sábado, 13 de outubro de 2007

Sociedade Obscena

Pretendo começar a familiarizar os meus amigos online com o pensamento de um filósofo que lutou pela libertação e pela democracia real: Herbert Marcuse. E recomendo desde já a leitura de uma pequena obra da sua autoria e traduzida em português: «Um Ensaio sobre a Libertação».
Marcuse afirma que a análise crítica da sociedade de consumo exige novas categorias: morais, políticas, estéticas, avançando com a categoria de obscenidade.
«Esta sociedade é obscena em produzir e exibir indecorosamente uma abundância sufocante de mercadorias, ao mesmo tempo que priva largamente as suas vítimas da satisfação de necessidades vitais; obscena em atulhar-se a si própria de bens, enquanto as latas dos seus desperdícios envenenam o mundo dos explorados; obscena nas palavras e nos sorrisos dos seus políticos; obscena nas suas orações, na sua ignorância e na sabedoria dos intelectuais que tolera».
Esta sociedade visada pela crítica de Marcuse é a sociedade portuguesa actual, que temos descrito como uma sociedade metabolicamente reduzida e profundamente corrompida nas suas altas esferas de decisão, e que vista à luz desta categoria moral se revela como uma sociedade imoral. É uma sociedade bloqueada dominada por uma ideologia afirmativa: os portugueses aceitam a agressão e a corrupção como procedimentos normais nos negócios e nos diversos sectores do Estado. Todos conhecem casos de corrupção danosa e alguns bem gritantes são divulgados pelos mass media, mas sem consequências. Os luso-corruptos são completamente obscenos e, mesmo quando publicitados, não reagem com vergonha, ou seja, não transmitem o sentimento de culpa que acompanha a transgressão de um tabu. Perderam a vergonha e o pudor. A sociedade luso-corrupta não tem vergonha. A tolerância portuguesa é simplesmente resignação e conformismo. Os luso-corruptos abusam do poder em benefício próprio e justificam os sacrifícios exigidos aos portugueses alegando que não existem alternativas. Aquilo que Mário Soares gosta de denominar «pensamento único» mais não é do que o «pensamento unidimensional», conceito elaborado por Marcuse que nós preferimos tematizar como pensamento metabolicamente reduzido: «submete-te ao sistema e conduz a tua vidinha como puderes, porque não existem alternativas».
É evidente que uma teoria crítica da sociedade tem dificuldade em lidar com este conformismo afirmativo, pela simples razão de ter como objectivo prático ajudar os homens a mudar qualitativamente a sociedade. Marcuse procurou pensar este conformismo apático das «massas» através de uma síntese entre o marxismo e a psicanálise, aquilo a que se chamou o freudomarxismo. Mas, ao contrário dos outros teóricos críticos (Adorno, Horkheimer), Marcuse valorizou em Freud o seu biologismo (a teoria das pulsões ou instintos), o que lhe permitirá pensar uma «base biológica para o socialismo».
Esta ideia seminal de Marcuse é muito actual no nosso tempo, sobretudo se abandonarmos a psicanálise e a substituirmos pelas ciências biológicas, em particular pelas neurociências. É necessário repolitizar a mente e o corpo dos indivíduos e levá-los a revoltar-se contra o poder instituído. Utopia? Claro, sem utopia não podemos desconstruir a ideologia que se encontra incorporada no próprio processo de produção e de consumo. A luta deve ser travada dentro dos próprios indivíduos, antes de virem para a rua. «Uma revolta na qual o organismo todo, a própria alma do ser humano, se torna político. Uma revolta das pulsões de vida contra a destruição organizada e socializada».
Este conceito marcuseano de uma base biológica para o socialismo pode ser repensado a partir de um outro conceito que lançou, sem no entanto apreender todo o seu alcance: «Além e acima do nível animal, os seres humanos são maleáveis, corpo e mente, até mesmo na sua própria estrutura pulsional». Lorenz, o fundador da escola objectiva de etologia, compreendeu isso: a estrutura instintiva humana pode ser modificável. A repolitização da alma e do corpo encontra nesta estrutura maleável dos instintos humanos a sua possibilidade de «sucesso», desde que saiba destruir o espírito de má publicidade que domina a sociedade de consumo.
Na sociedade de consumo, «a satisfação está sempre ligada à destruição. A dominação da natureza está ligada à violação da natureza. A procura por novas formas de energia está ligada ao envenenamento do ambiente. A segurança está ligada à servidão, o interesse nacional à expansão global. O progresso técnico está ligado ao controle e à manipulação progressivos dos (próprios) seres humanos» (Marcuse).
O sistema destrutivo domina-nos reduzindo-nos a animais, ou seja, a seres metabolicamente reduzidos que não precisam de pensar para viver. Fomenta a ignorância activa, em vez do conhecimento, de resto desqualificado quando reduzido a meia dúzia de algoritmos que se aprendem para executar uma tarefa remunerada que possibilita ao organismo viver e reproduzir-se, sem transcender a sua mera condição de animal. Numa sociedade metabolicamente reduzida, a democracia faz parte das obscenidades do sistema. O ser metabolicamente reduzido aprende a dizer que é livre e, nesse acto, torna-se cada vez mais escravo do sistema de publicidade. Para ele, ser é comprar e consumir e nada mais existe para além desse horizonte metabolicamente reduzido. O sistema produz-se e reproduz-se sem oposição real.
Por hoje limito-me a tentar encontrar novas vias de fuga desta prisão, num diálogo com um mestre meu da adolescência: Herbert Marcuse. Mas ainda falta muito trabalho teórico a realizar. Pelo menos, penso ter espevitado o apetite pela leitura do Mestre.
J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

Carlos Serra disse...

Um belo post. Lembrei-me, rapidamente, de algo sempre muito actual, os "Manuscritos Económico-Filosóficos" de Marx, a alienação. Há certas coisas antes do Marx da maturidade que têm, por vezes,uma vida bem mais bela que a beleza da maturidade marxiana.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bom Dia
Tem razão. Tenho pensado que o jovem Marx é mais importante na actual conjuntura teórica e política do que o Marx da maturidade. O desemprego e a globalização tornam Marx actual.
Abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A Helena, autora do blogue «Socióloga Avense», que consta nos meus elos, editou um post pertinente sobre obesidade, aliás um problema de saúde ligado à sociedade metabolicamente reduzida.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hoje o meu pai faz anos.
Pai, dedico-te este post.
Abraço