De todos os programas Prós e Contras que Fátima Campos Ferreira dedicou ao debate da crise financeira, o de hoje (20 de Outubro de 2008) foi o mais interessante, sendo possível vislumbrar um consenso racionalmente motivado, capaz de levar todos os cidadãos portugueses a envolver-se na busca cooperativa de novas saídas. Os participantes deste debate foram representantes dos sectores estratégicos nacionais, em especial dos sectores empresariais: José Manuel Fernandes (Frezite), Pedro Gonçalves (Soares da Costa), António Bernardo (Roland Berger), Alberto Castro (Professor de Economia), Eugénio da Fonseca (Cáritas) e António (cartoonista), no palco, e Miguel Júdice, Maria do Céu Prim, Leonel Costa e Gute Moura Guedes, na plateia. A agenda centrou-se basicamente em três grandes questões: Como avaliamos a reacção das lideranças?, Qual é o veredicto da sociedade?, e O que podemos fazer?. Quanto à primeira questão, predominou um consenso de fundo, expresso primeiramente por José Manuel Fernandes: o Governo de José Sócrates tomou as medidas certas, para evitar que a crise afecte de modo drástico os portugueses, enquanto a oposição está mais voltada para problemas partidários internos e, por isso, incapaz de elaborar alternativas credíveis. Alberto Castro avançou com algumas ideias interessantes que poderão eventualmente "enriquecer" as medidas governamentais já tomadas, fortalecendo a perspectiva de proteger os "mais pobres" ou, pelo menos, todos aqueles que se encontram numa situação mais precária para fazer face aos efeitos nefastos da crise que vai afectar Portugal. Todos condenaram o dogma do neoliberalismo: aquilo a que Pedro Gonçalves chamou um "modelo de desenvolvimento sustentável assente num sistema financeiro" que produziu "riqueza aparente", criando os chamados "pobres a crédito" (Eugénio da Fonseca). Ou seja, criticaram a globalização do capitalismo financeiro, defendendo uma economia assente nas empresas e na livre iniciativa responsável, com preocupação social, portanto um capitalismo empresarial, regulado de alguma forma pelo Estado, tendo em conta uma possível nova "ordem social". António chegou mesmo a apelar ingenuamente pelo "regresso da social-democracia", esquecendo que esta também teve a sua quota parte de responsabilidade, nomeadamente quando garantiu aquilo que denunciou: os "direitos adquiridos", de resto uma noção mais feudal do que capitalista e muito menos social-democrata. Porém, António Bernardo lembrou que o sistema financeiro é o motor da economia e que, portanto, não basta apoiar a "banca de retalho", como fez recentemente Sarkozy; os bancos de investimento também devem ser apoiados e regulados pelo Estado, embora com "retorno", porque, sem um sistema financeiro forte, as empresas não têm "acesso ao crédito". Um capitalismo empresarial que aposte na inovação tecnológica e saiba viabilizar os nossos sectores económicos "tradicionais", além das indústrias tecnologicamente avançadas, um sistema financeiro inovador mas regulado e responsável, e um Estado Social, o velho Estado Social Europeu vitimizado e enfraquecido pelo neoliberalismo, que garanta a igualdade de oportunidades e uma redistribuição mais equitativa da riqueza nacional, são, sem dúvida, excelentes ideias. Como já tinha dito noutro post, esta crise abre as portas à imaginação política, subordinando a economia ao primado da política, como dizemos em linguagem da filosofia política. A frase que encabeça um cartoon de António, "I Want Your Money", a marca exploradora do neoliberalismo, diz de modo sintético tudo aquilo que não queremos: um sistema capitalista selvagem e desregulado que incutiu nas pessoas a ideia terrível de que "amanhã será melhor do que hoje", levando-as a recorrer ao crédito e a endividarem-se. Contudo, apesar de estar no geral em sintonia com as ideias expostas, detectei que, por vezes, se fazia a apologia de velhas ideias, muitas das quais promovidas pelo neoliberalismo. Miguel Júdice defendeu a necessidade de ensinar nas escolas o empreendedorismo, alegando que é o que se faz nos USA. Ora, uma tal ideia é, como mostrou Alberto Castro, um absurdo, porque, como acrescentou Fátima Campos, "nem todos somos iguais" e "nem todos tiveram as mesmas oportunidades". A igualdade é uma noção cancerosa que está a corromper o Ocidente, justificando e promovendo a emergência tirânica da histeria emocional, o ressurgimento de comunidades emocionais destituídas de vínculos sociais e a ditadura da opinião murcha. Garantir a igualdade de oportunidades constitui um conceito muito diferente de igualização social, cujo resultado é o nivelamento feito a partir de baixo e, portanto, a regressão cognitiva. A noção de globalização não foi seriamente problematizada, porque na verdade só ocorreram dois tipos de globalização, a globalização dos mercados financeiros e a globalização da comunicação, ambos intimamente unidos ao neoliberalismo. A defesa do indivíduo e do seu empreendedorismo feita por Gute Moura Guedes foi outra ideia perigosa, aquela que fomenta aquilo que criticou nas "pessoas latinas", a sua emotividade histérica que corrompe o próprio exercício responsável e competente da cidadania informada, ameaçando a própria coesão social e a solidariedade. Também a sua ideia de comercializar e massificar a cultura tem um efeito nefasto na própria cultura: rouba-lhe a sua transcendência. Cultura superior (Marcuse) e design são conceitos que não se casam harmoniosamente: a verdadeira criatividade encontra-se distribuída de modo desigual entre as pessoas e também não se aprende. Esse espírito de criatividade plástica e comercial produziu oportunistas pseudo-culturais ou pseudo-artistas. Além disso, nunca uma tal indústria de design seria capaz de colocar a economia em crescimento e fomentar o desenvolvimento necessário para libertar a população da ameaça de desemprego agravada pela actual crise financeira. Se há sector da sociedade que o Estado deve manter relativamente distante das garras do capitalismo, esse sector só pode ser a cultura. Eugénio da Fonseca falou do sistema de educação, precisamente o sistema que se degradou aceleradamente depois do 25 de Abril e que hoje está dominado pela mediocridade, a arbitrariedade e a incompetência: a reforma radical e dura deste sistema é a prioridade número 1 do Estado. O objectivo não é fazer de todos os cidadãos "doutores ou engenheiros", mas criar escolas de diversos tipos que permitam a cada um seguir aquilo para que tem real vocação. Igualização produz mediocridade e uniformidade, ao mesmo tempo que exclui do sistema de decisão os mais competentes através de um sistema de corrupção, de troca de favores, de cunhismo e de omissão de informação relevante. Face a esta doença nacional alimentada pela inveja social e pela busca de falso status social, a ideia de juntar os melhores cérebros nacionais e levá-los a imaginar novas soluções sociais e políticas nacionais capazes de unir as empresas e os cidadãos em torno de um objectivo nacional comum está condenada ao fracasso, porque, como sabemos, são os menos competentes que, já instalados nas esferas de decisão nacional, usurpam indevidamente esse estatuto e os respectivos lugares e posições. A corrupção e os seus correlatos similares são transversais a toda a sociedade portuguesa. A crise financeira que não é uma mera crise cíclica, como foi dito por alguns, oferece uma nova oportunidade: reformular e recriar a sociedade inteira com imaginação política, filosoficamente instruída, missão que ultrapassa as competências dos actuais aparelhos partidários, os quais devem ser libertos do oportunismo que os paralisa. Ideologias e o seu confronto na esfera pública, em vez de pensamento único, é disso que precisamos, além de uma economia forte e criativa capaz de gerar pleno emprego, de modo a banir a pobreza. J Francisco Saraiva de Sousa
14 comentários:
Caro Francisco
De maneira geral, tenho que reconhecer e dar razão ao programa, "PRÓS E CONTRAS" numa televisão totalmente dominada pelo governo, não restam dúvidas que o programa em questão corresponde ás expectativas para o qual foi criado, manipular...
A ausência do contraditório foi sonegada como sempre, aliás, é apanágio dos programas elaborados pelos agentes do "capitalismo democrático", termo espantoso que aparece agora, só comparado ao "socialismo democrático".
Os pontas de lança do neoliberalismo, em que o governo tem aqui um papel determinante em levar à prática o programa da economia de mercado em vergonhosa submissão ás multinacionais europeias e norte americanas.
Após o colapso do capitalismo, o governo mudou o discurso do dia para a noite, sacudindo a água do capote, como se nada tivesse a ver com os actuais acontecimentos, tentando aos olhos da opinião pública, como os campeões da luta contra o "capitalismo selvagem", mas logo de seguida defendendo outro tipo de capitalismo de rosto lavado, que agora convencionaram chamar-lhe de "capitalismo democrático",mas que não deixa só por isso de ser o velho capitalismo de sempre.
Para quem se auto-proclamam de socialistas, não restam dúvidas que estes discursos são um espanto.
Ainda há dias se discutia nestes comentários a importância representacional das metáforas.
A ideia do crédito como “ motor da economia” referida neste programa é disso bom exemplo.Com ela pretende –se passar a ideia de que sem crédito a economia não funciona. Cria-se assim o ambiente ideológico necessário para justificar tudo o que foi ou possa vir a ser feito em nome da preservação do capitalismo financeiro. No entanto o que faz mover esta economia não é o crédito , mas o sonho. Ao crédito nem a metáfora de combustível se ajusta. O combustível desta economia está bem identificado e não precisa de metáforas representacionais. Quando muito poderíamos pois olhar para o crédito como lubrificante. Consoante a quantidade ele atenua mais ou menos os atritos entre o que se pretende e o que se atinge. Mas o que nos move é o sonho de sermos ricos ou de deter poder, o que, como se sabe,frequentemente dá no mesmo.
Olá amigos
Manuel Rocha
A defesa do crédito e da alta finança foi mais acentuada da parte do António Bernardo, talvez o mais "neoliberal", porque agora todos estão a aplaudir a intervenção do Estado.
Caro Beja Trindade
"Socialismo democrático" é uma expressão criada e defendida, entre outros, por Rosa Luxemburgo. É difícil conceber uma sociedade livre sem democracia. A partir de determinada altura, graças à luta política das classes operárias, a sociedade capitalista generalizou a democracia. USA é a sociedade capitalista mais avançada mas é também a mais velha democracia do mundo.
Não estou seguro de que o colapso da capitalismo vá decorrer desta crise sistémica, até porque não existem alternativas. Temos vivido em sociedades sem (verdadeira) oposição! Mas se tem uma alternativa económica partilhe a sua ideia. Ideias novas são sempre bem-vindas!
Caro Francisco de Sousa
Depreendo das suas palavras, que afinal de contas não existe alternativa ao capitalismo, o que não deixa de ser espantosa e surpreendente essa sua conclusão, vinda de quem vem.
Então as teorias marxistas que o senhor tanto apregoa, estão condenadas ao caixote do lixo da história, isto é, o capitalismo é em sua opinião o último reduto da história?
Sinceramente, não compreendo tanta contradição.
Caro Beja Trindade
Eu não disse que "o capitalismo (era) o último reduto da história", porque simplesmente não sei o que vai suceder. Critico o capitalismo, mas não tenho uma alternativa ou um modelo económico capaz de o substituir de um dia para o outro. Só uma revolução tem poder para fazer esse trabalho e, como sabe, numa tal situação o homem perde o controle. Contudo, conhecendo alguma coisa sobre a história do homem, suspeito que até mesmo a intervenção do Estado na crise visa garantir de algum modo a economia de mercado. O que nos compete é exigir mais e melhor ao Estado: uma maior preocupação social e cultural e mais vigilância dos mercados financeiros.
E entre capitalismo de iniciativa privada ou capitalismo de Estado do estilo China prefiro sinceramente o primeiro, desde que a liberdade e a democracia estejam garantidas.
Caro Francisco de Sousa
Em minha opinião é uma falácia falar-se em capitalismo de estado e capitalismo privado, todo ele, só por si, é anti-democrático, desde logo, prepotente, isto é, prevalece a vontade do mais forte, que podemos perfeitamente constatar no nosso neoliberalismo vigente, comandado espantosamente por "socialistas".
Olá, Francisco! Gostaria de ter assistido ao "Prós e Contras" sobre a crise financeira, mas não tenho acesso a canais portugueses...
Concordo com os seus comentários acerca das opiniões dos participantes. Nota-se nestas a preocupação em procurar uma única razão para explicar um fenômeno complexo.
Seria muito bom se a cultura ficasse livre dos efeitos desta crise, mas não creio que isto vá acontecer. A cultura, pelo menos aqui, já está em crise há tempos. Ela foi severamente afetada pela banalização estadunidense. American way of life...
Lamentavelmente, a maior parte dos programas brasileiros de televisão apela para um sensacionalismo abjeto. São raros aqueles que discutem com seriedade os temas relevantes.
Um abraço!
Concordo com o Manuel:
"No entanto o que faz mover esta economia não é o crédito , mas o sonho".
Só faltou acrescentar que tais sonhos são perversos...
Olá André
Está tudo mal. O FMI acaba de prever novas falências de bancos europeus e os Estados estão a encobrir informação relevante.
Sim, o neoliberalismo e a corrupção que alimentou destruiram tudo o que era razoável. O mundo passa por um período negro em todos os sentidos e as pessoas continuam alienadas no consumismo. Nem as plantas escapam ao negócio!
Agora temos o Sarkozy armado em salvador da Europa! Um homenzinho vulgar!
A cultura está morta há muito tempo: o fracasso é total e, por isso, sou contra o igualitarismo. Vivemos sujeitos à histeria de pessoas vulgares e a presença pesada das mulheres afunda tudo cada vez mais. Só foram cometidos ERROS em nome da falsa liberdade! Estou pessimista hoje!
"A presença pesada das mulheres"?!
Humpf! :-(
Sim, Denise, uma grande parte das mulheres bloqueiam a Universidade, que converteram no tal galinheiro, com respectivos "galos", uns homens, outros lésbicos. :)
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