O Ocidente vive tempos obscuros e Portugal está cada vez mais mergulhado na escuridão: as suas elites, independentemente da sua filiação partidária, apregoam o velho discurso do fim das ideologias políticas. Este discurso não beneficia o povo, porque as ideologias políticas servem principalmente para desenvolver a consciência política dos cidadãos. Apenas os indivíduos instalados nas diversas esferas de decisão da sociedade portuguesa, desde a criação da democracia, após os anos conturbados do processo revolucionário, têm interesse em manter esse discurso e agir em conformidade, de modo a silenciar o pensamento crítico, o único capaz de mostrar como a democracia está a ser usada para os enriquecer à custa do empobrecimento do povo, a quem recusam a cidadania e o seu direito de participar activamente na vida política, em defesa do interesse comum. Tal como é actualmente ritualizada, a democracia representativa consiste basicamente na confiscação dos poderes da maioria por parte de uma minoria que se identifica com o próprio poder, aliás incapaz de garantir a abolição da alienação social, como se estivesse interessado em manter ou mesmo em agravar as desigualdades sociais que se manifestam sem antagonismo social. Os partidos políticos são organizações políticas que «têm por objectivo directo conquistar o poder ou participar no seu exercício» (Duverger), ou seja, organizações adaptadas à luta pelo poder político, que exprimem os interesses e os objectivos de forças sociais, de que são precisamente os meios de acção política. Esta definição é (supostamente) herdeira do pensamento de Karl Marx e de outros filósofos políticos: os marxistas sempre afirmaram o carácter de classe dos partidos políticos. Isto significa que os partidos políticos que surgiram com a extensão do sufrágio popular e as prerrogativas parlamentares, portanto, com a democracia liberal, representam, na luta política, os interesses das classes sociais ou das forças sociais que os suportam. Os interesses destas forças sociais divergem: as forças sociais instaladas nas diversas esferas do poder não desejam alterar nada de significativo no sistema social e, por isso, os seus partidos são denominados partidos de Direita, enquanto as forças sociais desfavorecidas se mostram mais interessadas em introduzir mudanças sociais qualitativas e, por isso, os seus partidos são denominados partidos de Esquerda. Os primeiros querem conservar o status quo, enquanto os segundos desejam alterá-lo, quer por via de reformas (partido socialista), quer por via revolucionária (partido comunista). Porém, nem todos os partidos que concorrem às eleições têm capacidade para vencer: não são partidos de poder e, por isso, se conseguirem obter representação parlamentar na Assembleia da República, estão condenados a fazer uma aliança ou a estabelecer um pacto com um dos partidos de poder e participar deste modo na governação. Os partidos de poder estão mais sujeitos à corrupção do que os partidos da oposição parlamentar ou extraparlamentar (Veja Memória e Amnésia Histórica do Socialismo). De facto, como se torna cada vez mais evidente, os partidos de poder corrompem-se facilmente e, em vez de garantir a clarificação democrática e o seu aprofundamento permanente em direcção a uma democracia real, portanto, mais participativa, podem estar a contribuir para o eclipse da democracia. O facto de um partido assumir-se como partido de centro pode significar que abandonou realmente a sua ideologia de base, distanciando-se das suas tradicionais forças sociais de apoio, e revelando maior interesse em garantir a conquista do poder para distribuir cargos e empregos aos seus quadros do que em cumprir as suas falsas promessas eleitorais. Comportam-se como partidos de massas durante as eleições, quando precisam de conquistar os votos de vastos sectores da população para vencer as eleições, mas, uma vez atingido esse objectivo, convertem-se rapidamente em partidos de quadros que esquecem que a sua missão é servir o interesse comum ou, pelo menos, cumprir as suas promessas eleitorais. Quando os partidos deixam de representar genuinamente os interesses e aspirações dos seus militantes ou adeptos e das forças sociais que os apoiam, degradam-se e, por isso, transformam-se em organizações usadas para a obtenção de empregos e para o enriquecimento fácil dos seus lideres e quadros. Os seus dirigentes usam e abusam do poder para satisfazer os interesses privados e particulares de um círculo restrito de oportunistas que os frequentam para garantir benefícios pessoais, em detrimento dos interesses sociais das suas bases de apoio, de resto manipuladas e escandalosamente enganadas com falsas promessas, ou mesmo do interesse nacional. Esta degradação dos partidos políticos tem sucedido rapidamente em Portugal e a sua consequência mais directa é a degradação da vida política que afasta os cidadãos da política vista como um «mal menor». A alienação política parece ser um dado incontornado, cada vez mais agravado pelo aprofundamento da alienação social. Os membros do povo não são reconhecidos como indivíduos particulares e muito menos como cidadãos. Não é por acaso que o estudo da ciência e da filosofia política tenha sido retirado dos currículos escolares pré-universitários: as classes dirigentes nacionais, profundamente corrompidas, não estão interessadas na educação e na formação políticas dos cidadãos portugueses e, tal como Salazar, preferem mantê-los ignorantes e afastados da política, de modo a não poderem organizar-se como oposição. Em Portugal, esta alienação política ainda assenta numa grave alienação social: as desigualdades sociais agravam-se de dia para dia e a miséria torna-se cada vez mais visível. A sua visibilidade é a manifestação mais evidente da transfiguração (interna) da democracia, operada pelas suas elites. Em todo o mundo ocidental, a democracia está a converter-se realmente numa oligarquia cleptocrática, através da qual uma minoria de indivíduos abusadores e corruptos governa e enriquece, ao mesmo tempo que mantém sujeitada a maioria dos indivíduos, que, de resto, desprezam profundamente, como se fossem gado, apresentando o seu «destino» como uma fatalidade incontornável. Contra este estado de coisas e para lhe fazer frente, pretendo retomar a minha releitura de Marx em chave liberal, já exposta lacunarmente em posts anteriores, com o objectivo de mostrar que os partidos políticos são ambivalentes e que, nas actuais circunstâncias de ausência de ameaça externa e de controle da economia através de uso abusivo do Estado por parte dos seus lideres e quadros, tendem a converter-se em adversários da democracia. Os partidos são usados para obter empregos e riqueza e não para governar em função de um projecto comum que defenda o interesse geral em detrimento dos diversos interesses particulares. Curiosamente, o Estado Social, inicialmente imaginado para combater as desigualdades sociais e melhorar as condições de vida de todos os cidadãos, é, neste momento, um dos maiores inimigos da democracia: os revolucionários ou reformistas de ontem são os "oligarcas" de hoje. Em Portugal, esta geração grisalha garantiu o seu próprio futuro e o dos seus filhos, ao mesmo tempo que roubou o futuro da maioria dos portugueses. Marx ensina-nos que devemos assumir a nossa condição de cidadãos e desenvolver uma nova consciência política, para podermos participar activa, racional e livremente na vida política e tomar nas nossas mãos o nosso próprio destino. Caso contrário, se não assumirmos a nossa condição de cidadãos, o futuro pode não nos reservar uma vida autónoma e digna de ser vivida. Destituídos dos nossos direitos naturais, que alienamos nos nossos supostos representantes, deixamos de ser homens humanos e cidadãos capazes de fazer um uso racional da palavra na esfera pública monopolizada pelos "eleitos". (Veja este texto de Manuel Rocha: Os Apóstolos.) J Francisco Saraiva de Sousa
17 comentários:
A alienação política faz parte da vida descomprometida e, por isso, heterónoma. A dignidade humana (apesar de n ser um termo grego) só se pode viver na polis. É um facto.
Contudo, na minha opinião, as pessoas mais inteligentes e excelentes fogem da política, e então levamos com os razoáveis ou mesmo medíocres, prolongando e agravando este estado. Se o povo é fantasmático como, aliás, me parece que faz parte da sua definição, os líderes representantes também me parecem da mesma natureza volúvel. Parece-me um país-fantasma, cheio de cópias mal feitas.
É isso: "um país-fantasma, cheio de cópias mal feitas".
improvisei este texto a partir de outro já previamente editado e constatei que o aprofundamento da democracia exige uma nova concepção de partidos políticos. Porém, tal como Platão, continuamos a ver a política como uma questão de governantes e governados. Procuro minar a noção de representação, sem ruptura.
Platão via assim, porque percebia que a liderança n pode ser delegada a toda a gente. O demos já era visto como as massas, ou seja, algo por si mesmo perigoso que deve ser controlado.
Gostaria de perceber melhor a sua ideia de superação do partidarismo político. Se está no outro texto, faça o link para eu ler.
Não está: é apenas uma ideia. Os partidos políticos já desempenharam um papel revolucionário na consolidação da democracia, mas actualmente contribuem para a sua degradação, bem como da política em geral. Daí a sua ambivalência. Neste momento, acho ser urgente restituir à sociedade civil mais poder e envolvê-la nos assuntos da esfera pública. Devemos trabalhar melhor a cidadania: a democracia é dos cidadãos.
Concordo com a leitura inicial.
Discordo do corolário. Não me parece que o sistema português se inscreva num género que “recusa” a cidadania. Os cidadãos é que dela se demitem todos os dias. É um novo tipo de obscurantismo de nível universitário demasiado hedonista e individualista para se incomodar senão ideologicamente ( ou nem isso ) com a causa do bem comum.
Em quantas Assembleias de Freguesia o Francisco já participou ? Touché ? E no entanto elas são abertas por definição. Claro que se comparecem sempre os mesmos o “poder” tende naturalmente a ser exercido pelos do costume. Mas o grande factor de alienação é o “american-dream part II, cuja demanda cada um gere em conformidade à sua própria agenda.
Subscrevo a restante parte do texto. Mas enquanto derivada do parágrafo anterior.
O final, aplaudo !
De facto, tem razão: nunca assisti ou participei numa Assembleia de Freguesia, não por estar alienado, mas porque sou talvez demasiado "académico", como diz. Prefiro trabalhar com conceitos, embora esteja sempre atento à realidade. Nem sequer estou inscrito no "meu" partido, apesar de o apoiar.
Estou mais voltado para a defesa da democracia e para o seu aprofundamento. A situação americana começa a ser preocupante. Tudo isso deve ser bem pensado em diálogo permanente com a nossa tradição ocidental. Esse pode ser o meu melhor contributo, embora tenha como tarefa a ciência. As escolas e as universidades, bem como outras instituições, devem fazer algo mais substancial pela defesa da cidadania: a formação cultural das pessoas é fundamental. As qualificações devem estar subordinadas à formação.
Espero que o Francisco não tenha deduzido do meu comentário que reduzo a cidadania à participação nas Assembleias de Freguesia.
Mas convirá que se banalizaram as "desculpas" para não comparecer nos centros de decisão da democracia directa.
Campeia por aí a postura tipica do treinador de sofá. E estes só levantam as nádegas do dito quando os respectivos interesses corporativos são "ameaçados". Ora assim é fácil. E é evidente que a deriva para a degradação do sistema é inevitável.
Aqui há tempos mostrei a um congresso de professores um exemplar da Constituição e perguntei quem de entre eles já tinha passado os olhos por aquele "romance" . Zero respostas e um comentário largamente apoiado:" para se ser cidadão de um país não se precisa de lhe conhecer a Constituição". Esclarecedor, não é ?
Concordo plenamente com o que diz. Luto contra isso há muito tempo, mas sem sucesso. Daí este meu interesse (ainda com reservas) pela blogosfera...
O ensino precisa de reforma muito mais profunda. Digo mais: ele está em declínio desde o 25 de Abril (sou democrata) e a responsabilidade vem de cima, incluindo as universidades que formam ou diplomam "analfabetos funcionais". Aplaudo a sua coragem.
É a geração grisalha: trataram da sua vida e são incapazes de tirar Portugal da "miséria". Aliás, não estão interessados nisso, até porque eles são os "coveiros". A mudança exige a sua dispensa... Eles sabem. Daí o seu discurso fatalista.
Vou mais longe!
É a geração grisalha e todos os por ela formatados. "Primus inter paris " incluidos !
( Passe os olhos por um texto que deixei no Bolinas com esse titulo...).
E quanto aos produtos Universitários, olhe que entre o analfabetismo funcional e a incompetência acritica que desagua em "funil-pensante-pragmático",que venha o Diabo e escolha !
Há ignorantes inofensivos ! Pelo menos mais inofensivos que alguns "letrados" permanentemente prenhes de certezas absolutas !!
Linkei o seu texto deveras brilhante. Obrigado pela dica.
Aveugle.Papillon
Fiz dois links: um com um texto meu de 2007, e outro com um texto de Manuel Rocha. Tenho outro sobre a incompetências dos actuais lideres políticos europeus. Peço uma ideia para o post seguinte. :)
Obrigado. Era um texto inicial: a memória é um tema que me acompanha, mas ainda não o conclui. Gostei da sua música. :)
Ideias nesta linha...hummm...deixe ver...
Porque não o papel dos média no processo politico democrático ?
Marx nunca contou com essa variável, aposto....
Não: apenas tem uns textos publicados nesses meios. Vou ver o que posso fazer.
O culto ao indivíduo faz com que as pessoas se afastem dos interesses comunitários. O sistema político-social como um todo possui muitas falhas, mas acredito que o principal vilão seja os meios de comunicação(TV, jornais, revistas) que atuam como um catalisadores da alienação das pessoas. Hoje o "eu" é mais importante que o "nós" e por isso as pessoas não se interessam em participar do dia-a-dia político da nação. E isso vale para quase todos os países democráticos.
Francisco parabéns pelo blog. Abs.
Marcelo Minutti(tecnozilla.blogspot.com)
Marcelo Minutti
Obrigado pelo estímulo. Concordo consigo quando diz que os meios de comunicação são responsáveis pela alienação das pessoas.
Também gosto do seu blogue. :)
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