrapassa infinitamente o objecto dos primeiros. Deve acrescentar-se ainda que só se pode atingir o conhecimento dos objectos reais-concretos na condição de se trabalhar também, e ao mesmo tempo, com objectos formais-abstractos. O conhecimento destes últimos não tem nada de um conhecimento especulativo e contemplativo, concernente a ideias «puras». Pelo contrário, ele só tem em vista e só diz respeito aos objectos reais; só tem sentido porque permite forjar os instrumentos teóricos, os conceitos teóricos formais e abstractos, pobres em determinações empíricas, que permitem produzir, por fim, o conhecimento dos objectos reais-concretos, rico em determinações de existência.
Com a elaboração desta noção de discurso teórico fortemente influenciada pela filosofia de Wittgenstein (talvez mais o Segundo do que o Primeiro) e pelo neopositivismo lógico, Althusser parece romper com a sua anterior concepção da filosofia de Marx como uma «teoria da prática teórica», isto é, uma "epistemologia", sobretudo após ter denunciado a tendência teoricista que dominava as suas primeiras obras. Essa noção de teoria como prática teórica encontra-se nos textos que compõem Pour Marx (1966). Retomando alguns textos de Marx, Althusser define a prática em geral como «todo o processo de transformação de uma determinada matéria-prima dada num produto determinado, transformação efectuada por um determinado trabalho humano, utilizando meios ("de produção") determinados». Neste processo de transformação, o momento determinante é o momento do próprio trabalho de transformação, que põe em jogo, numa estrutura específica, homens, meios e um método técnico de utilização dos meios. Ora, para Althusser, a teoria é uma forma específica da prática, que pertence à unidade complexa da prática social de uma sociedade humana determinada. E, neste ponto, Althusser distingue a teoria e a Teoria: a primeira é toda a prática teórica científica, e a segunda, é a «Teoria das práticas teóricas científicas», portanto, uma epistemologia: «Teoria é a dialéctica materialista que não constitui mais do que um só todo com o materialismo dialéctico».
Para clarificar esta noção de conhecimento, Althusser recorre a Espinosa para ler a Introdução de Marx de 1857. A tese de Espinosa de que «temos uma ideia verdadeira» (retomada por Lenine para reforçar a verdade da teoria de Marx) permite-lhe ver que este filósofo inscreve antecipadamente toda a teoria do conhecimento, que raciocina sobre o direito de conhecer, na dependência do facto do conhecimento detido, recusando todas as teorias do conhecimento, tais como a de Kant e de Hegel, que sustentam que todas as questões são relativas à Origem, Sujeito e Direito de conhecimento, para fixar o processo e os momentos, os célebres «três géneros» do conhecimento (Espinosa).
Daqui resulta a ideia do conhecimento como produção constituída por três Generalidades: a Generalidade 1 constituída pela matéria-prima que a prática teórica da ciência transformará em conceitos específicos, portanto constituída por conceitos ainda ideológicos, "factos científicos" ou conceitos já cientificamente elaborados pertencentes a um estádio anterior da ciência (uma ex-Generalidade 3); a Generalidade 2 constituída pelo corpo de conceitos cuja unidade mais ou menos contraditória constitui a "teoria" da ciência no momento (histórico) considerado, "teoria" que define o campo em que é necessariamente colocado todo o "problema" da ciência (Repare-se na proximidade existente entre Althusser e Popper e Kuhn.); e a Generalidade 3 constituída pelo concreto-de-pensamento que é um conhecimento. Tal como sucede no processo de produção de mercadorias, no processo de produção teórica o momento determinante é a Generalidade 2: a ciência trabalha e produz novos conhecimentos ao transformar a Generalidade 1 (G1) em Generalidade 3 (G3). Portanto, «a prática teórica produz Generalidades 3 pelo trabalho da Generalidade 2 sobre a Generalidade 1».
Este enunciado permite compreender duas importantes proposições:
1. Entre a G1 e a G2 não pode haver identidade de essência, mas transformação real. Esta transformação pode implicar uma ruptura epistemológica entre ambas as generalidade, a primeira ideológica e a segunda, científica, como sucede no nascimento de uma nova ciência, ou uma definição da sua "relatividade" e dos seus limites subordinados de validade, como sucedeu com a mecânica newtoniana após a descoberta da relatividade e da mecânica quântica.
2. O trabalho que permite passar da G1 à G3 passa-se totalmente no pensamento. Tal como Marx ou mesmo Bachelard, Althusser pensa que o vector epistemológico vai do abstracto para o concreto. Porquê? Porque, «se o processo de conhecimento não transforma o objecto real, mas apenas a sua intuição em conceitos e depois em concreto-de-pensamento, e se todo este processo se passa «no pensamento» (Marx) e não no objecto real, é porque relativamente ao objecto real, para o conhecer, o «pensamento» trabalha sobre uma «matéria distinta do objecto real: trabalha sobre formas transitórias que o designam no processo de transformação, para produzir finalmente o seu conceito, o concreto-de-pensamento» ou objecto de conhecimento.
Com estas proposições, Althusser pode manter a tese do primado do objecto real sobre o objecto de conhecimento (posição materialista) e o primado desta tese sobre a tese da distinção entre o objecto real (o X que pretendemos conhecer) e o objecto de conhecimento que é mero concreto-de-pensamento produzido pelo pensamento e partilhado mediante a comunicação mediada linguisticamente. Daí o carácter público do conhecimento científico: conhecimento (socialmente) partilhado. A "incomensurabilidade" destes dois tipos de objectos rejeita em bloco a concepção empirista do conhecimento: «Esse investimento do conhecimento, concebido como uma parte real do objecto real, na estrutura real do objecto real, eis o que constitui a problemática específica da concepção empirista do conhecimento» (Althusser, Lire le Capital, 1975), confessada pelo século XVIII de Locke e Condillac e retomada pelo neopositivismo lógico. A distinção entre o objecto real e o objecto de conhecimento feita por Marx, na peugada de Espinosa, contra Hegel, «funda» uma nova concepção não-empirista do conhecimento, que não confunde os dois objectos: «a ideia de círculo, que é o objecto do conhecimento, (não deve ser confundida) com o círculo, que é o objecto real». De facto, o conceito de cão não ladra!
Contudo, Althusser não concluiu a sua tarefa: elaborar uma problemática da filosofia do conceito, a qual define o conhecimento como «um processo sem sujeito».
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 6 de janeiro de 2008

Graffitis e Latrinalia

Realizámos em Lisboa, no Porto e em Coimbra, um estudo de campo de alguns Terminais Rodoviários, mais conhecidos como «pontos de encontro gay». As cerimónias de corte homossexual ou, mais precisamente, as abordagens sexuais que se realizam nos Terminais Rodoviários fechados obedecem aos mesmos padrões das cerimónias que se efectuam nas Estações Ferroviárias, nas Estações do Metro, nas Estações de Serviços, nos Parques ou mesmo nos Aeroportos. A atenção dos seus frequentadores está fundamentalmente concentrada nas movimentações que ocorrem nos sanitários públicos e, em menor grau, nas salas de espera e nos serviços de bar ou de café das imediações.
A maior parte dos encontros sexuais observados são breves e casuais e pode ocorrer no interior dos sanitários públicos, onde também pode ocorrer a actividade sexual. Além da troca de olhares prolongados e das perseguições, a aproximação e a conversa casual são comportamentos de corte muito frequentes nesses lugares públicos. Durante as viagens de autocarro, podem formar-se parelhas homossexuais, tendo em vista uma relação sem obrigações nem compromissos. Nas Paragens de Autocarros ocorrem frequentemente rituais de corte homossexuais. Também podem ocorrer dentro dos autocarros, começando pela troca de olhares e de outros sinais de disponibilidade sexual. Se houver acordo sexual implícito, os dois parceiros sexuais potenciais podem sair na próxima paragem, dando início, já na rua, à dança ritual. Alguns homossexuais aproveitam o aperto dos autocarros para se roçarem contra os «homens bons» ou mesmo para passar a mão pelas nádegas ou pela região genital desses mesmos homens, como se se tratasse de um movimento involuntário, devido às circunstâncias locais.
Como os sanitários públicos são frequentemente utilizados pelos homens homossexuais e bissexuais para procurar parceiros sexuais ocasionais, tendo em vista a concretização de um encontro sexual casual, além de observarmos esses comportamentos in situ numa perspectiva ecológica social e etológica, resolvemos registar por escrito e fotograficamente as inscrições que eles gravam nas paredes e nas portas dos sanitários, com o objectivo de submeter posteriormente esse material a análise estatística.
Com efeito, as paredes e portas de muitos dos sanitários, sobretudo das retretes, estão repletas de «graffiti», cujos mensagens não se distanciam muito daquelas que foram recuperadas nas ruínas de Pompeia (H.H. Tanzer, 1939).
Embora a recolha e o registo fotográfico desses graffiti tenham sido realizadas com o objectivo de submeter esse material à análise de conteúdo, tal como foi aplicada por Arnold Arluke et al. (1987), John A. Bates & Martin Michael (1980), M.E. Burner & J.P. Kelso (1980) e Lynn Bartholome & Philip Snyder (2004), iremos limitar a nossa amostra a 35 graffitis recolhidos num Terminal Rodoviário de Lisboa.
Das três categorias de graffiti — «tourist graffiti», «inner-city graffiti» que compreende a «language of ghetto youth» e os «gang graffiti», e os «latrinalia» ou «bathroom graffiti», estudados por Alan Dundes (1996), investigámos apenas a última categoria, aliás registados em fotografias.
O primeiro estudo dos «bathroom graffiti» foi realizado por Allen W. Read (1977) em 1935, que, usando o termo «folk epigraphy», procurou elaborar fundamentalmente um glossário das palavras e frases «incrivelmente obscenas» recolhidas nos «restrooms» dos USA e do Canadá. Em 1953, Alfred Kinsey et al. (1970) descobriram que os graffitis contrastam significativamente em função do género do sanitário. Os homens produzem mais graffitis do que as mulheres e um número bastante grande desses graffitis masculinos (86%) é de natureza sexual, ao contrário dos graffitis femininos (cerca de 25%). A sua intenção óbvia é fornecer estímulo erótico aos inscritores e às pessoas que possam observá-los posteriormente.
Dundes (1966) observou cinco categorias diferentes de inscrições sanitárias — advertências e solicitações (a), pedidos ou comandos (b), direcções (c), comentários (d) e introspecção pessoal (e), concluindo que as inscrições são muito pouco frequentes nos sanitários das mulheres, e, quando aparecem, raramente fazem referência a tópicos sexuais e eróticos. Kinsey constatou que havia três assuntos principais nessas inscrições sanitárias: genitália (feminina ou masculina), actividade sexual, oral ou anal (heterossexual ou homossexual) e vocabulário vernáculo que, por associação, é eroticamente importante para a maioria dos homens. Dos graffitis masculinos, 75% eram homossexuais e, dos graffitis femininos, apenas 11% eram lésbicos.
Todos os graffitis recolhidos num Terminal Rodoviário de Lisboa são sexuais, provavelmente feitos por homens homossexuais, com excepção de apenas um que pode ser irónico. As nossas tentativas de recolher graffitis femininos fracassaram, pela simples razão de não termos observado nenhum, mesmo contando com a ajuda das mulheres heterossexuais e das lésbicas. Com esta escassez de inscrições femininas, não podemos estabelecer diferenças de género, a menos que se interprete essa ausência como uma diferença de género: as mulheres portuguesas são pouco dadas a fazer inscrições sanitárias e, se as fazem, as empregadas de limpeza apressam-se a apagá-las, o que já se verifica até mesmo nos sanitários masculinos localizados em lugares comerciais ou mesmo em algumas Estações de Serviço.
Tal como Kinsey, pensamos que os graffitis visam estabelecer comunicação com outros utentes dos sanitários e esta suspeita é reforçada pelo facto do Terminal estudado ser considerado um «lugar de engate homossexual», envolvendo o serviço de prostitutos masculinos. Este facto mostra claramente que os graffitis feitos nas paredes ou portas do sanitário masculino do Terminal são fundamentalmente interactivos.
Assim, podemos distinguir duas grandes categorias: graffitis heterossexuais (2,86%), que aparentam ser meros «insultos», e graffitis homossexuais (97,14%), mais ligados às actividades sexuais, oral ou anal, livres ou «profissionais», meras declarações de preferências sexuais ou mesmo comentários-respostas às mensagens de outros graffitis.
Isolámos cinco categorias de graffitis: actividades sexuais (1), respostas (2), homossexualidade (3), heterossexualidade (4), e prostituição masculina (5), das quais as duas primeiras categorias compreendem subcategorias. As percentagens são as seguintes: A categoria das actividades sexuais (54,28%) compreende quatro subcategorias: coito anal (25,71%), sexo oral (5,71%), ambos os actos referidos são desejados (8,57%) e actividade não especificada (14,29). A categoria das respostas deixadas por outros utentes em reacção aos anúncios inscritos (25,72%) inclui três subcategorias: aceitação (11,43%), Ironia ou insulto (11,43%) e a mesma preferência sexual (2,86%). As três restantes categorias são a homossexualidade (8,57%), a heterossexualidade (2,88%) e a prostituição (8,57%).
Estes resultados sugerem que naqueles sanitários públicos considerados como «zonas de frequência gay» os homens homossexuais inscrevem mais anúncios do que os homens heterossexuais e este facto torna-se ainda mais evidente nas Estações de Serviços, nas quais os camionistas e os homens homossexuais chegam a deixar inscritos os números dos telemóveis para marcar os encontros sexuais. Também neste aspecto comportamental os homens gay revelam ser mais promíscuos que os homens heterossexuais, fazendo sexo com múltiplos parceiros sexuais estranhos, por vezes de forma consecutiva, sem usar o preservativo nestes encontros casuais, que frequentemente se convertem em sessões de sexo grupal (orgias sexuais).
Porém, nesta amostra, as inscrições heterossexuais são mais agressivas do que as inscrições gay. Os nossos resultados são muito similares àqueles obtidos por B. Witter et al. (2005), Kurzban & Weeden (2005), Koziel & Pawlowski (2003) e Pawlowski & Koziel (2002), quando estudaram os anúncios íntimos publicados em jornais ou revistas, dos quais também realizámos um estudo estatístico. Os homens heterossexuais eram mais propensos a garantir e a procurar sinceridade numa relação, bem como a preferir parceiras atractivas e belas, enquanto os homens homossexuais eram mais propensos a incluir referências sexuais relativas a si próprios, nomeadamente as dimensões dos seus pénis, ou mesmo em exigir determinadas características sexuais dos seus potenciais parceiros sexuais.
Um estudo brasileiro da autoria de R.P. Teixeira & E. Otta (1998) analisou as diferenças de género em graffitis de banheiro, focando os aspectos da sexualidade humana, colectados nos banheiros de "cursinhos" pré-vestibulares e de uma universidade, localizados em São Paulo, SP, Brasil. Embora não tenham encontrado diferenças de género significativas em termos de frequência de graffitis sexuais, a utilização do Modelo de Regressão Logística mostrou quais as categorias de graffitis sexuais que diferenciavam os homens das mulheres. Nos "cursinhos", as categorias diferenciadoras foram analidade e xigamento, temas preferidos pelos homens. Na universidade, as categorias diferenciadoras foram xingamento e elogio sexual: os homens produziram maior número de xingamentos, e as mulheres realizaram mais elogios. O xingamento foi, portanto, uma categoria diferenciadora de géneros nos dois ambientes. Isto significa que os homens mostraram ser mais agressivos que as mulheres ao produzirem graffitis sexuais. Este facto sugere haver alguma relação entre agressividade e sexualidade, pelo menos entre os homens. Este estudo brasileiro é muito importante porque compreende uma amostra de graffitis feitos por mulheres, possibilitando a detecção de diferenças de género na produção de graffitis, as quais possibilitam uma melhor compreensão das duas sexualidades de género.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 5 de janeiro de 2008

Sex Drive e Diferenças de Género

Com este post, pretendo apresentar alguns indicadores comportamentais que revelam a existência de diferenças entre os homens e as mulheres no que se refere ao "sex drive". (Usarei esta expressão inglesa no masculino.) Como vou recorrer a muitos estudos empíricos, algumas largas dezenas, optei por não os referir neste post, de modo a torná-lo mais legível e, portanto, menos «académico».
Uso a expressão "sex drive" para referir a motivação sexual, geralmente dirigida à procura de actividade sexual e de prazer sexual. A capacidade sexual e o gozo sexual são outros dois conceitos associados: o primeiro é usado para referir o limite máximo de actividade sexual que cada indivíduo pode realizar, e o segundo, a quantidade de prazer que cada pessoa pode obter da actividade sexual. Como o "sex drive" pode ser melhor compreendido em termos da frequência e da intensidade do desejo, decidimos escolher alguns comportamentos, cognições e emoções, que, em conjunto, indicam motivação sexual.
1. Pensamentos, Fantasias e Excitação Espontânea. Os homens pensam mais em sexo do que as mulheres. As fantasias sexuais ocorrem com maior frequência nos homens do que nas mulheres. E os homens relatam mais excitação sexual espontânea do que as mulheres. Comparados com as mulheres, os homens pensam mais em sexo, relatam mais excitação sexual, e têm mais fantasias sexuais de diversos tipos, incluindo frequentemente sexo com diversos parceiros sexuais e envolvendo uma enorme variedade de actos sexuais. Estes dados mostram que os homens têm um elevado sex drive.
2. Frequência Desejada de Sexo. Os homens desejam ter sexo mais frequentemente do que as mulheres. E, se levarmos em conta a orientação sexual, verifica-se que os homens gay fazem mais sexo e com múltiplos parceiros sexuais, do que as lésbicas. Estes dados parecem indicar que os homens têm maior sex drive do que as mulheres, mesmo levando em conta a orientação sexual.
3. Número Desejado de Parceiros Sexuais. Os homens desejam e relatam significativamente mais parceiros sexuais do que as mulheres. Os estudos relatam a escassez de mulheres sexualmente promíscuas. Este desejo por parceiros múltiplos leva à actividade extramarital ou actividade extradiádica. Independentemente da orientação sexual, os homens relatam mais actividade extramarital, com parceiros múltiplos, do que as mulheres. Além disso, os homens são mais propensos a fazer sexo com pessoas (estranhas) que acabaram de conhecer. Os homens gay são, nestes comportamentos, muito mais hipermasculinos do que os homens heterossexuais e, nalguns estudos, relatam ter feito sexo com cerca de 500 parceiros sexuais diferentes.
4. Masturbação. As mulheres e as raparigas masturbam-se menos do que os homens e os rapazes. Estes dados mostram que os homens têm maior sex drive do que as mulheres e, por isso, masturbam-se com maior frequência.
5. Privação ou Descontinuidade Sexual. As mulheres adaptam-se mais facilmente a uma completa ausência de actividade sexual durante longos períodos de abstinência involuntária do que os homens. Estes são, portanto, mais relutantes a "passar sem sexo" do que as mulheres e, por isso, o seu sex drive parece ser mais elevado. O celibato entre mulheres católicas religiosas é melhor sucedido do que entre o clero. Com efeito, os homens católicos do clero relatam com frequência episódios de actividade sexual, e, se forem gays, essa frequência parece aumentar.
6. Emergência do Desejo Sexual. As raparigas iniciam a puberdade e alcançam a maturidade sexual mais cedo do que os rapazes. Apesar disso, os rapazes exibem interesse sexual e iniciam a actividade sexual mais cedo do que as raparigas, que começam a ter actividade sexual numa idade mais tardia. (Alguns homens homossexuais exibem um padrão feminino de puberdade.) Estes dados mostram que uma pessoa com elevado sex drive inicia a actividade sexual mais cedo do que uma pessoa com baixo sex drive. E também neste aspecto os homens revelam maior sex drive.
7. Procura versus Evitação, Iniciação versus Recusa. Uma pessoa com forte sex drive inicia e procura mais actividade sexual do que uma pessoa com fraco sex drive. As mulheres iniciam sexo menos frequentemente do que os homens, além de recusarem fazer sexo mais frequentemente que os homens. Porém, entre os homens, os gays são demasiado "fáceis" e disponíveis e, também aqui, exibem padrões hipermasculinos.
8. Preferência por Várias Práticas Sexuais. Uma pessoa com elevado sex drive pode desejar envolver-se num conjunto mais diverso de práticas sexuais do que uma pessoa com fraco sex drive. As mulheres sentem apelo por poucas práticas sexuais, ao contrário dos homens que desejam experimentar um vasto conjunto de práticas sexuais, tais como ver o parceiro despir-se, receber sexo oral ou mesmo a estimulação do ânus com o dedo. Além disso, os homens sentem um maior apelo por todas as parafilias do que as mulheres, que parecem ser pouco atraídas pela prática de sexo oral. Muitas realizam-na mais por obrigação do que por desejo sexual genuíno.
9. Sacrifício de Recursos para Ter Sexo. Uma pessoa com elevado sex drive sacrifica mais recursos para obter gratificação sexual do que uma pessoa com fraco sex drive. Os homens sacrificam mais recursos do que as mulheres para obter gratificação sexual. Compram mais produtos sexuais, consomem mais pornografia e filmes e revistas eróticos e põem mais frequentemente o seu casamento em risco, devido ao seu desejo de terem sexo extraconjugal, e recorrem mais aos anúncios íntimos. Os homens homossexuais tendem a exibir nestes aspectos comportamentais padrões hipermasculinos.
10. Atitudes Favoráveis em Relação ao Sexo. As mulheres exibem atitudes menos permissivas em relação ao sexo do que os homens. Em geral, são mais críticas em relação à promiscuidade sexual, ao sexo pré-marital, ao sexo extramarital e a diversas outras actividades sexuais, embora sejam mais tolerantes em relação à homossexualidade do que os homens heterossexuais. Criticam severamente a pornografia e exibem atitudes menos favoráveis em relação aos órgãos sexuais do que os homens, os quais não só admiram os seus pénis, como também falam das vaginas das suas companheiras.
11. Prevalência de Baixo Desejo Sexual. As mulheres exibem mais disfunções sexuais do que os homens, o que parece mostrar que estes têm maior sex drive do que elas, que relatam ausência séria ou patológica de desejo sexual, incluindo a perturbação de desejo sexual hipoactivo (APA). A maior parte dos conflitos e dos problemas vividos pelos casais é devida à ausência de desejo sexual das mulheres.
12. Auto-Avaliação do Sex Drive. As mulheres avaliam (e falam) as suas actividades sexuais menos frequentemente do que os homens. Como se trata de uma dimensão muito complexa de expor, preferimos não acrescentar mais detalhes sobre este comportamento.
Conclusão: Em todas estas 12 medidas, os homens têm um maior sex drive do que as mulheres. Falta explicar estas diferenças, mas, dado já ser tarde, direi apenas que a explicação biológica tende a explicá-las pelos níveis de testosterona no sangue ou sanguínea. Como os níveis de testosterona são maiores nos homens do que nas mulheres, o seu elevado sex drive pode ser explicado por esses elevados níveis de testosterona. Esta explicação recebe suporte empírico dos estudos de populações clínicas, dos transexuais e dos homossexuais masculinos e femininos. Todos estes estudos mostram que elevados níveis de testosterona estão associados a elevado sex drive. Contudo, outros estudos mostram que o papel da biologia pode ser moderado por factores sociais, mais no caso das mulheres do que no caso dos homens. O papel dos factores culturais também não deve ser desprezado.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Partidos Políticos e Democracia

O Ocidente vive tempos obscuros e Portugal está cada vez mais mergulhado na escuridão: as suas elites, independentemente da sua filiação partidária, apregoam o velho discurso do fim das ideologias políticas. Este discurso não beneficia o povo, porque as ideologias políticas servem principalmente para desenvolver a consciência política dos cidadãos. Apenas os indivíduos instalados nas diversas esferas de decisão da sociedade portuguesa, desde a criação da democracia, após os anos conturbados do processo revolucionário, têm interesse em manter esse discurso e agir em conformidade, de modo a silenciar o pensamento crítico, o único capaz de mostrar como a democracia está a ser usada para os enriquecer à custa do empobrecimento do povo, a quem recusam a cidadania e o seu direito de participar activamente na vida política, em defesa do interesse comum. Tal como é actualmente ritualizada, a democracia representativa consiste basicamente na confiscação dos poderes da maioria por parte de uma minoria que se identifica com o próprio poder, aliás incapaz de garantir a abolição da alienação social, como se estivesse interessado em manter ou mesmo em agravar as desigualdades sociais que se manifestam sem antagonismo social.
Os partidos políticos são organizações políticas que «têm por objectivo directo conquistar o poder ou participar no seu exercício» (Duverger), ou seja, organizações adaptadas à luta pelo poder político, que exprimem os interesses e os objectivos de forças sociais, de que são precisamente os meios de acção política. Esta definição é (supostamente) herdeira do pensamento de Karl Marx e de outros filósofos políticos: os marxistas sempre afirmaram o carácter de classe dos partidos políticos. Isto significa que os partidos políticos que surgiram com a extensão do sufrágio popular e as prerrogativas parlamentares, portanto, com a democracia liberal, representam, na luta política, os interesses das classes sociais ou das forças sociais que os suportam.
Os interesses destas forças sociais divergem: as forças sociais instaladas nas diversas esferas do poder não desejam alterar nada de significativo no sistema social e, por isso, os seus partidos são denominados partidos de Direita, enquanto as forças sociais desfavorecidas se mostram mais interessadas em introduzir mudanças sociais qualitativas e, por isso, os seus partidos são denominados partidos de Esquerda. Os primeiros querem conservar o status quo, enquanto os segundos desejam alterá-lo, quer por via de reformas (partido socialista), quer por via revolucionária (partido comunista).
Porém, nem todos os partidos que concorrem às eleições têm capacidade para vencer: não são partidos de poder e, por isso, se conseguirem obter representação parlamentar na Assembleia da República, estão condenados a fazer uma aliança ou a estabelecer um pacto com um dos partidos de poder e participar deste modo na governação. Os partidos de poder estão mais sujeitos à corrupção do que os partidos da oposição parlamentar ou extraparlamentar (Veja Memória e Amnésia Histórica do Socialismo).
De facto, como se torna cada vez mais evidente, os partidos de poder corrompem-se facilmente e, em vez de garantir a clarificação democrática e o seu aprofundamento permanente em direcção a uma democracia real, portanto, mais participativa, podem estar a contribuir para o eclipse da democracia. O facto de um partido assumir-se como partido de centro pode significar que abandonou realmente a sua ideologia de base, distanciando-se das suas tradicionais forças sociais de apoio, e revelando maior interesse em garantir a conquista do poder para distribuir cargos e empregos aos seus quadros do que em cumprir as suas falsas promessas eleitorais. Comportam-se como partidos de massas durante as eleições, quando precisam de conquistar os votos de vastos sectores da população para vencer as eleições, mas, uma vez atingido esse objectivo, convertem-se rapidamente em partidos de quadros que esquecem que a sua missão é servir o interesse comum ou, pelo menos, cumprir as suas promessas eleitorais. Quando os partidos deixam de representar genuinamente os interesses e aspirações dos seus militantes ou adeptos e das forças sociais que os apoiam, degradam-se e, por isso, transformam-se em organizações usadas para a obtenção de empregos e para o enriquecimento fácil dos seus lideres e quadros.
Os seus dirigentes usam e abusam do poder para satisfazer os interesses privados e particulares de um círculo restrito de oportunistas que os frequentam para garantir benefícios pessoais, em detrimento dos interesses sociais das suas bases de apoio, de resto manipuladas e escandalosamente enganadas com falsas promessas, ou mesmo do interesse nacional. Esta degradação dos partidos políticos tem sucedido rapidamente em Portugal e a sua consequência mais directa é a degradação da vida política que afasta os cidadãos da política vista como um «mal menor». A alienação política parece ser um dado incontornado, cada vez mais agravado pelo aprofundamento da alienação social. Os membros do povo não são reconhecidos como indivíduos particulares e muito menos como cidadãos.
Não é por acaso que o estudo da ciência e da filosofia política tenha sido retirado dos currículos escolares pré-universitários: as classes dirigentes nacionais, profundamente corrompidas, não estão interessadas na educação e na formação políticas dos cidadãos portugueses e, tal como Salazar, preferem mantê-los ignorantes e afastados da política, de modo a não poderem organizar-se como oposição. Em Portugal, esta alienação política ainda assenta numa grave alienação social: as desigualdades sociais agravam-se de dia para dia e a miséria torna-se cada vez mais visível. A sua visibilidade é a manifestação mais evidente da transfiguração (interna) da democracia, operada pelas suas elites. Em todo o mundo ocidental, a democracia está a converter-se realmente numa oligarquia cleptocrática, através da qual uma minoria de indivíduos abusadores e corruptos governa e enriquece, ao mesmo tempo que mantém sujeitada a maioria dos indivíduos, que, de resto, desprezam profundamente, como se fossem gado, apresentando o seu «destino» como uma fatalidade incontornável.
Contra este estado de coisas e para lhe fazer frente, pretendo retomar a minha releitura de Marx em chave liberal, já exposta lacunarmente em posts anteriores, com o objectivo de mostrar que os partidos políticos são ambivalentes e que, nas actuais circunstâncias de ausência de ameaça externa e de controle da economia através de uso abusivo do Estado por parte dos seus lideres e quadros, tendem a converter-se em adversários da democracia. Os partidos são usados para obter empregos e riqueza e não para governar em função de um projecto comum que defenda o interesse geral em detrimento dos diversos interesses particulares.
Curiosamente, o Estado Social, inicialmente imaginado para combater as desigualdades sociais e melhorar as condições de vida de todos os cidadãos, é, neste momento, um dos maiores inimigos da democracia: os revolucionários ou reformistas de ontem são os "oligarcas" de hoje. Em Portugal, esta geração grisalha garantiu o seu próprio futuro e o dos seus filhos, ao mesmo tempo que roubou o futuro da maioria dos portugueses. Marx ensina-nos que devemos assumir a nossa condição de cidadãos e desenvolver uma nova consciência política, para podermos participar activa, racional e livremente na vida política e tomar nas nossas mãos o nosso próprio destino. Caso contrário, se não assumirmos a nossa condição de cidadãos, o futuro pode não nos reservar uma vida autónoma e digna de ser vivida. Destituídos dos nossos direitos naturais, que alienamos nos nossos supostos representantes, deixamos de ser homens humanos e cidadãos capazes de fazer um uso racional da palavra na esfera pública monopolizada pelos "eleitos". (Veja este texto de Manuel Rocha: Os Apóstolos.)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Linguagem e Política

À Memória da Minha Mãe Coragem que, se fosse viva, fazia hoje anos.
O título deste post reconduz-nos directamente a uma obra de Harold Lasswell (1949), intitulada A Linguagem da Política, onde este sociólogo político aplica a análise (estatística) de conteúdo para compreender a função propagandista dos slogans, nomeadamente os de 1º de Maio na União Soviética (1918-1943), recorrendo ao seu modelo processual da comunicação.
O modelo de comunicação de Lasswell é claramente um modelo de comunicação de massas. Para compreendermos os processos da comunicação de massas, precisamos de estudar cada uma das fases do modelo de Lasswell, a saber:
Quem
Diz o quê
Em que canal
A quem
Com que efeito?
A comunicação é o resultado de uma relação entre dois sujeitos, um activo e o outro passivo: o primeiro (Quem) diz a sua mensagem (Diz o quê), através de um meio (Em que canal), ao segundo quem (A quem), com determinadas consequências (Com que efeitos).Trata-se de uma versão verbal do modelo original de Shannon & Weaver e, como tal, continua a ser linear: a comunicação é encarada como transmissão de mensagens e, em vez de levantar a questão da significação, coloca a questão do “efeito”.
O “efeito” implica uma mudança observável e mensurável no receptor, mudança essa causada por elementos identificáveis no processo. Mudar um desses elementos mudará o efeito: podemos modificar o codificador, podemos mudar a mensagem, podemos mudar o canal — cada uma dessas mudanças deverá produzir, no efeito, a mudança adequada.
A maior parte da investigação sobre comunicação de massas deriva claramente deste modelo linear baseado no conceito de comunicação como processo de transmissão de mensagens. Os estudos científicos da comunicação especializaram-se, precisamente por incidirem num ou noutro dos elementos deste diagrama. As análises do controlo estudam «o quem profissional»; as análises dos meios ocupam-se dos canais; e, ao estudar «o quem que recebe a comunicação», as análises tratam ou do público que percebe as mensagens, ou do impacto da mensagem (análise de efeitos).
Nixon acrescenta dois elementos ao modelo de Lasswell, a saber:
— O primeiro elemento é a ideia de que cada acto de comunicação tem uma intenção específica ou propósito.
— O segundo elemento diz que o êxito da comunicação depende do uso habilidoso de meios adequados sob condições favoráveis.
Esta alteração do modelo de Lasswell reflecte-se cientificamente num duplo plano de análise: a análise das intencionalidades do sujeito que fala, revelando o propósito procurado na sua comunicação, e a análise dos efeitos que a comunicação produz naqueles que a recebem.
Contudo, não é desta concepção quantitativa da linguagem política que pretendemos falar, mas chamar a atenção para o capítulo 4 d' O Homem Unidimensional de Herbert Marcuse, intitulado "O Fechamento do Universo do Discurso", onde este teórico crítico, membro da Escola de Frankfurt, denuncia o carácter unidimensional do discurso e da linguagem da política da administração total, completamente avessos aos modos de pensar bidimensionais e, portanto, dialécticos. Marcuse apresenta os "hábitos de pensar" predominantes na sociedade unidimensional, aquela que fomenta o conformismo e a adaptação em vez da mudança, nestes termos:
«Na expressão desses hábitos de pensar, a tensão entre a aparência e a realidade, o facto e o factor, a substância e o atributo, tende a desaparecer. Os elementos de autonomia, descoberta, demonstração e crítica recuam diante da designação, asserção e imitação. Elementos mágicos, autoritários e rituais invadem a palavra e a linguagem. A locução é privada das mediações que são as etapas do processo de cognição e avaliação cognitiva, Os conceitos que compreendem os factos e, desse modo, transcendem estes factos, estão a perder a sua representação linguística autêntica. Sem tais mediações, a linguagem tende a expressar e a promover a identificação imediata da razão e do facto, da verdade e da verdade estabelecida (oficial), da essência e da existência, da coisa e da sua função».
Ora, através de um determinado número de expedientes, tais como a funcionalização da linguagem, a perda do significado, a absorção do conceito pela palavra, o domínio do substantivo, a auto-avaliação, o uso de conceitos ritualizados imunes à contradição, a reconciliação dos opostos, a imunização contra o protesto, o uso de fórmulas hipnóticas, o uso da evocação em vez da demonstração, a linguagem personalizada, a identificação entre a pessoa e a função, o uso da redução hifenizada, o uso de abreviaturas, a imposição de imagens em vez de conceitos ou a supressão da história, a linguagem da administração total bloqueia o desabrochar do pensamento crítica e ajuda a repelir os elementos não-conformistas da estrutura e do movimento da palavra, afectando também o vocabulário, cada vez mais restrito e abreviado, e a sintaxe, promovendo o domínio tecnológico da mente e da matéria. No plano do comportamento social, esta linguagem operacionalizada ou funcionalizada produz conformismo social, reduzindo as formas linguísticas e os símbolos de reflexão, abstracção, desenvolvimento ou contradição, de modo a impedir o pensamento transcendente e crítico, o único capaz de levar os homens a reflectir e a tentar mudar qualitativamente a sociedade estabelecida. A filosofia bidimensional e dialéctica é neutralizada e as pessoas tornam-se incapazes de apreender que o reconhecimento dos factos requer a crítica desses factos, a qual torna possível elaborar alternativas sociais.
Embora Marcuse forneça muitos exemplos desses processos que funcionalizam a linguagem e o discurso, de modo a anular a sua capacidade negativa e transcendente, preferimos recorrer a outra sua obra, Um Ensaio para a Libertação (1969), já apresentado noutro post Sociedade Obscena, onde Marcuse defende que «a nova sensibilidade e a nova consciência que hão-de projectar e guiar tal reconstrução (do mundo em função de um novo princípio de realidade mais livre e justo) pedem uma nova linguagem para definir e comunicar os novos "valores"». Isto significa que «a ruptura com a continuidade do poder tem também de ser uma ruptura com o vocabulário do poder», imaginando uma nova linguagem da negação e uma racionalidade da imaginação criadora, capaz de produzir uma linguagem poética que promova nos indivíduos uma revolta linguística sistemática, a única que pode esmagar o contexto ideológico em que as palavras são empregadas e definidas, e colocá-las no contexto oposto: a negação da ordem estabelecida. Mais ainda: Segundo Marcuse, «a terapia linguística, isto é, o esforço rumo a palavras (e assim conceitos) livres de tudo, sem distorção do seu significado pelo establishment, postula a transferência de standards morais (e da sua validade) do establishment para a revolta contra ele». O vocabulário político deve ser remodelado de modo a extirpar a sua falsa neutralidade sociológica e a moralizá-lo em termos de Grande Recusa.
É certo que tanto Marcuse como Lasswell reconhecem o carácter ideológico da linguagem política, mas, ao contrário do segundo, um sociólogo empirista, Marcuse mostra a necessidade de operar uma terapia linguística capaz de substituir a linguagem da afirmação pela linguagem da negação, de modo a levar os indivíduos a tomar consciência do carácter histórico da ordem estabelecida e das suas possibilidades ou potencialidades concretas libertadoras, aquelas que apontam para a realização de uma sociedade mais livre, justa e fraterna.
Este post tem um outro objectivo mais prático: Alertar todos os amigos da Filosofia para a necessidade de fazer a sua defesa numa sociedade unidimensional como a nossa, mesmo que para isso tenham de se revoltar contra as actuais políticas economicistas e pseudo-educativas do Ministério da Educação, cujo sentido aponta para a abolição do pensamento crítico dos currículos do ensino pré-universitário, preferindo promover a falsa formação cultural em detrimento da Filosofia e das ciências fundamentais. Apesar dessa ameaça iminente, penso que este governo socialista não quer figurar na história como aquele governo que assassinou a cultura superior em Portugal.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Marxismo e Democracia

O colapso do Bloco Soviético constitui uma refutação, não da teoria de Marx, mas da sua leitura "comunista", aquela pressentida por Marx quando, no final da sua vida, dizia "não ser marxista". O fim desta leitura "comunista" de Marx permite resgatar o seu pensamento complexo, sujeito a diversas leituras possíveis, e restitui-lo finalmente ao liberalismo de Esquerda (Veja John Rawls e a Teoria da Justiça). Hoje, reler Marx é integrá-lo na herança da Civilização Ocidental e elaborar uma nova política de Esquerda, capaz de defender a democracia e a liberdade contra a democracia cleptocrática vigente nas actuais sociedades ocidentais (Veja Notas sobre Burocracia). A teoria de Marx é liberal e, neste post, pretendemos esboçar uma nova leitura daquilo a que chamaremos marxismo liberal.
O primeiro sistema completo de Hegel, o chamado sistema de Iena, foi formulado nos seus cursos na universidade de Iena, de 1802 a 1806, e compreende uma lógica, uma metafísica, uma filosofia da natureza e uma filosofia do espírito. Neste sistema, Hegel repudia a teoria do contrato social, afirmando que a "vontade geral" é o resultado de um longo processo que culmina na regulamentação final dos antagonismos sociais, isto é, na formação e consolidação do Estado Democrático. A vontade geral é o resultado do Estado e não a sua origem, como defendia Rousseau. O Estado mais primitivo era necessariamente um regime da tirania e da coacção. A tirania integrava os indivíduos, negando-os, mas com um resultado positivo: disciplinou-os e ensinou-lhes a obediência. A obediência à pessoa do tirano preparou a obediência à lei. Mas, após o Estado ter conseguido integrar os indivíduos e discipliná-los, a tirania desapareceu naturalmente, sem ser necessária a revolta do povo, cedendo o seu lugar ao regime da lei e da razão.
Para Hegel, a democracia é precisamente este regime da lei e da razão: a democracia representa a harmonização ou a identidade real entre o indivíduo e o todo social. A democracia é o mesmo governo para todos os indivíduos e a sua vontade expressa o interesse do todo. Além disso, a democracia reconcilia no indivíduo o "burguês", que tem em vista o seu próprio interesse, o "homem abstracto" de Marx, e o "cidadão", que busca o interesse do todo. A forma superior da democracia é, segundo Hegel, a "monarquia hereditária": a pessoa do monarca representa o todo elevado acima de quaisquer interesses especiais. Sendo monarca por nascimento, a sua autoridade é exercida naturalmente e sem coacção, como se fosse "por natureza" alheia aos antagonismos sociais. O monarca é, portanto, "o ponto de referência" mais estável e duradouro do movimento do todo, a "opinião pública" é o laço que une as esferas da vida e controla o seu curso e o Estado é uma organização racional da sociedade através das suas várias classes limitadas pela "classe universal": os "funcionários eleitos do Estado".
Na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito (1843), Marx critica a concepção hegeliana do Estado e do Direito. Marx rejeita a soberania encarnada por um homem, seja ele quem for (monarca hereditário ou presidente da república democraticamente eleito) e seja qual for a constituição política que limita os seus poderes, rejeita o Estado "político" e rejeita, de certo modo, o «político» enquanto político puro, isto é, o "político profissional". Com efeito, estes três elementos são repudiados porque assentam numa dupla-alienação: uma abstracção do ser real do homem, que se exprime nas relações reais entre os homens, e uma particularização do ser social e da sua vocação universal nos limites empíricos do Estado e do soberano. E é neste sentido que a crítica de Marx dos chamados "direitos do homem", levada a cabo nessa obra-prima que é Die Judenfrage (A Questão Judaica), deve ser compreendida:
«Toda a emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem.
«A emancipação política é uma redução do homem, por um lado a membro da sociedade civil, indivíduo independente e egoísta e, por outro, a cidadão, a pessoa moral.
«A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver absorvido em si o cidadão abstracto; quando como homem individual, na vida de cada dia, no trabalho e nas suas relações, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado os seus próprios poderes como poderes sociais, de maneira a nunca mais separar de si este poder social como poder político».
Marx critica a "democracia liberal", portanto, representativa, em nome de uma verdadeira democracia: real, concreta, aperfeiçoada e «política» no sentido de ser mais participativa e alargada a todos os cidadãos. Esta concepção de democracia está muito próxima da de Espinosa, como vimos neste post Espinosa e a Política, e está muito próxima da «bela e feliz liberdade dos gregos», que Hegel considerou ultrapassada pela organização racional da sociedade moderna. A democracia deve ser expressão do "povo real" e, como tal, deve promover a reconciliação da «sociedade civil» (indivíduos e famílias reais) com o Estado. Para Hegel, a sociedade civil e a família são instituições dependentes do Estado. Pelo contrário, para Marx, a família e a sociedade civil constituem os fundamentos reais do Estado. Como escreve Marx:
«A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições (...). Hegel parte do Estado e faz do homem o Estado subjectivado. A democracia parte do homem e faz do Estado o homem objectivado».
A democracia é a expressão do homem real, isto é, do "povo real", portanto, democracia participativa, porque, como afirmava Espinosa, nenhum homem deve alienar noutro(s) homem(ens) todos os seus poderes, isto é, a sua liberdade:
«De um certo ponto de vista, a democracia está para todas as outras formas de política como o cristianismo está para todas as outras religiões. O cristianismo é a essência da religião. o homem deificado sob a forma de uma religião em particular. Do mesmo modo, a democracia é a essência de todas as outras constituições políticas, é o homem socializado como constituição política particular». (A democracia é) «o género da constituição. A monarquia é uma espécie e uma má espécie». (A democracia está) «para todas as outras formas políticas (concretas) como para o Antigo Testamento». Género ainda não realizado, nem no Estado hegeliano, nem sequer na república burguesa, porque estes são realizações políticas, isto é, figuras particulares do universo social.
A razão desta incapacidade do Estado político para encarnar o universal numa democracia real e aperfeiçoada deriva da existência das classes sociais e do antagonismo social. A classe dominante confisca em seu proveito todo o poder político e a alienação social desemboca na alienação política. No Estado moderno democrático, existe efectivamente uma separação entre o Estado e a sociedade civil, entre o homem privado e o cidadão. A abolição da alienação política exige (como condição prévia) a abolição da alienação social. A "sociedade comunista" foi a designação escolhida por Marx para nomear aquela sociedade em que a democracia real substituirá a democracia formal: o Estado formalmente democrático cederá o lugar à sociedade realmente democrática, onde todos os cidadãos possam participar livre e racionalmente na esfera pública, perseguindo o interesse comum.
Ora, se é verdade que o projecto político de Marx visava a instauração de uma sociedade verdadeiramente democrática, independentemente do nome que tenha escolhido para a definir, a leitura "comunista" do seu pensamento anulou teórica e praticamente a democracia entendida como «reino da liberdade» e, de Marx, reteve, sobrevalorizando-a, apenas uma noção infeliz: a "ditadura do proletariado". Esta expressão aparece, em estado prático, no Manifesto do Partido Comunista, mas sem ser nomeada. É numa carta de Marx a Weydemeyer (1852) que encontramos esta frase: «A luta das classes leva necessariamente à ditadura do proletariado», posteriormente retomada na Crítica do Programa de Gotha (1875). Coube a Lenine conceber um partido comunista centralizado e fortemente disciplinado, avançando com o conceito de "centralismo democrático". Ora, como observaram muitos marxistas, sobretudo os marxistas ocidentais (Adorno, Horkheimer, Marcuse, Garaudy, Merleau-Ponty), este conceito constitui uma contradição nos seus próprios termos, portanto, um oxymoron (oxímoro). Rosa Luxemburgo viu bem que a ditadura do partido único era incompatível com a democracia real defendida por Marx: «A liberdade é sempre a liberdade daqueles que pensam diferentemente».
O marxismo liberal que proponho como nova política de Esquerda condena completamente o centralismo democrático das actuais democracias ocidentais e defende uma reforma do Estado capaz de combater a burocracia com menos e melhor Estado, de garantir as condições objectivas da cidadania e de eliminar a corrupção que subverte internamente a democracia, convertendo-a numa oligarquia camuflada (Veja O Eclipse da Democracia). Sem cidadania não há verdadeiramente democracia: aqui reside o núcleo duro da concepção marxista da democracia real sempre em marcha de aprofundamento e também a chave da política verdadeiramente de Esquerda, sobretudo a socialista ou social-democrata, a qual lucra muito com a leitura de Hannah Arendt. A democracia é um regime (estritamente) político e, como tal, não deve ser generalizada a todas as esferas da sociedade. Sem esta restrição não é possível imaginar um projecto político de Esquerda credível: a igualdade de oportunidades é apenas uma condição para o exercício da cidadania e não o objectivo da própria política, que, doravante, se dirige a todos os homens e não apenas ao proletariado. (A teoria marxista do proletariado foi realizada e, por isso, tornou-se inútil.)
Devo dizer que reconheço as lacunas hermenêuticas desta reflexão que resolvi partilhar publicamente no começo deste novo ano de 2008. O meu amigo Agry faz uma leitura diferente de Marx: SOBRE A DEMOCRACIA. Afinal, sou liberal e respeito a liberdade de pensamento de cada cidadão. Em democracia, a palavra do homem não pode ser confiscada por outro homem e, por isso, a representação como confiscação tende a produzir abuso de poder. O marxismo liberal aceita e fomenta o diálogo alargado (a tolerância de John Locke) e a crítica e, apesar de ser um movimento ocidental, recusa abandonar os não-ocidentais na Idade das Cavernas. (Por isso, Marx viu sempre o aspecto positivo do colonialismo: uma oportunidade para a emancipação.)
J Francisco Saraiva de Sousa