A sociologia radical (Colfax & Roach, orgs., 1971) não é um movimento homogéneo, mas, apesar disso, podemos resumir as suas características básicas transversais a todas as suas formulações, das mais extremas às mais moderadas:
1) A sociologia radical tem um compromisso com os valores humanistas, nomeadamente com a ideia de auto-realização. Os teóricos radicais afirmam que o mundo social é produzido pelos homens através da praxis e, neste aspecto, aproximam-se da fenomenologia. O agente humano mantém uma relação dialéctica (não fixa) com a sociedade e com os outros homens.
2) A sociologia radical opõe-se à suposta concepção marxista da base ou infraestrutura e da superstrutura, criticando-a, bem como ao funcionalismo, por ver a consciência como um epifenómeno da base material.
3) A sociologia radical nega a erudição isenta de valores e a noção de objectividade que, muitas vezes, rejeita a própria objectividade.
4) A sociologia radical rejeita a predição e as leis da sociedade, em favor de um cepticismo que contesta tudo.
5) A sociologia radical estabelece um firme compromisso "moral" com determinados valores políticos não-reformistas: contestam as estruturas que estão na origem da sociedade burguesa.
Na sua obra The Coming Crisis of Western Sociology, Alvin Gouldner (1971) procura realizar uma síntese entre o marxismo e o funcionalismo, aceitando a necessidade de compromissos e de acção defendida pelas formulações mais moderadas da sociologia radical. Gouldner desenvolve a sua tese em torno de três pontos básicos:
1) A existência de duas sociologias no século XIX, ambas provenientes das ideias de Saint-Simon. Uma, o positivismo derivado a partir do pensamento de August Comte, apelava para uma camada privilegiada de cientistas e da burguesia. A outra, o marxismo, baseava-se no proletariado alienado e sem propriedade. A sociologia proveniente de Saint-Simon sofreu assim uma "fissão binária", donde resultou o desenvolvimento bifurcado da sociologia posterior.
2) Dentro de cada um destes tipos de sociologia desenvolveu-se um "dualismo metodológico", no qual o observador era visto como sendo "superior" aos agentes sociais que estavam a ser estudados. A sociologia reflexiva é tematizada como uma tentativa para unir o sujeito e o objecto e transcender as condições impostas pelo positivismo à sociologia. Como praxis autoconsciente que aceita o mundo como ele é e como devia ser, a sociologia reflexiva não é isenta de valores.
3) A sociologia académica contém um elemento crítico, embora esteja ligada à ordem estabelecida. Este componente potencialmente radical enterrado numa "estrutura conservadora abrangente" deve ser libertado e uma fonte dessa libertação reside no marxismo expurgado do seu carácter determinista e messiânico. Para Gouldner, a "sociologia burguesa" não é ideológica ou, como afirmam alguns sociólogos radicais, «um instrumento do capitalismo das empresas americanas». A sociologia não constitui um todo unificado, mas uma multiplicidade de pontos de vista diferentes e contraditórios que precisam ser libertados. Tomando como referência a crítica de Marx ao hegelianismo, Gouldner escreve: «Assim como Marx desemaranhou as potencialidades libertadoras de um hegelianismo que estava completamente dominado pelos seus aspectos conservadores, assim também é possível transcender a Sociologia Académica e libertar do seu seio uma Sociologia Radical ou Neo-Sociologia». Contudo, ao contrário de Marx que criou uma teoria social construída em torno de uma epistemologia diferente da de Hegel, a sociologia radical de Gouldner carece de uma epistemologia, o que a torna débil perante a teoria marxista. E esta fragilidade é agravada pelo facto de Gouldner tratar o marxismo como um todo unificado que tende a subestimar os elos entre Lenine, Trotsky, Rosa Luxemburgo e Gramsci, como se a sua obra estivesse em discrepância com a teoria da maturidade de Marx. Além disso, acusa o marxismo e o positivismo de serem irreflexivos, portanto dominados pelo dualismo metodológico. Ora, se a objectivo do positivismo era reduzir a sociologia ao conhecimento de informação, o da teoria de Marx é claramente reflexivo, porquanto pressupõe que o teórico social pode ser modificado pelo seu próprio trabalho intelectual que está no centro da sua existência. Quando afirma que a principal fraqueza do positivismo e de grande parte da sociologia moderna reside no facto de anunciar «o fracasso do homem em possuir o mundo social que criou», donde resulta o seu carácter conservador de «acomodação à alienação dos homens», Gouldner, sem disso se aperceber, nada mais faz do que repetir a análise da alienação e da coisificação de Marx, que, ao contrário do que pensa Althusser ou Della Volpe, atravessa todo o seu pensamento. A teoria social é moldada por aquilo que Gouldner chama «pressuposições de domínio», as quais são diferentes no marxismo e na sociologia académica e, por isso, estas duas sociologias apelam para ordens sociais diferentes e, por conseguinte, para domínios diferentes. A solução, segundo Gouldner, é a sociologia reflexiva, na qual o funcionalismo e o marxismo se sintetizam e, deste modo, transcendem as pressuposições de domínio. Gouldner não nega os propósitos de mudar o mundo, mas atribui-os ao intelectual honesto e socialmente comprometido. Deste modo, a sociologia reflexiva converte-se num "negócio privado": a sua "missão histórica" é simplesmente transformar o sociólogo, penetrar na sua vida e no seu trabalho quotidiano, e enriquecê-los com "novas sensibilidades", levando o seu conhecimento de si mesmo para um novo nível histórico. Na peugada de Weber ou de Mannheim, Gouldner propõe que o sociólogo, após ter expurgado a sua mente de tudo o que é sagrado e que está estabelecido, deve começar à maneira de Descartes: uma orientação céptica e individualista. Ao libertar-se a si mesmo da opressão, o sociólogo pode ajudar a libertar os outros, através da teoria e da prática, construindo uma nova sociedade mais humana. O seu radicalismo que consiste em praticar a descoisificação foi precisamente o que Marx rejeitou na maturidade. A teoria de Marx é inteiramente revolucionária e, como tal, visa a abolição de toda a miséria produzida pelo capitalismo, abolição levada a cabo por uma classe revolucionária. Contudo, tal como os teóricos da Escola de Frankfurt, Gouldner (1979), aliás na peugada de Jan Waclae Machajski (1904), elaborou uma teoria segundo a qual a "nova classe" de intelectuais humanistas e da intelligentsia técnica, detentora do conhecimento, está a caminho do domínio social. Os seus membros são proprietários de "capital cultural", que existe basicamente na forma de educação mais elevada. Esta intelligentsia técnica começou a substituir a "velha classe endinheirada" no processo de desenvolvimento social, bem como no funcionamento do sistema da sociedade pós-industrial. Assim, segundo Gouldner, o futuro pertence aos seus membros de colarinho-branco, e não ao proletariado, como acreditava Marx. Eles defendem os seus próprios interesses materiais e não-materiais (maior rendimento e prestígio para os que detêm conhecimento técnico e burocrático), embora possam representar e promover melhor os interesses da sociedade como um todo. A nova classe subverte a hierarquia do tipo antigo e promove (aparentemente) a cultura do espírito crítico, mas ao mesmo tempo introduz uma nova hierarquia social do conhecimento. Porém, como tem mostrado a história das últimas décadas, esta classe está longe de promover a democracia que está cada vez mais débil, correndo o sério risco de ser substituída camufladamente por uma oligarquia corrupta. Daí a necessidade urgente de reler Marx e recuperar o seu pensamento, não já para levar a cabo uma revolução social revolucionária, mas para defender a democracia real e participativa, na qual os governantes devem ser vigiados, controlados e responsabilizados pelos seus erros e, se necessário for, punidos. E esta releitura implica necessariamente o regresso da Filosofia à teoria social e política e, portanto, a despedida da sociologia e das ciências sociais e humanas que têm servido para o triunfo desta nova classe dirigente que, fingindo promover a democracia, procura eliminar toda a oposição. J Francisco Saraiva de Sousa
18 comentários:
Precisamente o que lhe referia ontem, o meu receio de que a infinita capacidade de metamorfose do capitalismo esteja a usar a ciência e a técnica e os seus agentes como cavalos de Tróia para mais um periodo de próspero reinado, desta feita sob a égide do "cientifico" ...
Derivas como as "novas oportunidades" proporcionadas pelo "conhecimento cientifico do aqueciemento global" são quanto a mim sintomáticas...
À sociologia em geral lamento o facto de por inerência do seu objecto se limitar ao "conhecimento postecipado", sem capacidade de "previsão" do devir.
Não sendo as sociedades compostas por reagentes quimicos em condições laboratoriais controláveis, os resultados da sua reacção provavelmente permanecerão sempre imprevisiveis.
Sabe que partilho as suas preocupações. Estas elites são perigosas!
Os inimigos têm rosto: são todos ou quase todos aqueles que ocupam os cargos de decisão.
Hummm...tenho dúvidas...as eminências pardas que contam raramente dão a cara, poucos são os que têm a obcessão do "apareço logo existo", como o Berardo. Os outros são mais do tipo Amorim - tão discretos quanto implacáveis !
Mas nestas dinâmcias o "berdadeiro perigo" vem dos crédulos por opção, daqueles sempre disponiveis para acatar as certezas e as verdades alheias desde que devidamente ilustradas no telejornal das 20 !
Quanto à sociologia em crise ( e agora que já acordou :)), julgo que isso tem a ver com a contigência de ela ter de seguir o cortejo dos acontecimentos, dificilmente pode antecipar-se-lhes. A economia sofre de resto do mesmo mal, por muito que o tenten disfarçar. Ou as variáveis são profusamente controladas ou só o acaso permite prever o dia de amanhã.
Recordo-me das minhas fundações da sociologia rural e de depois ter ido procurar o mundo que estudara e não o encontrei. Era história, a TV já estava de serviço e as dinâmicas sociológicas do avesso. Quando se estudava a interacção contando com a variável TV, eis que aparece a NET....e os sociólogos remetidos para um certo género de historigrafia que na falta de lobi poderoso como o da economia não se consegue afirmar...
acho que é mais por aí que pela eventual debilidade das teses que tentam explicar-nos socialmente.
Escrevi este post já em plena madrugada avançada, muito depois de ter visto "Prós e Contras" que costumo comentar. Como fiquei "chateado" com a sua "falsidade" e hipocresia, mudei de assunto.
A minha perspectiva é radical: a sociologia como "ciência" é um fracasso e claro a economia presta-se mais à promiscuidade e à corrupção perfeitamente visível nos luso-poderes. A filosofia deve assumir o seu património e não permitir ser assaltada por pseudocientistas da treta. A sociologia radical apropria-se da herança filosófica: anexa. A sociologia não produziu nada de original; apenas degrada o pensamento filosófico, sem qualquer responsabilidade pelo Ocidente.
Contudo, não tenho alternativa à economia de mercado. Amorim é empresário; os outros que deviam zelar pelo interesse comum corrompem-se e tratam da sua vidinha, desprezando o "povo". São estes que constituem a nova classe dirigente e têm rosto.
Quanto aos ritmos das mudanças sociais e tecnológicas, tem toda a razão: muito acelerados e isso coloca problemas existenciais e de adaptação ou mesmo da saúde mental. :)
Confesso que há radicalismos que me são simpáticos ! Essa afirmação de certas supostas ciências serem um fracasso vem de encontro a uma intuição antiga.
O objecto de estudo é dificil de "isolar" :)
Quanto aos tais dirigentes, sim, claro, pressupuesto, pero por demissão de nos otros, não ?
:)
Como diz o Presidente Cavaco Silva, a discrepância de salários e de rendimentos é injustificável. :)
Olha quem fala...desse tenho eu uma história das boas passada comigo mesmo...pena que não seja ético partilhá-la :)))
Tenho novidades filosóficas :))
A minha namorada clama ter resolvido o pardoxo lógico de Russell...diz ela que se o barbeiro fosse imberbe não há questão...estou tentado a concordar com ela...que diz ?
:)
Talvez sejam os "genes medrosos" de que fala no seu novo post?
Uma saída leve do paradoxo de Russell! A linguagem lógica é assim..., muito formal e vazia. O bom senso sempre pode fugir a ela e às suas aporias e paradoxos, de modo leve! :))
Mas convém ter em conta que esses paradoxos e a teoria dos tipos elaborada por Russell para fugir deles mostram que a segunda tentativa de redução também não foi bem sucedida. A quimíca não se reduz completamente à linguagem da física e a matemática, à da lógica.
Mais fisga menos fisga: dá tudo no mesmo. É praticamente impossível falar desses "problemas lógicos" sem recorrer ao cálculo e, neste meio, é difícil; só como imagem, suponho. Muito trabalho! :))
Papillon
Aceitei o "tal" convite! :)))
Olá Francisco!
Tenho estado um pouco doente (fortes enxaquecas,) e por tal tenho andado afastada do computador e da blogosfera especialmente.
Logo que me seja possível comentarei devidamente este post! :)
As melhoras, Helena! :)
Muito resumidamente aqui vai:
Problema social:
- "Problema de relações humanas que ameaça seriamente a sociedade, que impede as aspirações importantes de muitas pessoas" (Raab e Senick)
- "Uma situação incompatível com os valores de um significativo número de pessoas, que concordam ser necessário agir para a alterar" (Rubington e wWeinberg)
- "Uma violação das expectativas morais."
As diferenças na sociedade podem originar problemas sociais. Um problema social é um problema de relações entre indivíduos, entre grupos sociais ou mesmo dentro de determinado grupo social.
Um problema social pode ser a violação de certas expectativas morais. Geralmente envolve várias pessoas e vai contra os valores morais da sociedade. Contudo, nem sempre um problema social envolve muita gente, pode envolver um número resoluto de indivíduos mas é encarado como problema social se os indivíduos e a sociedade o encararem como tal.
Um problema social deriva de dificuldades económicas e sociais, da ausência ou transgressão de valores da sociedade, da indignação da opinião pública, de comportamentos desviantes, das desigualdades sociais, de questões do foro legal, da mediatização, e até mesmo do imaginário social.
Contudo, não esqueçamos que uma situação pode ser problema social num determinado sítio e noutro não, ser num determinado tempo e não ser noutro.
Um problema sociológico e todo o problema passível de análise da Sociologia. Que fique claro que nem todos os problemas sociais são problemas sociológicos.
Um sociólogo não pode embarcar no social pela mediatização. O sociólogo olha para os casos a partir dos factos. O transformar de um problema social em problema sociológico depende do olhar do sociólogo. O sociólogo tem de utilizar os métodos e técnicas da Sociologia.
Alvin Gouldner: novo arranjo de classe, nova classe ou burguesia cultural por opsição à antiga classe; intelectuais humanistas e "intelligentsia técnica"; alianças de classe; populismo demagógico; teoria geral do capital; C.D.C. cultura do discurso crítico; socialização do sistema educativo; socialismo de Estado, etc. etc.
Também eu estudei bastante Gouldner! :)
Obrigado Helena. Fico feliz por saber que partilhamos tb Gouldner. :))
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