«O desenvolvimento da lógica moderna tornou possível dar uma resposta nova e mais precisa ao problema da validez e da justificação da metafísica. (...) No campo da metafísica (incluindo a filosofia dos valores e a ciência normativa), a análise lógica conduziu ao resultado negativo de que as pretensas proposições de dito campo são totalmente carentes de sentido. (...) As pretensas proposições da metafísica são, na realidade, pseudo-proposições. (...) O metafísico sofre a ilusão de que, por meio das proposições metafísicas, se declara algo, se descreve uma situação objectiva. O metafísico acredita mover-se no terreno do verdadeiro e do falso quando na realidade não afirmou nada, mas somente expressou algo como um artista». (Rudolf Carnap)
Na sua crítica do positivismo lógico, levada a cabo em nome da dialéctica, Galvano Della Volpe reduziu, a partir da exposição de W.H. Wermeister, a lógica anti-metafísica que resulta da filosofia do Círculo de Viena (Victor Kraft) a sete princípios gerais:
1. O conhecimento só é conhecimento pela sua forma: no conhecimento só a forma tem importância, tudo o resto é inessencial (Schlick);
2. Uma proposição só tem um significado enquanto pode ser verificada (Schlick): verificar uma proposição significa simplesmente ver se ela segue ou não as regras estabelecidas pela conexão daquela proposição numa dada linguagem;
3. Há apenas um conhecimento empírico, baseado no que é dado directamente (Schlick), e os dados da sensação, que são a base do conhecimento, como já defendia Mach, são proporcionados por proposições protocolares ou primeiras ou elementares indiscutíveis;
4. A análise lógica da linguagem demonstra que todas as proposições metafísicas são pseudo-proposições e que são inteiramente desprovidas de significado (Carnap);
5. Todos os campos de pesquisa são partes de uma ciência unitária: a física (Neurath, Carnap), o chamado fisicalismo;
6. As proposições da lógica são tautologias (Wittgenstein);
7. A matemática é um método lógico (Wittgenstein): todos os conceitos matemáticos podem ser derivados dos conceitos fundamentais da lógica (Carnap). O Círculo de Viena que se formou em torno de Moritz Schlick não pode ser reduzido a um círculo de alunos que assumiam as teses de um mestre, mas deve ser visto como um círculo de estudiosos interessados na filosofia, cujo trabalho de construção intelectual conjunta renovou e reformou o positivismo e o empirismo no intervalo entre as duas Grandes Guerras Mundiais. Apesar de termos resumido as teses fundamentais deste movimento filosófico mundial em sete princípios gerais, o Círculo de Viena não foi dominado por concepções uniformes, sendo atravessado por duas orientações: uma radical, representada por Neurath e acompanhada por Hahn e Carnap, e outra mais moderada, representada por Schlick. A orientação fundamental comum era a cientificidade da filosofia. Com base na física (Planck), nas "ciências exactas", na nova lógica (Whitehead & Russell) e na filosofia da linguagem (Wittgenstein), os positivistas lógicos consideram que as exigências rigorosas do pensamento científico, a saber, a claridade unívoca, o rigor lógico e a fundamentação suficiente, devem ser válidas na filosofia. Isto significa que as afirmações dogmáticas e as especulações incontroladas que a têm dominado até hoje devem ser eliminadas. Daí que tenha surgido neste grupo a oposição radical contra toda a metafísica dogmático-especulativa: a tentativa de eliminar completamente a metafísica é a razão que vincula o Círculo de Viena ao positivismo. A busca pela cientificidade da filosofia é empreendida pela via da destruição da metafísica. Destruir a metafísica significa afirmar o conhecimento científico como único e exclusivo conhecimento empírico sujeito à lógica da verificação: o fisicalismo de Otto Neurath, isto é, a ciência unificada assente numa linguagem unificada com a sua sintaxe unificada, numa palavra, a linguagem da física. A "viragem da filosofia" (Die Wende der Philosophie) de Schlick e a "superação da metafísica" (Überwindung der Metaphysik) de Carnap ajudam a clarificar melhor esta tarefa empreendida pelo Círculo de Viena. Husserl e Russell procuraram conduzir a filosofia pelo caminho seguro da ciência, mas, depois da Primeira Guerra Mundial, Wittgenstein desfez este sonho e, em vez da ciência de rigor, surgiu a convicção de que a figura clássica da filosofia, a metafísica, está terminada. Os filósofos do Círculo de Viena nunca clarificaram muito bem aquilo que estavam a superar: a metafísica. Numa primeira aproximação, ficamos com a ideia vaga de que a superação positivista da metafísica consiste em negar a sua possibilidade e, num só e mesmo acto, afirmar todo o conhecimento que "permanece dentro do dado". Porém, Schlick tem consciência da insuficiência desta primeira aproximação: a metafísica definida como a teoria do "verdadeiro ser", da "realidade em si mesma", do "ser transcendente", supõe que exista um ser inautêntico e puramente aparente, precisamente o reino das aparências que estão imediatamente presentes e que, portanto, nos são "dadas", enquanto a realidade metafísica deve ser, de um modo indirecto, inferida a partir dessas aparências. Assumir este conceito de metafísica ou encarar os dados como conteúdos da consciência equivale a identificar o positivismo e o idealismo, quando na realidade ambos são incompatíveis. Convicto de que se encontrava "num ponto de viragem definitivo da filosofia", capaz de pôr termo ao "estéril conflito entre os sistemas" filosóficos, Schlick socorre-se dos "meios disponíveis", aqueles que foram forjados silenciosamente pela lógica moderna (Leibniz, Frege, Russell e Wittgenstein), e aplica-os resolutamente, de modo a clarificar a função significativa da linguagem e a livrar-se dos problemas tradicionais da "teoria do conhecimento": "A enunciação das circunstâncias em que uma proposição resulta verdadeira é o mesmo que a enunciação do seu significado, e não outra coisa. (...) O significado de toda a proposição terá que ser determinado, em última instância, pelo dado e não por qualquer outra coisa distinta" (Schlick). O significado de uma proposição é determinado pelo método da sua verificação: "toda a proposição possui significado somente quando pode ser verificada", isto é, contrastada com a experiência. Isto significa que o critério de delimitação ou demarcação entre conhecimento científico e metafísica reside na "linguagem especial do empirismo". Nesta linguagem, o significado das proposições sobre factos exige, em última análise, a mostrabilidade daquilo que é dito no vivencialmente dado. Com o estabelecimento desta condição, limita-se o significado dos enunciados ao experimentável, ou seja, ao dado nas vivências. As proposições da metafísica transcendem a experiência e, por isso, carecem de significado e são inverificáveis. "Carente de significado" significa carente de significado teórico, isto é, destituído de conteúdo, e não "sem sentido", porque as proposições metafísicas podem ter sentido, embora não sejam redutíveis ao perceptível. Uma questão deve ser colocada: O que sucede com a filosofia após a superação da metafísica? Na sua conferência de 1928, Heidegger apela para a superação da metafísica, mas o modo como a pensa leva-o a reactualizar uma interrogação filosófica mais antiga que lhe permite recuperar o "pensamento do Ser", o "pensamento essencial". A posição dos positivistas lógicos é completamente diferente: aqui superar quer dizer rejeitar ou eliminar pura e simplesmente a metafísica. Aquilo que a substitui, a análise lógica da linguagem, tal como é praticada por Carnap, não é uma nova teoria filosófica, mas um mero método científico chamado "sintaxe lógica da linguagem da ciência". Isto significa que entre a filosofia e a ciência não existe nenhuma diferença de natureza. Schlick já tinha explicitado a tarefa da filosofia após a superação da metafísica: "A característica positiva da viragem do presente encontra-se no facto de que reconhecemos a filosofia como um sistema de actos, em vez de um sistema de conhecimentos. A actividade mediante a qual se descobre ou determina o sentido dos enunciados: essa é a filosofia. Por meio da filosofia clarificam-se as proposições, por meio da ciência verificam-se as proposições. A esta última interessa-lhe a verdade dos enunciados, à primeira o que realmente significam; a actividade filosófica de dar sentido cobre a totalidade do campo do conhecimento científico". Para Carnap, a linguagem de Heidegger é típica da metafísica clássica: é uma linguagem desprovida de sentido, primeiro porque se expressa nas línguas naturais, cujas estruturas gramaticais são, por definição, logicamente imperfeitas, e segundo porque persegue deliberadamente um objectivo contraditório, o de "apresentar um conhecimento sobre o qual a ciência empírica não tem poder". Ou, como diz Schlick, "não há, pois, outra prova e confirmação das verdades que não seja a observação e a ciência empírica. Toda a ciência é um sistema de conhecimentos, isto é, de proposições empíricas verdadeiras. E a totalidade das ciências, com inclusão dos enunciados da vida diária, é o sistema dos conhecimentos. Além disso, não há nenhum domínio de verdades "filosóficas". A filosofia não é um sistema de proposições, não é uma ciência", mas uma actividade que consiste em conferir de modo definitivo e final sentido aos enunciados e, neste sentido, "o grande investigador é também e sempre um filósofo". A glorificação da ciência é compreensível num tempo em que se vivia uma revolução científica que ajudou a moldar o mundo contemporâneo para o bem e para o mal. Porém, a sua glorificação exclusiva é muito menos compreensível: "Todos os representantes deste Círculo, afirma Neurath, estão de acordo em que a "filosofia" não existe como disciplina, ao lado das ciências, com proposições específicas: o corpo de proposições científicas esgota a suma de todos os enunciados dotados de sentido". Tal como os sistemas idealistas absolutos, a ciência unificada reclama a exclusividade: só ela é conhecimento verdadeiro, o resto é tudo falso conhecimento. A filosofia e a ciência são as faces da mesma moeda: o sistema das proposições empíricas verdadeiras. Ou seja, fora da ciência não há conhecimento verdadeiro: os domínios da filosofia, tais como a ética, a estética ou a política, são, como dizia Carnap referindo-se à metafísica, realizações medíocres, isto é, os metafísicos são "músicos sem dom musical". A superação positivista da metafísica anula a história da filosofia ou, numa versão mais moderada, falsifica-a em nome do crescimento de uma ciência triunfante. Ironicamente, as reuniões do Círculo de Viena cessaram completamente em 1938 depois da anexação da Áustria pela Alemanha nazi e os seus membros dispersaram-se em todas as direcções: o Círculo dissolveu-se e os seus membros perderam o direito à palavra, porque, depois de terem destruído a metafísica em nome da ciência unificada, isto é, do fisicalismo, já nada poderiam dizer contra o nazismo que carecesse (ou tivesse?) de sentido. Os campos de concentração foram fisicalismo aplicado: destituídos de alma e tratados em termos estritamente behavioristas, o procedimento aconselhado por Neurath para a sociologia, os prisioneiros foram eliminados de acordo com os procedimentos cientificamente recomendados e com a utilização das tecnologias mais sofisticadas de extermínio humano. A construção da bomba atómica e o seu lançamento sobre Hiroshima e Nagasaki revelaram o poder destrutivo e inumano do fisicalismo. E, mais recentemente, os físicos contratados pela Bolsa de Wall Street revelaram todo o seu poder fisicalista na criação de cálculos que conduziram à actual crise financeira: o fisicalismo bolsista e financeiro. Acontecimentos como os referidos, sinais do terror do dado verificável que nos ameaça aniquilar, mostram que a metafísica não está terminada e que, nesta hora de combate, é necessário reabilitar a metafísica e retomar o projecto kantiano de pensar os limites dessa forma de conhecimento chamada ciência que destitui o homem da sua humanidade. A negação da metafísica pode ser identificada com o triunfo da trivialidade, da banalidade do mal e da expulsão da consciência antecipante. E, neste momento de crise radical, onde não se vislumbra o futuro, diversos argumentos podem ser aduzidos, tais como o argumento da ordem (Eric Voegelin), o argumento do jogo (Huizinga), o argumento da esperança (Bloch), o argumento da condenação (Arendt), enfim o argumento do humor (Bergson), para justificar a elaboração de uma antropologia filosófica que não esqueça a dimensão metafísica do homem.
J Francisco Saraiva de Sousa
3 comentários:
Este post faz opções e não acompanha as mudanças de perspectiva dos autores referidos: constitui apenas um modelo crítico, neste contexto necessariamente incompleto. Apesar de ser crítico, não despreza o neopositivismo, de resto uma tentativa de pensar a filosofia de modo autónomo. Infelizmente, não posso reproduzir aqui o debate entre Carnap e Heidegger sobre a superação da metafísica.
Gostei muito de ler o seu texto. Muito claro e fundamentado. Estou a trabalhar justamente sobre o debate entre Carnap e Heidegger, e sobre a possibilidade de superar/eliminar a metafísica. Parabéns pelo blogue e pela qualidade dos textos.
Ana Sofia Couto
Obrigado! Esse tema que está a tratar é muito interessante: o debate entre Carnap e Heidegger merece toda a nossa atenção e, pensando bem, o tema da superação recua muito no tempo. :)
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