A filosofia do habitar confronta-se, no momento presente, com um inimigo conjuntural, a actual crise financeira, e com diversos inimigos estruturais, dos quais destacaremos: o inimigo histórico, o inimigo político e o inimigo sociológico.
Inimigo Histórico. Todas as teorias da modernização afirmam que a modernidade conduziu invariavelmente à secularização: as instituições religiosas perderam influência sobre a sociedade e a interpretação religiosa do mundo perdeu credibilidade na formação da consciência das pessoas. Estas duas dimensões da secularização não podem ser abordadas separadamente: no seu aspecto objectivo, sócio-estrutural, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de esferas que estavam sob o seu domínio e influência e implicou a separação da Igreja e do Estado, a expropriação das terras da Igreja ou a emancipação da educação do poder eclesiástico. Porém, dado ser um processo mediante o qual sectores da sociedade e da cultura foram subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos, a secularização não só afectou a totalidade da vida cultural e da cognição, como também, na sua vertente subjectiva, produziu um número crescente de indivíduos que encaram o mundo e as suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas. Surgiu assim o "ser humano moderno", o homem profano ou secular de Eliade, que acredita poder viver, privada e publicamente, sem a religião. A secularização da consciência teve maior impacto na história do Ocidente do que a secularização social.
Mircea Eliade encara a dessacralização da morada humana como parte integrante dessa gigantesca transformação do mundo assumida pelas sociedades industriais modernas, "transformação tornada possível pela dessacralização do Cosmos, efectuada pelo pensamento científico, e sobretudo pelas descobertas sensacionais da Física e da Química". Para Le Corbusier, a casa é uma mera "máquina de habitar" inserida e alinhada entre as inúmeras máquinas fabricadas em série nas sociedades modernas. A "casa ideal do mundo moderno" deve ser funcional, no sentido de possibilitar o repouso necessário para a recuperação da força-de-trabalho, e pode ser facilmente trocada, como "se troca uma bicicleta, um frigorífico ou um carro". A funcionalização da casa e do habitar operada por uma economia de mercado que visa a colonização de toda a sociedade, da natureza e da própria cultura, acabou por conduzir à perda do mundo ou, como diz Hannah Arendt, ao alheamento do mundo. Como afirma Eliade: Para os homens sem religião, o Cosmos tornou-se opaco, inerte e mudo. Até mesmo os cristãos urbanos abandonaram a liturgia cósmica e, por isso, a sua experiência religiosa já não é "aberta" ao Cosmos e o Mundo já não é sentido como obra de Deus: a sua experiência religiosa empobrecida é estritamente privada e visa unicamente a sua própria salvação. Historicamente, o inimigo do habitar autêntico é o próprio capitalismo selvagem que se apropria da terra, devastando-a, e, por isso, a filosofia do habitar é necessariamente uma crítica da irracionalidade do capitalismo, que assume corajosamente o antropocentrismo para melhor "resguardar a quadratura" (Heidegger).
Inimigo Político. Como resultado do desaparecimento de todas as ordens tradicionais aparentemente estáveis, o homem secular desconfia de tudo aquilo que tenha um aspecto de segurança. Aqueles que defendem a importância crucial da casa na vida humana são vistos como indivíduos suspeitos, burgueses ou conservadores. Os românticos reprovavam aqueles indivíduos que se encastelavam na sua casa, levando aí uma vida inactiva e cómoda. Para Schiller, o homem deve sair de casa e ir para o mundo exterior para cumprir as suas tarefas quotidianas e cívicas nesse mundo hostil, expondo-se aos seus perigos. Contudo, segundo Schiller, após cumprir as suas tarefas no mundo exterior, o homem deve ter a possibilidade de voltar ao amparo e ao abrigo da sua casa. Ambos os aspectos polarizados da vida humana são necessários, porque a saúde interior do homem repousa no equilíbrio entre o trabalho e a luta no espaço externo que é o mundo e a tranquilidade no espaço interno da casa.
Por isso, em vez de encarar a política do sentido como uma estratégia conservadora, o pensamento de esquerda deve aprender a olhar, de outro modo, mais positivo e edificante, para a casa, o lar (família), a pátria e os seus valores intrínsecos: a tarefa inalienável do homem é criar este espaço de acolhimento, construindo a sua casa e defendendo-a contra qualquer tentativa de invasão alheia, nomeadamente da intervenção do Estado e das modernas psico-empresas na esfera privada e íntima dos cidadãos.
Inimigo Sociológico. Este inimigo é relativamente recente, está associado à pós-modernidade e parece ser mais um fantasma sociológico do que uma realidade efectiva. Bauman deu-lhe visibilidade: todas as suas figuras humanas pós-modernas, o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador, definem-se por oposição à figura moderna do peregrino, como se estivéssemos condenados a viver num mundo absolutamente contingente, numa atitude passiva de infinita mobilidade e de consumismo voraz. A sociologia enquanto pensamento sociocêntrico é pensamento anónimo e conformista e, por isso, tende a fazer a apologia do status quo, bloqueando a mudança social qualitativa. A filosofia do habitar é clara e frontalmente contra qualquer tipo de pensamento sociológico, mesmo daquele que se afirma herdeiro de Marx.
Como vimos noutro post, Mircea Eliade mostrou que o sagrado e o profano são duas modalidades de experiência e de ser no mundo, isto é, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história, que devem ser estudadas pela antropologia filosófica. A dessacralização do mundo operada pela modernização não aboliu certos traços da conduta do homem arcaico, que ainda persistem no estado de "sobrevivências" ou de "comportamentos cripto-religiosos". Contudo, a perspectiva de Eliade vacila a este propósito, porque, noutro contexto, afirma que, "num mundo dessacralizado como o nosso, o «sagrado» se encontra presente e activo principalmente nos universos imaginários". Ora, como mostrou Bachelard, as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total e, ao contrário do que pensa Eliade, estas experiências não são nocturnas mas diurnas ou, como diz Bloch, são sonhos de um mundo melhor. Se o objectivo é constituir uma autêntica antropologia filosófica, devemos ver nessas "sobrevivências" o "traço fundamental do habitar": "Ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre esta terra" (Heidegger). Assim, alguns aspectos estruturais desse traço fundamental da condição humana que Eliade reconduz à nostalgia do Paraíso são os seguintes:
1. A casa continua a ser o centro do mundo. No contexto do mundo mítico, a casa era regida de maneira "objectiva", protegida e santificada pela ordem sagrada do cosmos, mas, após a sua dessacralização, a estrutura do seu espaço é "subjectivamente" vivida e vivenciada diariamente como centro do mundo. De facto, toda a vida do homem gira em torno da sua morada, que funciona como ponto fixo de referência e de identidade, donde parte e ao qual regressa novamente depois de ter percorrido os lugares do mundo exterior.
2. A casa continua a conservar o seu aspecto particular que só pode ser captado através da sua analogia com o sagrado. Este aspecto sagrado da casa manifesta-se no carácter de sortilégio da violação do domicílio ou mesmo na inviolabilidade das leis da hospitalidade que possibilitam ao hóspede desfrutar a protecção da casa e atribuem ao dono a tarefa de zelar para que ninguém lhe cause qualquer tipo de dano. A casa é potencialmente um espaço inviolável e, por isso, de acesso limitado aos estranhos e aos inimigos.
3. A casa continua a ser uma esfera inviolável de paz, tranquilidade, intimidade e repouso, marcadamente separada do mundo exterior. Já não se trata de defender a casa da penetração de demónios hostis que ameaçam o homem fora da sua casa e cuja infiltração deve ser evitada por meios mágicos, mas o carácter ameaçador deste mundo alheio não desapareceu completamente, sendo protagonizado por novas forças sociais, políticas, económicas e ideológicas que se introduzem no interior do espaço da casa, sem serem desejáveis ou mesmo aceites.
4. A casa continua a ser uma imagem do mundo, mas de um mundo em miniatura que está em correspondência com o mundo exterior. Se a casa é o nosso primeiro mundo, como diz Bachelard, então ainda é um cosmos e, sendo assim, a casa e o mundo correspondem-se de alguma maneira. A criança vê a sua casa como o mundo inteiro e o seu enraizamento nesse solo pátrio permite-lhe crescer e prepara-se para a vida no mundo exterior. Graças ao facto de habitar na sua casa, o homem pode aprender a habitar o mundo exterior mais vasto e sentir-se no mundo como se estivesse em sua casa.
Coube a Minkowski analisar o carácter da morada que é a intimidade, mas, para desfrutar essa intimidade da casa, é preciso partilhá-la com a comunidade da família. Deste modo, a casa e a família encontram-se inseparavelmente ligadas para criar a sensação humana de amparo. O lar é um espaço aberto a um círculo reduzido de amigos e de pessoas íntimas. Segundo Minkowski, a essência da casa não pode ser captada a partir do indivíduo isolado, o celibatário ou o viúvo, mas apenas a partir da comunidade familiar e dos amigos próximos e íntimos: a casa é fundada não por um mas por dois indivíduos. Sem se aperceber dessa conexão essencial, Minkowski retoma uma noção antiga de lar. Fustel de Coulanges apreendeu-a quando escreve: "Toda a casa do grego ou do romano abrigava um altar; sobre ele devia haver sempre cinzas e brasas. Era obrigação do dono da casa conservar o fogo acesso dia e noite. Grande desgraça seria para a casa se o fogo se extinguisse! Ao anoitecer, eram cobertos de cinza os carvões, para se evitar que se consumissem inteiramente durante a noite; pela manhã, o primeiro cuidado era avivar o fogo e alimentá-lo com alguns ramos secos. O fogo só deixará de brilhar sobre o altar quando toda a família estivesse extinta; lar extinto, família extinta, eram expressões sinónimas entre os antigos". O capitalismo ameaça destruir este fogo do lar e, com ele, a própria humanidade do homem, que mantém prisioneiro da condição metabolicamente reduzida numa terra devastada. "Eu habito, tu habitas, nós habitamos" a "nossa casa", a "nossa terra", o "nosso mundo", a "nossa pátria": é assim que o revolucionário conjuga o verbo "habitar". O devaneio do sonhador solitário, até mesmo quando revisita a casa paterna ou a casa natal, por vezes numa atitude de nostalgia, mas frequentemente numa atitude de esperança militante, sonha diurnamente a casa onírica: a pátria da identidade da humanidade naturalizada e da natureza humanizada. (Sobre a poética da Casa pode ler três posts já editados aqui, bem como outro sobre Merleau-Ponty, entre tantos outros.)
J Francisco Saraiva de Sousa
Inimigo Histórico. Todas as teorias da modernização afirmam que a modernidade conduziu invariavelmente à secularização: as instituições religiosas perderam influência sobre a sociedade e a interpretação religiosa do mundo perdeu credibilidade na formação da consciência das pessoas. Estas duas dimensões da secularização não podem ser abordadas separadamente: no seu aspecto objectivo, sócio-estrutural, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de esferas que estavam sob o seu domínio e influência e implicou a separação da Igreja e do Estado, a expropriação das terras da Igreja ou a emancipação da educação do poder eclesiástico. Porém, dado ser um processo mediante o qual sectores da sociedade e da cultura foram subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos, a secularização não só afectou a totalidade da vida cultural e da cognição, como também, na sua vertente subjectiva, produziu um número crescente de indivíduos que encaram o mundo e as suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas. Surgiu assim o "ser humano moderno", o homem profano ou secular de Eliade, que acredita poder viver, privada e publicamente, sem a religião. A secularização da consciência teve maior impacto na história do Ocidente do que a secularização social.
Mircea Eliade encara a dessacralização da morada humana como parte integrante dessa gigantesca transformação do mundo assumida pelas sociedades industriais modernas, "transformação tornada possível pela dessacralização do Cosmos, efectuada pelo pensamento científico, e sobretudo pelas descobertas sensacionais da Física e da Química". Para Le Corbusier, a casa é uma mera "máquina de habitar" inserida e alinhada entre as inúmeras máquinas fabricadas em série nas sociedades modernas. A "casa ideal do mundo moderno" deve ser funcional, no sentido de possibilitar o repouso necessário para a recuperação da força-de-trabalho, e pode ser facilmente trocada, como "se troca uma bicicleta, um frigorífico ou um carro". A funcionalização da casa e do habitar operada por uma economia de mercado que visa a colonização de toda a sociedade, da natureza e da própria cultura, acabou por conduzir à perda do mundo ou, como diz Hannah Arendt, ao alheamento do mundo. Como afirma Eliade: Para os homens sem religião, o Cosmos tornou-se opaco, inerte e mudo. Até mesmo os cristãos urbanos abandonaram a liturgia cósmica e, por isso, a sua experiência religiosa já não é "aberta" ao Cosmos e o Mundo já não é sentido como obra de Deus: a sua experiência religiosa empobrecida é estritamente privada e visa unicamente a sua própria salvação. Historicamente, o inimigo do habitar autêntico é o próprio capitalismo selvagem que se apropria da terra, devastando-a, e, por isso, a filosofia do habitar é necessariamente uma crítica da irracionalidade do capitalismo, que assume corajosamente o antropocentrismo para melhor "resguardar a quadratura" (Heidegger).
Inimigo Político. Como resultado do desaparecimento de todas as ordens tradicionais aparentemente estáveis, o homem secular desconfia de tudo aquilo que tenha um aspecto de segurança. Aqueles que defendem a importância crucial da casa na vida humana são vistos como indivíduos suspeitos, burgueses ou conservadores. Os românticos reprovavam aqueles indivíduos que se encastelavam na sua casa, levando aí uma vida inactiva e cómoda. Para Schiller, o homem deve sair de casa e ir para o mundo exterior para cumprir as suas tarefas quotidianas e cívicas nesse mundo hostil, expondo-se aos seus perigos. Contudo, segundo Schiller, após cumprir as suas tarefas no mundo exterior, o homem deve ter a possibilidade de voltar ao amparo e ao abrigo da sua casa. Ambos os aspectos polarizados da vida humana são necessários, porque a saúde interior do homem repousa no equilíbrio entre o trabalho e a luta no espaço externo que é o mundo e a tranquilidade no espaço interno da casa.
Por isso, em vez de encarar a política do sentido como uma estratégia conservadora, o pensamento de esquerda deve aprender a olhar, de outro modo, mais positivo e edificante, para a casa, o lar (família), a pátria e os seus valores intrínsecos: a tarefa inalienável do homem é criar este espaço de acolhimento, construindo a sua casa e defendendo-a contra qualquer tentativa de invasão alheia, nomeadamente da intervenção do Estado e das modernas psico-empresas na esfera privada e íntima dos cidadãos.
Inimigo Sociológico. Este inimigo é relativamente recente, está associado à pós-modernidade e parece ser mais um fantasma sociológico do que uma realidade efectiva. Bauman deu-lhe visibilidade: todas as suas figuras humanas pós-modernas, o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador, definem-se por oposição à figura moderna do peregrino, como se estivéssemos condenados a viver num mundo absolutamente contingente, numa atitude passiva de infinita mobilidade e de consumismo voraz. A sociologia enquanto pensamento sociocêntrico é pensamento anónimo e conformista e, por isso, tende a fazer a apologia do status quo, bloqueando a mudança social qualitativa. A filosofia do habitar é clara e frontalmente contra qualquer tipo de pensamento sociológico, mesmo daquele que se afirma herdeiro de Marx.
Como vimos noutro post, Mircea Eliade mostrou que o sagrado e o profano são duas modalidades de experiência e de ser no mundo, isto é, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história, que devem ser estudadas pela antropologia filosófica. A dessacralização do mundo operada pela modernização não aboliu certos traços da conduta do homem arcaico, que ainda persistem no estado de "sobrevivências" ou de "comportamentos cripto-religiosos". Contudo, a perspectiva de Eliade vacila a este propósito, porque, noutro contexto, afirma que, "num mundo dessacralizado como o nosso, o «sagrado» se encontra presente e activo principalmente nos universos imaginários". Ora, como mostrou Bachelard, as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total e, ao contrário do que pensa Eliade, estas experiências não são nocturnas mas diurnas ou, como diz Bloch, são sonhos de um mundo melhor. Se o objectivo é constituir uma autêntica antropologia filosófica, devemos ver nessas "sobrevivências" o "traço fundamental do habitar": "Ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre esta terra" (Heidegger). Assim, alguns aspectos estruturais desse traço fundamental da condição humana que Eliade reconduz à nostalgia do Paraíso são os seguintes:
1. A casa continua a ser o centro do mundo. No contexto do mundo mítico, a casa era regida de maneira "objectiva", protegida e santificada pela ordem sagrada do cosmos, mas, após a sua dessacralização, a estrutura do seu espaço é "subjectivamente" vivida e vivenciada diariamente como centro do mundo. De facto, toda a vida do homem gira em torno da sua morada, que funciona como ponto fixo de referência e de identidade, donde parte e ao qual regressa novamente depois de ter percorrido os lugares do mundo exterior.
2. A casa continua a conservar o seu aspecto particular que só pode ser captado através da sua analogia com o sagrado. Este aspecto sagrado da casa manifesta-se no carácter de sortilégio da violação do domicílio ou mesmo na inviolabilidade das leis da hospitalidade que possibilitam ao hóspede desfrutar a protecção da casa e atribuem ao dono a tarefa de zelar para que ninguém lhe cause qualquer tipo de dano. A casa é potencialmente um espaço inviolável e, por isso, de acesso limitado aos estranhos e aos inimigos.
3. A casa continua a ser uma esfera inviolável de paz, tranquilidade, intimidade e repouso, marcadamente separada do mundo exterior. Já não se trata de defender a casa da penetração de demónios hostis que ameaçam o homem fora da sua casa e cuja infiltração deve ser evitada por meios mágicos, mas o carácter ameaçador deste mundo alheio não desapareceu completamente, sendo protagonizado por novas forças sociais, políticas, económicas e ideológicas que se introduzem no interior do espaço da casa, sem serem desejáveis ou mesmo aceites.
4. A casa continua a ser uma imagem do mundo, mas de um mundo em miniatura que está em correspondência com o mundo exterior. Se a casa é o nosso primeiro mundo, como diz Bachelard, então ainda é um cosmos e, sendo assim, a casa e o mundo correspondem-se de alguma maneira. A criança vê a sua casa como o mundo inteiro e o seu enraizamento nesse solo pátrio permite-lhe crescer e prepara-se para a vida no mundo exterior. Graças ao facto de habitar na sua casa, o homem pode aprender a habitar o mundo exterior mais vasto e sentir-se no mundo como se estivesse em sua casa.
Coube a Minkowski analisar o carácter da morada que é a intimidade, mas, para desfrutar essa intimidade da casa, é preciso partilhá-la com a comunidade da família. Deste modo, a casa e a família encontram-se inseparavelmente ligadas para criar a sensação humana de amparo. O lar é um espaço aberto a um círculo reduzido de amigos e de pessoas íntimas. Segundo Minkowski, a essência da casa não pode ser captada a partir do indivíduo isolado, o celibatário ou o viúvo, mas apenas a partir da comunidade familiar e dos amigos próximos e íntimos: a casa é fundada não por um mas por dois indivíduos. Sem se aperceber dessa conexão essencial, Minkowski retoma uma noção antiga de lar. Fustel de Coulanges apreendeu-a quando escreve: "Toda a casa do grego ou do romano abrigava um altar; sobre ele devia haver sempre cinzas e brasas. Era obrigação do dono da casa conservar o fogo acesso dia e noite. Grande desgraça seria para a casa se o fogo se extinguisse! Ao anoitecer, eram cobertos de cinza os carvões, para se evitar que se consumissem inteiramente durante a noite; pela manhã, o primeiro cuidado era avivar o fogo e alimentá-lo com alguns ramos secos. O fogo só deixará de brilhar sobre o altar quando toda a família estivesse extinta; lar extinto, família extinta, eram expressões sinónimas entre os antigos". O capitalismo ameaça destruir este fogo do lar e, com ele, a própria humanidade do homem, que mantém prisioneiro da condição metabolicamente reduzida numa terra devastada. "Eu habito, tu habitas, nós habitamos" a "nossa casa", a "nossa terra", o "nosso mundo", a "nossa pátria": é assim que o revolucionário conjuga o verbo "habitar". O devaneio do sonhador solitário, até mesmo quando revisita a casa paterna ou a casa natal, por vezes numa atitude de nostalgia, mas frequentemente numa atitude de esperança militante, sonha diurnamente a casa onírica: a pátria da identidade da humanidade naturalizada e da natureza humanizada. (Sobre a poética da Casa pode ler três posts já editados aqui, bem como outro sobre Merleau-Ponty, entre tantos outros.)
J Francisco Saraiva de Sousa
1 comentário:
Com a republicação deste extracto de um post maior, viso preparar o terreno para o debate de hoje no Prós e Contras: O Valor da Casa! :)
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