segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Egoísmo Genético e Especulação Bolsista

«O que quero esclarecer agora é que todas as tentativas de responder (à pregunta, O que é o homem?, dadas) antes de 1859 (ano da publicação d' A Origem das Espécies de Charles Darwin) são inúteis e que será melhor para nós ignorá-las completamente» (G.G. Simpson)
«O conceito darwiniano de selecção natural sofreu um sério golpe ideológico nos últimos anos. Os elementos da teoria da acção económica adequada ao mercado competitivo foram progressivamente substituídos pela estratégia "oportunista" da evolução, formulada nas décadas de 40 e 50 por G.G. Simpson, E. Mayr, J. Huxley, T. Dobzhansky e outros. Poder-se-ia dizer que o darwinismo, inicialmente rotulado de "darwinismo social", retornou à Biologia como capitalismo genético. A Sociobiologia contribuiu especialmente para as fases finais deste desenvolvimento teórico". (Marshall Sahlins)
C. B. Macpherson mostrou, como vimos no post anterior, que a sociedade de mercado capitalista gera uma determinada imagem da natureza humana, a que chamou individualismo possessivo: "O homem é o dono da sua própria pessoa. Ele é o que possui. A essência do homem é a liberdade de fazer o que quer com o que lhe pertence, sendo os únicos limites desta liberdade as regras necessárias para garantir esta mesma liberdade aos outros. Partindo dessas premissas, a melhor sociedade (aliás a única boa sociedade possível) é aquela onde todas as relações entre os indivíduos são transformadas em relações de mercado, pelas quais os homens se transaccionam como possuidores das suas próprias capacidades ou daquilo que adquiriram pelo exercício dessas capacidades". O individualismo possessivo ou egoísta foi claramente explicitado por Thomas Hobbes, que, a partir dos mais simples axiomas sobre a natureza dos seres humanos como organismos, construiu uma imagem da natureza humana: os seres humanos são vistos como corpos que devem crescer e ocupar o mundo. Mas, como o mundo é um lugar de recursos finitos, os seres humanos entram necessariamente em conflito à medida que se expandem, dando origem à "guerra de todos contra todos" que só um monarca soberano pode impedir que conduza à destruição total. Malthus retoma mais tarde esta noção para formular a sua famosa lei de que os organismos crescem geometricamente, enquanto os recursos para a sua subsistência crescem aritmeticamente. O resultado é sempre a luta pela existência: "Qualquer que tenha sido a forma assumida por estes antagonismos (de classes), um facto é comum a todos os séculos passados: a exploração de uma parte da sociedade pela outra" (Marx & Engels). A ideia de que os organismos crescem de forma ilimitada e de que o mundo no qual crescem é finito e limitado deu origem à teoria biológica moderna da natureza humana, a começar pela teoria da selecção natural de Darwin. O resultado desta linha de pesquisa foi a "tendência ideológica particular da biologia moderna, segundo a qual tudo o que somos, a nossa doença e saúde, a nossa pobreza e riqueza, e mesmo a estrutura da sociedade em que vivemos, estão, em última análise, codificados no nosso ADN» (R.C. Lewontin).
Ora, a tese que proponho é que o princípio do egoísmo genético elaborado por Richard Dawkins pode ser desmistificado como a versão neoliberal do individualismo possessivo burguês, bem adaptada à legitimação da globalização dos mercados financeiros. A biologia do egoísmo e do altruísmo de Dawkins assenta neste princípio: "nós, e todos os outros animais, somos máquinas criadas pelos nossos genes" ou pelo "nosso ADN", ou seja, "somos máquinas de sobrevivência, robôs programados cegamente para preservar as moléculas egoístas conhecidas como genes", tanto ao nível do corpo como da alma. Os genes são vistos como "gangsters de Chicago" que "sobreviveram, em alguns casos durante milhões de anos, num mundo altamente competitivo", isto é, numa economia capitalista de mercado. Para que o sucesso do gene ocorra neste mundo altamente competitivo, é necessário atribuir algumas "qualidades misteriosas" e omnipotentes aos «nossos» genes, em particular o "egoísmo implacável", o qual origina "egoísmo no comportamento individual", mesmo quando simula comportamentos altruístas: o feiticismo da mercadoria converte-se assim em feiticismo do gene egoísta. Dawkins é de tal modo obtuso que não se apercebe que deveria ter operado uma "reforma prévia da linguagem": o "nós" refere-se, não a nós indivíduos humanos enquanto pessoas autónomas e integras, nem aos "nossos" genes, mas aos próprios genes. Ou seja, os genes não nos pertencem; pelo contrário, nós é que pertencemos aos genes que nos manipulam para obter sucesso no mercado da concorrência total. A competição tornou-se, nesta versão, conflito ou antagonismo de genes egoístas que usam o nosso corpo para alcançar sucesso. O cálculo da vantagem evolucionária substitui o conceito tradicional de "reprodução diferencial". Em vez de irem em busca de recursos naturais, os organismos comandados pelos genes egoístas vão em busca uns dos outros e dos bens uns dos outros: a estratégia selectiva chamada evolutivamente estável (EEE) é reduzida à apropriação, no próprio interesse do organismo. A selecção natural deixa de ser apropriação de recursos naturais e passa a ser uma expropriação dos recursos alheios, ou, como diz enfaticamente M. Sahlins, a selecção natural transforma-se em "exploração social". Uma maneira ideológica de legitimar e justificar a exploração do homem pelo homem, os conflitos entre grupos, a dominância e o despotismo, a competição intra-sexual e inter-sexual, a manipulação e a exploração (bluff, violação, infanticídio), estratégias de investimento parental bizarras, enfim, a especulação imobiliária e financeira e a economia de mercado capitalista, legal e ilícita, tal como o roubo de cadáveres e a florescente indústria da morte e da destruição.
É este tipo de darwinismo que Desmond Morris, Robert Ardrey, Edward Wilson e Richard Dawkins, entre outros, pretendem introduzir no seio da Filosofia e das Humanidades: a ideologia neoliberal dos mercados financeiros no seio do pensamento essencial (Heigegger). As chamadas ciências humanas já se debatiam com alguns fantasmas que, tais como o historicismo, o psicologismo, o sociologismo ou o economicismo, reduziam o ser humano a mero portador de certas determinações ou reflexo de alguma coisa que o domina do interior ou do exterior. O egoísmo génico dá a machadada fatal: a responsabilidade é toda dos genes, ou seja, ninguém é responsável. Neste aspecto, convém reconhecer alguma honestidade a Dawkins quando afirma que não defende "uma moralidade baseada na evolução", porque "nascemos egoístas". Isto significa que a "generosidade e o altruísmo" devem ser ensinadas. Contudo, a teoria dos genes egoístas não é capaz de explicar o altruísmo, de resto encarado como cooperação genética, a forma dos genes maximizarem o seu interesse pessoal. O mundo é escasso em recursos naturais e, por isso, hostil e, na luta que os genes egoístas travam uns com os outros, vence aquele organismo que é dotado dos "melhores genes", isto é, dos genes que possibilitam a expropriação dos recursos alheios. De facto, a biologia do egoísmo é biologia de gangster e, sendo assim, o neoliberalismo inspirou-se nas práticas criminosas das ruas de Chicago e/ou nos mercados clandestinos, ilícitos e macabros de tráfego de cadáveres em New York.
Dawkins afirma coisas tais como "a evolução é cega em relação ao futuro", "a unidade fundamental da selecção é o gene, a unidade da hereditariedade" ou "os genes não têm a capacidade de previsão", que as pessoas assimilam, isto é, incorporam como "coisas evidentes", sem prévio exame crítico. Com excepção de alguns filósofos, humanistas e cientistas corajosos, tais como R.C. Lewontin, Alexander Alland, Marshall D. Sahlins, Michael Behe, Ashley Montagu, Stephen Jay Gould, John Tyler Bonner, Jacques Ruffié ou Rosine Chandebois, quase ninguém questiona seriamente estas afirmações, de modo a problematizar a dogmática ortodoxa da evolução: a biologia do egoísmo e do altruísmo de Dawkins, mediante o recurso cientificamente inaceitável à noção de gene como replicador, visa fazer dos mortais meros fantoches submissos/sujeitados aos caprichos da alta finança, isto é, da especulação imobiliária e bolsista que, de facto, foi incapaz de prever o futuro. Cálculos financeiros e cálculos de genética populacional partilham a mesma noção de acaso como "roleta de casino". Neste momento que vivemos com angústia, o da actual crise financeira, o "efeito casino" faliu e ameaça afundar consigo a economia real: os genes egoístas vencedores que engordaram durante as últimas décadas à custa dos "maus genes" dos vencidos, a maioria da população mundial, precisam da intervenção do soberano de Hobbes, isto é, do Estado, não só para "socializar os seus prejuízos", dando-lhes injustamente uma "nova oportunidade", mas sobretudo para travar o caos bolsista e prevenir futuras crises, através de uma maior regulação da economia de mercado e da responsabilização dos gangsters pelos seus crimes: entregue a si mesma, isto é, ao acaso cego, a economia de mercado onde proliferam organismos supostamente portadores de "bons genes" leva à destruição total. Até mesmo Schumpeter reconheceu que a sobrevivência do capitalismo precisa e depende da intervenção do Estado, uma intervenção ponderada e prudente, capaz de orientar e regular o seu normal funcionamento, sem pôr em causa a liberdade e a dignidade da pessoa humana e a democracia pluralista.
J Francisco Saraiva de Sousa

5 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Dedico este post ao meu pai que faz hoje anos.

Com este post que retoma uma ideia que surgiu no post anterior, pretendo pensar as implicações ideológicas e epistemológicas do modelo do egoísmo do gene de Dawkins, estabelecendo mediações com a especulação dos mercados financeiros. Cientificamente, apenas referi a noção falsa de gene de Dawkins, de resto inaceitável, embora esteja insinuado uma outra perspectiva científica ideologicamente mais neutra. Em vez de entrar no falso debate entre criacionistas e evolucionistas, um mau serviço prestado à ciência e à filosofia, é preferível entrar na controvérsia científica: estudar as implicações ideológicas do darwinismo e procurar um novo paradigma capaz de unificar as ciências biomédicas e biológicas, sem ceder à ideologia neoliberal ou a modelos de mercado. Uma teoria que se presta a estes abusos ideológicos não pode ser "boa" teoria científica e este espírito de negócio preside ao projecto do genoma humano ou mesmo à procura de novas terapias para o cancro: a diversidade humana é negada em nome de um princípio falsamente universalizante que nada tem a ver com a genética. É puro negócio!

Denise disse...

Muitos parabéns para o seu pai, F.! Balança é o signo dos charmosos :-)
Lerei post amanhã, que hoje não me aguento...
Boa noite!

Marcos disse...

depois vou ler com cuidado os outros textos, mas, cheguei aqui sem querer pelo texto de antropologia simbólica. deu uma luz pra mim. finalmente, tive uma idéia do que é a hermeneutica filosófica. obrigado!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Marcos

Seja Bem-vindo! Espero que os meus posts o ajudem a clarificar os conceitos que procura! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O post está concluído: foram feitos dois pequenos acrescentos. A teoria do gene egoísta merece uma crítica mais aprofundada, dada a sua natureza profundamente ideológica.