O racionalismo cartesiano é alvo da animosidade do discurso ecológico contemporâneo, em particular da Ecologia Profunda elaborada por E. Goldsmith.
A ecologia profunda considera que o paradigma económico e o paradigma científico reflectem a mesma concepção do mundo: a concepção modernista do mundo (Heidegger), tematizada, pela primeira vez, de um modo explícito e teoricamente elaborado, por Descartes (Veja DESCARTES: Dominação e Revolta da Natureza e Fisiologia Cartesiana).
A metafísica cartesiana estabelece uma «distinção totalmente artificial» entre duas substâncias – a res cogitans e a res extensa, com o propósito de «proporcionar à ciência uma esfera de influência» crescente, liberta «dos grilhões com que a teologia a mantinha aprisionada». Reconhecer a substancialidade do corpo significa, em primeiro lugar, para Descartes, tornar possível a consideração e o estudo do corpo como tal, sem qualquer referência à alma ou aos seus atributos. A substância corpórea, quer seja o corpo humano, quer seja o corpo natural, tem um único atributo fundamental – a extensão em comprimento, largura e profundidade. Este é o resultado da abstracção pela qual se eliminam da natureza todas as suas qualidades e propriedades, reduzindo-as à extensão, o único atributo susceptível de ser inteiramente quantificado.
Muito antes de Descartes, Galileu tinha estabelecido como princípio que «só era real o que era quantificável, sendo assim o não quantificável excluído do domínio da ciência. A nova filosofia da natureza concebida por Descartes e por Galileu anunciava a ideia newtoniana segundo a qual a natureza consiste em átomos de matéria em movimento no tempo e no espaço. Isolar as características da matéria em movimento, que podem ser medidas e ligadas entre si por leis matemáticas, era compreender o funcionamento da natureza. O próprio Descartes dizia que se lhe dessem a extensão e o tempo, poderia construir o universo». A redução da natureza à extensão permitiu que Descartes pudesse «ver o mundo como uma imensa máquina – tese mecanicista que ainda hoje justifica a ciência moderna e que constitui a base racionalizadora do desenvolvimento económico e da industrialização».
A ecologia profunda capta um aspecto fundamental da teoria crítica da natureza: a crítica da racionalidade instrumental (Horkheimer & Adorno; Gadamer) é inseparável da crítica da economia de mercado generalizada, do seu sistema burocrático e da sua ideologia do crescimento económico infinito ou, como se diz no momento presente, da sua «ideologia de mercado» (Ricoeur). O programa racionalista é denunciado, a partir deste princípio, como uma legitimação ideológica do sistema económico capitalista, responsável pela degradação e destruição da natureza, levadas a efeito em nome do progresso e do bem-estar do homem. A concepção modernista do mundo que corporifica assenta em duas crenças fundamentais:
1) a crença «de que todos os benefícios e, por conseguinte, os nossos bem-estar e riqueza verdadeira são antropogénicos; por outras palavras: produtos das ciências, da técnica e da indústria e, por isso, também do desenvolvimento económico que as alimenta: os benefícios inestimáveis proporcionados em tempo normal pela ecosfera – um clima estável e clemente, solos férteis e água pura, coisas sem as quais não há vida possível – são totalmente silenciados ou considerados como sem valor»;
2) a crença de que, «para a maximização de qualquer benefício, e portanto dos nossos bem-estar e riqueza, é preciso maximizarmos o desenvolvimento económico».
Ao impedir a compreensão das nossas relações com a natureza e a nossa adaptação a ela de maneira a aumentarmos ao máximo o nosso bem-estar e as nossas verdadeiras riquezas, a concepção modernista serve para «legitimar o desenvolvimento económico ou “progresso” – comportamento que, precisamente, nos leva à destruição do mundo natural, com as conhecidas consequências: pobreza, desnutrição, infelicidade humana generalizada».
A Ecologia Profunda de E. Goldsmith é, em última análise, uma crítica da economia de mercado globalizada e da sua racionalidade funcional, que, rejeitando a abordagem mecanicista e tecnomorfa dos diversos ecossistemas que constituem a ecoesfera, procura libertar a natureza da exploração técnica e económica a que tem sido submetida, de modo a conservar a sua ordem específica e a sua estabilidade. Para isso, propõe uma visão ecológica do mundo, assente em dois princípios fundamentais:
1) «O primeiro afirma que o mundo vivo, ou ecosfera, é a fonte original de todos os benefícios e de toda a riqueza, mas que só nos dispensará os seus benefícios na condição de preservarmos a sua ordem específica».
2) O segundo princípio diz que «o alvo supremo do comportamento numa sociedade ecológica deve ser a preservação da ordem do mundo natural ou do cosmos», tal como este surge aos olhos dos povos vernaculares. A hipótese Gaia – elaborada por James Lovelock, com a preciosa colaboração de Lynn Margulis – é essencial para a construção desta nova visão ecológica do mundo, na medida em que, ao desmentir cabalmente o mecanicismo cartesiano, recupera uma velha noção de natureza incompatível com a sua dominação. De acordo com esta hipótese, «toda a variedade de matéria viva na Terra, das baleias aos vírus, dos carvalhos às algas, poderia ser encarada como constituindo uma única entidade viva, capaz de levar a atmosfera da Terra a adequar-se às necessidades gerais e dotada de faculdades e poderes superiores aos das suas partes constituintes». Assim, Lovelock define «Gaia como uma entidade complexa que abrange a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo da Terra; na sua totalidade, constituem um sistema cibernético ou de realimentação que procura um meio físico e químico óptimo para a vida neste planeta». A concepção da natureza como um organismo vivo é assim a negação do mecanicismo e da sua lógica da dominação (Marcuse). Condenando o crescimento económico e a ideia de progresso infinito que lhe é subjacente, E. Goldsmith profetiza um Novo Caminho ou, se quisermos, uma nova política do ambiente: o regresso à natureza, à harmonia e à co-adaptação entre homem e natureza, tal como se verifica nas sociedades vernaculares. O Caminho é o contrário do Progresso: segui-lo é conservar e manter a ordem específica e a estabilidade da ecosfera. O Progresso é, pelo contrário, o falso Caminho, na medida em que perturba a ordem específica e reduz a estabilidade dos diversos sistemas naturais que compõem a ecosfera. O progresso é inegavelmente destruição, mas, como observa M. Horkheimer, o regresso à natureza seria ainda mais terrível: «Somos os herdeiros, para melhor ou para pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se aos mesmos por um regresso a estágios mais primitivos não alivia a crise permanente que deles resultou. Pelo contrário, tais expedientes conduzem-nos do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social. O único meio de auxiliar a natureza é libertar o seu pretenso opositor, o pensamento independente». A visão ecológica do mundo não se conforma «com o paradigma das ciências». Ao conhecimento científico opõe uma nova ecologia, definida, de modo provocante, como uma ecologia holística, una, qualitativa, subjectiva, teleológica, inata, inefável, enfim, como uma fé – «uma fé na sabedoria das forças que criaram o mundo natural e o cosmos de que fazemos parte; uma fé na sua capacidade de nos proporcionar benefícios […] vitais para a satisfação das nossas necessidades decisivas; uma fé na nossa capacidade para desenvolvermos esquemas culturais que nos permitam preservar o que resta da integridade e da estabilidade do mundo natural». Minar a fé no programa racionalista (Ernest Gellner) e substituí-la por uma fé no projecto ecológico é uma tarefa eminentemente prática, portanto, política, só possível mediante a sedução de indivíduos rebeldes que desejam alternar entre sistemas de significado lógica e cognitivamente contraditórios. Ciente desta dificuldade, J. Lovelock define, desde logo, o perfil psicológico e cognitivo dos seus «destinatários»: «A hipótese de Gaia destina-se a quem gostar de caminhar ou simplesmente ficar a observar, a magicar sobre as consequências da nossa experiência nela. É como um alternativa àquela perspectiva pessimista que vê a natureza como uma força primitiva a subjugar e a conquistar. É também uma alternativa àquela imagem igualmente deprimente no nosso planeta como uma nave espacial demente em viagem contínua, sem condutor nem objectivo, em torno de um círculo interior do Sol». De um modo mais radical e desesperado, a aceitação da ecologia profunda de E. Goldsmith exige «o abandono do próprio paradigma científico e da concepção modernista do mundo que é o seu fiel reflexo: ambos devem ser substituídos pela concepção ecológica do mundo». Esta substituição implica uma conversão, de cariz religioso, na medida em que «acarreta uma profunda reorganização do saber que forma a nossa visão do mundo». Diante da catástrofe ecológica que se adivinha, o homem terá que escolher, sob pena de morrer juntamente com o planeta, entre a utopia ou a morte, para usar os termos de R. Dumont. Em face desta revolta da natureza contra a sua instrumentalização, as ciências biomédicas e a eco-filosofia respondem com uma nova concepção da natureza, da ciência e do homem, fundada em novos pressupostos metafísicos, éticos e estéticos (Herbert Marcuse). Mergulhada num horizonte instrumental que a usa como instrumento para garantir o crescimento económico e o controle social, a ciência moderna tem sido até hoje um saber de dominação (Max Scheler). De acordo com o «procedimento normal» instituído pelas grandes empresas capitalistas, conhecemos algo na medida em que podemos dominá-lo e compreendemos algo quando o «apreendemos» (Heidegger). Definimos os objectos mediante conceitos científicos e, com o recurso às definições operacionais, determinamos objectos e fazemo-los identificáveis, em função dos imperativos das grandes empresas económicas que subsidiam os projectos de investigação científica. Tendo como objectivo reconciliar o homem com a natureza, a síntese ecológica moderna não quer conhecer para dominar; em vez disso, deseja conhecer para participar na conservação da natureza maltratada pelo agir instrumental (Habermas). O conhecimento ecológico cria comunhão, cooperação e convivencialidade (Ivan Illich). A designação mais adequada a dar-lhe seria, talvez, por oposição ao saber de domínio, saber de comunhão (Max Scheler). A biologia conservacionista, tal como a estabelece E. Wilson, aliando-se à nova consciência ecológica que emerge por todas as partes do planeta e querendo reforçá-la, não se inibe em propor uma ética do ambiente, na qual a natureza, além de ser amada como se ama a uma Mãe (biofilia), passa a ser perspectivada como Sujeito: «Uma ética ambiental duradoura almejará preservar não apenas a saúde, o bem-estar e a liberdade da nossa espécie, mas também o acesso ao mundo em que o espírito humano nasceu». Se a comunhão ecológica planetária conseguir inverter o crescimento económico capitalista, então a natureza estará aí, não para ser dominada, mas sim para ser conservada, amada e glorificada como a Terra sem a qual não seríamos nada. No início do século XX, Edward Münch escreveu: «Eu ia pela estrada fora com dois amigos. Era o pôr do Sol. Invadia-me a melancolia. De súbito o Sol ficou vermelho de sangue. Parei e encostei-me à sebe, morto de cansaço, e olhei para as nuvens chamejantes que pendiam como sangue e uma espada sobre o fiorde azul escuro e sobre a cidade. Os meus amigos continuavam a caminhar. Eu fiquei ali tremendo de medo. E ouvi um grito alto e prolongado que atravessava a natureza». Tal como Edward Münch, também nós devemos estar a interrogar-nos: De quem seria aquele grito que ainda hoje se ouve? É o grito de uma parturiente que está a ser devorada por dentro pelos seus próprios filhos. Gaia não é um mecanismo: Gaia é a matriz da biodiversidade e da vida, cujo sofrimento é colocado em linguagem pela teoria crítica da natureza. J Francisco Saraiva de Sousa