Com este post pretendo dar início a uma luta sem tréguas contra uma determinada concepção da filosofia, plasmada nos programas de filosofia do ensino secundário, que a apresenta como uma espécie de análise de argumentos, também conhecida como lógica informal. O que está aqui em causa não é a existência da lógica da argumentação como disciplina da filosofia, de resto já explicitada por Aristóteles e retomada por C. Perelman, mas a pertinência ou não de iniciar um curso de filosofia pela análise de argumentos e o tipo de análise que é impingido aos alunos sem prévios conhecimentos filosóficos. Ou retomando a bela expressão de Hegel: "Quando as sombras da noite começam a cair é que levanta voo o pássaro de Minerva". Para defender a filosofia, vou recorrer a uma obra de Anthony Weston, A Rulebook for Arguments, traduzida para o português com o título traiçoeiro A Arte de Argumentar. Weston afirma logo no Prefácio que se trata de "uma breve introdução à arte de escrever e avaliar argumentos" e, como "os estudantes e os escritores precisam unicamente de uma lista de advertências e regras, e não de longas explicações introdutórias", o livro "está organizado em torno de regras específicas, convenientemente ilustradas e explicadas, acima de tudo com brevidade": "Não é um livro de texto, mas um livro de regras". Cada autor tem as suas próprias intenções e objectivos quando escreve um livro e, neste caso, um "livro de regras" é um objectivo legítimo. Existem muitos livros de texto. Weston preferiu escrever um livro sucinto e breve de regras. Porém, um livro de regras não é um empreendimento inocente ou claro: as regras são geralmente imposições, isto é, constrangimentos que definem um determinado jogo de linguagem inserido num determinado mundo da vida. As regras apresentadas e enumeradas por Weston, com o "objectivo de ajudar os estudantes a escreverem um ensaio ou a avaliarem um argumento", impõem uma determinada orientação ao pensamento, bloqueando a sua capacidade criativa e esquecendo que a avaliação exige o conhecimento prévio daquilo que pode ser avaliado. Ora, sem a aquisição prévia de conhecimentos ou, como dizia Karl Popper, sem conteúdos objectivos de conhecimento, não pode haver "argumentação" legítima, a menos que se defenda uma concepção subjectivista de conhecimento condensada na expressão usada no plural: "pontos de vista". Weston reconhece a existência de uma pluralidade de pontos de vista, isto é, de uma infinita pluralidade de opiniões, tantas quanto o número de indivíduos que já existiram, existem e poderão vir a existir no mundo, mas esquece que essa pluralidade é concertada pelo senso comum, o qual não é imune a outras formas de conhecimento, nomeadamente às ideologias. Até pode parecer que Weston pretende ajudar cada um a formar, com algum rigor, a sua própria opinião e a procurar consensos mais alargados com os outros a partir de um debate, diálogo ou discussão de "ideias". Porém, Weston esclarece-nos: "Nem todos os pontos de vista são iguais", porque uns são melhores do que outros, e, como já se tornou evidente, a lista de regras visa filtrar as opiniões, de modo a produzir um consenso forçado, não pelas regras da lógica formal mas pelas regras da lógica informal, precisamente aquela que deveria tratar de "argumentos" que escapam ao domínio da lógica formal. A pluralidade é aqui alvo de uma manipulação que visa impor consenso em matérias dificilmente consensuais, ao abrigo de uma coerção lógico-informal: os argumentos elaborados em função das regras são bons argumentos, enquanto os outros são meras falácias. A aprendizagem e o uso das regras constrangem o pensamento criativo e impedem a actividade crítica: o pensamento é congelado e uma tal lista de regras parasita a noção perigosa de que "pensar é calcular" (Leibniz), o pressuposto que conduziu o programa logicista ao seu fracasso (Kurt Gödel) e que deu oportunidade ao aparecimento de uma lógica da argumentação livre de coerções lógicas (C. Perelman). Ao pretender ensinar a argumentar, mediante a aplicação mecânica de regras, a lógica informal de Weston torna-se tirânica, porque não aceita o pluralismo de perspectivas, mesmo que possa dizer o contrário. Uma lista de regras equivale a uma lista de boas maneiras à mesa ou qualquer coisa do género: pretende sempre uniformizar ideias ou comportamentos ou atitudes e, no primeiro caso, à custa da qualidade do conhecimento. O diálogo que está na base da análise argumentativa, a dialéctica, é sistematicamente substituído por um monólogo, o dialecto da tribo conservadora. Argumentar não é discutir, isto é, uma espécie de "luta verbal", mas "oferecer um conjunto de razões a favor de uma conclusão ou oferecer dados favoráveis a uma conclusão": "argumentar não é apenas a afirmação de um determinado ponto de vista nem uma discussão". Começa-se a entender a razão que leva Weston a distinguir entre argumentar e discutir: "Há demasiados estudantes que terminam cursos de «lógica informal» sabendo apenas como abater (ou pelo menos combater) algumas falácias. Contudo, são frequentemente incapazes de explicar o que está realmente errado ou de redigir sozinhos um argumento. A lógica informal pode fazer melhor: este livro é uma tentativa para sugerir a maneira de o fazerem". Encarados como "tentativas de sustentar certos (sic) pontos de vista", os argumentos são, como diz Weston, essenciais; primeiro, porque nos permitem "descobrir quais os melhores pontos de vista", e segundo, porque "são a forma pela qual explicamos e defendemos" a conclusão baseada em boas razões. Além disso, a conclusão deve convencer as outras pessoas, oferecendo as razões e os dados que nos convenceram. Porém, este diálogo é eclipsado pela tentativa de fornecer uma lista de regras: onde há regras há perda de espontaneidade. A lógica informal tende a converter-se em metodologia, explorando um equívoco pseudo-formal de modo a simular a natureza verosímil dos seus objectos de estudo, os discursos persuasivos, como se as suas regras tivessem a mesma força que as regras da lógica formal. As sete regras expostas, além de entrarem em conflito com as práticas científica e filosófica, sobretudo quando aconselham a "evitar termos abstractos", impõem uma maneira uniforme de construção de "argumentos", como se argumentar fosse "uma forma de investigação". Quando expõe a estrutura do seu livro, Weston pode conduzir os seus leitores incautos ao equívoco de confundir argumentos e "ideias", responsável pela forja da noção bizarra de "ideia auto-refutante", porque distingue entre argumentos simples e argumentos compostos ou, como lhes chama, ensaios argumentativos, distinção que se inspira na velha distinção empirista ou racionalista entre ideias simples e ideias compostas. A arte de argumentar de Weston carece de teoria e tende a diluir o conhecimento num conjunto de algoritmos que se aprendem a manejar arbitrariamente, como se a mera análise de argumentos produzisse por si só conhecimentos ou possibilitasse a avaliação crítica de sistemas de conceitos abstractos e concretos. De um modo provocante, poderia dizer que a argumentação não é exterior à teoria, sobretudo a partir do momento em que esta se torna pública. Para exemplificar a estratégia usada por Weston e a ideologia totalitária subjacente ao seu "livro de regras", vou destacar dois "argumentos" usados por ele. O primeiro argumento é utilizado para exemplificar a regra 1 relativa à distinção entre premissas e conclusão: "É preciso não esquecermos que a conclusão é a afirmação para a qual estamos a fornecer razões. As afirmações que fornecem essas razões chamam-se «premissas»". Eis a observação de Winston Churchill: "Seja optimista. Não serve de muito ser outra coisa qualquer". E o comentário de Weston: "Isto é um argumento porque Churchill está a fornecer uma razão para que se seja optimista: a sua premissa é a de que «não serve de muito ser outra coisa qualquer». A premissa e a conclusão de Churchill são suficientemente óbvias." Contudo, existem argumentos falaciosos, um dos quais é utilizado para exemplificar os "argumentos de autoridade", ou melhor, um tipo ilegítimo de "ataque à autoridade": "Ludwig von Mises descreve uma série de ataques ilegítimos ao economista Ricardo: Aos olhos dos marxistas a teoria de Ricardo é espúria porque ele era um burguês. Os racistas alemães condenaram a mesma teoria por Ricardo ser judeu e os nacionalistas alemães por ser inglês. (...) Alguns professores alemães usaram os três argumentos em conjunto contra o valor das doutrinas de Ricardo. Esta é a falácia ad hominem: atacar a pessoa de uma autoridade em vez de atacar as suas qualificações". E, pouco mais adiante, vem o estigma: "os ataques pessoais só desqualificam quem ataca!" Aqui reside a sua própria falácia ad hominem que não capta no argumento de Mises a mesma falácia. Para quem esteja familiarizado com os conteúdos de conhecimentos económicos e políticos, basta confrontar a "escolha" e o uso destes argumentos "exemplares" para detectar a presença da ideologia que preside à elaboração do "livro das regras" de Weston. Explicitemos melhor essa ideologia, levando em conta o conteúdo e o estilo argumentativo. Weston usa uma suposta observação de Churchill, um político de Direita, para exemplificar um "bom argumento", mas sempre que procura exemplificar "maus argumentos" ou argumentos que não lhe convenham, as chamadas falácias, recorre a outras observações que atribui a pessoas de Esquerda que, no segundo argumento, são colocadas ao nível dos racistas e dos nacionalistas alemães, os nazis. É evidente que Weston não critica os argumentos de autoridade, alegando em sua defesa que "precisamos muitas vezes de apoiar-nos noutras pessoas", porque, ele próprio, usa e abusa deste tipo de argumentos (a observação de Churchill, as descrições de Mises), tal como se verifica nos exemplos dados, com o intuito implícito de endoutrinar os seus leitores na ideologia conservadora nacionalista e talvez racial. De um lado, temos os "bons", Churchill e Ricardo, ambos ingleses e homens de Direita; do outro lado, estão os "maus", os marxistas e professores alemães colocados ao mesmo nível dos nazis. Os primeiros produzem "bons argumentos"; os segundos são "falaciosos". Porém, as falácias atribuídas a estes últimos não são da sua própria autoria, mas da lavra de von Mises, um adversário da teoria marxista. Isto significa que estes falsos lógicos da argumentação procuram colocar-se (ideologicamente) acima do próprio processo argumentativo e do conhecimento científico, apresentando a sua perspectiva embrulhada numa linguagem pseudo-lógica, dotada de poder coercitivo e de capacidade para pôr em questão o conteúdo de verdade ou de falsidade das teorias adversárias. Atribuir a falácia ad hominem a Marx é forjar um falso argumento, porque Marx sempre admirou Ricardo nas suas "qualificações" e reconheceu a sua "autoridade" em matéria de economia política burguesa, o que não inviabilizou a elaboração da crítica da economia política, isto é, de uma nova teoria económica do capitalismo. De acordo com a maneira de pensar de Weston, podemos retribuir-lhe o "ataque": "os ataques (a falsos argumentos) só desqualificam quem ataca", ou seja, o livro das regras desqualifica-se a si mesmo, por não "estar informado" e não "ser imparcial", ao mesmo tempo que se distancia da verdadeira natureza da lógica da argumentação, tal como revelada por C. Perelman ou Toulmin. Sem prévia análise crítica e avaliação ponderada dos seus argumentos, a teoria de Marx é acusada de ser falaciosa, porque von Mises que não tinha argumentos sólidos para a refutar recorre a um estratagema puramente retórico: associar Marx ao nazismo, na tentativa derradeira de conquistar e persuadir o seu pequeno auditório. As regras expostas por Weston visam eliminar a discussão ou o diálogo, impondo um modo uniforme de argumentar que cria falácias à medida das suas conveniências, sem levar em conta os conteúdos de conhecimento. A "arte de argumentar" é a tentativa da burocracia predominante de paralisar o momento cognitivo e crítico da Filosofia que persegue o ideal de uma vida justa. A humilhação da filosofia operada por certa prática da conversa interminável, isto é, da "treta", esquece que a Filosofia é uma espécie de concentrado político na teoria que tem dois efeitos principais: na política e nas ciências. (Reconduzo para este post que ajuda a esclarecer a noção de teoria.) J Francisco Saraiva de Sousa
23 comentários:
Parece-me muito interessante a sua intenção, mas incorre num erro à partida enunciado no final: "sem conteúdos objectivos de conhecimento não pode haver argumentação", ou seja, o Francisco parte do erro de pressupor que não haja "conteúdos" antes dos 14/15/16 anos, altura em que no nosso sistema educativo se começa a estudar Filosofia, mas acontece que há. Os jovens não estão vazios, mas antes, muitos cheios de tralha, pelo que o ensino da lógica informal é necessário na purga de conhecimentos. Além disso: não se começa a ensinar Filosofia com lógica, isso é matéria do 11º ano.
De resto, todos os filósofos que se debruçaram sobre a educação (e, para mim, a filosofia deve ter sempre como responsabiilidade a educação) sempre debateram a pertinência do ensino da lógica, dando-lhe mais ou menos relevância, mais ou menos prioridade cronológica.
Oi Else
Ainda não conclui e, com este post de improviso, pretendo apresentar um elogio da filosofia. Nada está concluído de vez! Não sou dogmático e muito menos absolutista. Mas sei que tenho razão no fundamental.
Quanto ao seu argumento, só posso dizer que, no caso de ter razão, a escola não faz sentido, porque todos nascem com conhecimentos.
Sim, precisamente, a escola e o professor como transmissor de conhecimentos já pereceu e está enterrado.
Por mim pode "ter razão" à vontade. Sou mais amiga da verdade do que do Francisco. ;)
Desculpe a "esquizofrenia"! Isto de ter duas contas baralha. :)
Sim, Papillon, mas que Verdade? De que verdade fala? Aqui já reside um grande problema, o da verdade.
A papillon escreveu:
"a escola e o professor como transmissor de conhecimentos já pereceu e está enterrado."
Sendo assim, porque razão existem escolas? Para dar emprego? Para abrigarem crianças e jovens? Se o professor já não transmite conhecimentos, para que serve o professor? Para ser agredido pelos alunos? Para ocupar os alunos? Para os distrair? Sim, foi uma certa pedagogia burocrática que levou a este caos escolar! Pensar que se nasce com conhecimentos e que se deve deixar os alunos emitir opiniões, como se isso fosse espírito crítico. Ora, qualquer declaração neste mundo governado pela economia está armadilhada!
Mesmo que não haja verdade platónica, absoluta, há uma verdade temporal, da nossa época, da nossa geração, da nossa realidade. Claro que há pontos de vista e todos eles são preciosos na análise e possível superação de um problema, mas há pontos de vista melhores que outros, talvez por serem mais amplos, conterem mais relações e "excepções". Resumindo: neste momento não nos podemos dar ao luxo de investigar uma questão sem considerar vários pontos de vista; por outro lado, qualquer intenção de consenso pode obstar ao processo.
E quanto ao último comentário: a agressividade dos alunos advém desse desfalecimento da figura do professor como garante de conhecimento. Já não há mestres, já não há iniciação: há informação e deve haver uma orientação dessa informação.
Em última análise, a Papillon faz a apologia da aparência, enterrando a essência: inviabiliza o conhecimento e mata a crítica. Por isso, já não é "amiga da verdade", mas do fruir da aparência. E, nesse caso, também não é "minha amiga", porque não gosto de viver na aparência, na superfície das coisas.
Ah, ao afirmar o primado da informação e da sua gestão, mata o conhecimento, porque fica prisioneira das informações que são difundidas pelos mass media.
Concordo que é necessário desbravar primeiro certas armadilhas da linguagem, se quisermos que os nossos argumentos não violem os limites do sentido e tenham mais eficácia cognitiva. Isto tanto se aplica ao discurso do senso comum como ao discurso científico.
Mas concentremo-nos agora nos cientistas. O pecado capital dos cientistas, sobretudo dos últimos 120 anos, tem sido o facto de ignorarem as armadilhas e as falácias conceptuais em que muitas vezes se enredam. E o mais grave é rejeitarem liminarmente quando se lhes mostra as falácias em muitos casos, por deficiente formulação conceptual na conclusão do resultado de muitos dos seus trabalhos.
Ora tal desenvencilhamento só a filosofia o pode dar, porque isso é um trabalho da competência dos filósofos. É isso, e outras coisas claro, que os filósofos fazem o tempo todo, porque gastam imenso tempo com isso. Em contrapartida, os cientistas não têm tempo para desenredar armadilhas gramaticais e lógicas da conceptualidade, porque não têm competência para isso, e estão ocupados com outras coisas, nomeadamente a fazer as suas experiências, cada vez mais empíricas. Também fazem experiências de pensamento, é verdade, mas não fazem análises conceptuais. Tem sido, em minha opinião, esta a falácia de Desidério Murcho quando diz que o trabalho central dos cientistas é argumentar. E isto surpreende-me tanto mais vindo de um filósofo a quem são reconhecidas credenciais.
Bem ou mal, foi assim que a ciência evoluiu. Há 350 anos ainda não era bem assim, e é por isso que Descartes tanto se considerava um cientista como um filósofo. Mas esse tempo já passou. Aos filósofos o que é dos filósofos, aos cientistas o que é dos cientistas, e ao senso comum o que é do senso comum.
Fernando Dias
Obrigado pelo seu excelente comentário, com o qual concordo. Já agora peço-lhe que me ajude a clarificar este assunto. Gostava de levar as pessoas a pensar e a clarificar estes assuntos, porque são perninentes para as nossas vidas.
Já vi que editou novo post; logo que tenha tempo vou ler: estou cheio de trabalho e estou a escrever em "pequenos tempinhos livres" entre gestos obrigatórios. É preciso "ganhar a vida". :)
É evidente que nestas trocas de ideias não podemos passar de esboços e pinceladas…
Por exemplo, faria sentido que os departamentos biomédicos, de genética, neurociência, etc., para além da tralha humana de biólogos, médicos, etc., também fizessem parte filósofos. Este trabalho de equipa, estaria articulado por três pólos integrados: o pólo do ensino, o pólo do laboratório e o pólo da vida (empresários, clientes, etc.). Mas nenhum destes pólos teria de ter supremacia sobre os outros. Nem o académico teria de falar de cima da burra, nem o empresário teria de se armar em chico esperto. Nem o laboratório seria um mundo autista, fechado, divorciado do mundo da vida.
Claro que um filósofo antes de chegar a um departamento destes, já tinha passado pela sua formação num departamento de filosofia. Mas nunca seria um cristal perfeito e acabado, porque isso não seria benéfico nem relevante. O resto seria desenvolvido depois no trabalho efectivo.
O ensino, por exemplo de um biomédico, também seria mais dinâmico porque estaria desde logo aberto a todas as realidades descritas no primeiro parágrafo. Ia recebendo a pouco e pouco as ferramentas conceptuais e ao mesmo tempo assistia ao vivo ao desenrolar dos acontecimentos.
Que eu saiba, não existe nenhum sítio, pelo menos cá em Portugal, que funcione assim, com filósofos integrados nas equipas académicas e de investigação, a partirem pedra conceptual.
Sim, em Portugal isso ainda não acontece e, quando parece acontecer, não são filósofos a ocupar esse papel, mas moralistas da mesma área.
Em parte compreende-se esse desprezo pela filosofia: as faculdades ou departamentos de filosofia têm responsabilidade nisso. Os licenciados em filosofia são muito fracos.
O que o Francisco diz já é outro problema que eu não sei como resolver. É evidente que nada implica que a título individual, cada filósofo licenciado, como por exemplo o Francisco, possa ter legitimida de criticar os seus pares e dizer o que diz em relação ao que temos, ou cada médico cientista, licenciado como eu, não possa adquirir competência na análise filosófica e ter pretensões de dar alguns contributos para o esclarecimento conceptual. Mas ao nível geral das organizações a filosofia que temos é a que temos, e os cientistas não são obrigados a ser filósofos. Nem se esperaria que uma descoberta factual conseguisse resolver pelo menos uma questão conceptual. Da mesma maneira que não se esperaria que nenhuma descoberta da física viesse demonstar qualquer teorema matemático.
Claro que não faltarão cientistas e filósofos, depois de lerem o que escrevi, a dizer: “Sim, e que interesse é que isso tem. Isso afecta as experiências que os cientistas fazem?
Mas não se trata de afectar ou não directamente as experiências. As investigações filosóficas contribuem principalmente para a compreensão do que já é conhecido, e para esclarecer a formulação das perguntas relacionadas com o que não é conhecido e se pretenda conhecer. Não tenho dúvidas que as investigações conceptuais e epistémicas feitas pelo menos por alguns filósofos possam contribuir para a mudança do panorama da ciência. Se fossem levadas mais a sério, desde logo algumas experiências seriam abandonadas e outras teriam de ser projectadas de novo, uma vez que muitas questões postas precisariam de ser reformuladas. Também levaria a diferentes descrições dos resultados por forma a não provocar, pelo menos ao nível do público leigo, excessos de confiança em promessas mistificadoras. Antes das descobertas factuais é pressuposto o domínio prévio de muitos conceitos relevantes. E nenhuma descoberta factual seria determinante na elucidação do sentido da articulação dos conceitos.
É certo que novos factos descobertos pela ciência e trazidos à luz da consciência podem suscitar novos problemas conceptuais, ou provocar dúvidas acerca de conceitos pré-existentes. Mas não é a ciência que os vai conseguir resolver ou desenredar. O que a ciência faz, o que não é de menor importância, é fornecer a lenha e a farinha para os fornos filosóficos. Compete depois aos filósofos aquecer o forno, amassar a farinha e fazer o pão. As soluções para os problemas filosóficos têm de ser os filósofos a dá-las. Mas cada um à sua maneira, cientista e filósofo, tratam de matar a fome de sabedoria de todos nós.
Quanto ao meu comentário anterior, não visava a ciência e a filosofia como actividades, mas a incompetência de muitos auto-intitulados cientistas ou filósofos. Em Portugal, o problema reside no sistema que não funciona segundo regras de mérito.
Também as universidades, pelo menos a do Porto, nalgumas faculdades, já funcionam com novas regras que já funcionavam desde sempre: um licenciado em X pode doutorar-se em Y. A licenciatura em si pouco garante: o que importa é a competência da pessoa.
Sim, concordo com o que aqui defendeu, no geral.
Bem, o post já está muito grande e, por isso, não vou clarificar mais o assunto, deixando para outra oportunidade a "crítica da ideologia" nas suas relações com a nova retórica.
Contudo, as críticas são sempre bem-vindas. As teorias podem ser refeitas através da troca de argumentos, ou melhor, da discussão aberta. As ideias morrem; nós os seus criadores não precisamos morrer com elas.
Boa tarde!
Interessantíssima troca de comentários entre sim, Francisco, e o Fernando Dias que nos tem vindo a habituar uma lucidez muito rara nos dias de hoje.
Acompanho o raciocínio defendido por Fräulein Else e da Papillon, na medida em que actualmente já não se espera do Professor a transmisão do conhecimento mas, sobretudo, a orientação num processo de meta-aprendizagem. Daí a morte do Mestre e as consequências que se têm tornado evidentes nos últimos tempo.
O estudo da Lógica e da Argumentação inicia-se, como refere a Else, no 11º ano. Os alunos detêm já (supostamente) uma noção do que é o pensamento filosófico e algumas bases para avançar com esse conteúdo programático que se pode articular, em excelência, com as indicações programáticas de Português. É o que tenho feito com os meus alunos, apresentando-lhes diferentes textos argumentativos. A apresentação culmina com o estudo cuidado do Sermão de St Antº aos Peixes do grande Vieira. Temos acompanhado alguns discursos proferidos na A.R. e procedido a uma análise dos mesmos. E há que trabalhar a capacidade de argumentação escrita e oral a partir de situações de vida que lhes digam respeito.
É um trabalho imenso e intenso que, bem orientado e com alunos movidos por uma motiação intrínseca, promove uma boa colheita a médio prazo (a longo ainda não sei). Mas o problema é a desmotivação de muitos e a ignorância de tantos. É que não são só os licenciados em Filosofia que são fracos. Ah, pois não! :-(
Fernando Dias,
A propósito do seu 1º comentário, para além dos Cientistas e dos Filósofos, há a espécie híbrida, a do Filósofo-Cientista, muito bem representada pelo nosso amigo F. :))))
Oi Denise
Também já critiquei a chamada pedagogia bancária, mas neste momento, face ao estado do ensino e da cultura, prefiro mudar de posição: nada é definitivo. O mundo pode ser mudado desde que se tenha determinação.
Existem certas pessoas que ainda pretendem reduzir a ciência ao método experimental! Encaram a ciência como algo monolítico, negam ou desconhecem a pluralidade de abordagens, e reduzem a "filosofia" à tarefa de justificar aquilo que desconhecem. É assim: eis o resultado da massificação do ensino. :(
O fisicalismo predominante responde de determinado modo a três teses: a da Existência, a da Materialidade e a da Objectividade. Isto significa que as teses dialécticas são submetidas às teses materialistas. Porém, nesta submissão perde-se algo muito importante: a espontaneidade.
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